DIVINAS EPIDEMIAS: A propagação das religiões explicada pela midialogia de Régis Debray

Ilustração por Charb, presente no livro de Daniel Bensaïd, “Marx: Manual de Instruções” (Ed. Boitempo)

DIVINAS EPIDEMIAS: A propagação das religiões explicada pela midialogia de Régis Debray – por Eduardo Carli de Moraes

“Sem dúvida, crer é natural para o único animal que sabe que vai morrer.” – Régis Debray em Deus, Um Itinerário (p. 16)

Foi Deus quem criou Humanidade, ou foi a Humanidade quem criou Deus? Talvez este seja o equivalente teológico da famosa querela zoológica do ovo e da galinha. Quem nasceu primeiro, afinal de contas, o Criador ou suas criaturas? O homo sapiens inventa Deus, ou Deus inventa o homo sapiens?

A esta enrolada controvérsia, adiciona a querela entre os crentes: há um único Deus, ou os deuses são vários? Os inumeráveis e muito variados povos, através da história, que aderiram a uma espiritualidade politeísta – como os gregos que idolatravam um Olimpo repleto de deuses, e que povoaram suas epopéias homéricas com as brigas por supremacia entre as divindades – “morreriam de rir se ouvissem falar que só há um deus verdadeiro”, como diz Débray [2001, p. 82].

Para além da briga interminável entre teístas e ateus, e entre os primeiros a treta que opõe monoteístas e politeístas, há algo mais a se considerar: as representações sobre o Tempo, radicalmente discrepantes, que os seres humanos fazem de acordo com as opiniões e crenças que nutrem (por terem sido com elas nutridos).

Um dos debates científicos e filosóficos mais quentes da contemporaneidade resume-se na pergunta: Nature or Nurture? Isso que nós pensamos sobre o Tempo e sobre os Deuses, vem da natureza e nos é inato, ou então fomos nutridos com algo que nos inculcou aquilo que hoje consideramos como dogma, artigo de fé e verdade absoluta?

É impossível que estejam ambos com a verdade estes dois personagens irreconciliáveis, ícones da controvérsia milenar entre Fé e Razão: 1) aquele que afirma , com as Escrituras cristãs, que um deus único criou tudo o que existe há cerca de 6.000 anos, como está escrito no Gênesis, e 2) aquele que afirma com base na Ciência que o planeta Terra formou-se há cerca de 4,56 bilhões de anos e que as primeiras formas de vida só nasceram um bilhão de anos depois.

É impossível que ambos personagens estejam certos, pela razão simplérrima de que o Mundo não pode ter simultaneamente 6.000 anos e 4,5 bilhões de anos de idade. O que quer dizer que… das duas uma: ou ambas as hipóteses estão erradas, ou um destes dois personagens está equivocado e delira, falseando o Tempo pretérito já transcorrido com uma representação falsa do Passado.

“E Elohim criou Adão”, de William Blake

“Vamos abrir a Bíblia. Uma semana para criar os céus e a terra, pronunciando algumas palavras-chave – luz, água, árvore, estrela, animais, homem -, seguida de milhões de semanas de boca fechada, sem se manifestar. Sem revelar sua proeza – ou seu delito…” (Regis Débray, Deus: Um Itinerário, Companhia das Letras, 2001, p. 36)

Ora, o mito de Criação do monoteísmo situa a invenção do ser humano por Deus – o parto milagroso de Adão e Eva, que nascem já prontos, com corpos de homo sapiens que nunca precisaram antes evoluir a partir dos símios através dos milênios – há 6.000 anos atrás. Darwin gargalha no túmulo diante de tamanha ingenuidade da Humanidade nos primórdios toscos de sua cultura ainda bárbara.

Ora, os historiadores e arqueólogos sabem muito bem que, há 6.000 anos atrás, os seres humanos já estavam sobre a face do planeta há muito tempo, tendo logrado o controle do fogo há cerca de 500.000 anos atrás… Reduzir a História total de tudo o que já ocorreu à cifra minúscula de 6.000 anos é quase que certamente um equívoco, um erro, uma ilusão, uma mentira. Uma crença merecedora de ser aposentada por quem respeite as evidências.

A questão pode ser formulada de outro modo: se considerarmos como correta a teoria da evolução das espécies, comprovada cientificamente por milhares de experimentos empíricos e descobertas arqueológicas (os paleontólogos e antropólogos dirão: “os fósseis não mentem!”), seria possível dizer que Deus ou deuses existiram durante os milhares de milênios onde ainda não havia surgido sobre a face da terra o homo sapiens?

 Não é verdade que a crença em Deus, recentíssima na história natural, que se manifesta apenas em uma espécie animal entre milhões de outras, dependeu, para se constituir, do advento das capacidades simbólicas e da “função fabulatriz”, de que nos fala o filósofo Henri Bergson? Para que os deuses começassem a nascer, não foi preciso que a história cósmica, que o processo natural, atravessasse milhões de anos até que nascesse este primata ereto que somos, este mamífero com polegar opositor e tele-encéfalo altamente desenvolvido?

Em outros termos: se os símios nunca tiveram religião (alguém já viu orangotangos rezando ou gorilas construindo catedrais?), não é evidente que a religião começa a certo ponto do processo de hominização da criatura que Platão chamou de “bípede sem plumas”?

Os estudos de história das religiões, conduzidos por pesquisadores respeitáveis como Mircea Eliade e Leroi-Gourhan, não demonstram, através das revelações que nos fazem sobre as crenças e mitos da pré-história, que a religião faz sua entrada no palco do mundo a certo ponto da caminhada humana? Ora, a caminhada humana é profundamente determinada pelos avanços técnico-científicos, de modo que o surgimento histórico das religiões não seria separável de fenômenos tecnológicos e científicos que foram pontos-de-virada na evolução da espécie.

Aquilo que chamamos de Deus único, sustentáculo do credo monoteísta, quando visto de uma perspectiva histórica e genealógica, aparece-nos como uma invenção recentíssima: os crentes monoteístas chamam de Eterno aquilo que nasceu agora pouco!

Os credos monoteístas, nos seus cerca de 3.000 anos de existência (uma gotícula minúscula na vastidão do oceano do Tempo!), não cessaram de transformar-se sob o impacto das transformações nas condições materiais e concretas da Humanidade.

Por isso, em seu instigante livro Deus – Um Itinerário, Régis Debray propõe realizar uma “história do Eterno no Ocidente”, mobilizando todo o arsenal da disciplina científica que ajudou a fundar: a midialogia.

Debray dedica-se a explicar como se deram as inúmeras metamorfoses do monoteísmo em sua curta estadia neste planeta. Afirma com todas as letras que a invenção de Deus só pôde se dar quando os humanos tinham desenvolvido a escrita e a roda:

“O Deus [Único, o deus dos monoteísmos] é impensável sem a escrita essencialmente e sem a roda secundariamente, as quais reduzem, em vários graus, a dependência do homem em relação ao espaço (a roda) e ao tempo natural (a escrita). O Único é tardio porque foram tardias as próteses que remetem a certas maneiras de circular e de memorizar, dependentes elas próprias de ecossistemas bem delimitados.

Não foi no alto do monte Sinai, numa bela manhã, que o Todo-Poderoso finalmente encontrou a ocasião apropriada de manifestar-se como tal. Foi um certo uso político, dado a inovações técnicas, que conferiu consistência e necessidade ao monoteísmo. As panóplias do primata inventivo têm seu tempo próprio (ultra-rápido desde a Revolução Industrial, porém ainda bastante lento após a Revolução Neolítica). O homem descende do símio, mas Deus descende do signo, e os signos têm uma longa história.” (Débray, 2001, p. 38)

É em virtude de um preconceito tenaz, que nos foi inculcado desde tenra idade, que nós temos a tendência a pensar no Deus judaico-cristão como algo que sempre existiu, não atentando ao seu processo de constituição e às técnicas culturais que estiveram em ação na formação deste produto histórico.

Enxergar toda a história das religiões anteriores ao monoteísmo como uma longa noite bárbara-pagã, onde os idólatras adoravam os falsos deuses do politeísmo greco-romano ou os orixás das cosmologias africanas, é um vício do olhar retrospectivo. Não podemos seguir falseando o tempo pretérito com uma visão contaminada de presunção etnocêntrica, como ocorre tão frequentemente entre judeus, muçulmanos e cristãos, os acólitos de religiões monoteístas.

Eles querem tornar o monoteísmo uma norma, algo que deve ser universalizado, algo que deve ter a aderência de todos, mas acabam mentindo sobre a eternidade, pois supõe como Eterno aquilo que veio-a-ser, postulam como dogma um Deus sem História que na verdade é um produto histórico do caminhar coletivo dos seres humanos. Assim, muitos crentes monoteístas acabam reprimindo, perseguindo ou mesmo massacrando aqueles que querem contar a história dos respectivos processos de constituição e propagação das seitas.

Regis Debray, pensador francês

“Quando se trata do Deus judaico-cristão, é difícil, para nós, nos desfazermos de hábitos de pensamento imperial, no qual um teocentrismo tranquilo recobre a presunção etnocêntrica. Esse Deus central e culminante se apresenta, ao nosso espírito, como o ponto de origem de um impulso irreversível característico da humanidade civilizada, ultrapassado o limiar das religiões ‘primitivas’. (…) Podemos ler, no Dicionário de Teologia Católica: ‘a revelação bíblica indica aos crentes que, na origem, existiu não o animismo, mas uma religião pura e monoteísta. Os politeísmos antigos não passam de uma degradação.’

Para essa convicção de anterioridade cronológica não contribui pouco a imemorial feitiçaria da fonte. Por natureza, o Ser perfeito predispõe a isso. ‘A concepção de que, no início de todas as coisas, encontra-se o que há de mais precioso e de mais essencial’, Nietzsche a caracteriza como ‘resíduo metafísico’. Como conjurar a quimera da origem no cume da metafísica, na figura de um Deus que não passa do que a idéia de origem O faz ser? Como escapar à suposição de que, no Seu berço, se encontra a essência mais pura?

(…) O monoteísmo nada tem de princípio fundador e genérico, desde a origem destinado a preencher toda a terra… Podemos nos dirigir em voz alta a um cadáver, dialogar com ele por meio de oração e oferendas, depositar na sua tumba algo com que se restaurar, sem supor um onipotente a controlar, amorosamente, todos os homens. Isso ocorreu bem antes do nosso bom deus e continuo a acontecer depois Dele por longo tempo. O reflexo que consiste em investir a morte com uma mensagem de vida, para suavizar o traumatismo de uma perda, não implica nenhuma teologia particular… Sustentar que a primeira personagem que intervém na espiritualidade é Deus é esquecer o Sol, os ancestrais, os espíritos e o Grande Pã, ou seja, nove décimos do trajeto.” (Débray, 2001, p. 42)

“Sem dúvida, crer é natural para o único animal que sabe que vai morrer”, escreve Débray, sugerindo que o homo sapiens já vem ao mundo com uma certa predisposição inata para a crença, já que é o único animal cuja evolução psicobiológica o conduziu à difícil e angustiante posição de um ser consciente de sua finitude.

Condenados pela biologia à incompletude e à dependência – que criatura frágil e dolorosamente incompleta é esta que sai do ventre da mãe, e que precisa ser amamentada e cuidada com esmero por um tempo muito mais amplo do que recém-nascidos de outras espécies, que já “se viram sozinhos” desde muito mais cedo! -, os seres humanos estariam predispostos à credulidade.

Porém, através da história, esta credulidade passará por imensas mutações de acordo com fatores variáveis como cultura, etnia, estado da tecnologia na sociedade. Normalmente não pensamos no quanto uma discussão sobre técnica pode elucidar nossas controvérsias sobre teologia. E é nisso que a obra de Débray chega para provar, com um brilhantismo que emana de suas páginas em jato contínuo, que não é possível compreender as religiões sem atentar para os meios de transmissão das mesmas.

Não é possível compreender a Reforma Protestante inaugurada por Lutero desvinculada da invenção da imprensa de Gutenberg, assim como não é possível compreender a constituição do cristianismo sem o trabalho de difusão da boa nova realizado por figuras como Paulo, o marketeiro de Cristo. O que nos obriga a concluir que Jesus de Nazaré jamais fundou o cristianismo e que foi apenas séculos após a morte de Jesus que a instituição que agia em seu nome pôde de fato inventar o cristianismo sobre o legado de um judeu dissidente, executado na cruz, e que nunca foi cristão.

“A Dúvida de Tomé”, 1599, de Caravaggio

“Não foi São Tomé, mas São Paulo – o qual não chegou a ver ou ouvir Jesus de Nazaré – que tornou transportável a fé no Cristo. Esse ‘contágio’ operou-se à distância, historicamente e geograficamente, de seu ‘ponto de origem’, por vias não genéticas e não familiares, sem efeito de multidão nem sugestão sonambúlica, sem que os convertidos tivessem sido hipnotizados. Eis a razão pela qual essa propagação teve necessidade, precisamente, de uma instituição, a Igreja, e de determinado conjunto de técnicas de inculcação (a evangelização).” – DÉBRAY, Transmitir – O Segredo e a Força das Idéias (Ed. Vozes, RJ: Petrópolis: 2000, p. 137)

O que Débray ensina é que a difusão de uma doutrina – no caso, a dogmática cristã – só pode ser corretamente compreendida se atentarmos para as técnicas de difusão, dependentes dos meios tecnológicos disponíveis em determinada época e lugar. De modo que o cristianismo não teria sido o que foi, isto é, um caso de bem-sucedida epidemia simbólica de disseminação global, caso e os evangelizadores não tivessem sabido se aproveitar das tecnologias de comunicação e de transporte que tinham às mãos em seu tempo histórico e território geográfico:

“Que o grandioso nascimento do Deus único não rejeite, em nota acessória, a itinerância em meio desértico e o grande nomadismo pastoral que forçaram a inventar uma coisa diferente do altar de mármore em seu perímetro citadino, uma coisa diferente dos deuses do lar intransportáveis, a saber: um Deus móbil e amovível!” (Débray, Transmitir, p. 153)

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PARTE 2: TALVEZ DEUS NÃO EXISTA, MAS SEUS FÃ-CLUBES EXISTEM COM CERTEZA

É claro que poderíamos discutir até o fim dos tempos se Deus (o Criador da Natureza, causa de si mesmo, Pai que não tem pai…) existe ou não. Eis uma questão das mais polêmicas já formuladas pelo ser humano, o único animal que se pergunta e que se angustia.

Porém, ainda que muitos possam negar a existência de Deus, poucos ateus ou agnósticos seriam capazes de negar a presença da crença religiosa através da história humana, o que nos leva a uma discussão que se desvia da teologia e abraça a antropologia, como o velho Ludwig Feuerbach já propunha: o ser humano é naturalmente crédulo? É inimaginável um tempo histórico vindouro onde vivesse uma humanidade completamente desprovida de fé?

Em outros termos: ainda que Deus não exista, nem nunca tenha existido, não existirão sempre os crentes? Ainda que os céus estejam vazios do divino, não seguirão os humanos dirigindo às nuvens e às estrelas as suas preces?

A história das controvérsias sobre a existência ou não de Deus, ou seja, as controvérsias infindáveis sobre a natureza do Ser Supremo, dão pano pra manga a intermináveis conversas de boteco, simpósios acadêmicos e guerras sangrentas. Milhares de histórias poderiam ser contadas sobre os conflitos de religião, desde querelas meramente verbais e intelectuais às chacinas e massacres sectários. Das tretas escolásticas opondo os fiéis de Tomás de Aquino aos adeptos da Reforma de Lutero, às Noites de São Bartolomeu e às fogueiras da “Santa” Inquisição.

Outra pergunta, no entanto, tem me fascinado e me forçado a mobilizar minhas limitadas forças intelectuais e sensíveis para decifrá-la: se Deus não existe, se nunca houve uma divindade que fabricou a Natureza (e tudo que ela contêm) a partir de sua potência criadora, se a crença nesta entidade não passa de um calmante psíquico inventado pelo único organismo vivo que se sabe mortal, como é possível que a religião, como mero ópio mental, possa determinar em tão larga medida a história concreta dos povos? É esta questão que a midialogia pode nos ajudar a elucidar.

Quando Marx, em sua célebre formulação, afirmou que a religião é o ópio do povo, talvez não estivesse inconsciente do quanto o ópio foi uma mercadoria de suma importância, muito demandada e ofertada no mercado, a despeito de quaisquer leis proibicionistas.

Se a fórmula de Marx é verdadeira, aconteceria com a religião o mesmo que ocorre com os opiáceos: se tentássemos proibi-la, ela se vingaria de nosso tolo ímpeto proibicionista e se faria uma mercadoria clandestina, amplamente comprada e vendida nos supermercados das ideias, valores e pertenças que são as religiões instituídas.

Ademais, precisamos compreender a fundo os meios de comunicação e mobilização que as religiões instituídas detêm, e que vem sendo há milênios amplamente utilizados para pôr em circulação esse sagrado ópio.

Em seu artigo “Marxismo e Religião: O Ópio do Povo” (presente no livro Centelhas), Michael Löwy chama a atenção para o fato de que a luta de classes se aplica também ao campo religioso e que não é à toa que certos grupos sociais filiem-se à Opus Dei, alguns outros encham os mega-templos da Igreja Universal do Reino de Deus, enquanto outros se digam fiéis da Teologia da Libertação, todos eles declarando-se igualmente cristãos, a despeito das imensas diferenças de comportamento que implicam estas diversas pertenças.

Deveríamos, portanto, estabelecer uma diferenciação entre vários tipos de ópio religioso? Poderíamos, além disso, julgar esses ópios não apenas a partir de seus efeitos analgésicos, mas pela veracidade da experiência vivida que eles implicam para seus usuários?

“Partidários e adversários do marxismo parecem concordar num ponto: a célebre frase ‘a religião é o ópio do povo’ representa a quintessência da concepção marxista sobre o fenômeno religioso. Ora, essa afirmação não tem nada de especificamente marxista. Podemos encontrá-la com poucas diferenças, antes de Marx, em Immanuel Kant, J. G. Herder, Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer, Moses Hess, Heinrich Heine e muitos outros.

Heine já a usava de uma maneira positiva, embora irônica: ‘Bendita seja a religião que derrama no amargo cálice da sofredora espécie humana algumas doces e soníferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, esperança e crença.’ Moses Hess, em ensaios publicados na Suíça em 1843, adota posição mais crítica: ‘A religião pode tornar suportável a infeliz consciência da servidão da mesma forma que o ópio é de boa ajuda nas doenças dolorosas.’

(…) A expressão apareceu pouco depois na introdução de Marx para ‘Crítica da Filosofia do Direito de Hegel’ (1844), onde Marx diz que a religião é dual: expressão da miséria real e protesto contra ela. Ora legitimação da sociedade existente, ora protesto contra ela.” (LÖWY, Centelhas, p. 34)

Parece-me evidente – e creio que ateus e agnósticos não discordariam – o quanto vivemos hoje em um mundo radicalmente moldado pelas religiões, a despeito do avanço de uma restrita maré de secularização / laicidade.

Os povos não parecem nem um pouco a fim de renunciar ao seu cômodo ópio espiritual, remédio que não se encontra nas farmácias e que visa amainar a fúria dos sentimentos de angústia e finitude que experimentam os seres humanos, esses animais mortais que sabem que vão morrer (feito inédito na história dos corpos vivos conscientes).

A sociedade em que vive o ateu fornece-lhe inúmeras provas de que sua negação da existência concreta do ente venerado sob o nome de Deus, seu a-teísmo enquanto tese sobre a realidade cósmica, não permite ao ateu negar que as ilusões são fecundas em consequências. 

Tanto que Sigmund Freud não chamou seu livro de O Passado de Uma Ilusão… Ou seja, não fez uma arqueologia da fé morta e posta sob autópsia, mas sim falou sobre O Futuro de Uma Ilusão. O ópio da fé, por mais mentiroso que seja, terá ainda um longo porvir. Freud explica: isso se dá porque a força da fé não está em sua verdade, mas nos desejos humanos que ela visa satisfazer. Não há sinal de vitória final, de triunfo total, das Luzes sobre as Trevas. Os iluministas estão sempre sendo obrigados a testemunhar as re-ascensões do obscurantismo.

É só pensar que, por mais ateu que eu seja, não escapo de viver numa sociedade em que todos estão em consenso sobre contar o tempo a partir de um certo sujeito nascido em Nazaré, na Galiléia, há cerca de 2018 anos atrás. Por mais agnóstico roxo que você seja, não há como evitar que no dia 25 de Dezembro seja feriado. Nem que haja diferenças significativas na vida social organizada em épocas do ano em que tudo se transmuta: o labor comum é paralisado, ações rituais de massa ocorrem, quando o Calendário aponta dia de Páscoa, Sexta Feira da Paixão… Quem explicou isso brilhantemente foi Maurice Halbwachs (1877 – 1945), filósofo da Memória Coletiva, autor de Les Cadres Sociaux de la Mémoire.

Por mais descrente que o sujeito seja, ele não pode negar tampouco o quanto a religião tem força de mobilização, convocando como ímãs os fiéis para encherem os templos da Universal, peregrinarem a Meca ou ao Vaticano, participarem de imensas procissões hindus na Índia, ou incorporarem em mil terreiros o poderio ancestral dos orixás…

O animal que pergunta e que sabe que irá morrer é também o único bicho religioso. Ao menos é o que indica a experiência empírica, através da História, que nunca ofereceu ao biólogo ou zoólogo o espetáculo de orangotangos que construíssem igrejas ou de cachorros que ficassem de joelhos rezando sob um crucifixo.

Por mais ateus que sejamos, não é possível decretar, no íntimo da subjetividade, que o conceito de Deus é apenas um fantasma vazio, uma ilusão que perdura nas mentes ingênuas, um ópio a que se apega o vulgo para suportar as agruras da existência, não tendo as religiões nenhuma importância objetiva. Isso equivaleria a ser cego àquilo que temos diante de nossos olhos: o resultado de uma História onde as ideologias religiosas estiveram diretamente envolvidas com o tecer coletivo do mundo que compartilhamos.

Pois as religiões, se é óbvio que nos separam, também nos unem. A própria etimologia o sugere, pois religião vem de re-ligare, e não são poucas as pessoas que tem uma religião por causa da vontade de pertença a uma comunidade, o que sugere que quando comungamos da mesma religião, ela opera no espaço entre nós um trabalho de religação, criando a coesão que dá coerência a uma seita e a distingue de outras.

“Trânsfugas da zoologia que somos, animais políticos, nós teríamos interesse em observar de perto como se engendra um lar durável de pertença”, escreve Débray. “O nascimento de uma Igreja é, a esse respeito, uma lição de coisas, um fenômeno a ser perscrutado como um arquétipo numa dinâmica de grupos.”  (p. 233)

Ou seja, a chave de compreensão das religiões pode estar numa análise de psicologia social, ou de sociologia psíquica, que enxergasse nas massas unidas pela argamassa religiosa um fenômeno de identificação do sujeito com o coletivo que representa uma força concreta na história.

Há nisso um risco, um perigo, que permanentemente nos assola: a identificação excessiva com um grupo X, por parte de Fulano, pode transformar os grupos Z e Y em entidades malévolas aos olhos deste Fulano. Sendo Z uma comunidade religiosa que discorda de todos os dogmas de X, e sendo Y uma comunidade de pessoas que se dizem liberadas da religião, Fulano tem grandes chances de transformar-se num sanguinário militante da causa X, que pegará em armas em santa Cruzada para limpar o mundo dessas impurezas que são os crentes em Z e os descrentes de Y.

Deus pode até não existir, mas os diferentes fãs-clubes de diferentes deuses existem com certeza. Deus pode até ser o nome da mais bela mentira que teimamos em inventar para remédio de nossas insônias e agonias, mas os exércitos de Deus decerto existem, e seu entrechoque nos campos de batalha já forneceu aos vermes da terra um farto alimento de cadáveres de seres humanos mortos precocemente. Ainda somos a todo tempo lembrados do quanto o solo deste planeta já foi banhado com o sangue dos mártires.

Isso coloca a necessidade, mesmo para o filósofo ou o sociólogo que se comprometem com a causa do ateísmo e da laicidade, de um esforço de compreensão de como se mesclam o Homo Religiosus e o Homo Politicus. Desde pelo menos Spinoza e seu fulgurante Tratado Teológico-Político, aprendemos a não separar em territórios estanques o que é da teologia e o que é da política. Podemos sem dúvida criticar a fé em milagres ou a subserviência a um deus de mentirinha como “asilos da ignorância”, mas o mundo social é indelevelmente transformado e transtornado por ações humanas conectadas a ideias, práticas, valores e ritos de natureza teológica.

A distinção entre sagrado profano, analisada com maestria por Mircea Eliade, é uma chave importante para sondarmos de que modo as religiões se metem a fazer política. Sacralizar um certo espaço significa tomar as medidas cabíveis para que a sujeira comum do mundo profano não penetre naquela área santificada. A noção de santo está conectada à de uma pureza, àquilo que não se mistura com o que é baixo, sujo e vil.

“A etimologia da palavra o estipula: é ‘santo’ o que foi posto à parte, separado do profano e do impuro. Não haveria, na noção mesma de sacralidade, um fermento de apartheid?” (DEBRAY, Régis. Deus – Um Itinerário. Cia das Letras, p. 106)

Apartheid vem do termo inglês apart. As religiões, se unem certos grupos através do cimento invisível de uma fé comum, inegavelmente também acarretam divisões radicais entre seitas de crentes, tendo como frutos amargos estas instituições bastante concretas de apartação. Os muros do apartheid são com frequência construídos com o combustível psíquico de crenças religiosas motivadoras dos indivíduos que, constituídos em grupos, por razões de fé, tornam-se xenófobos e racistas, ou seja, odiadores da diferença.

Não é novidade para ninguém que a Nação que faz imprimir em suas cédulas o In God We Trust desejaria que a economia global caísse inteira de joelhos diante da supremacia dos U.S.A., a ponto de até nos reinos de Alá ou nas regiões onde quem diviniza-se Mao Tsé-Tung ou Ho Chi Minh, tudo se curve ao poderio do Deus Dólar…

Débray nos lembra, bem a propósito, que “na Guerra Fria, o Senado dos EUA integrou o ‘One Nation Under God’ ao ‘Pledge of Allegiance‘; o banco federal, pouco depois, emitiu dólares com o famoso ‘In God We Trust’.” (p. 166) Mesmo na nação que alguns insistem em idolatrar como Primeiro Mundo, como Paradigma de Modernidade, o obscurantismo religioso e os genocídios motivos pela fé são moeda corrente.

A as chacinas de George W. Bush e sua corja, perpetradas no Oriente Médio, na Guerra Contra o Terror que visava destruir o diabólico “Axis of Evil”, não nos deixam mentir. Posando de Cidadãos-de-Bem, em Missão Sagrada de Intervenção, os EUA conseguiram cometer alguns dos piores crimes contra a humanidade do século 21 (como está vastamente argumentado nos livros políticos de Arundhati Roy). Longe de serem os Bons, os Justos, os Salvadores, os que encabeçam o militarismo imperialista Yankee não podem ser descritos como aqueles que vão nos livrar do Estado Islâmico, são ao contrário co-responsáveis por seu surgimento, pois esta é uma treta de fanáticos, um clash de obscurantismos.

Esse recorrente “retorno do religioso”, apesar dos Iluminismos, faz da crença em Deus uma espécie de perpétuo bumerangue: quando parece que distanciou-se, volta voando em nossa direção. É esse um dos temas discutidos pelo brilhante Daniel Bensaïd em Os Irredutíveis: 

“As novas místicas reagem às formas modernas de desolação social e moral do mundo, assim como às incertezas sobre a maneira de habitar politicamente um mundo em convulsão. Não são, como se ouve muito frequentemente, ‘velhos demônios’ que voltam, mas demônios perfeitamente contemporâneos, nossos demônios inéditos, nascidos das núpcias bárbaras entre o mercado e a técnica.

Quando a política está em baixa, os deuses estão em alta. Quando o profano recua, o sagrado tem sua revanche. Quando a história se arrasta, a Eternidade levanta vôo. Quando não se querem mais povos e classes, restam tribos, etnias, massas e maltas anômicas. No entanto, seria errôneo acreditar que essa volta da chama religiosa seria particularidade dos bárbaros acampados sob as muralhas do Império. O discurso dos dominantes não é menos teológico, como mostra o revival de seitas de todos os gêneros nos próprios Estados Unidos.

Quando George Bush, no dia seguinte ao 11 de Setembro de 2001, falou de Cruzada contra o Terrorismo, não se tratava de um lapso infeliz. Quando se pretende conduzir não mais uma guerra de interesses contra um inimigo com o qual será preciso acabar negociando, mas uma guerra do Bem absoluto contra o Mal absoluto (com o qual se diz que não se pode negociar), trata-se de uma guerra santa, de religião ou de ‘civilização’. E quando o adversário é apresentado como uma encarnação de Satã, não é de espantar que ele seja desumanizado e bestializado, como em Guantánamo ou em Abu Ghraib.” (BENSAÏD, p. 15)

“Judas Iscariotes se enforca”, um detalhe do afresco sobre o Juízo Final, de Giotto, na Capella degli Scrovegni, em Pádua, Itália.

BIBLIOGRAFIA

BENSAÏD, DanielOs Irredutíveis – Teoremas da Resistência Para O Tempo Presente. Boitempo, 2017.

DÉBRAY, RégisDeus – Um Itinerário. Cia das Letras, 2004.

LÖWY, Michael; BENSAÏD, DanielCentelhas. Boitempo, 2017.

Por Eduardo Carli de Moraes, Professor de Filosofia (IFG – Anápolis). Goiânia, 2018.

“SAPERE AUDE”: OUSE SABER! – O “Espírito das Luzes” segundo Tzvetan Todorov (São Paulo: Ed. Barcarola, 2006)

“Depois da morte de Deus e do desmoronamento das utopias, sobre qual base intelectual e moral queremos construir nossa vida comum?”

Em sua obra ‘O Espírito das Luzes’, Todorov busca sintetizar o percurso histórico e a relevância presente e futura do Esclarecimento ou Iluminismo; na sequência, A Casa de Vidro apresenta um excerto do livro:

DESENCANTAR PARA EMANCIPAR

Tzvetan_Todorov-Strasbourg_2011_(1)O primeiro traço constitutivo do pensamento das Luzes consiste em privilegiar o que escolhemos e decidimos por nós mesmos em detrimento daquilo que nos é imposto por uma autoridade externa. Essa preferência comporta então duas facetas, uma crítica e outra, construtiva: é preciso subtrair-se a toda tutela imposta aos homens de fora (…). Emancipação e autonomia são as palavras que designam os dois tempos, igualmente indispensáveis, de um mesmo processo. Para poder engajar-se nele, é preciso dispor da inteira liberdade de examinar, de questionar, de criticar, de colocar em dúvida: nenhum dogma ou instrução pode mais ser considerado sagrado.

Uma consequência indireta, porém decisiva, dessa escolha é a restrição que incide sobre o caráter de qualquer autoridade: esta deve estar de acordo com os homens, isto é, ser natural e não sobrenatural. É nesse sentido que as Luzes produzem um mundo ‘desencantado’… A tutela sob a qual viviam os homens antes das Luzes era, em primeiríssimo lugar, de natureza religiosa; sua origem era então ao mesmo tempo anterior à sociedade presente (fala-se nesse caso de ‘heteronomia’) e sobrenatural. É à religião que se dirigirá a maior parte das críticas, visando tornar possível que a humanidade tome nas mãos seu próprio destino. Trata-se, todavia, de uma crítica focada: o que se rejeita é a submissão da sociedade ou do indivíduo a preceitos cuja única legitimidade advém daquilo que uma tradição atribui aos deuses ou aos ancestrais; não é mais a autoridade do passado que deve orientar a vida dos homens, mas seu projeto para o futuro.

A grande corrente das Luzes não pleiteia o ateísmo, mas a religião natural, o deísmo, ou uma de suas numerosas variantes. A observação e descrição das crenças do mundo inteiro, às quais se consagram os homens das Luzes, não têm por objetivo recusar as religiões, mas conduzir a uma atitude de tolerância e à defesa da liberdade de consciência. Tendo rejeitado o antigo jugo, os homens fixarão novas leis e normais com a ajuda de meios puramente humanos – já não há lugar, aqui, para a magia nem para a revelação. À certeza da Luz descida do alto substituir-se-á a pluralidade de luzes que se difundem de pessoa para pessoa.

A primeira autonomia conquistada é a do conhecimento. Este parte do princípio de que nenhuma autoridade, por mais bem estabelecida e prestigiosa que seja, está livre de crítica. O conhecimento só tem duas fontes, a razão e a experiência, e ambas são acessíveis a todos. A liberação do conhecimento abre a via real ao desabrochar da ciência. (…) A física obtém progressos espetaculares, seguida pelas outras ciências: química, biologia e até sociologia ou psicologia. Os promotores desse novo pensamento queriam levar luzes a todos, pois estavam convencidos de que serviriam ao bem de todos: o conhecimento é libertador, eis o postulado. Favorecerão assim a educação em todas as suas formas, desde a escola até as academias, e a difusão do saber, por publicações especializadas ou por enciclopédias dirigidas ao grande público.”

Frontispício da Encyclopédie (1772), de Diderot, D'Alambert e outros, desenhado por Charles-Nicolas Cochin e gravado por Bonaventure-Louis Prévost. Esta obra está carregada de simbolismo: a figura do centro representa a verdade – rodeada por luz intensa (o símbolo central do iluminismo). Duas outras figuras à direita, a razão e a filosofia, estão a retirar o manto sobre a verdade. [Wikipédia]

“Frontispício da Encyclopédie (1772), escrita por Diderot, D’Alambert e outros colaboradores. A obra foi desenhada por Charles-Nicolas Cochin e gravada por Bonaventure-Louis Prévost; está carregada de simbolismo: a figura do centro representa a verdade – rodeada por luz intensa (o símbolo central do iluminismo). Duas outras figuras à direita, a razão e a filosofia, estão a retirar o manto sobre a verdade.” [Wikipédia]

A NOVA DIGNIDADE CONCEDIDA AO MUNDO SENSÍVEL

O princípio de autonomia revoluciona tanto a vida do indivíduo quanto a das sociedades. O combate pela liberdade de consciência, que deixa a cada um a escolha de sua religião, não é novo, mas deve ser perpetuamente recomeçado; ele se prolonga numa demanda de liberdade de opinião, de expressão, de publicação. Aceitar que o ser humano seja fonte de sua lei é também aceitá-lo por inteiro, tal como é, e não tal como deveria ser. Ora, ele é corpo e espírito, paixões e razão, sensualidade e meditação. São, também, infinitamente diversos, o que se constata ao passar-se de um país a outro, mas também de uma pessoa a outra.

É o que saberão dizer, melhor do que toda a literatura erudita, os novos gêneros que põem o indivíduo no centro de sua atenção: romance de um lado, autobiografia de outro. Gêneros que não aspiram mais a revelar as leis eternas das condutas humanas, nem o caráter exemplar de cada gesto, mas que mostram homens e mulheres singulares, envolvidos em situações particulares. (…) Atestam a nova dignidade concedida ao mundo sensível.

A exigência de autonomia transforma ainda mais profundamente as sociedades políticas; prolonga e cumpre a separação do temporal e do espiritual. No século das Luzes, ela produz uma primeira forma de ação: os autores de pesquisas livremente conduzidas se esforçavam para comunicar seus resultados aos soberanos benevolentes, para que estes inflectissem sua política. Isso é o que se espera de Frederico II em Berlim, de Catarina II em São Petersburgo ou de Josef II em Viena. Para além desse despotismo esclarecido – que cultiva a autonomia da razão no monarca, mas preserva a submissão do povo – essa exigência leva a dois princípios.

O primeiro é o da soberania, princípio já antigo que recebe aqui um novo conteúdo: a fonte de todo poder está no povo, e nada é superior à vontade geral. O segundo é o da liberdade do indivíduo em relação a todo poder estatal, legítimo ou ilegítimo, nos limites de uma esfera que lhe é própria; para assegurar essa liberdade, vela-se pelo pluralismo e pelo equilíbrio dos diferentes poderes. Em todos os casos está consumada a separação do teológico e do político; este se organiza desde então em função de seus próprios critérios.

LaiciteTodos os setores da sociedade tendem a se tornar laicos, ainda que os indivíduos permaneçam crentes. Esse programa concerne não somente ao poder político, mas também à justiça: o delito, dano causado à sociedade, é o único a ser reprimido, e deve ser diferenciado do pecado, falta moral para com uma tradição. Também a escola destina-se a ser subtraída ao poder eclesiástico para se tornar um lugar de propagação das Luzes, aberta a todos, portanto gratuita, e ao mesmo tempo obrigatória para todos. E assim a imprensa periódica, que passa a ser o lugar do debate público…

Laïcité

HUMANISMO SECULAR: VALORES TERRESTRES PARA UM MUNDO EMANCIPADO

A vontade do indivíduo, como a das comunidades, emancipou-se das antigas tutelas; isso quer dizer que não conhece mais nenhum limite? Não: o espírito das Luzes não se reduz unicamente à exigência de autonomia, mas traz também seus próprios meios de regulação. O primeiro diz respeito à finalidade das ações humanas permitidas. Esta desce à terra: não visa mais a Deus, mas aos homens. Nesse sentido, o pensamento das Luzes é um humanismo ou, se preferirmos, um antropocentrismo.

Não é mais necessário, como pediam os teólogos, estar sempre pronto a sacrificar o amor das criaturas ao do Criador; é possível contentar-se com amar outros seres humanos. Seja o que for a vida no além, o homem deve dar um sentido à sua existência terrena. A busca de felicidade substitui a da salvação. O próprio Estado não se coloca a serviço de um intento divino, seu objetivo é o bem-estar de seus cidadãos.

A segunda restrição imposta à livre ação tanto dos indivíduos como das comunidades consiste em afirmar que todos os seres humanos possuem, por sua própria natureza humana, direitos inalienáveis. As Luzes absorvem aqui a herança do pensamento do direito natural: ao lado dos direitos de que os cidadãos gozam no âmbito de sua sociedade, eles detêm outros, comuns a todos os habitantes do globo e, portanto, a cada um. (…) O pertencimento ao gênero humano, à humanidade universal, é mais fundamental ainda que o pertencimento a determinada sociedade. Se todos os seres humanos possuem um conjunto de direitos idênticos, decorre que sejam iguais em direito: a demanda de igualdade decorre da universalidade.

Ela permite empreender combates que continuam em nossos dias: as mulheres devem ser iguais aos homens perante a lei; a escravidão abolida, a alienação da liberdade de um  ser humano não pode jamais ser legítima; os pobres, os excluídos, os marginais, reconhecidos em sua dignidade etc. Essa afirmação da universalidade humana gera o interesse por sociedades diferentes daquela em que se nasceu. Os viajantes e os sábios não conseguem, do dia para a noite, deixar de julgar os povos longínquos a partir de critérios provindos de suas próprias culturas; no entanto, sua curiosidade é despertada, eles se tornam conscientes da multiplicidade de formas que a civilização pode assumir e começam a acumular informações e análises que, com o tempo, transformam-lhes a idéia de humanidade.

(…) Tal é, em linhas bem gerais, o generoso programa que se formula no século das Luzes. Como devemos julgá-lo hoje, 250 anos após seu surgimento? (…) Se quisermos hoje encontrar um apoio no pensamento das Luzes para enfrentar nossas dificuldades presentes, não podemos acolher todas as propostas formuladas no século XVIII – não somente porque o mundo mudou, mas também porque esse pensamento é múltiplo, não uno. É antes de tudo de uma refundação das Luzes que precisamos: preservar a herança do passado, mas submetendo-o a um exame crítico, confrontando-o lucidamente com suas consequências desejáveis e indesejáveis. Fazendo isso, não arriscamos trair as Luzes; ao contrário: a verdade é que as criticando, continuamos fiéis a elas, e colocamos em prática seu ensinamento.”

TZVETAN TODOROV
O Espírito das Luzes / L’Ésprit des Lumières
 SP: Barcarola, 2006.
Pgs. 9, 15.

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SIGA VIAGEM:

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UM CARTUM:

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UMA PINTURA:
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Delacroix, “A Liberdade Liderando o Povo”

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UMA ILUSTRA:

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UM TEXTO DO KANT:

“O iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são aqueles que se encontram incapazes de fazer uso da própria razão independentemente da direção de outrem. É-se culpado da própria tutelagem quando esta resulta não de uma deficiência do entendimento mas da falta de resolução e coragem para se fazer uso do entendimento independentemente da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso da tua própria razão! – esse é o lema do iluminismo”.

IMMANUEL KANT. Leia o artigo completo: resposta de Kant à enquete “O Que é O Esclarecimento?”, escrita em Königsberg, Prússia, 1784.

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OUTRAS LEITURAS SOBRE O MESMO TEMA:

ADORNO E HORKHEIMERDialética do Esclarecimento.
ERNST CASSIRER. The Philosophy of the Enlightenment.
ROUANET, S. P. As Razões do Iluminismo.

EM A CASA DE VIDRO

MICHEL FOUCAULT: HERDEIRO DO ILUMINISMO?

“Tratado Sobre a Tolerância”, de Voltaire (1694-1778) [notas de leitura]

voltaire

VOLTAIRE
“Tratado Sobre a Tolerância”
(Ed. Martins Fontes. Tradução: Paulo Neves. São Paulo,1ª ed, 1993)

volDevemos tolerar os intolerantes, ainda que saibamos que “a intolerância cobriu a terra de chacinas”? (pg. 30) E quem seria para a humanidade uma melhor mestra de tolerância senão ela, a filosofia, musa que recebe tantos dos louvores de Voltaire?

Voltaire, este pensador que Victor Hugo dizia ser um “jato contínuo de lucidez”, não economiza nos elogios que faz ao bom senso que a filosofia traz, possibilitando-nos transcender as estreitezas em que nos encerram os fanatismos dogmáticos e as intolerâncias homicidas.

Este luminar do Iluminismo lança numerosos convites aos humanos para que ajam humanamente: “faz muito tempo que praticamos os verdadeiros princípios da agricultura, quando começaremos a praticar os verdadeiros princípios da humanidade?”  (pg. 63). E alega que a  filosofia é agente de humanização, que nos distancia da barbárie:

“A filosofia desarmou mãos que a superstição por muito tempo havia ensanguentado; e o espírito humano, ao despertar de sua embriaguez, espantou-se com os excessos a que o fanatismo o havia levado…” (pg. 24)

Ao que parece, ao raiar deste ano que chamamos de 2015 depois de Cristo, o “espírito humano” não cessa de recair na embriaguez do fanatismo e da intolerância – quantos são os mortos na Faixa de Gaza, quantos no Afeganistão e no Iraque? Alguém por aí conseguiu não perder a conta?

Enquanto isso, a filosofia não cessa de se espantar com os excessos do fanatismo – ao menos aquelas filosofias que se esquivam do dogmatismo e procuram atingir a liberdade do pensar, ao invés de serem meras “defesas manhosas de preconceitos batizados de verdades”, como diz Nietzsche (Além de Bem e Mal, #5). Um viva à toda filosofia que deixa as portas bem abertas para a suspeita, a experimentação, a multiplicidade, a diversidade de perspectivas, a revolta contra a fraude, o engajamento em prol de uma humanidade menos sectária e fratricida!

A filosofia, segundo os não-filósofos, que aliás são a amplíssima maioria neste mundo, é vista por muitos como uma atividade improdutiva, beirando a inutilidade: é o caso de Hermann Kafka, ao saber dos planos que tinha seu filho – Franz Kafka – de estudar filosofia, e que teria reagido com o desdém do comerciante que considera a filosofia somente “um modo extravagante de passar fome.” (cf. PAWEL, Ernst: O Pesadelo da Razão).

Ou então a filosofia é tida como algo de acadêmico e formal, difícil e hermético, que se faz detrás dos muros das universidades ou no conforto de bibliotecas climatizadas – e não, como alguns filósofos quiseram, uma força ativa na sociedade ao espalhar compreensão mais ampla e assim desfazer os cabrestos reinantes…

Voltaire é tão entusiasmante de ler pois filosofa como se a filosofia tivesse força transformadora. E quem consegue duvidar que tem, de fato, ao ler as palavras tão cheias de vivacidade e ímpeto que ele nos legou?

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traiteVoltaire escreve seu Tratado Sobre a Tolerância sob o impacto de um acontecimento que ele testemunhou em Toulouse. Nesta cidade francesa, pelos idos de 1762, continua-se a celebrar anualmente uma festa que Voltaire considera execrável: “festa cruel, festa que deveria ser abolida para sempre, na qual um povo inteiro agradece a Deus em procissão e felicita-se por ter massacrado, há duzentos anos, quatro mil de seus concidadãos” (pg. 62).

Duzentos anos antes, em 1562, os reis católicos franceses e as massas por eles manobradas haviam massacrado os protestantes pela França afora. A História jamais pôde esquecer a sanguinolência do Massacre da Noite de São Bartolomeu, “da qual não havia nenhum exemplo nos anais do crime” (pg. 22), quando Paris foi palco de uma colossal matança dos protestantes “huguenotes” – como narrado por Alexandre Dumas em A Rainha Margot (romance já adaptado para o cinema com maestria por Patrice Chéreau). Aponta-se que o número total de pessoas mortas pelos católicos no genocídio dos huguenotes de 1562 esteja entre 30 e 100 mil mortos.

A indignação voltairiana atinge ápices diante dos discursos dos apologistas da Noite de São Bartolomeu e outros massacres: “Se a perseguição contra aqueles com quem disputamos fosse uma ação santa, cumpre admitir que o que matasse o maior número de heréticos seria o maior santo do paraíso… logo, de dois assassinos iguais em piedade, o que tivesse estripado 24 mulheres huguenotes grávidas deve ser glorificado em dobro em relação ao que só tivesse estripado 12.” (p. 72) Este raciocínio torto e perverso, apesar de Voltaire escrevê-lo em tom de pilhéria, é mais que mera piada – e poucos autores na história da filosofia são mais versados em chacinas do que Voltaire, que conhece inúmeros exemplos do “furor das seitas que fez perecer milhares” (p. 149).

 É por isso que Voltaire não consegue conter estes arroubos de indignação: “Digo-o com horror, mas com verdade: nós, cristãos, é que fomos perseguidores, carrascos, assassinos! E de quem? De nossos irmãos. Nós é que destruímos cidades, com o crucifixo ou a Bíblia na mão, e não cessamos de derramar sangue e de acender fogueiras, desde os tempos de Constantino…”  (pg. 62)

 Voltaire, como se sabe, não era ateu – e até mesmo dá amostras de ateofobia em certos momentos, ao referir-se por exemplo àqueles que “inclinam-se para o ateísmo e tornam-se depravados” (pg. 64). Ora, desde quando o ateísmo acarreta necessariamente a “depravação”? Não é esta uma tese de padres e monges, que demonstra um preconceito contra os tão perseguidos dos descrentes?

De qualquer modo, Voltaire considera este “um péssimo argumento”: “os católicos liquidaram um certo número de huguenotes, e os huguenotes, por sua vez, assassinaram um certo número de católicos, logo, não existe Deus” (pg. 65). Em outros termos: não se julga da inexistência de Deus a partir das insanidades de seus diferentes fã-clubes. Os fiéis cometem horrores, mas nenhum destes horrores testemunha suficientemente em prol do ateísmo – e eis a profissão de fé de Voltaire:

 “Eu concluiria afirmando que existe um Deus que, após esta vida passageira, na qual o desconhecemos tanto, e cometemos tantos crimes em seu nome, dignar-se-á a consolar-nos de tão horríveis infortúnios: pois, considerando as guerras de religião, os quarenta cismas dos papas,  quase todos sangrentos; as imposturas, quase todas funestas; os ódios irreconciliáveis acesos pelas diferentes opiniões; considerando todos os males que o falso zelo produziu, os homens há muito têm tido o seu inferno nesta vida” (pg. 65).

Mas não seria um argumento fraco querer derivar do inferno terrestre, por sua mera existência atestada pelos fratricídios, parricídios e genocídios que atravessam a história humana, a existência de um Deus consolador de infortúnios?  Em outros termos: a existência do mal e do sofrimento é garantia que um céu-de-recompensa aguarda a todos os sofredores?

O essencial em Voltaire, concordemos ou não com sua crença em um Deus que “terá a dignidade de consolar-nos de tão horríveis infortúnios”, é que encontram-se em suas páginas algumas vívidas descrições de eventos históricos onde a intolerância e o fanatismo conduziram a grandes catástrofes. O “princípio universal” da moral voltairiana, como expressa no Tratado Sobre a Tolerância, aquele princípio moral que vale “em toda a terra”, seria o “não faz o que não gostarias que te fizessem.” E Voltaire se apressa em adicionar, como contra-exemplo, a atitude de muitos fanáticos religiosos, que reivindicam aos brados seu direito à intolerância: “Crê, ou te abomino! Crê, ou te farei todo o mal que puder! Monstro, não tens minha religião, logo não tens religião alguma! Cumpre que sejas odiado por teus vizinhos, tua cidade, tua província.” (pg. 37-38)

Ora, a história está repleta – e também o estão as páginas de Voltaire e Michelet – de casos de pessoas que foram taxadas de “hereges” e que, “como atacavam dogmas muito respeitados, a primeira resposta que lhes deram foi jogá-los na fogueira.” (p. 20) Quantos Giordanos Brunos não foram queimados vivos, junto com suas obras? E quem um dia poderá calcular o valor inestimável de tudo o que se perdeu com o incêndio da Biblioteca de Alexandria?

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Se a intolerância fosse um direito, isso seria a legitimização da barbárie. “Caberia então que o japonês detestasse o chinês, o qual execraria o siamês; o mongol arrancaria o coração do primeiro malabar que encontrasse; o malabar poderia degolar o persa, que poderia massacrar o turco – e todos juntos se lançariam sobre os cristãos, que por muito tempo devoraram-se uns aos outros.” (pg. 38) Quadro sinistro, e tão mais assustador pois se assemelha ao que ocorre de fato com frequência espantosa na história humana. “O direito à intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto nós exterminamo-nos por parágrafos.” (p. 38)

Apenas mais dois exemplos de sinistra intolerância homicida narrados por Voltaire: 1) “Na guerra contra os madianitas, Moisés ordenou que fossem mortas todas as crianças do sexo masculino e todas as mães, e que os despojos fossem partilhados. Os vencedores encontraram 675 mil ovelhas, 72 mil bois, 61 mil burros e 32 mil meninas; fizeram a partilha e mataram o resto.” (p. 77);  2) “Uma seita na Dinamarca sabia que todos os recém-nascidos que morrem sem batismo são condenados e que os que têm a felicidade de morrer imediatamente após receberem o batismo gozam da glória eterna.  Saíam, pois, a estrangular os meninos e meninas recém-batizados que encontrassem. Certamente, era fazer-lhes o maior bem possível: a uma só vez eram preservados do pecado, das misérias desta vida e do inferno, e enviados infalivelmente ao céu…” (p. 111)

Já o cristianismo, conforme o descreve Voltaire, é já em sua gênese uma religião sectária, que emerge como uma espécie de facção do judaísmo, como um ramo que se separa do tronco da tradição hebraica, ganhando com isso a intensa inimizade dos judeus: “os primeiros cristãos tinham como inimigos apenas os judeus, dos quais começavam a separar-se. Sabemos o ódio implacável que todos os sectários sentem pelos que abandonam sua seita.” (p. 46)  “Jesus submeteu-se à lei de Moisés desde sua infância até sua morte. Circuncidaram-no no oitavo dia, como todas as outras crianças. Se, depois, foi batizado no Jordão, tratava-se de uma cerimônia consagrada entre os judeus… Jesus observou todos os pontos da lei: festejou todos os dias de sabá; absteve-se das carnes proibidas; nascido israelita, viveu constantemente como israelita. (…) Levado ao governador romano da província e acusado caluniosamente de ser um perturbador da ordem pública, que dizia não ser preciso pagar o tributo a César e que, além do mais, se dizia rei dos judeus. É da maior evidência, portanto, que foi acusado de um crime de Estado.” (p. 94)

É até defensável que Jesus Cristo, como indivíduo, não tenha “estabelecido leis sanguinárias, ordenado a intolerância, mandado construir os cárceres da Inquisição, instituído os carrascos dos autos-de-fé” (87). Mas, como Nietzsche provoca, “o único cristão verdadeiro morreu na cruz”; e a religião que se construiria sobre o martírio de Jesus crucificado se desenvolverá envolvida em guerras sectárias infindáveis, e assim o permanecerá pelos séculos, com um derramamento de sangue que prosseguia na época de Voltaire – como o prova o caso Calas. O ódio que os judeus tinham por São Paulo, aliás,  é bem simbólico deste conflito de sectarismos: “Os Atos dos Apóstolos nos mostram que, tendo São Paulo sido acusado pelos judeus de querer destruir a lei mosaica em nome de Jesus Cristo, São Tiago propôs a São Paulo que raspasse a cabeça e fosse purificar-se no templo com quatro judeus… Paulo, cristão, foi portanto cumprir todas as cerimônias judaicas durante 7 dias; mas os 7 dias ainda não haviam transcorrido quando judeus da Ásia o reconheceram e, vendo que ele havia entrado no templo, acusaram-no de profanação. Paulo foi preso, levado ante o governador Félix, em seguida enviado ao tribunal… Os judeus em coro exigiram sua morte.” (pg. 45)

Há em todo fanatismo um elemento “imperialista”, um desejo de conversão do mundo inteiro à sua crença, como se fosse possível uma uniformização religiosa da humanidade, algo que Voltaire com toda razão afirma ser quimérico e insano: “Seria o cúmulo da loucura pretender fazer todos os homens pensarem de uma maneira uniforme sobre a metafísica. Seria bem mais fácil subjugar o universo inteiro pelas armas do que subjugar todos os espíritos de uma única cidade.” (p. 121)

Como remédio contra os sectarismos fanáticos e homicidas, que só conseguem lidar com o diferente na base da exclusão ou da extinção, que querem o outro morto ou torturado se este não compartilha da mesma fé, Voltaire receita o bálsamo de um reconhecimento lúcido de nossa posição no seio da Natureza:

A natureza diz a todos os homens: “fiz todos vós nascerem fracos e ignorantes, para vegetarem alguns minutos na terra e adubarem-na com vossos cadáveres. Já que sois fracos, auxiliai-vos; já que sois ignorantes, instruí-vos e tolerai-vos. Ainda que fôsseis todos da mesma opinião, o que certamente jamais acontecerá, ainda que só houvesse um único homem com opinião contrária, deveríeis perdoá-lo, pois sou eu que o faço pensar como ele pensa. Eu vos dei braços para cultivar a terra e um pequeno lume de razão para vos guiar; pus em vossos corações um germe de compaixão para que uns ajudem os outros a suportar a vida. (…) Sou eu apenas que vos une, sem que o saibais, por vossas necessidades mútuas, mesmo em meio a vossas guerras cruéis tão levianamente empreendidas, palco eterno das faltas, dos riscos e das infelicidades. (…) Com minhas mãos plantei os alicerces de um prédio imenso; ele era sólido e simples, todos os homens nele podiam entrar com segurança; quiseram acrescentar os ornamentos mais bizarros, mais grosseiros e mais inúteis; e o prédio começa a desmoronar por todos os lados; os homens pegam as pedras e as atiram uns contra os outros; grito-lhes: Parai, afastai esses escombros funestos que são vossa obra e habitai comigo em paz no prédio inabalável que é o meu. (pg. 142)

Contra a megalomania de todas as religiões monoteístas, que são todas antropocêntricas e concebem o Homem no centro da Criação, criatura predileta do Criador, cabe frisar nossa pequenez cósmica e o delírio que há em seitas que, apesar de minúsculas no espaço-e-no-tempo, tem a pretensão descabida de serem as beneficiárias principais das graças do Todo-Poderoso. “Este pequeno globo, que não é mais do que um ponto, gira no espaço como tantos outros globos; estamos perdidos nessa imensidão. O homem, com cerca de um metro e sessenta de altura, é seguramente algo pequeno na criação. Um desses seres imperceptíveis diz a alguns de seus vizinhos: Escutem-me, pois o Deus de todos esses mundos me falou! Há 900 milhões de pequenas formigas como nós sobre a terra, mas apenas o meu formigueiro é bem-visto por Deus; todos os outros lhe causam horror desde toda a eternidade; meu formigueiro será o único afortunado, e todos os outros serão desafortunados.” (p. 126)

Nietzsche, que admirava tanto Voltaire que dedicou seu Humano Demasiado Humano ao grande iluminista francês no centenário de sua morte, re-utiliza a metáfora de formiga em um aforismo brilhante de O Viajante e Sua Sombra, onde o homem é descrito como “O Comediante do Mundo” e a “inventividade espiritual da mais vaidosa criatura, o inventor do inventor”, é exposta com a verve satírica e o faro crítico características do filósofo da “morte de Deus”:

O homem, comediante do mundo – Deveria haver criaturas mais espirituais do que os homens, apenas para fruir inteiramente o humor que há no fato de o homem se enxergar como a finalidade da existência do mundo. (…) Os astrônomos, que às vezes podem realmente dispor de um panorama distanciado da Terra, dão a entender que a gota de vida no mundo é sem importância para o caráter geral do tremendo oceano do devir e decorrer; que um sem-número de astros tem condições similares às da Terra para a geração da vida; que a vida, em cada um desses astros, em relação ao tempo de sua existência, foi um instante, um bruxuleio, com longuíssimos lapsos de tempo atrás de si – ou seja, de modo algum a finalidade e intenção derradeira de sua existência. Talvez uma formiga, numa floresta, imagine ser a finalidade e intenção da existência da floresta, de forma tão intensa como fazemos ao espontaneamente ligar o fim da humanidade ao fim do planeta, em nossa fantasia; e ainda somos modestos, se nos detemos nisso e não organizamos um crepúsculo geral dos deuses e do mundo, acompanhando o funeral do último homem. Mesmo o mais imparcial astrônomo não pode ver a Terra sem vida senão como o luminoso túmulo flutuante da humanidade.”

(O Viajante e Sua Sombra, aforismo 14, pg. 171 e 172.
Ed. Cia das Letras. Trad. Paulo César de Souza.
Em “
Humano Demasiado Humano Volume II”)

AS CILADAS DA CREDULIDADE: Spinoza como crítico da superstição

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Não são poucos os filósofos que pretendem agir como demolidores da superstição: uma das metas explícitas de Lucrécio, em seu poema-tratado Da Natureza, era justamente disseminar as luzes do epicurismo e da atomística materialista de modo a dissipar os terrores vãos e esperanças ilusórias que são a praga da consciência supersticiosa. Nietzsche, por sua vez, também declara-se engajado na causa não só de descrever um Crepúsculo dos Ídolos, mas também de acelerar e catalisar uma renovação de valores que fará as velhas idolatrias caírem por terra (elas têm, afinal, pés-de-barro). Spinoza também se insere nesta tradição e sua filosofia fornece-nos amplos meios para a crítica daqueles que “interpretam a natureza da maneira mais extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles.” (TTP, p. 6)

Spinoza fornece-nos um retrato psicológico do supersticioso em que oferece tanto um diagnóstico quanto uma terapêutica. Comecemos pelo diagnóstico clínico: “a que ponto o medo ensandece os homens!”, escreve Spinoza no Prefácio do TTP. “O medo é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição. Os homens só se deixam dominar pela superstição enquanto têm medo; todas essas coisas que já alguma vez foram objeto de um fútil culto religioso não são mais do que fantasmas e delírios de um caráter amedrontado e triste…” (p. 6)

O filósofo não poderia ser mais claro: a causa evidente da superstição é o medo, e sabemos que o medo tem uma irmã siamesa que sempre aparece junto dele, a esperança. Medo e esperança, de mãos dadas, entre fantasmas e delírios, geram esta interpretação extravagante da natureza que Spinoza pretende sanar e curar através de sua Ética tão terapêutica. Abaixo os afetos tristes, os temores opressivos, os medos que nos murcham!

 Aquilo que é superstição no âmbito do indivíduo aparece à Spinoza, quando este considera o espaço mais amplo da sociedade como um todo, como instrumento eficaz para governar as multidões. Religiões institucionalizadas são ferramentas inventadas para manipular superstições, manobrando-as na massa com certos fins às vezes bastante perversos e repletos de barbárie. Exemplo: a escravidão – ato violentador e cruel em vasta escala – que praticavam os europeus da época de Spinoza, branquelos bárbaros que sequestravam na África os seres humanos que punham para labutar escravamente nas colônias americanas; brancos imperialistas e etnocêntricos, não hesitavam em chacinar populações indígenas, tudo isso com pequenos crucifixos nos peitos e muitas palavras bíblicas nos lábios para justificar seus atos tão agradáveis a Deus (afinal de contas, diziam, nem índio nem preto tem alma).

Spinoza viveu na Holanda do século XVII, quando esta era uma das poucas nações européias já em regime republicano, e têm rajadas de críticas contra o Antigo Regime de que foi contemporâneo e que só ganharia de fato este nome – l’ancien régime – na época da Revolução Francesa, em fins do século XVIII. “Se, efetivamente, o grande segredo do regime monárquico e aquilo que acima de tudo lhe interessa é manter os homens enganados e disfarçar, sob o especioso nome de religião, o medo em que devem ser contidos  para que combatam pela servidão como se fosse pela salvação e acreditem que não é vergonhoso, mas sumamente honroso, derramar o sangue e a vida pela vaidade de um só homem…” (p. 8)

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Spinoza não disfarça sua simpatia desabrida pelo republicanismo, que vincula ao secularismo, ou seja, a um regime político em que a laicidade do Estado é plena: o Estado não está à serviço de nenhuma facção religiosa. Ode à Holanda, a terra de Spinoza e Nassau e Van Gogh: “Já que nos coube em sorte essa rara felicidade de viver numa República, onde se concede a cada um inteira liberdade de pensar e de honrar a Deus como lhe aprouver e onde não há nada mais estimado nem mais agradável do que a liberdade…” (p. 8)

A monarquia, que se sustenta na ideologia falaciosa do “direito divino dos reis” e que instaura um regime tirânico, em que a massa da população serve de capacho a um punhado de nobres, aristocratas reinando amontoados na corte real e em suas ramificações eclesiásticas e jurídicas, é dardejada pela crítica de Spinoza, defensor da laicidade, da secularização, da liberdade de crença e opinião. Spinoza entusiasma-se pela república democrática e pluralista onde são hegemônicos os valores invioláveis da liberdade de pensamento, expressão e crença.

Atacar os preconceitos, parece pensar Spinoza, é realizar atos em prol do bem público (Marilena Chauí, creio, concordaria). Pois os preconceitos são danosos e “de racionais transformam os homens em irracionais, os preconceitos tolhem por completo o livre exercício da razão e a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, parecendo expressamente inventados para apagar definitivamente a luz do entendimento!” (p. 10)

Note-se: tais palavras iluminadas são precursoras da maré montante de Iluminismo que começa a erguer-se na Europa, saturada então com conflitos fratricidas entre grupos de diferentes inclinações religiosas e massacres cometidos por facções de crentes contra seus adversários. “A luz natural é não só desprezada mas até condenada por muitos como fonte de impiedade”, reflete Spinoza, que em seu Tratado Teológico-Político trata de pôr em atividade em toda a lucidez esta “luz natural” da razão para que esta batalhe contra os preconceitos e superstições que encerram o mundo no obscurantismo sanguinolento.

Em um contexto de discórdias violentas e conflitos derramadores de tripas, Spinoza propõe-se a empreender um “exame da Escritura” em que assume um compromisso cartesiano: só admitir como verdade aquilo que sua razão puder assim considerar clara e distintamente. Os poderes que só se sustentam sobre a base do obscurantismo que eles assumem e propagam sentem-se temerosos diante de qualquer figura que ouse pôr em questão aquilo que é tradicionalmente santificado como verdadeiro e indubitável. Spinoza será excomungado da comunidade judaica holandesa – assim como Platão havia mandado queimar a obra de Demócrito, sua obra será estigmatizada como algo “forjado no Inferno”, para citar o título do elucidativo estudo escrito por Steven Nadler, A Book Forget In Hell.

Ndler


Spinoza (1632-1677), vivente-vidente, polidor de lentes, advogado das alegrias dos entes, entusiasta de tudo que nos liberta das correntes, as de ferro e as da mente! Spinoza foi “o mais puro dos sábios”, segundo Nietzsche, que não tinha o costume da adulação incontida e injustificada – deve ter sentido, pois, que Spinoza de fato merecia tão altos louvores! Na história da filosofia, há poucos pensadores mais “radicais” em sua denúncia das superstições e que tanto tenha feito para libertar a humanidade – tal como haviam tentado Lucrécio e Epicuro antes dele, tal como farão depois Diderot, Nietzsche, Marx ou Freud – das esperanças e temores absurdos a que se aferrolham os apavorados supersticiosos…

Algumas das teses spinozistas mais ousadas, que batiam de frente com as superstições religiosas de sua época, valeram-lhe a excomunhão e a perseguição dos fanáticos: Deleuze conta-nos a curiosa estória de que,  tendo sobrevivido a um atentado (uma tentativa de homicídio) perpetrado por um um fanático, Spinoza guardou o casaco com o furo da facada como um souvenir sinistro do quão pouco alguns homens respeitam o livre pensamento. Já ele, Spinoza, avesso a todos os fanatismos e dogmatismos, prestou um culto ao livre-pensar de uma vitalidade que prossegue até hoje imensa: é um aliado na ampliação atual de nossas potências e na expansão da nossa lucidez!

Na sequência, seguem alguns trechos de Spinoza – Filosofia Prática, em que Deleuze sintetiza muito bem o spinozismo em seu aspecto afirmador, rejubilante, empoderador: uma sabedoria de vida que nos ensina a vencer escravidões e tiranias, tristezas e impotências, temores e esperanças, fazendo-nos compreender que só há expansão de potência na alegria e que nos convida à beatitude dos agentes, ao invés da impotência dos pacientes. Agir ao invés de padecer, amar ao invés de depreciar, “não zombar nem lamentar, mas compreender”: eis alguns dos sábios conselhos spinozistas.

Como o entendo, Spinoza nos diz que Deus não é um velhinho barbudo e furibundo que mora nos céus, de onde lança bolas de fogo para punir os ímpios e de onde prega sermões e promulga leis que, se obedecidas com servilismo, serão recompensadas na Confeitaria Paradisíaca. Isso não passa de um delírio grotesco da imaginação humana, interesseira e ego-cêntrica. Não é preciso subir uma montanha, como fez Moisés, para se comunicar com Ele: para Spinoza, o único Deus concebível é um Deus que está em toda parte já que é a Natureza mesma, um Deus que se confunde com o Universo, um Deus que é idêntico ao Ser-na-Totalidade. A morte da transcendência é o triunfo da mais radical imanência: Deus não existe lá longe, numa nuvem distante, numa dimensão transcendente, num outro mundo qualquer, exilado nas lonjuras inatingíveis. Deus é o nome que damos a esse Todo de que fazemos parte: estamos Nele como os peixes estão no oceano e como os pássaros estão no ar…

Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro

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LEIA TAMBÉM:


DE GILLES DELEUZE
Spinoza – Filosofia Prática
Editora Escuta, São Paulo, 2002
Capítulo I & II

“As principais interrogações do Tratado Teológico Político são: por que o povo é profundamente irracional? Por que ele se orgulha de sua própria escravidão? Por que os homens lutam por sua escravidão como se fosse sua liberdade? Por que é tão difícil não apenas conquistar mas suportar a liberdade? Por que uma religião que reivindica o amor e a alegria inspira a guerra, a intolerância, a malevolência, o ódio, a tristeza e o remorso? É possível fazer da multidão uma coletividade de homens livres, em vez de um ajuntamento de escravos?

Poucos livros suscitaram tantas refutações, anátemas, insultos e maldições: judeus, católicos, calvinistas e luteranos rivalizam em denúncias. […] Um livro explosivo mantem sempre sua carga explosiva: ainda hoje não se pode ler o Tratado sem nele descobrir a função da filosofia como tentativa radical de desmistificação.

Espinosa faz parte dessa estirpe de pensadores que mudam os valores e praticam uma filosofia a marteladas, e não daquela dos ‘professores públicos’, aqueles que, segundo o elogio de Leibniz, não interferem nos sentimentos estabelecidos, na ordem da Moral e na Polícia. (…) Tanto na sua maneira de viver como de pensar, Espinosa oferece uma imagem da vida positiva e afirmativa, em detrimento dos simulacros com os quais os homens se contentam.

Nenhum filósofo foi mais digno do que Espinosa, mas também nenhum outro foi tão injuriado e odiado. […] A grande tese teórica do spinozismo é: há uma única substância que possui uma infinidade de atributos, Deus sive Natura (“Deus, ou seja, a Natureza”), sendo todas as “criaturas” apenas modos desses atributos ou modificações dessa substância. O panteísmo e o ateísmo se conjugam em Espinosa, negando a existência de um Deus moral, criador e transcendente. Há três grandes semelhanças com Nietzsche e elas são as razões pelas quais ele é acusado de materialismo, imoralismo e ateísmo.

 “Não tendemos para uma coisa porque a julgamos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela”(Spinoza, Ética, III, 9, esc.) O bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa. Por exemplo, um alimento. O mau para nós existe quando um corpo decompõe a relação do nosso corpo… por exemplo, um veneno que decompõe o sangue. Bom e mau têm pois um sentido relativo e parcial: o que convém a nossa natureza e o que não convêm.

Bom e mau tem um segundo sentido, qualificando dois modos de existência do homem: será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém a sua natureza, por compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a composição das potências. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as consequências, pronto a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra antagônico e lhe revela a sua própria impotência.

Spinoza, em toda a sua obra, não cessa de denunciar três espécies de personagem: o homem das paixões tristes; o homem que explora essas paixões tristes, que precisa delas para estabelecer o seu poder; enfim, o homem que se entristece com a condição humana e as paixões do homem em geral (que tanto pode zombar como se indignar…). O escravo, o padre, o tirano… trindade moralista.

Nunca, desde Epicuro e Lucrécio, se mostrou melhor o vínculo profundo e implícito entre os tiranos e os escravos: o tirano precisa da tristeza das almas para triunfar, do mesmo modo que as almas tristes precisam de um tirano para se prover e propagar. De qualquer forma, o que os une é o ódio à vida, o ressentimento contra a vida. AÉtica de Spinoza traça o retrato do homem do ressentimento, para quem qualquer tipo de felicidade é uma ofensa e que faz da miséria ou da impotência sua única paixão. “Os que não sabem fortificar os homens mas sim deprimi-los, esses são insuportáveis para si mesmos.” (Spinoza, Ética, IV, apêndice, Cap. 13).

Há efetivamente em Spinoza uma filosofia da “vida”: ela consiste em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos esses valores transcendentes que se orientam contra a vida… A vida está envenenada pelas categorias do Bem e do Mal, da falta e do mérito, do pecado e da remissão. O que perverte a vida é o ódio, inclusive o ódio a si mesmo, a culpabilidade. […] Antes de Nietzsche, ele denuncia todas as falsificações da vida, todos os valores em nome dos quais nós depreciamos a vida: nós não vivemos, mantemos apenas uma aparência de vida, pensamos apenas em evitar a morte e toda a nossa vida é um culto à morte.

Essa crítica das paixões tristes está profundamente enraizada na teoria de Spinoza a respeito das afeições. Um indivíduo é antes de mais nada alguém com poder de ser afetado. […] Devemos distinguir dois tipos de afeição: as ações e as paixões. O poder de ser afetado apresenta-se então como potência para agir, na medida em que supõe preenchido por afeições ativas, e apresenta-se como potência para padecer, quando é preenchido por paixões.

O próprio da paixão consiste em preencher a nossa capacidade de sermos afetados, separando-nos ao mesmo tempo de nossa capacidade de agir, mantendo-nos separados desta potência. A paixão triste é sempre impotência. […] Ao contrário, quando encontramos um corpo que convém à nossa natureza e cuja relação se compõe com a nossa, diríamos que sua potência se adiciona à nossa: as paixões que nos afetam são alegria, nossa potência de agir é ampliada ou favorecida.

As paixões tristes representam o grau mais baixo de nossa potência: o momento em que estamos separados ao máximo de nossa potência de agir, altamente alienados, entregues aos fantasmas da superstição e às mistificações do tirano. A Ética de Spinoza é necessariamente uma ética da alegria: somente a alegria é válida, só a alegria nos aproxima da ação e da beatitude da ação.”


GILLES DELEUZE

Spinoza – Filosofia Prática
Editora Escuta, São Paulo, 2002
Capítulo I & II

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Outra das obras mais esclarecedoras e iluminantes sobre o pensamento spinozista é o pequeno livro de Alain, Spinoza (Ed. Gallimard). Abaixo, compartilho alguns trechos dele, no original em francês, infelizmente ainda sem tradução no Brasil:

Alain“Les hommes sont pour la plupart méchants et mal-heureux. Ils sont méchants parce qu’ils mettent leur bonheur dans la possession d’objets qui ne peuvent être à la fois à plusieurs, comme les honneurs et l’argent, et qu’ainsi le bonheur d’autrui les rend malheureux, et qu’ils ne peuvent, em revanche, être heureux qui si leurs semblables souffrent. (…) Ils sont de plus en plus malheureux parce qu’ils s’attachent à des objets dont ils ne sont point les maîtres, à des choses périssables qui ne font qu’apparaître dans l’existence, et que le cours ordinaire des événements suffits à leurs enlever…” (pg. 29)

“Il est facile de voir que les Religions ne sont presque toujours pour l’homme qu’une source nouvelle de crainte et de tristesse. Car ceux qui ont l’habitude de conduire les hommes par la crainte et l’espérance n’ont pas perdu cette occasion de leur représenter que Dieu est un être méchant et redoutable, qui est jaloux de leurs pauvres joies et qui se réjouit de leurs larmes. Et ainsi les hommes, au lieu d’un libérateur, ont trouvé leur maître; et la fausse Religion les fait deux fois esclaves…” (pg. 30)

“Il n’y a point, dans l’âme humaine, de volonté libre. Rien au monde ne peut être indépendant de Dieu, et le cours des événements, qui résulte, nécessairement et selon des lois éternelles, de la nature divine, ne peut pas dépendre des caprices de l’individu. (…) Et assurément cela ne veut point dire qu’il n’y ait pour l’homme aucune puissance ni aucune liberté, c’est-à-dire aucun salut, puisque nous traiterons bientôt de la puissance de l’homme sur ses passions et de la liberté humaine. Cela veut dire seulement que l’homme n’a point de puissance sur les événements, et qu’il doit d’abord les accepter et comprendre que dans l’ordre du fait aucun salut, aucun délivrance, aucun progrès n’est possible. Ce n’est point en modifiant les événements de sa vie que l’homme se sauvera et se libérera, c’est en les appréciant à leur juste valeur, en comprenant que sa vie véritable est autre part, au-dessus des événements qui passent, dans l’éternel. En vain cherchera-t-il à tirer de ses perceptions la moindre vérité; il ne fera jamais que changer une erreur pour une autre; la vérité est d’un autre ordre et dans une autre région; c’est par la déduction des essences qu’on y peut arriver. (…) La puissance de l’homme est d’un autre ordre; elle est non sur le corps ou sur les faits, mais sur les idées, dans l’ordre des essences; elle est dans la Raison. Et la liberté est encore d’un autre ordre; elle est dans la connaissance de tout cela par Dieu et em Dieu, dans la contemplation immédiate du vrai, dans la connaissance du troisième genre.” (p. 61)

“On ne peut rendre responsable aucune volonté libre de l’injustice et de la méchanceté des hommes. Quand on a compris cela, on ne peu plus ni s’indigner, ni blâmer, ni häir, et, en ce sens, on est dèjà meilleur.” (p. 75)

“On comprend très bien, par exemple, qu’un homme s’abstienne de faire du mal à quelqu’un qu’il hait, par crainte d’un mal plus grand. Et c’est ainsi qu’une societé peut s’établir et durer, pourvu qu’elle se charge de punir ceux qui feront tort à leur voisin, et d’établir des lois appuyées sur la menace. (…) Si, de plus, on ajoute à la puissance des lois celle de la superstition, et si l’on ajoute à la crainte des tribunaux et des peines infligées par les hommes, la crainte d’un Dieu cruel qui punira de plus les hommes après leur mort, tout dans cette cité donnera l’image parfaite de la paix, de la concorde, de la bonne foi et de la religion. Et pourtant les passions y seront reines, et toutes ces prétendues vertues résulteront seulement de la crainte que la société tout entière aura su inspirer à chacun de ses membres. C’est ce qu’il faut d’abord comprendre, afin de n’être pas trompé par ce faux bien, cette fausse justice, cette fausse vertu que, s’ils rendent l’homme moins malfaisant, le font deux fois esclave.” (p. 77-78)

“Les superstitions et fausses religions, qui ne cherchent point à rendre réellement les hommes meilleurs, mais seulement à contenir leurs passions dans l’interêt commun, font, de la crainte et de la tristesse, des vertus, comme aussi elles font, de la sécurité et de la joie, des vices, et imaginent un Dieu cruel et jaloux qui se réjouit des larmes et de la terreur des hommes, et qui s’irrite de leurs joies.” (p. 79)

“La joie est toujours un bien, parce qu’elle est le signe certain de notre passage à une plus grand perfection.” (p. 88)

“Seule parmi tous les biens, la verité peut être toute à tous.” (p. 96)

“La plupart des hommes croient qu’ils sont libres quand ils peuvent obéir à leur caprice, et ne cèdent un peu de cette liberté que parce qu’ils attendent un châtiment ou une récompensee dans une autre vie. Ils se disent que s’ils n’avaient pas cette crainte et cette espérance, s’ils ne croyaient ni à Dieu, ni à l’éternité de l’âme, ils s’affranchiraient du joug de la vertu. Mais l’homme raisonable n’a pas besoin d’être ainsi dominé par la crainte et par l’espérance pour être juste et bon. Même lorqu’il croit que Dieu n’est pas, et que l’amê périra avec le corps, il n’en vit moins selon la vraie Religion.” (p. 100)

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OUTRAS LEITURAS RECOMENDADAS

BalibarEtienne Balibar
Spinoza and Politics

Download (pdf, 14 mb):
http://bit.ly/1cZ8O0U

“A rich analysis of Spinoza’s key works within the context of his political, religious and ideological life. With Hobbes and Locke, Spinoza is arguably one of the most important political philosophers of the modern era, a premier theoretician of democracy and mass politics. In this revised and augmented English translation of his 1985 classic, Spinoza et la Politique, Etienne Balibar presents a synoptic account of Spinoza’s major works, admirably demonstrating relevance to his contemporary political life.

Balibar carefully situates Spinoza’s major treatises in the period in which they were written. In successive chapters, he examines the political situation in the United Provinces during Spinoza’s lifetime, Spinoza’s own religious and ideological associations, the concept of democracy developed in the Theologico-Political Treatise, the theory of the state advanced in the Political Treatise and the anthropological basis for politics established in the Ethics.”

“Basta de rosários em nossos ovários!” – O fanatismo religioso e a tirania sobre os corpos

Todo apoio à mobilização: “Afastem seus rosários de nossos ovários, seus fanáticos!” Um exemplo contemporâneo paradigmático do Cristianismo como doutrina machista e retrógada (além do mito que conta que Eva, nascida de uma reles costela de Adão, é culpada pelo pecado original…) é a situação hoje em El Salvador, país extremamente religioso.

Carla Herrara, 11, garota salvadorenha, segura contra o peito uma foto de sua mãe, Carmen Climaco, condenada a 30 anos de prisão por causa de um aborto que foi julgado como “homicídio”

Em El Salvador, relata Sam Harris, “o aborto é hoje ilegal sob quaisquer circunstâncias. Não há exceções para o estupro ou o incesto. No momento em que uma mulher chega a um hospital com o útero perfurado, indicando que fez um aborto caseiro em algum beco, ela é algemada à cama do hospital e seu corpo é tratado como uma cena de crime.

Médicos forenses chegam para examinar seu útero. Há mulheres hoje cumprindo penas de 30 anos de prisão pelo crime de interromper sua gravidez. Imagine tal cenário em um país que também estigmatiza o uso de anticoncepcionais e os vê como um pecado contra Deus.” (Carta a Uma Nação Cristã, Cia das Letras, Pg. 46)

É em direção à barbáries semelhantes que iremos caso a laicidade prossiga sendo tão mau-tratada pelos dogmatismos e fanatismos religiosos.

Saiba mais na reportagem do New York Times, “Pro-Life Nation”

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Outro exemplo:

Segundo Harris, avanços na área da medicina são obstaculizados em sua implementação por ações contrárias de religiosos fundamentalistas que “estão mais preocupados com os embriões humanos do que com a possibilidade de salvar vidas oferecida pela pesquisa com células-tronco” e que “são capazes de pregar contra o uso da camisinha na África subsaariana, enquanto milhões de pessoas morrem de AIDS nessa região a cada ano”.

Um caso paradigmático: “o papilomavírus humano (HPV, na sigla em inglês) é hoje a doença sexualmente transmissível mais comum nos Estados Unidos. Esse vírus infecta mais da metade da população americana, causando a morte de quase 5 mil mulheres a cada ano, de câncer cervical. O Centro para Controle de Doenças (Center For Disease Control – CDC) estima que mais de 200 mil mulheres morrem anualmente dessa doença no mundo inteiro.

Hoje temos uma vacina para o HPV que parece ser segura e eficiente. A vacina produziu uma imunidade de 100% nas 6 mil mulheres que a receberam como parte de um teste clínico. Contudo, os conservadores cristãos no governo americano opõem resistência ao programa de vacinação, alegando que o HPV é um impedimento valioso contra o sexo antes do casamento. Esses homens e mulheres piedosos desejam preservar o câncer cervical como incentivo para a abstinência sexual, embora ele tire a vida de milhares de mulheres a cada ano.”

 Um dos melhores documentários sobre esta problemática toda do fundamentalismo religioso e a cerca que ele pretende impor aos corpos e mentes humanas é Lake of Fire, filme de Tony Kaye (de A Outra História Americana) que você pode assistir na íntegra abaixo:

“O Capitalismo é moral?”, de André Comte-Sponville (Ed. Martins Fontes, 2005, trad. Eduardo Brandão)

ANDRÉ COMTE-SPONVILLE
“O CAPITALISMO É MORAL?”
ED. MARTINS FONTES

“Faço parte da chamada Geração 68, e se isso não me dá nem orgulho nem vergonha, guardo desse pertencimento algumas das minhas mais belas lembranças. […] A moda, naqueles anos, era o imoralismo, a libertação geral e irrestrita. Os mais filosóficos dentre nós reivindicavam Nietzsche: queríamos viver além do bem e do mal. Quanto aos que não eram filosóficos, contentavam-se em pichar os muros da faculdade os belos lemas de então: “É proibido proibir!” ou “Vivamos sem tempos mortos, fruamos sem limites!”

O apoliticismo, então, era quase inimaginável. O engajamento, quase uma evidência. Naqueles anos de 60-70, tudo era política. […] Uma boa política nos parecia ser a única moral necessária. Uma ação nos parecia moralmente válida se fosse, como dizíamos, politicamente justa. Moral de militante, cheia de boa consciência e entusiasmo.

Meu melhor amigo daqueles anos… não faria mal a uma mosca (a não ser, talvez, a uma mosca de extrema direita). Mas a moral lhe parecia uma ilusão inútil e nefasta. Ele era ao mesmo tempo nietzschiano e marxista, como muitos de nós. […] A moral? Ideologia servil e judaico-cristã. O dever? Idealismo pequeno-burguês. Disparávamos flechas incendiárias contra o estado-maior da consciência. Abaixo a MORALINA!, como dizia Nietzsche, viva a Revolução e a liberdade!”

Da geração de 68 – “geração do tudo política” – à geração atual ocorreu uma “crise considerável da política. É na medida em que os jovens de hoje têm cada vez menos a sensação de poder influir coletivamente sobre seu destino comum – o que é a verdadeira função da política – que eles tendem a encerrar-se no terreno dos valores morais. […] De um lado, não podemos deixar de nos felicitar com o fato de que os jovens empreendam uma espécie de retorno a uma forma de exigência moral ou humanista; de outro lado, que o façam em tamanho detrimento de toda e qualquer ação propriamente política é algo que não pode deixar de nos preocupar.

O “TRIUNFO DO CAPITALISMO”?

A expressão “o triunfo do capitalismo” me deixa um tanto perplexo. Não que eu conteste o desmoronamento do bloco soviético, no final dos anos 80. Mas, quando dois sistemas estão em concorrência um com o outro, nada prova que o desmoronamento de um seja o triunfo do outro. Os dois poderiam ruir: a coisa não é nem logicamente, nem historicamente inconcebível. O fracasso de Spartacus não bastou para salvar o Império Romano…

O capitalismo, apesar de seus desacertos, apesar das suas injustiças, que são incontáveis, desfruta de uma espécie de quase monopólio ideológico. Surge a desconfiança de que ele venceu seu adversário histórico (o comunismo) por nada. Para que vencer, quando não se sabe por que viver? […] O Ocidente tem ainda alguma coisa a propor ao mundo? Acredita o bastante em seus próprios valores para defendê-los? Ou, incapaz de praticá-los, não sabe fazer outra coisa que produzir e consumir – que fazer negócios, à espera da morte? […]”

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A MORTE DE DEUS

A chamada “morte de Deus” é um processo que se estendeu por vários séculos. Começou na Renascença, acelerou-se no século XVIII, em torno do chamado Iluminismo, e continuou ao longo dos séculos XIX e XX inteiros. Constatamos hoje, na França, seu quase acabamento. Esse processo é um processo de laicização, de secularização, de descristianização.

Era esse processo que Nietzsche diagnosticava, já no fim do século XIX, ao falar da morte de Deus. É esse mesmo processo que o sociólogo Max Weber analisava a seu modo ao falar de “desencantamento do mundo”. […] Falar da morte de Deus não quer dizer que hoje seria impossível acreditar em Deus. Claro que continua sendo possível! […] Mas a fé, hoje em dia, pertence unicamente à esfera privada, como dizem os sociólogos: continuamos podendo , individualmente, acreditar em Deus; mas não podemos mais, socialmente, comungar nele… nossa sociedade não pode mais basear nele sua coesão.

O que hoje nos ameaça é o que chamarei de uma era da negligência generalizada, isto é, uma dissolução da ligação, do vínculo social, de tal sorte que nossos concidadãos, tornando-se incapazes de comungar no que quer que seja, não podem mais fazer outra coisa senão cultivar sua estreita esfera privada – o que os sociólogos chamam de TRIUNFO DO INDIVIDUALISMO, ou, no franglês costumeiro deles, de COCOONING. […] O individualismo, o cocooning, dá ótimos consumidores…

Minha inquietação é que essa morte social de Deus, em nossos países, seja ao mesmo tempo o desaparecimento, pelo menos no Ocidente, de toda vida espiritual digna desse nome. A tal ponto que, com o esvaziamento das igrejas, só saibamos preencher nossa manhã de domingo com o supermercado… Seria um erro rejubilar-se com isso. Permitam que o ateu que sou lhes diga que este, o supermercado, não substitui aquela, a igreja.”

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Durante 20 séculos de Ocidente cristão, no fundo era Deus que respondia à pergunta “O QUE DEVO FAZER?” – que é a questão moral – por seus mandamentos, seus sacerdotes, sua Igreja. […] Mas eis que à pergunta “que devo fazer?”, Deus não responde mais. Ou, mais exatamente, eis que suas respostas se tornam socialmente cada vez menos audíveis… Todas as pesquisas confirmam que uma maioria de cristãos praticantes não se sente mais obrigada pelas injunções morais da Igreja ou do papa – basta pensar nos problemas da contracepção ou da sexualidade fora do casamento. Quantos cristãos que aclamaram João Paulo II fazem verdadeiramente questão de se casar virgens? Quantos renunciaram definitivamente à pílula e à camisinha?

Muito ingênuos eram os que acreditavam que o ateísmo suprimia a questão moral. “Se Deus não existe”, dizia um personagem de Dostoiévski, “tudo é permitido”. Eu diria o contrário: se Deus existisse, poderíamos a rigor nos permitir tudo, em outras palavras, entregar nas mãos dele o problema. Necessitamos tanto mais de moral quanto menos temos religião – porque temos de responder à questão “que devo fazer?” quando Deus não responde mais.

Necessitamos de moral, hoje, sem dúvida muito mais que em qualquer outra época conhecida da humanidade civilizada. Porque nunca, desde há trinta séculos, conheceu-se uma sociedade a tal ponto laicizada; nunca, desde há trinta séculos, conheceu-se uma sociedade tão pouco religiosa, em suas profundezas, quanto a nossa.

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Imagine um indivíduo perfeitamente respeitoso da legalidade do país em que vive, que faria sempre o que a lei impõe, que nunca faria o que a lei veda – o legalista perfeito. Mas que se ateria unicamente a essa determinação. Ora, nenhuma lei veda a mentira. Nenhuma lei veda o egoísmo. Nenhuma lei veda o desprezo. Nenhuma lei veda o ódio. Nenhuma lei veda – vejam só – a maldade.

De modo que nosso indivíduo perfeitamente legalista poderá, em plena conformidade com a legalidade republicana, ser mentiroso, egoísta, cheio de ódio e desprezo. O que ele seria, então, senão um canalha legalista?

[…] Na Sorbonne, costumo propor a meus alunos o seguinte tema: “O povo tem todos os direitos?” Corrijo os trabalhos e descubro que a quase totalidade dos nossos alunos, com uma boa consciência democrática um tanto inquietante, me respondia que sim, claro, o povo tem todos os direitos: é assim que tem de ser, é o que se chama democracia.

Devolvo os trabalhos… Digo a eles: “Tudo bem, o povo tem todos os direitos. Logo… tem o direito de oprimir esta ou aquela minoria, por exemplo, votando leis antijudaicas; logo… tem o direito de praticar o assassinato legal, por exemplo, abrir campos de concentração; logo… tem o direito de deflagrar guerras de agressão… O que então – perguntei a eles – vocês criticam em Hitler, que por sinal foi nomeado chanceler em 1933 de uma forma mais ou menos democrática?”

A democracia, e na Europa estamos bem situados para sabê-lo, não é de forma alguma uma garantia, nem mesmo contra o pior. […] De modo que se quisermos escapar, coletivamente desta vez, desse espectro do povo que teria todos os direitos, inclusive do pior, somos também obrigados a limitar essa ordem jurídico-política. Temos duas razões para querer limitá-la: uma razão individual, para escapar do espectro do canalha legalista, e uma razão coletiva, para escapar do espectro do povo que teria todos os direitos, inclusive de fazer o pior.

[…] Há coisas que a lei autoriza e que no entanto devemos nos vedar, outras que a lei não impõe, que no entanto devemos nos impor. Um projeto de lei racista, mesmo se a Constituição o possibilitasse, seria moralmente imperativo rejeitá-lo. […] O amor à liberdade não está submetido à democracia: uma maioria totalitária nunca impedirá que os espíritos livres amem a liberdade.

O amor infinito não tem por que ser temido. Por duas razões: a primeira é que não se poderia desejar nada melhor que o amor infinito; a segunda é que, cá entre nós, não é o amor infinito propriamente o que nos ameaça… “A única medida do amor”, dizia Agostinho, “é amar desmedidamente”. Estamos longe disso, quase todos, quase sempre. O amor, no mais das vezes, só brilha por sua ausência. O amor, para quase todos, é o valor supremo. […] Todos, crentes ou descrentes, devem habitar neste mundo a finitude do amor, logo (já que ele se pretende infinito) sua incompletude também; é o que se chama ética, e que a torna necessária.”

O CAPITALISMO É MORAL?

É sabido desde Rabelais: “Ciência sem consciência é ruína da alma”. […] Minha tese é radical: nessa primeira ordem, a ordem econômica tecnocientífica, nada nunca é moral. […] Só as criancinhas pequenas é que acreditam que a chuva é boazinha, ao fazer as flores e as verduras crescerem, e malvada, ao produzir inundações ou não as deixar jogar bola…. Nós sabemos muito bem, no entanto, que a chuva nunca é nem boazinha nem malvada, nem moral nem imoral: ela está submetida a leis, a causas, a uma racionalidade imanente, que não tem nada a ver com nossos juízos de valor.

A mesma coisa vale para as cotações do petróleo e do euro: elas não dependem de maneira nenhuma da moral, mas sim do andamento geral da economia, das relações de forças (inclusive de forças políticas: a potência dos EUA, por exemplo…) na escala do mundo, enfim da lei da oferta e da procura. […] Não é a moral que determina os preços; é a lei da oferta e da procura. […] O capitalismo não é moral; mas também não é imoral; ele é – e é total, radical, definitivamente – AMORAL.

O objetivo de Marx, no fundo, era moralizar a economia. Ele queria que a ordem econômica fosse enfim submetida à ordem moral. É o que se joga, na sua obra, em torno das noções de alienação e exploração. […] Marx queria acabar com a injustiça, não por uma simples política de redistribuição, mas… inventando outro sistema econômico que tornaria enfim os seres humanos economicamente iguais. […] É aí que encontramos a dimensão utópica do marxismo. Para que o comunismo, tal como Marx o concebeu, tivesse uma chance de triunfar, era necessário pelo menos uma coisa: que os homens parassem de ser egoístas e pusessem enfim o interesse geral acima do seu interesse particular.

[…] A jogada genial do capitalismo, ao contrário, está em não pedir aos indivíduos nada além de serem exatamente o que são: “Sejam egoístas, cuidem do seu interesse, e não é que tudo correrá às mil maravilhas no melhor dos mundos possíveis…”

A análise que faz Marx do capitalismo continua sendo, son muitos aspectos, uma das mais esclarecedoras. […] O capitalismo é um sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção e de troca, na liberdade do mercado e no trabalho assalariado. […] Os que possuem a empresa (os acionistas) vão portanto fazer trabalhar – com base num contrato voluntário e em troca de um salário – os que não a possuem (os assalariados). Os acionistas só tem interesse em firmá-lo porque os trabalhadores produzem mais valor do que recebem: é o que Marx chama de mais-valia. […] A única maneira de satisfazer o acionista é, evidentemente, satisfazer o cliente… inclusive vendendo-lhe, se a este aprouver, produtos que lhe fazem mal: fumo, álcool, programas de TV idiotizantes…

O capitalismo serve para produzir, com riqueza, mais riqueza. Estou apenas retomando uma das definições canônicas do que é um capital: riqueza criadora de riqueza. […] Alguns enriquecem sem trabalhar, outros se esgotam no trabalho e continuam pobres. Vocês acham isso moral? Vão responder que um rico pode se arruinar, que um pobre pode fazer fortuna… Às vezes acontece, mas… a melhor maneira de morrer rico, num país capitalista (mas também era assim num país feudal!) ainda é nascer rico. […] Isso não é motivo para nos pormos de joelhos diante dele. […] Se o mercado virasse uma religião, seria a pior de todas, a do bezerro de ouro. E a mais ridícula das tiranias, a da riqueza.

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A coisa se torna inquietante quando, de tanto repetir que o Estado é grande demais, acaba nascendo a tentação de que não tem de haver mais Estado algum, ou só tem de haver um Estado mínimo, que deixaria funcionar os célebres mecanismos auto-reguladores do mercado. O único problema é que, nesse caso, não é mais o povo que é soberano: são os capitais ou os que os possuem. Portanto não se está mais numa democracia. Barbárie liberal: tirania do mercado.

Conhecemos pelo menos um caso… é o Chile de Pinochet. Você toma o poder com um golpe de Estado militar (o povo, esses incompetentes que elegeram Allende, fica assim fora de jogo por vários anos), assassina um pouco, tortura muito, mas gestão não é sua especialidade: essa tarefa você confia a alguns especialistas, muitas vezes saídos das melhores universidades americanas, dentre os quais vários alunos ou colegas (os “Chicago boys”, dizia-se então) do liberalíssimo e futuro prêmio Nobel, Milton Friedman… A política econômica é marcada por privatizações, supressão do controle dos preços, abertura para a concorrência internacional… Ou seja, você retira o máximo possível de poder do Estado e dos sindicatos, dá o máximo possível de poder ao mercado e aos empresários… Ora, o Chile de Pinochet não é uma democracia. […] Numa democracia, o povo é que é soberano, o que exclui que os mercados o sejam. […] O povo é que é soberano, o que exclui ou deve excluir (se os democratas derem mostra de vigilância) que Wall Street o seja. […] O mercado e as empresas não são muito bons para criar justiça; somente os Estados têm uma chance de criá-la, mais ou menos.

O integrismo religioso – ou “angelismo” – quer que a religião diga o bem e o mal, o legal e o ilegal, o verdadeiro e o falso. Mas se Deus é soberano, como o povo poderia sê-lo? Por exemplo: essas seitas protestantes que pretendem proibir, nos EUA, o ensino do darwinismo nas escolas, a pretexto de que é contrário aos ensinamentos do Gênesa, na Bíblia… É o momento de recordar, com Rilke, que “todo anjo é assustador”. O angelismo não é menos perigoso que a barbárie, às vezes é até mais. É quase sempre em nome do Bem que se autoriza o pior. […] Se Bush e Bin Laden não estivessem tão convencidos de representar o Bem, ou Deus mesmo, poderíamos temer menos a política deles…

O mais grave, na guerra americana contra o Iraque, não é que ela tenha sido decidida para defender os interesses dos EUA; é que ela os defenda mal (o balanço global, mesmo de um ponto de vista americano, corre o risco de ser terrivelmente negativo), desdenhando o direito internacional e fazendo pouco-caso dos milhares de mortos que ia acarretar.

Ora, por que essa guerra? Por medo das armas de destruição em massa? Para assegurar a segurança do povo americano? Para barrar o terrorismo? Pelo petróleo? Todorov mostra que nenhuma dessas explicações se sustenta. Essa guerra também se fez, e quem sabe se fez sobretudo, em nome do Bem e da Liberdade, digamos em nome dos valores da democracia liberal. Isso, longe de justificá-la, só a torna mais inquietante. Porque, onde é que se vai parar? Quem decidirá o que é o Bem e o que é o Mal? Fazer a guerra em nome de um Bem absoluto é o princípio das cruzadas, e não conheço princípio mais pernicioso. É angelismo moralizador (se não teológico, quando invoca o nome de Deus), bastante comparável, quanto ao fundo, ao de Bin Laden.

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Alguém que põe o dinheiro acima do amor é o que chamamos de um pobre coitado. […] O crescimento, em princípio indefinido, da economia (sempre é possível, teoricamente, acrescentar riqueza à riqueza) vem se chocar, cada vez mais, contra os limites, estritamente finitos, da ecologia. […] Se os 7 bilhões de seres humanos vivessem como vivem os ocidentais (com o mesmo consumo de água potável, de proteínas animais e de energias não renováveis), o planeta não aguentaria dez anos. A situação planetária é dramática… pois a elevação ou a manutenção do nível de vida se choca cada vez mais com os limites do planeta. Daqui 30 anos, diziam-me alguns peritos, não haverá mais petróleo e a água potável terá se tornado um artigo raro. […] A humanidade, que fez progressos tão consideráveis nos últimos dez mil anos, saberá controlar as consequências desse progresso?”

Comte-Sponville