A construção social da subhumanidade: Judith Butler e a distribuição diferencial da vulnerabilidade e do luto || A Casa de Vidro

“Os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros”, escreve com alta carga de ironia George Orwell em A Revolução dos Bichos (Animal Farm). Era um modo lúdico e sagaz do escritor inglês denunciar o abismo entre a enunciação de um ideal, a igualdade, e o mundo como ele é, onde a desigualdade reina.

Na fábula orwelliana, a tirania dos porcos faz uso do recurso ideológico de anunciar, ao menos da boca pra fora, que os “animais são todos iguais”, para na sequência cortar as asas das pretensões dos animais subalternos: “não se assanhem, oprimidos! respeitem a nova ordem!”, dizem os porcos, que se transformaram em nova elite após a Revolução-na-Granja-do-Mr-Jones.

O substrato histórico que inspira Orwell – os descaminhos da Revolução Russa de 1917 quando, após a morte de Lênin em 1924, cai sob o domínio do stalinismo – não impede que a obra aspire a dizer algo universal: revoluções vem e vão, mas o igualitarismo radical permanece travado em sua concretização.

Como o próprio fenômeno Napoleão – nome que Orwell escolhe dar o porco-rei de sua fábula – demonstra na história da Revolução Francesa: do estandarte tricolor que anunciava Fraternidade, Liberdade e Igualdade em 1789, anos depois o que vigia era um Império, envolvido em altas rixas bélicas fora de suas fronteiras, estruturado de maneira hierárquica e personalista tal qual no Antigo Regime supostamente derrubado.

A frase cômica (pois absurda) “mas uns são mais iguais que outros”, item bizarro da ideologia da nova elite porca, que massacra as pretensões de galinhas, cachorros, ratos e outros bichos de pretenderem gozar dos mesmíssimos direitos gozados pela elite suína. É a frase que explicita a tirania disfarçada sobre um linguajar pseudo-democrático. É um item que desvela o absurdo ideológico na base da farsa: um “novo mundo” que promete o igualitarismo mas fracassa em entregá-lo.

“It is for your sake that we drink that milk and eat those apples. Do you know what would happen if we pigs failed in our duty? Jones would come back!” GEORGE ORWELL, Animal Farm. SAIBA MAIS NO SITE DA BBC.UK

Transpondo o problema da fábula literária orwelliana para o campo da filosofia contemporânea, encontramos no pensamento de Judith Butler uma análise magistral da gênese, da reprodução e da conservação das desigualdades e injustiças sociais.

Ela mostra de que modo ocorre a construção social da subhumanidade, a criação artificial de noções ideológicas que fabricam, nos discursos e nas práticas, uma certa parcela da humanidade como se fosse menos que outra.

Uma parcela da humanidade é estigmatizada como menos do que humana por uma outra parcela da humanidade – e neste processo nossas vidas, que teríamos a tentação de dizer que são igualmente precárias pois somos todos mortais, são tratadas diferencialmente em face desta morte que nos une mas nos separa: algumas vidas são construídas como valiosas (e suas perdas são sentidas como catástrofe a ser pranteada), outras vidas são tidas como matáveis (como se “esmaga um inseto no chão”, para lembrar um verso inesquecível de “Let Down” do Radiohead) e indignas de luto.

Em Vida Precáriaescrito sob o impacto dos atentados do 11 de Setembro de 2001 nos EUA e da “Guerra Contra O Terror” que os sucedeu, a filósofa interroga: “a questão que me preocupa, à luz da violência global recente, é: quem conta como humano? Quais vidas contam como vidas? E, finalmente, o que concede a uma vida ser passível de luto?” (BUTLER: 2019, p. 40)

Butler quer saber: por que não deveríamos chorar a perda de um gay de São Francisco que morreu de AIDS tanto quanto a morte de um grande empresário que se acidentou fatalmente em seu jatinho privê? Por que permitimos que certos grupos sociais sejam tratados como menos humanos que outros, e transformados assim em vidas mais precárias e desprotegidas, mais sujeitas à violência e ao descaso com seus corpos?

“Mulheres e minorias, incluindo minorias sexuais, são, como comunidade, sujeitas à violência, expostas à sua possibilidade, se não à sua concretização. Isso significa que somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade social de nossos corpos (…) socialmente constituídos, apegados a outros, correndo o risco de perder tais ligações, expostos a outros, correndo o risco de violência por causa da tal exposição.” (JUDITH BUTLER, op cit, p. 40)

Na filosofia de Butler, somos todos “corpos socialmente constituídos”, condenados o apego e à interdependência, ameaçados com a perda de vínculos, correndo o risco da violência – somos sempre corpos políticos, permeados por afetos e vínculos, constitutivamente vulneráveis. Esta vulnerabilidade comum que poderia nos unir, servindo como o universal concreto que propicia nossa solidariedade (somos todos vulneráveis e precários, portanto “ninguém solta a mão de ninguém”), na prática acaba pervertido através disto que estou chamando aqui de construção social da subhumanidade. Que é a construção de razões, justificativas, ideologias e instituições que permitem tratar certos outros como matáveis, extermináveis – no limite, construir o outro como subhumano, como barata (para relembrar Mukasonga e sua pungente narração literária sobre os genocídios em Ruanda).

Por que a humanidade não cessa de dividir-se em richas fratricidas? Poderíamos responder, com Butler: a guerra não pára pois a humanidade ainda não existe, ainda não se consumou. Ela ainda está cindida entre aqueles que, em sua arrogância e húbris, querem reduzir a alteridade e transformar todo o domínio multicolorido da Outridade (para usar o neologismo cunhado pelo Nobel de Literatura mexicano Octavio Paz) em algo que esteja à altura-de-anão da perspectiva binária.

O colorido dos outros, a polifonia de nossas vozes, o “arco-íris terrestre” que supera em cores o celeste (Eduardo Galeno), acaba mutilado e forçado a entrar numa representação de um pebê empobrecido e monofônico no viés daqueles que constrõe alguns outros como sub-humanos. Para que possam fazê-lo, estes altericidas precisam estar acometidos de algo semelhante àquela “cegueira branca” de que José Saramago foi o genial romancista, e que Fernando Meirelles soube levar o cinema com maestria.

A construção social da subhumanidade, conexa às violências bélicas, aos genocídios, aos massacres de fúria étnica, aos pogroms e chacinas entre seitas, está conexa à cegueira de quem vê o mundo distorcido pelo prisma defeituoso que só enxerga branco e preto, oito ou oitenta, nós vs eles…

Em um dos filmes mais significativos para a história da filosofia contemporânea, Examined Life (Vida Examinada), de Astra Taylor, Judith Butler passeia na companhia de Sunaura Taylor em San Francisco. O papo delas é ocasião para levar filosofia pras ruas e realizar um debate sobre as segregações, que se manifestam concretamente nos territórios urbanos, onde o próprio direito à cidade não é estendido igualitariamente a todos: a pessoa na cadeira-de-rodas, por exemplo, tem vários problemas de acessibilidade que não são apenas questões técnicas e logísticas, mas que tem a ver com um acesso impedido à humanidade plena. 

Butler aproveita este diálogo para destacar que as pessoas ditas “normais”, que não tem nenhuma “deficiência” corpórea visível, podem chegar a ter a ilusão de uma radical auto-suficiência. Isto é falso pois a existência humana só se constitui na relacionalidade – e nossa própria formação psíquica inicial depende radicalmente da teia de relações de nossa primeira infância: “somos, desde o início, mesmo antes da própria individualização, e em virtude de exigências físicas, entregues a um conjunto de outros primários: essa concepção significa que somos vulneráveis àqueles que somos jovens demais para conhecer e julgar e, portanto, vulneráveis à violência; mas vulneráveis também a um outro tipo de contato, um que inclui a erradicação do nosso ser, de um lado, e o apoio físico para nossas vidas, de outro.” (Butler, 2019, op cit, p. 51).

Desde o Iluminismo do séc. XVIII, e das revoluções díspares que ele trouxe em seu bojo (pensemos na França em oposição ao Haiti, contrastando os relatos de Michelet e de C.R.L. James), sabemos que revoluções pautadas por um desejo de construção de direitos universais muitas vezes recaem no erro de, uma vez dotadas de poder, construírem a subhumanidade e a matabilidade de uma parcela da humanidade, violando sua própria pretensão de estender os direitos a todos. Os jacobinos franceses chegaram ao absurdo supremo: decretaram os direitos universais, e excluíram deles dois terços da humanidade, ou seja, as mulheres e as populações sob o domínio colonial do Império Francês.

Quem ousou denunciar estes absurdos, como Olympe de Gouges, perdeu a cabeça nas guilhotinas do Terror revolucionário jacobino. Além de regicidas, os jacobinos, sob a tirania de Robespierre, também cortaram cabeças de feministas e de artistas que denunciavam a construção social da subhumanidade, por exemplo, da população do Haiti – lá onde triunfaria uma outra estirpe de revolução, propulsionada por Toussaint L’Ouverture  e os “jacobinos negros”.

A obra tão preciosa de Judith Butler está aí para nos ensinar caminhos para a desconstrução criativa daquilo que nos mantem atados a sociedades violentas e brutalmente desiguais. Para isso, a filósofo politiza a questão do luto, em sintonia com o conceito feminista de que “o pessoal é político”. Para ela, o luto – o pesar pela perda de um certo vínculo com algum outro – é sempre o índice do quanto somos animais sociais, zoon politikon:

“Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos isola em uma situação solitária e é, nesse sentido, despolitizante. Acredito, no entanto, que o luto fornece um senso de comunidade política de ordem complexa, primeiramente ao trazer à tona os laços relacionais que têm implicações para teorizar a dependência fundamental e a responsabilidade ética. (…) A paixão, o luto e a raiva nos arrancam de nós mesmos, nos prendem a outros, nos transportam, nos desfazem, nos envolvem, irreversível, se não fatalmente, em vidas que não são as nossas.” (p. 45)

O luto é um lócus onde podemos ler a construção social da subhumanidade: todos os animais humanos são mortais, mas alguns quando morrem não merecem ser chorados. Assim reza a cartilha do luto na boca daqueles que se arrogam o direito de construir parcelas da humanidade como sub, inferiores, matáveis.

Judith Butler nos faz questionar por que somos ensinados a não chorar quando ouvimos falar de palestinos sendo massacrados sob as bombas do estado de Israel sob domínio sionista, mas choramos copiosamente quando a mídia, via Fox News ou Rede Globo, nos pinta o comovente retrato de um soldado do Exército dos EUA que perdeu a vida nos campos-de-batalha do Iraque, supostamente defendendo “a democracia e a liberdade”. Por que ouvir sobre um massacre perpetrado por policiais contra pessoas encarceradas não desperta a mesma comoção pública de luto coletivo quanto o suicídio de um popstar ou astro de Hollywood?

O célebre silogismo que marca a história da filosofia, com sua lógica aparentemente irrefutável – todos os homens são mortais, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal -, na verdade esconde algo que a reflexão ética e o escrutínio crítico da nossa vida coletiva é capaz de desnudar: todos morremos, sim, mas alguns morrem e isto é um catástrofe que muitos irão chorar, enquanto outros morrem e quase todo mundo dá de ombros e, sem sentir muita coisa, nem piedade nem indignação, deixa que sejam enterrados sem que mereçam a esmola de uma lágrima ou de um pensamento enternecido e dilacerado pelo luto.

É verdade que uma mortalidade comum nos une, mas a vulnerabilidade que nos é constitutiva não passa através do “prisma” social sem distorções: algumas vidas são construídas como mais vulneráveis, mais expostas à violência, mais precárias. Importa muito, ou seja, é de uma pertinência urgente, que possamos perceber “as formas radicalmente injustas que a vulnerabilidade física é distribuída globalmente”, como escreve Butler, cuja ética, inspirando-se em Lévinas mas também no “farol moral” de Arundhati Roy, envolve necessariamente a postura de quem atenta para a dor do outro, sensível ao que ele padece, levando em consideração seu rosto, ainda que emudecido pela morte ou ainda vivo mas nas contorções de uma vida sufocante ou de uma morte indigna: através da “consideração da vulnerabilidade dos outros”, ensina Judith, “poderíamos avaliar criticamente e nos opor às condições em que certas vidas são mais vulneráveis do que outras e, assim, certas vidas humanas provocam mais luto do que outras.”

Gaza, July 2014Gaza, Julho de 2014

Escrevi, em 2014, um texto em inglês para o blog Awestruck Wanderer que tentava refletir filosoficamente sobre a dificuldade de “apertar as mãos com a dor dos outros”. O moralista La Rochefoucauld fornece o mote ao dizer que “nem sempre temos a força necessária para suportar os males dos outros”. De fato, não há caminho fácil para a solidariedade, nem exercício indolor da virtude crucial da empatia. É preciso abraçar a aventura da abertura que é descobrir, em todo a glória e em todo o horror, a vulnerabilidade de cada um de nós. Corpo mortal, finito, transitório, ameaçado de morte durante toda sua vida, sou um corpo social cuja vulnerabilidade o congrega a todos os outros corpos sociais, mas  é preciso também perceber os abismos que nos separam devido às injustiças na distribuição das vulnerabilidades. Butler, assim, torna-se nossa aliada imprescindível no processo de desnudamento e superação dos estratagemas sócio-políticos envolvidos na construção da subhumanidade e da matabilidade alheia.

Escrevendo nos EUA pós-11 de Setembro, Butler diz, sobre os obituários da grande imprensa:

“nunca escutamos os nomes dos milhares de palestinos que morreram pelas mãos dos militares israelenses apoiados pelos EUA, ou o número indiscriminado de crianças e adultos afegãos. Eles têm nomes e rostos, histórias pessoais, famílias, passatempos favoritos, lemas pelos quais vivem? (…) Se 200.000 iraquianos foram mortos durante a Guerra do Golfo e seu rescaldo, teríamos nós uma imagem, um enquadramento para qualquer uma dessas vidas, individual ou coletivamente? Haveria uma história que podemos encontrar na mídia sobre essas mortes? Haveria nomes ligados a essas crianças?… Não existem obituários para as vítimas da guerra que os Estados Unidos infligem… o obituário funciona como o instrumento pelo qual a injustiça é publicamente distribuída. (…) As vidas queer que desapareceram no 11 de Setembro não foram publicamente acolhidas na identidade nacional construída nas páginas dos obituários… Mas isso não deveria ser surpresa quando pensamos quão poucas mortes causadas pela AIDS foram passíveis de luto público, e como, por exemplo, o grande número de mortes ocorrendo agora na África não é também evidenciado ou suscetível ao luto na mídia.” (pg. 53-54-56)

A reflexão crítica de Butler, em Vida Precária, nos leva a questionar sobre porquê choramos tão pouco diante dos destinos daqueles que estão detidos sem julgamento em Guantánamo, ou que estão num campo de concentração a céu aberto em Gaza, ou estão amontoados em campos de refugiados ou presídios super-lotados. O livro inclui uma contundente defesa do direito ao dissenso e à liberdade de expressão: Butler diz que não devemos calar nossas críticas contra o imperialismo dos EUA ou contra o sionismo de Israel devido ao temor de sermos taxados como “aliados do terrorismo islâmico” ou “anti-semitas”. A desqualificação do discurso crítico e da denúncia das violações de direitos humanos básicos se dá com frequência, no contexto atual, através da falsificação do dissenso como se fosse traição, quando na verdade é a mais alta responsabilidade do intelectual público estar ao lado dos que foram injustamente detidos e torturados em Abu Ghraib, dos que não tem o “direito a ter direitos” nos territórios palestinos ocupados pelo exército sionista, dos que são chacinados pela polícia ou pelo descaso estatal nas favelas, nos guetos, nos bantustões…

Enxergar a humanidade neles, abraçar sua dor, criticar a desumanização que lhes é imposta, não significa apenas se revoltar contra aquilo que Renato Russo cantava (“a humanidade é desumana…”), é dedicar-se à refazenda de nossa própria humanidade. A humanização é sem fim ainda que a humanidade um dia finde. Para que os humanos possam ser de fato “corpos em aliança”, unidos na vulnerabilidade, juntos no “nós” da revolta contra a desumanização (“eu me revolto, logo somos”, ensinava Camus), é preciso primeiro corroer através da crítica e da ação política tudo aquilo que constrói a subhumanidade alheia, convidando a matar e não chorar – o mais desumano dos atos e que, paradoxalmente, muitas vezes é praticado justamente por aqueles que de modo mais arrogantes se auto-proclamam como os porta-vozes do humano.

Arte de Luciana Siebert

Conceição Evaristo tem uma frase famosa: “eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.” Aí se expressa uma união que nasce do próprio âmago da vontade de sobrevivência, esta que é a mais primeva e a mais intensa das forças que nos habitam: o que Spinoza chamou de conatus, e que Kalil Gibran disse ser “a ânsia da vida por ela mesma”. As pessoas que estão sob ameaça maior de perder a vida pois encontram-se em situação de precariedade, vulnerabilidade, risco, aquelas pessoas que os poderosos de certo modo marcam para morrer, aquelas pessoas que os políticos palacianos calculam que não valem o esforço de tentar salvar, pessoas que podem tranquilamente perecer, pessoas para quem está vigente o descaso absoluto de uma política do deixar-morrer, são justamente estas as pessoas que precisaram organizar-se de modo solidário.

A união de fato faz a força para quem foi destituído por outrem a ponto de ser forçado à posição de fraco. Judith Butler é uma pensadora-ativista que convoca nossos afetos, a exemplo de Conceição Evaristo, a uma espécie de fratria dos fracos, uma sororidade dos despossuídos, uma aliança dos marginalizados, uma força coletiva que nasça da precariedade de cada um para transformar-se na força de todos, no raiar da consciência salutar e imprescindível de nossa interdependência. Caso estejamos dispersos e desunidos, eles que combinaram de nos matar vão triunfar. Nós, que preferimos a vida ao capital, o amor à ganância, a diversidade em flor ao purismo dos racistas, devemos nos insurgir conjuntamente para que o berro agonizantes dos eugenistas não triunfe, e sim todo o colorido de uma queer-Idade que faça valer, enfim, o mote de Rosa Luxemburgo: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.”

QUANDO A ECONOMIA SE TORNA O BERRO AGONIZANTE DOS EUGENISTAS 
Judith Butler em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil (Maio de 2020):
 
“As políticas sociais são armadas e aplicadas de maneira a se configurar como a morte das populações marginalizadas, especialmente, das comunidades indígenas e das populações carcerárias, também daqueles que, como resultado de políticas públicas racistas, nunca tiveram um tratamento de saúde adequado. Afinal, a taxa de mortes nos Estados Unidos neste momento está diretamente correlacionada à pobreza e privação de direitos das populações negras. Quando nos referimos àqueles com “complicações prévias de saúde” estamos geralmente nos referindo àqueles que nunca tiveram a assistência e diagnóstico que precisaram e certamente mereciam. E esse é apenas um dos efeitos mórbidos do capitalismo de mercado. Nós deveríamos usar esse momento para pensar em práticas universais de sistemas de saúde e sua relação com um socialismo global que esclareça o jeito como somos todos interdependentes.
Temos que deixar bem claro que todos os humanos possuem igual valor. E ainda assim a maioria de nossas ideias sobre o que é ser humano implica em estruturas radicalmente desiguais porque algumas pessoas tornam-se mais “humanas” ou “valiosas” aos olhos do mercado e do Estado. Nós ainda não sabemos como seria o humano se nos imaginássemos todos possuindo o mesmo valor. Essa seria uma nova imagem de humano, uma nova ideia e horizonte. Quando ouvimos falar sobre a “saúde” da economia sendo mais importante do que a “saúde” dos trabalhadores, dos idosos e dos mais pobres, somos convidados a desvalorizar o humano para que a economia reine acima dele. Agora se “saúde econômica” significa expor o trabalhador à doença e à morte, então nos voltamos à produtividade e ao lucro, não à “economia”. A brutalidade do capitalismo se apresenta às claras, sem nenhum pudor: o empregado deve ir trabalhar para conseguir viver, porém o local de trabalho é onde sua vida é colocada em risco. Marx já dizia isso na metade do século XIX e assustadoramente esse pensamento ainda se aplica à nossa realidade.
 
Talvez ainda não tenhamos nos decidido entre ficar chocados pela compreensão de que existe uma interdependência global como um fato inerente à nossa existência no planeta ou se seremos puxados de volta ao relato de nossas fronteiras e identidades, lógicas de mercado e individualismo. O que parece claro é que essa dúvida faz parte do nosso desafio contemporâneo. Depende de conseguirmos nos enxergar como criaturas porosas, aquelas em constante troca com os ambientes pelos quais transitam, coabitando com todas as outras formas de vida. E mesmo assim as fantasias da autossuficiência ainda são os resquícios de nossa cultura masculina, e as fantasias de autossuficiência nacional são formas fracas (porém atraentes) de ideologia. Faria toda a diferença nos entendermos como seres interpelados (chamados à ação) por um vírus para conseguirmos nos tornar uma comunidade global, não uma que é apenas efeito da globalização. Agora temos a chance de criarmos novas formas de solidariedade baseadas na ideia de que nossa vida é uma corrente de relações interdependentes. Ambos, indivíduo e nação, terão que ser repensados através dessa nova ótica.
 
A interseccionalidade (categoria teórica que focaliza múltiplos sistemas de opressão a um mesmo sujeito, em particular, articulando raça, gênero e classe) permite que enxerguemos quem é desproporcionalmente afetado pelo vírus, aqueles desproporcionalmente desprotegidos e expostos. Isso porque aqueles cuja morte é mais provável tendem a ser pobres, indígenas, pessoas de raças marginalizadas, aqueles que não possuem o privilégio de ter seguro de saúde. Mulheres que antes já eram impedidas de desempenhar certas funções, que aceitam o trabalho doméstico sem salário, que sofrem abuso em suas casas – todas essas comunidades estão em grande perigo. Deste modo, o que a interseccionalidade nos permite ver é que uma ameaça de doença e morte aumenta em populações que acumulam categorias de discriminação, aqueles corpos que não podem escolher a qual minoria pertencem por estarem com mesma intensidade na intersecção de várias minorias.
 
Pensando como ambos, Trump e Bolsonaro, são favoráveis à abertura da economia mesmo que isso signifique o aumento de mortes de populações vulneráveis, entendemos que esses líderes políticos percebem que essas “comunidades vulneráveis” são mais propensas a sofrerem as consequências do colapso da saúde, e não veem problema algum nisso. Eles não imaginam que seus operários mais jovens e produtivos morrerão. Mas muitos deles podem contrair o vírus e se tornarem focos de transmissão quando voltam para suas casas. Pode ser que eles não compreendam a seriedade da situação, mas também pode ser o caso de estarem dispostos a deixarem corpos morrerem em favor da economia. Bolsonaro parece acreditar no darwinismo social onde apenas os mais fortes sobreviverão, e que apenas os fortes merecem sobreviver. Ele até se imagina imune ao vírus – sua última forma de fantasia narcisista. O narcisismo de Trump difere do de Bolsonaro, pois seu único feito é contabilizar votos em sua mente. E ele não vencerá a próxima eleição se a economia estiver fraca. “É a economia!” se torna agora o grito agonizante dos novos eugenistas.
 
Não me vejo como uma teórica do neoliberalismo e tenho consciência da complexidade desse debate. Eu diria que neste momento há uma estrutura econômica em que números crescentes de pessoas estão em condições limítrofes de vida, expostos à morte, acumulando precariedades. Também há poucas restrições às corporações bilionárias que acumulam riquezas, superando o poder econômico da maior parte dos países. Nós deixamos que essa desigualdade econômica ganhasse forma e agora estamos vendo através de gráficos o quão facilmente a vida dos mais vulneráveis é abandonada e destruída. Minha aposta é de que as versões inalteráveis de masculinidade e feminilidade serão reencenadas dentro de novas formas no liberalismo, mas que o neoliberalismo não é capaz de produzir novas formas de gênero radicalmente diferentes. Ao pedir que pessoas fiquem em casa, os governantes presumem que as casas possuem uma estrutura de cuidado, que a divisão de gênero do trabalho funciona, que mulheres – mesmo quando ainda empregadas e trabalhando de casa – também assumirão os afazeres domésticos e os cuidados com os filhos. Algumas casas não são constituídas por famílias tradicionais, algumas pessoas vivem sozinhas, outras em abrigos com desconhecidos. E mulheres são profundamente atingidas pela violência de gênero quando ficam impedidas de procurar ajuda externa. Então devemos ter em mente que o gênero está sendo redefinido pelo confinamento, para então fazermos o possível para manter vivas as correntes de afeto, comunidades, alianças queer e solidariedade online até podermos, mais uma vez, demonstrar nossos números nas ruas.” (BUTLER, 2020)
 

Novo livro de Judith Butler, “O Poder da Não Violência”

 

Eduardo Carli de Moraes
Abril e Maio de 2020

SAIBA MAIS: Acesse A Casa de Vidro – https://wp.me/pNVMz-6hU

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, JudithVida Precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
————-. Quando a economia se torna o berro agonizante dos eugenistas – Entrevista ao Le Monde Diplomatique. Maio de 2020.
GARFIELD, R. Morbidity and Mortality among Iraqi Children from 1990 through 1998: Assessing the Impact of the Gulf War and Economic Sanctions. Link.
LUXEMBURGO, Rosa.
ORWELL, George. Revolução dos BichosAnimal Farm. Via site da BBC.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS:

No filme “Kursk”, a tragédia submarina filmada por Thomas Vinterberg ilustra o conceito existencialista de “situação-limite” (Karl Jaspers)

“No one has forever… but I wanted more.”
Uma das frases na última carta antes da morte
escrita por um marinheiro no Kursk

A ninguém é concedida a eternidade. Esta verdade que soa banal – ou seja, o fato que qualquer um de nós é mortal e nunca ninguém terá um tempo infinito para viver – é diferencialmente apreendida em vários pontos do nosso fluxo de vida.

Na infância e primeira juventude, podemos ter a ilusão da imortalidade advinda da falta de experiência da morte alheia ou de vivência prévia de ameaça grave contra nossa vida própria. Mas é só um cachorro ser atropelado e morrer diante dos olhos da criança, ou o jovem ter que acompanhar a agonia senil de uma avó ou um bisavô, para que comece a raiar – frequentemente de forma traumática – a consciência da mortalidade.

Baseado no livro A Time To Die, de Robert Moore, e roteirizado por Robert Rodat (o mesmo de O Resgate do Soldado Ryan), o novo filme de Vinterberg tranforma o submarino naufragado Kursk numa espécie de palco trágico para encenar a Situação-limite daqueles marinheiros.

Situações-limite, segundo o filósofo alemão Karl Jaspers (1883 – 1969), são como “paredes com as quais nos deparamos, uma parede em que batemos e fracassamos.” (JASPERS, 1932, vol. 2, pg. 178) Situação-limite é aquela que o filme se interessa em capturar, através de uma narrativa fílmica potente e impiedosa: obrigados a encarar o fracasso, batendo os crânios contra as paredes da necessidade, sentindo na língua o sabor amargo da morte precoce, eles estão levados aos limites da condição humana e aos confins extremos do nosso sofrimento.

Confinados no fundo do mar, tremendo com o frio do Ártico, rodeados pela água que avança por todos os lados a ponto de molhar até os ossos, contemplam na cara o corte da foice iminente. A monstra invisível já afia suas lâminas para terminar de ceifar todas aquelas vidas naufragadas no nada.

Filósofo Karl Jaspers no seu lar em Basel, 1956

Em “Kursk”, filme que desembarcou nos cinemas do Brasil no início de 2020, aparentemente Vinterberg aderiu ao gênero do filme-catástrofe – já repleto de blockbusters sobre tragédias marítimas. Mas seu tom é muito mais próximo a do o clássico esplendoso Moby Dick, em que John Huston adaptou, na companhia de Ray Bradbury, o romance épico de Herman Melville em um dos grandes filmes da história da sétima arte.

Em Kursk, não há baleia em guerra contra Ahab, causando muitos rolês cheios de desventuras e que trituram toda a tripulação do Pequod, mas há sim a batalha humana contra “monstros de nossa própria criação” (como cantava Renato Russo em “Será” da Legião). Estes monstros que criamos – os submarinos bélicos lotados de torpedos e movidos a energia nuclear, por exemplo, e que podem acabar nos devorando.

Kursk é uma espécie de Titanic de teor existencialista, em que o complexo afetivo Vinterberguiano é radicalmente distinto daquele que anima o filme – melodramático e grandiloquente – do papa-bilheterias James Cameron. O filme de VInterberg se baseia em fatos reais: a catástrofe no submarino nuclear russo Kursk, em 2000, no mar de Barents, ao norte da Noruega, com 118 mortos. O submarino tinha sido batizado em homenagem a uma batalha épica da 2ª Guerra Mundial entre alemães e soviéticos.

Esse evento histórico que o filme evoca serve como ocasião para que uma poderosa narrativa fílmica nos leve a acompanhar a agonia claustrofóbica de marinheiros colocados diante da iminência da morte: “No one has forever, but I wanted more”, escreve o protagonista à sua esposa em sua carta de despedida. Um clima de Eclesiastes pulsa nesta frase que faz lembrar ditos como “ninguém é senhor do dia da própria morte, e nessa guerra não há trégua.”
Bíblia (Eclesiastes, 8-8)
Este “eu queria mais” também é prova de que o conatus pulsa mesmo em meio à agonia. Uma sabedoria que só ensinam as situações-limite?

O que é extremamente interessante nesta situação-limite em que o filme nos imerge é uma espécie de proliferação social da angústia extrema daqueles sobreviventes que no submarino, esperam por resgate enquanto agem desesperadamente para se manterem vivos. A angústia prolifera, é evidente, sobretudo sobre os parentes, que na cidade portuária preocupam-se desde as vísceras com os destinos de seus pais, de seus maridos, de seus irmãos, de seus primos. A angústia também prolifera para a hierarquia de comando da Marinha, obrigada, pela situação-limite, a tomar decisões urgentes.

O filme pode ser estudado em faculdades e cursos de relações internacionais pelo retrato realista que faz das dificultosas relações entre os russos e os britânicos – estes, com equipamento de resgate mais avançado, poderiam ter salvado a parcela dos marinheiros que sobreviveram à explosão. Não é nada louvável o retrato que se faz das autoridades russas, que teriam perdido o kairós (o momento propício) em que suas decisões poderiam ter salvado vidas, e isto em decorrência de uma reticência em admitir o despreparo tecnológico para lidar com aquela emergência.

No entanto, creio que é preciso ter uma boa dose de desconfiança em relação à crítica cinematográfica que instrumentaliza o filme para tacar pedras nos russos, ignorando os aspectos de tragicidade que esta situação-limite envolve. Isabela Boskov, da revista Veja, em uma resenha tão rasa que ocupa apenas um parágrafo, apedreja os russos com esta frase peremptória:

“Quase uma década após o fim da União Soviética, a Rússia demonstrou de maneira cruel que não perdera os velhos vícios do sigilo e da indiferença: em 12 de agosto de 2000, quando o supersubmarino nuclear Kursk sofreu uma explosão e afundou no Mar de Barents, o governo preferiu proteger seus segredos militares a dar uma chance real de resgate aos sobreviventes aprisionados na embarcação.” (BOSCOV, Veja, 2020)

O comentário de Boscov comete uma injustiça elementar: atribui à “Rússia” um equívoco de agentes públicos da Marinha deste país, num caso de generalização em que o tom condenatório parece querer abarcar todo um país (“a Rússia demonstrou de maneira cruel que não perdera os velhos vícios do sigilo e da indiferença”). Não se confunde o Estado e a população de um território; não se taca pedras na Rússia como um todo, quando os culpabilizáveis por decisões errôneas são funcionários públicos de uma entre centenas de outras instituições públicas deste Estado-nação.

O próprio filme é repleto de tensões entre os familiares dos marinheiros do Kursk e as autoridades militares e políticas responsáveis pela gestão da crise, mostrando que, se houve negligência ou indiferença pela vida humana, com os segredos de Estado sendo colocados acima da abertura imediata à colaboração internacional que poderia ter salvado algumas vidas, de modo algum se pode atribuir à “crueldade russa” (como faz Boscov em sua frase desastrada). A crueldade, caso fosse atribuída a alguns personagens, que se mostraram um tanto frios e indiferentes diante dos horríveis momentos de agonia dos marinheiros, incapazes de se colocarem na pele dos que estavam confinados naquela submarina infernaria, poderia até ser um juízo moral defensável. O que não é defensável é a atitude de Veja de veicular a ideia, em manchete sensacionalista, de que o filme fala sobre “a crueldade dos russos em meio a uma tragédia”.

É o tipo de resenha que, além de não contribuir em nada para uma apreciação mais aprofundada e nuançada da obra-de-arte, como é uma das funções do crítico, presta à produção encabeçada por Vinterberg o desserviço de atribuir a ele um intento difamatório contra toda a Rússia que não está no cineasta, mas sim na articulista da revista.

Fotografia do submarino russo Kursk – O Globo

Para explicar mais a fundo o que quero dizer, sublinho que uma das melhores cenas do filme é aquela em que o menino, após o funeral de seu pai, tem a mão a ele estendida por uma alta autoridade de hierarquia da Marinha (interpretado por Max Von Sydow) e recusa o cumprimento. Este russinho, recusando a vênia a este russão, já é prova inconteste da falácia absurda da generalização realizada por Boskov. Trata-se de um ato de desobediência civil que logo prolifera e é imitado por todos os outros órfãos que se perfilavam, no enterro de seus entes queridos, para receber os pêsames da parte daquele oficial que tinha fracassado em resgatá-los e trazê-los de volta com vida.

Lembrei-me na hora de uma das melhores cenas de The Handmaid’s Tale, episódio 10 da primeira temporada, em que a desobediência civil também é ilustrada quando as mulheres recusam-se a apedrejar uma outra mulher, a mando da mandona xerifa Tia Lydia. Pequenos gestos, grandes significados.

Além do significativo gesto de desobediência civil que o menino realiza diante do velho comandante, demonstrando uma revolta silenciosa diante da instituição que fracassou em salvar vidas resgatáveis naquela difícil situação-limite, o filme também dá o que pensar sobre o tema do sacrifício. Pouco depois da explosão, temos o exemplo de marinheiros dispostos a sacrificar seus últimos alentos e derramar suas últimas gotas de suor para evitar o que se chama, no filme, de “uma nova Chernobyl”. O filme de Vinterberg nos convida a pensar numa certa formação prévia que gerou nos marinheiros uma atitude de aceitação do sacrifício por um bem maior, ou pelo menos pela evitação de um mal pior.

 Em situações-limite, o apego tradicional do indivíduo por sua existência pode ser transcendido por um ímpeto de utilização produtiva de uma vida em iminência de acabar em prol do bem-estar de outros. Ou seja, a morte iminente não necessariamente instala um clima de egoísmo total, abjeto, brutal, mas abre a possibilidade também de atos de um heroísmo extremado, nos limites das capacidades físicas do organismo humano – como naquela cena em que os dois nadadores mergulham nas águas de frio ártico para irem resgatar os cartuchos de oxigênio que permitirão a sobrevida daquela pequena comunidade de desesperados e ofegantes sobreviventes temporários de uma catástrofe gigante.

A reflexão pós-filme que me domina é esta: quase sempre a morte vem nos pegar quando queríamos um tempo a mais para sorver a vida, por pior que ela seja. Aquele submarino serve de palco para o drama trágico da resiliência humana – e despontam ali momentos de intenso companheirismo. Mesmo que seja no singelo gesto de emprestar uma caneta ao companheiro que quer rabiscar suas últimas palavras antes de morrer. Seja no gesto heróico de não abandonar o companheiro desmaiado no mergulho e içá-lo a um patamar onde o ar seja respirável.

Até mesmo o humor se ergue na cara da morte – como a piada do ursinho polar mostra. Aqueles caras, tiritando com o gélido frio daquelas águas extremadamente geladas, aquecem-se por dentro com a graça do ursinho polar perguntando pra mãe: “se você é uma ursa polar, e meu pai também, e sou filho de vocês, isso faz de mim um ursinho polar, não? Então por que caralho estou com tanto frio?”O humor também desponta na última refeição – comida com tragos generosos da última garrafa de vodka -, onde sentir o bafo da bocarra aberta da morte já perto de nos devorar não consegue impedir o riso. É bela esta última gargalhada bêbada dos condenados. A situação-limite pode ter como consequência, se conseguirmos, um estouro de riso. Nosso fracasso é tão hilário, nossa espécie tão estúpida, nossa cooperação tão falha, nossas tecnologias tão traiçoeiras! É rir pra não chorar….

Thomas Vinterberg, o cineasta dinamarquês que iniciou o movimento estético Dogma 95 na companhia de Lars Von Trier nos anos 1990, nunca teve medo de frustrar as expectativas de uma platéia fissurada no happy end hollywoodiano (similarmente, Michael Haneke dedica-se a triturar nossas vontades de filmes leves, agradáveis e conformistas, crowd-pleasers de gostosa alienação industrializada).

Aqueles que acompanham a obra de Vinterberg já se acostumaram a esperar dele finais infelizes – que nos impactam justamente por um certo tom trágico, desesperançado. Assistir a “Submarino”, “A Caça”, “A Comunidade”, “Dear Wendy”, “Far From The Madding Crowd”, dentre outros de seus filmes, é expor-se a um artista disposto a realizar, através do cinema, um processo de provocação existencial que sacuda a apatia e a normose do espectador, fazendo-o considerar a vida através do viés meio dark, repleto de humor negro, que é uma das marcas do olhar Vinterberguiano. Se estivesse vivo, talvez o grande filósofo romeno Emil Cioran teria em Vinterberg um de seus cineastas contemporânos prediletos.

A Jasperiana situação-limite do Kursk, que envolve todos os personagens numa trama sinistra de decisões difíceis diante de mortes evitáveis, revela muito sobre a condição humana: a personagem de Léa Seydoux (que neste filme está loura e não com os cachos azuis que usou em Azul É a Cor Mais Quente, de Kechiche) é emblema das cicatrizes que os “fracassos” ocasionados pela confrontação insuficiente das situações-limite acarreta. As lágrimas que Vinterberg nos obriga a assistir caindo dos olhos desta mulher que acaba de enviuvar, com um filho pequeno para criar e um outro filho em gestação em seu ventre, é bem mais que melodrama apelativo. São lágrimas que nos convidam à reflexão sobre a precariedade, a fragilidade, o caráter radicalmente destrutível de nossas vidas e, portanto, de nossos laços afetivos. A resiliência do amor em face da catástrofe triunfal é um dos encantos maiores que reluz, como um Nabokoviano fogo pálido, na escuridão deste luto coletivo enquanto o filme se encerra.

O clima afetivo que domina Kursk, afinal de contas, é mesmo o que eu chamaria de uma vibe death-conscious, um sentimento de ciência da mortalidade, muito marcante em vários pensadores e artistas identificados com o existencialismo, e que o Nabokov sintetiza, recuperando a percepção de Lucrécio sobre os dois vazios – antes-de-nascer e depois-de-morrer – que estão nos extremos de uma vida humana: “nossa existência não é mais que um curto-circuito de luz entre duas eternidades de escuridão.” (NABOKOV)

Vladimir Nabokov

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 14/01/2020

LINKS SUGERIDOS – SAIBA MAIS:

“Vamos celebrar a estupidez humana”

“PERFEIÇÃO”
(Legião Urbana)

Uma homenagem ao 31 de Agosto de 2016,
dia da consolidação do Golpe de Estado no Brasil

“Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação
Celebrar a juventude sem escola
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião
Vamos celebrar Eros e Thanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade.

Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais
Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras e sequestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda hipocrisia e toda afetação
Todo roubo e toda a indiferença
Vamos celebrar epidemias:
É a festa da torcida campeã.

Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar um coração
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos
Tudo o que é gratuito e feio
Tudo que é normal
Vamos cantar juntos o Hino Nacional
(A lágrima é verdadeira)
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão.

Vamos festejar a inveja
A intolerância e a incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada
Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta de bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isso – com festa, velório e caixão
Está tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou esta canção.

Venha, meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão.

Venha, o amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera –
Nosso futuro recomeça:
Venha, que o que vem é perfeição…”

“EDUCAÇÃO NÃO É MERCADORIA!” – Reportagem em vídeo: manifestação contra a privatização das escolas públicas em Goiás

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As ruas de Goiânia bradam: “A minha luta é todo dia: educação não é mercadoria!” Pra aqueles que “dizem que morreu, dizem que sumiu”, mostram aos berros que “aqui está presente o movimento estudantil!” Praticando a desobediência civil pacifista, como discípulos de Luther King, Gandhi ou Thoreau, os manifestantes desfilam seus batuques e bandeiras pelas ruas, a caminho do Ministério Público, onde ribombarão nos ouvidos de todos alguns lemas dignos de virarem refrões-de-canção: “Ô M P, como é que é!?! O Nosso Estado Não É Um Cabaré!”Aprendendo

O promotor do Ministério Público, Fernando Krebs, convocado pelo alarde da manifestação a dar as caras no “lobby”, dominado pelos ocupas e sua ruidosa festa democrática, reafirmou o que é fato cada vez mais conhecido: as O$s não tem “idoneidade moral” alguma para pretender assumir o comando de escolas públicas, sendo que muitos de seus “cabeças” são réus na Justiça por mau uso de verbas públicas, peculatos e outros crimes-de-engravatados.

Voltam ao trombone dos bocas alguns estribilhos e palavras de ordem herdados de movimentos políticos cidadãos de anos atrás, que tomaram conta da capital goiana, como o Fora Marconi – que explodiu nas ruas quando houve a revelação das tenebrosas transações entre o governador Marconi Perillo (PSDB) com o crime organizado de colarinho branco (nas personas famigeradas de Carlinhos Cachoeira e Demóstenes Torres). “Marconi, bicheiro, devolve o meu dinheiro!” – um hit-da-estação na música-das-ruas goianiense, agora adequa-se ao novo cenário da Privataria Tucana Em Marcha, com seu exército de engravatados, nos campos-de-batalha da educação.

O projeto do Governo Estadual, neste 4º mandato do Tucano Perillo no poder, é terceirizar 300 escolas públicas, entregando sua gestão às famigeradíssimas O$s (organizações sociais, mais conhecidas como corporações privadas ou conglomerados empresariais). É o neoliberalismo aplicado à educação que, nos últimos anos, foi radiografado e criticado na obra de pensadores como Henry Giroux ou István Mészáros.

No Brasil, Vladimir Safatle é um dos que melhor manda o recado, direto no alvo, sem rodeios, sobre a atual situação de colapso da representação política tradicional e de emergência de uma democracia mais intensa, de uma participação cidadã mais direta, em choque com velhas estruturas conservadoras e autoritárias, saudosas da ditadura militarizada aliada aos interesses capitalistas-corporativos:

No Brasil, e em especial nos Estados governados pelo tucanato (Paraná, São Paulo, Goiás), decisões educacionais são impostas, inventa-se diálogos que nunca ocorreram, joga-se gás lacrimogêneo contra estudantes, prende-se professores que protestam.

Este é um país no qual a elite, que deveria ser taxada de maneira pesada para capitalizar o Estado e permiti-lo oferecer a seus cidadãos ensino público de qualidade, governa servindo-se de uma classe política corrompida (Goiás que o diga) e procurando de todas as maneiras livrar-se de obrigações de solidariedade social.

Já vimos em São Paulo como políticas dessa natureza escondem um fato bruto simples: o Estado tem gastado menos com educação. Talvez porque tenha outras prioridades mais importantes, como a sobrevivência financeira do partido no poder.

Quando comecei a dar aulas, há quase 30 anos, meu primeiro emprego foi como professor substituto na Escola José Carlos de Almeida, em Goiânia. Era uma dessas antigas grandes escolas construídas em um espaço nobre da cidade, ao lado de uma escola privada.

Ela tinha tudo para se impor como escola modelo. No ano passado, depois de ficar um ano fechada e esquecida, a instituição foi ocupada por alunos que se cansaram de nunca serem ouvidos sobre seu próprio destino.

Talvez essa escola expresse de maneira quase pedagógica o destino e descaso da educação nacional. Não por acaso, essa história começou a mudar quando a população começou a dizer “não”. – VLADIMIR SAFATLE, Folha de São Paulo, 16/02

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Eduardo Galeano disse bem: “A Justiça é como as serpentes, só morde os descalços.” Um jovem militante estudantil, de vertente mais radical, que simpatize com o anarquismo e táticas Black Bloc, periga ser considerado pelo Estado como um “perigoso inimigo público”, a ser dedetizado com gás venenoso pelos Paus-Mandados da repressão militarizada. Porém, o “dano público” que causa um Black Bloc, ao destruir algumas vitrines de bancos bilhardários ou queimar alguns sacos de lixo tendo em vista a emergência de uma barricada em chamas, é um dano minúsculo e desprezível diante dos mega-arrombos e atrocidades-contra-o-bem-público cometidos por aqueles que a Justiça não ousa atrapalhar, pois estão não só calçados como vestem sapatos de ouro…

O plano marconista de entregar as escolas públicas ao Empresariado é, obviamente, algo com a intenção óbvia de ser uma Máquina-de-Enriquecer-Poucos. A mercantilização da educação vem umbilicalmente conectada com corrupção estrutural e lógicas neoliberais excludentes e perversas.

Este filme pretende descrever este contexto todo através de imagens da manifestação do dia 26 de Fevereiro de 2016: saindo da Praça Universitária, o ato deslizou pelas avenidas e foi até o Ministério Público. Suba o volume, dê o play e confira um pouco do que rolou! E não deixe de ler também a opinião – a seguir… – de Guilherme Boulos.


Filmagem e Edição: Eduardo Carli de Moraes / A Casa de Vidro.com.
Goiânia, 25/02/2016. Duração: 12 minutos.

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Boulos

ESTADO DE SÍTIO NA EDUCAÇÃO
por Guilherme Boulos na Folha de S.Paulo (18/02/2016)

Tudo começou com um decreto do governador no final do ano passado repassando 30% das escolas goianas para gestão das famigeradas Organizações Sociais (OS). A iniciativa prevê a terceirização de serviços escolares, a contratação privada (sem concurso) de até 70% dos professores e 100% dos funcionários, dentre outras medidas.

Trata-se evidentemente de uma privatização “branca” do ensino. O próprio Ministério Público do Estado recomendou nesta semana o adiamento do edital das OS, por estar repleto de ilegalidades, incluindo o repasse de recursos do Fundeb para a iniciativa privada. Nas palavras do promotor Fernando Krebs: “Chegamos à conclusão que o projeto referencial é inconstitucional. Vai piorar a qualidade da educação. Vai promover a terceirização, a privatização às avessas da escola pública”.

Foi este despautério que motivou a mobilização de estudantes e professores, reprimidos com violência e prisões pela PM.

Mas não é de hoje a paixão do governador Marconi Perillo por tratar a educação como caso de polícia. Desde 2014, seu governo tem implementado um inacreditável processo de militarização das escolas, que também foi alvo das manifestações.

A polícia militar já havia assumido até o ano passado a gestão de 26 escolas, tornando Goiás o Estado com o maior número de colégios militares no país. Sob os princípios da “hierarquia e da disciplina”, oficiais da PM estabelecem a regra do medo, mandam e desmandam no ambiente escolar.

Nas escolas militarizadas passou a ser exigido o uso de farda militar por todos os alunos. Os meninos precisam ter cabelo curto e as meninas são obrigadas a prendê-los. As gírias foram proibidas, assim como o esmalte de unha, o beijo e os óculos com armação “chamativa”. A continência tornou-se obrigatória na entrada, para os professores e também entre os alunos.

Para completar foram inseridas novas disciplinas no currículo, como a “Ordem unida” – sabe-se lá o que seja isso, coisa boa não é. Assim como a “sugestão” de uma taxa de matrícula de R$ 100 e de mensalidade de R$ 50, em valores de 2014, possivelmente já reajustados nos dias de hoje. O governo pretende militarizar mais 24 escolas neste ano.

O capitão Francisco dos Santos, diretor da escola Fernando Pessoa, exalta numa matéria da BBC o fim da violência no colégio. Também pudera. Impondo estado de sítio e intimidação permanente o resultado seria esse. O preço é rifar o futuro, jogando o pensamento crítico e a democracia na lata do lixo. A gestão militar da escola adestra os jovens de hoje para a gestão militar da sociedade.

A repressão ao movimento dos estudantes secundaristas por essa mesma polícia é expressão cabal disso.

Perillo seguiu o exemplo de seu colega de partido Geraldo Alckmin ao tentar remodelar o ensino à força, sem qualquer debate com a sociedade. Que, enquanto é tempo, siga novamente Alckmin, desta vez para recuar das medidas perante o rechaço da comunidade escolar. É preciso libertar imediatamente os 31 presos e recuar do projeto de privatização e militarização das escolas.

Caso contrário, Goiás será lembrado como o laboratório da barbárie na educação brasileira.”

Gui Boulos

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SAIBA MAIS: ARTIGOS DE VLADIMIR SAFATLE, GUILHERME BOULOS, DIANE VALDEZ

QUE PAÍS É ESSE? SOLIDARIEDADE SOCIAL OU PRÁTICAS DO APARTHEID?

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INSEGURANÇA PÚBLICA E SEGREGAÇÃO SOCIAL NO BRASIL

Em uma das entrevistas mais tocantes do documentário Falcão – Meninos No Tráficouma criança carioca, moradora do morro, trabalhadora do tráfico, revela às câmeras o alto grau de seu desespero e desamparo, que resume através de uma gíria muito eloquente: é o “esculacho”. O menino sente-se, desde sempre, do berço até o presente em que o filme o flagra, como alguém que foi esculachado, isto é, que sofreu maltratos, agressões, humilhações, esculhambações, dentre outras violências cotidianizadas. Eliane Brum, em uma das reportagens de seu livro O Olho da Ruasoube encontrar a expressão exata do problema:

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Os meninos do tráfico estão a um quase da morte. São crianças com essa força, a de viver com a probabilidade do fim no minuto seguinte. A insanidade do menino está no excesso de lucidez: “Se morrer nasce outro como eu. Ou melhor, ou pior. Se morrer vou descansar. É muito esculacho nessa vida.” Morreu. [1]

Falcão – Meninos No Tráfico revela-nos um real chocante (quase todos os entrevistados pelo filme não ficaram vivos o bastante para assisti-lo, já que fazem parte de uma fração da juventude brasileira, como diz Eliane Brum, que tem “expectativa de vida: 20 anos”. No Brasil, não passa um único dia sem que crianças e jovens, quase sempre negros e pobres vivendo nas periferias, morram por aqui. Ninguém derrama lágrimas por estes anônimos com a profusão que derramam para ídolos da música pop que morrem em acidentes de automóvel.

Um famoso que morre: dramalhão nacional. Já as crianças do tráfico: estes mortos não merecem as lágrimas nem o luto de quase ninguém “na pista”;  preferimos nem levá-los muito em consideração e não nos preocupamos muito quando aparecem nas estatísticas como  exemplares anônimos destes “menores delinquentes” cujos assassinatos “legais” integram apenas uma fração dos índices obscenos de letalidade de nossa Polícia Militar. Menores mortos pela polícia em sua Guerra ao Narcotráfico: isto é descrito pelas autoridades como derramamento de sangue justificável; afirma-se a doutrina do Estado como detentor do monopólio da violência legítima. 

É como se os esculachados pelo sistema, a quem impõe-se que vivam segregados marginalizados, tratados às vezes pelas elites como subhumanos, são justamente aqueles que vão parar nas penitenciárias, onde o esculacho prossegue. Como o sambista Bezerra da Silva soube tão bem retratar, o Estado-esculachador tende a trata toda a comunidade do morro como se fossem todos ou bandidos, ou criminosos em potencial. Na real, canta o malandro, a bandidagem de verdade está “escondida lá embaixo” (na pista, no asfalto, nas coberturas… no Leblon e não no Alemão!); os infratores peixe-grande, estes estão disfarçados “detrás da gravata e do colarinho” [2]:

“Se vocês estão a fim de prender o ladrão
Podem voltar pelo mesmo caminho!
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho!

No morro ninguém tem mansão
Nem casa de campo pra veranear
Nem iate pra passeios marítimos
E nem avião particular!

Somos vítimas de uma sociedade
Famigerada e cheia de malícias!
No morro ninguém tem milhões de dólares
Depositados nos bancos da Suíça!…” [2]

Como canta Criolo (e tantos outros rappers), nas periferias dos grandes centros urbanos brasileiros a molecada é facilmente aliciada para trabalhar nas “firmas” (bocas de fumo). “As criança daqui, tão de fuzil HK”, canta Criolo em “Subirusdoistiozin”, algo que evidentemente é sintoma de uma tragédia social que só os lunáticos podem considerar resolvível através de uma medida como a redução da maioridade penal. E o desarmamento geral, reforma da polícia para sua desmilitarização, onde é que fica nisso? Que adianta enjaular em doses ainda mais altas os jovens brasileiros que violam as leis, se é pra permitir que prossigam os esculachos cotidianos que cindem o Brasil em dois, como diz o MV Bill em Falcão, gerando na prática uma nação rachada, onde estão vigentes as práticas do apartheid?

Vejamos, por exemplo, o que diz a Constituição brasileira de 1988 em seu artigo 227, atentando para o abismo gigantesco existente entre a letra da lei (aquilo que ela formula como ideal) e nossa realidade social (tão distante da utopia quanto a Terra está longe de Plutão):

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“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” [3]

A Constituição estipula um dever que para qualquer brasileiro consciente e bem-informado soa como uma fantasia utópica que ainda estamos muito longe de concretizar. Como diz Edson Sêda, em seu livro A Proteção Integral (vencedor do prêmio “Criança e Paz” da UNICEF em 1995), “parece um poema. Na verdade é um poema. Parece uma síntese do belo com o bom. Para completar a síntese há que tornar essa norma verdadeira e justa. (…) Esta fórmula inscrita na Constituição Brasileira contém a síntese dos compromissos firmados pelo povo brasileiro como signatário da Convenção (da ONU).” [4]

Não tem como não lembrar de Renato Russo e seus versos: “Ninguém respeita a Constituição / Mas todos acreditam no futuro da Nação / Que país é esse?”

ótica daqueles que defendem a redução da maioridade penal, ou seja, uma política de encarceramento em massa, consiste em enxergar o menor em conflito com a lei como alguém culpado e que merece ser punido, sem que jamais se coloque a questão das causas que conduziram tais crianças e adolescentes a este estado: pois não são os chamados “delinquentes” aqueles que são cotidianamente esculachados por uma sociedade que fracassa em fornecer-lhes o fundamental para uma existência digna? Não são efeitos do desastre das políticas públicas previstas na Constituição? Não nos conduzem a pensar que a solução estaria muito mais na ampliação dos serviços públicos de qualidade (saúde, educação, cultura, lazer, cidadania) do que na cegueira simplista do punitivismo autoritário?

Por exemplo: o sequestro do Ônibus 174, documentado no excelente filme de José Padilha, só é explicável se levarmos em consideração que Sandro foi um menino-de-rua que sobreviveu ao Massacre da Candelária. A violência do delinquente é muitas vezes a desforra contra os esculachos sofridos em uma sociedade que prossegue fracassando em fornecer serviços públicos que estão entronados na Lei como direitos essenciais. Sem acesso à educação, à saúde, ao lazer, à profissionalização, à convivência cívica solidária, as crianças e adolescentes que vivem em situação econômica de pobreza conhecem a (lendária) “eficiência do Estado” apenas em sua faceta policial, penal, repressiva. Na favela, o Estado é mínimo mesmo, como pregam os neoliberais…

Maioridade Penal

Quem sobe o morro é o Caveirão, não os médicos de ponta (tivemos até que importar médicos de Cuba, lembram-se? Os nossos médicos “de elite” não gostam de se misturar com a “gentalha”…); no Morro tem polícia de sobra, já professor quase não se encontra… Enquanto isso, na “pista”, no asfalto, professores precarizados e depauperados entram em greve – como neste histórico 2015, com forte movimento dos profissionais da educação em especial nos estados do Paraná e São Paulo (mas também em Goiás e outros) – e este Estado truculentão trata educadores como bandidos. Demandas por melhorias na educação são respondidas com bombas de gás lacrimogêneo e tiros de balas de (d)efeito moral, disparadas pela mesma instituição que na favela dispensa as balas de borracha e prefere a munição letal (e os tanques de guerra).

Quer dizer então que o pior problema do país é o “menor infrator”, que precisa ser enjaulado, e não estas instituições que são encrustes de Ditadura ainda fincadas na carne do Brasil como um velho espinho de outrora? Os esculachados do Brasil estão acostumados é com os soldados da PM praticando seus esculachos e enchendo o bolso com “arregos”; na fábrica de delinquentes que é nosso estado-de-coisas grotescamente desigual e nossa segregação de raízes racistas, os pobres estão já habituados (como se normal e natural fosse!) com o tenebroso Caveirão a rondá-los. Estão sempre na ansiedade apavorada de quem pode ser baleado por balas-perdidas disparadas pelas Tropas de Elite. As classes médias e altas não tem o monopólio do medo; os pobres também sofrem com o aguilhão da vulnerabilidade e da insegurança. Estamos no mesmo barco (e ele está todo cheio de furos…) – quase indo à naufrágio pelo excesso de tiroteios.

Eis o Brasil: na Lei, celebra-se a solidariedade social, a “ordem e o progresso” (o amor, que completa a tríade positivista de Comte, foi censurado…); já no chão do cotidiano, o que reina é a lógica do apartheid, da exclusão social, da sociedade cindida, jogando em replay a trama insana e já tantas vezes repetida do Senhor de Engenho e dos Escravos, da Casa-Grande e da Senzala. Com o aumento da população prisional no “divino e maravilhoso” sistema carcerário brasileiro teremos decerto inúmeras rebeliões no futuro – e novos PCCs. Com uma PM que mata criança e adolescente todo dia, como se a pena de morte fosse realmente uma prática institucionalizada no país, não sanaremos violência nenhuma, já que a polícia produz tais graus de ódio e repulsa na população civil periférica (mas não só nela: Junho de 2013 ensinou que qualquer manifestante pode ser subitamente enquadrado como vândalo e tratado como inimigo público… E dá-lhe bomba de veneno na gente!).

Alian
Anistia

Precisamos de uma outra ótica para enxergar a questão do “delinquente”, do “menor infrator”, que leve em conta que toda criança tem direitos humanos fundamentais e que em milhões de casos estão sendo negados a milhões de brasileiros (com menos de 18 anos, mas também aos maiores de idade…) o mais básico fundamental para o exercício da cidadania. Cito Edson Sêda:

“Embora quando se veja criança na rua (sem família, sem educação, sem abrigo) todos ainda enxerguem criança em situação irregular (porque olham através da luneta do obsoleto Direito de Menores), o que o novo jurista em verdade percebe é política pública em situação irregular  porque se utiliza da ótica do nosso atualíssimo Hubble social, com sua poderosa lente: a Convenção da ONU Sobre Os Direitos Da Criança. Os países zelosos estão reforçando a ótica da Convenção com sua própria lente constitucional e legal locais.  Mas em todos os países da América Latina há autoridades do legislativo, do executivo, da polícia etc. que, como entre lunáticos, preferem praticar sua autoridade (só) em cima das vítimas, repetindo ad nauseam: criança em situação irregular, criança em situação irregular… Negam a própria situação irregular do serviço público, afirmando a situação irregular dos ameaçados ou violados em seus direitos.” [6]

* * * * *

1
Em seu artigo “A Bancada do Medo”, publicado na Folha de São Paulo (2015), Vladimir Safatle critica a proposta de redução da maioridade penal, supostamente destinada a combater a violência. Para Safatle, a proposta provêm do pavor que sentem certos setores da sociedade brasileira, em especial entre as classes médias e altas. Os abastados que encerram-se em espaços apartados e defendem-se de uma realidade social hostil por detrás dos muros dos condomínios, protegidos por cercas elétricas e seguranças fardados.

Segundo Safatle, é como se deste apavoramento dos proprietários, diante da vastidão da violência e da criminalidade em nossa pátria, que nascem medidas de cunho fascista, que batem recordes na Escala F de Adorno ao pregarem um Estado truculento, encarcerador, que trabalhe com a lógica do apartheid mais desabrido. Que tranque em jaulas um imenso contingente da juventude pobre, vulnerável e periférica desta terra de dimensões continentais e abissais desigualdades sociais. Escreve Safatle sobre nossa experiência nacional:

“Por trás da proposta de redução da maioridade penal não está uma reflexão sobre as formas mais eficientes de se combater a violência. Na verdade, ela é apenas a expressão de um forte sentimento social de vingança e de tentativa desesperada de materializar uma sensação difusa de insegurança que anima setores da sociedade civil.

Para tais setores, o afeto político sempre foi o medo. É o medo que os mobiliza e que os leva a constituir personagens que encarnem seus fantasmas mais primários, como o “delinquente juvenil que pode matar impunemente”, mesmo se o percentual de assassinatos cometidos por pessoas entre 16 e 18 anos é menos de 1%.

Qualquer discussão séria sobre o assunto deveria começar lembrando que o índice de reincidência dos que passam por medidas socio-educativas é de 20% a 30%, enquanto o do sistema prisional é de 70%.” [7]

O tema da vingança é crucial neste debate: o presídio, longe de ser baluarte da justiça, tem muito de uma instituição nascida do pavor e do ressentimento das classes possuidoras,  elas que muitas vezes só enriquecem por serem apropriadoras da riqueza produzida pelo trabalho alheio. As classes proprietárias, que instituíram na lei a sacralidade da propriedade privada – de bens, de imóveis, de capitais – sentem-se profundamente ultrajadas pelos chamados “crimes contra a propriedade”. Como se a maioria dos milionários no mundo não fossem criminosos bem-sucedidos! A “coesão social” de que fala Safatle, e que conhecemos faz tempo sob o nome de solidariedade, é cotidianamente sacrificada nos altares da vendeta, da barbárie, praticada pela elite que sustenta nosso apartheid. Lucros não produzem solidariedade mas sim apartamento. Prisão: fruto da burguesia, pós-Revolução Francesa, e em vasta medida uma instituição vingativa, onde a Justiça avizinha-se perigosamente da descerebrada e cruel vendetta.

Não é possível aprisionar sem cometer uma violência contra aquele que, como um bicho trancafiado em uma jaula, tem assim sua vontade torcida violada pela autoridade repressiva. Não faltam aqueles que aplaudem os rigores repressivos, tipos que bateram palmas quando a rebelião no Carandiru foi “resolvida” pelo governo de SP com um massacre grotesco, com uma cena de carnificina que fez nossos governantes escancararem sua faceta açougueira, em um episódio que a maioria dos brasileiros sente vergonha e indignação em relembrar. (Vale lembrar que o Brasil tornou-se muito mais inteligível a si mesmo desde que foi publicado um dos livros já clássicos de nossas Letras: Estação Carandiru, de Drauzio Varella.)

Rejeitar a truculência repressiva, o encarceramento em massa, o Estado policial, é lutar por um Brasil sem Carandirus, sem Bangus, sem o sangue diário que mancha a camisa branca ensopada de escarlates dos Direitos Humanos.

* * * * *

Na contundente canção  de Juçara Marçal, “Damião” (do álbum Encarnado, uma composição de Douglas Germano), o tema da vingança é explorado com brilhantismo. Esta pequena obra-prima do cancioneiro brasileiro contemporâneo é também uma crônica social muito expressiva. Nela, Damião é conclamado a “dar neles”, a ir à desforra, praticar o princípio: quem bateu, agora vai levar. Damião é guerreiro e não submisso: não aceita quieto os esculachos que lhe são impostos. Não apanha quieto mas revida. E o eu lírico parece contente de lançar combustível à chama.

“Dá neles, Damião!
Mira no meio da cara
Dá com pé, com pau, com vara
Bate até virar a cara da nação!

Sangue e suor pelo vão S
entir mais a dor, vingar

Ver respingar o pavor
Quem bateu, levar!

Dá neles, Damião!
Bate até cansar.
E quando cansar

Me chama!”

[8]

Parece-me que caímos no “olho por olho e todo mundo acaba cego” que Gandhi alertava quando seguimos a lógica do pagar com violência às violências que sofremos. Não quero com isso soar como um pacifista absoluto que pregasse uma postura de sempre “dar a outra face”. Não: há algo de heróico nestes Damiões, nestes Panteras Negras, nestes Malcolm Xs, nestes Zapatistas, nestes cubanos de Sierra Maestra, que erguem-se em resistência armada contra as opressões e inequidades. É ingênuo acreditar no pacifismo quando parcelas tão gigantes da humanidade vivem no esculacho, sofrendo misérias em meio à opulência dos proprietários e das vitrines nas lojas de shopping center (onde, é claro, o “rolêzin'” é mau-visto, malquisto, chama-se logo a polícia…).

Não creio que haja solução violenta para a violência – e a redução da maioridade penal, com o consequente encarceramento em massa exacerbado, só põe lenha na fogueira de nossa insânia coletiva. Medidas fascistas não serão nunca pacificamente aceitas pela população que delas é vítima. A criminalidade existe pois a estrutura de poder no Brasil é criminosa em seus mais altos escalões: criminosa no empresariado endinheirado e mafioso, com seus Carlinhos Cachoeiras e seus Odebrechts; criminosa lá dentro do Congresso e do Senado, onde uma corja de políticos engravatados enfia no bolso verbas públicas e age como marionete do lobby corporativo; criminosa inclusive nos Ministérios, onde a Madame Motosserra, Kátia Abreu, está “cuidando” do Meio Ambiente por nós (tamos fudidos!); criminosa em seu complexo policial-carcerário, como Tropa de Elite escancarou, como Marcelo Freixo tão heroicamente revelou e combateu, já que além de ser legado da Ditadura, entulho autoritário, a PM no Brasil constitui milícias, ou máfias, que aí sim são blindados com a impunidade, Robocops com licença pra matar… 

Há sim o problema da impunidade no Brasil, mas não é a impunidade de que fala a Barbie televisiva Rachel Sherazade. Impunes ficam as empresas que depredam o meio ambiente; impunes ficam os candidatos à presidência da República que desviam milhões da saúde e envolvem-se com helicópteros Perrellianos lotados de pó; impunes ficam as empreiteiras e seus cabeças Cachoeiristas, que praticam a especulação imobiliária, sabotam uma autêntica política pública de moradia e ainda usam governadores Marconistas como seus títeres; impunes, enfim, fica a nossa elite econômica de pendores fascistas, que quer instalar Shopping e Templo no Parlamento, modelo Miami, e pelo resto do Brasil espalhar uma profusão de cárceres, públicos e privados, onde encerrar todos aqueles que vivem esculachados.

Capital

Quem vai se beneficiar com a redução da maioridade penal? Em um artigo para o Jornal da UFG, Dijaci David de Oliveira (doutor em Sociologia e diretor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG), tenta responder:

“Ao contrário do que se fala, a redução da maioridade penal tem todos os ingredientes para ampliar o número de mortes violentas (homicídio, mortes no trânsito e suicídios). Dos desdobramentos possíveis e imediatos de uma eventual aprovação da proposta são o direito de dirigir aos 16 anos e a venda de bebidas alcoólicas para os adolescentes de 16 e 17 anos. Separadamente cada um já produz estragos. Já a combinação terá um desfecho ainda mais trágico para a sociedade que anseia tanto por garantias de segurança.  (…) Quem lutará contra dois dos segmentos mais virulentos da indústria brasileira, o setor automotivo e a indústria de bebidas? O pesado lobby desses dois poderosos segmentos será capaz de santificar quaisquer propostas, por pior que sejam, desde que favoreçam a ampliação das vendas dos seus produtos.” [9]

Ou seja: é uma fatia do empresariado endinheirado, aliado a uma fatia do establishment político que é subserviente aos interesses capitalistas, que tanto defende as medidas punitivas fascistas, de repressão autoritária truculenta, que valem para os pobres, para os favelados, para os operários sindicalizados, para os funcionários públicos em greve etc. A Bancada da Bala, do Boi e da Bíblia, a Bancada Evangélica Teocrática, a Bancada que vê no Capitão Nascimento um herói nacional e não um modelo de policial a extinguir, eis nossos adversários, infelizmente demasiado poderosos para que possamos nos iludir com róseas esperanças de um arco-íris no fim-do-túnel.

Greve

“Essa discussão sobre maioridade penal é mais uma cortina de fumaça usada por aqueles que, no fundo, não se interessam em combater a violência. Se realmente estivessem, estariam a punir banqueiros que lavam dinheiro do tráfico, policiais que agem como bandidos alimentando um forte sentimento de revolta social, a lutar contra a extrema vulnerabilidade e invisibilidade dos que moram nas periferias. O melhor remédio contra o crime nunca foi “a punição como espetáculo”, mas a construção da coesão social.” VLADIMIR SAFATLE [10]

Ninguém iluda-se crendo que é fácil a edificação da solidariedade.

“Uma geração de brasileiros tem sido apagada do futuro à bala”, escreve Eliane Brum. “As cenas do extermínio foram exibidas no documentário Falcão, do rapper MV Bill e do produtor Celso Athayde, da Central Única das Favelas (CUFA). Não chocou o país pela novidade, mas pela crueza. Dos 17 garotos do filme, só um está vivo. Falcão provou que nas favelas brasileiras – e não apenas no Rio de Janeiro – a expectativa de vida é de 20 anos. São executados antes se tornar adultos.

Um estudo da UNESCO, coordenado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, mostrou que no Brasil a principal  causa da morte entre jovens é tiro. Em 24 anos, de 1979 a 2003, a população brasileira cresceu 52% – e os homicídios por arma de fogo 543%. O aumento foi causado pelo assassinato de adolescentes: das 550 mil mortes, quase a metade atingiu brasileiros entre 15 e 24 anos. A violência matou mais no país que a Guerra do Golfo e os conflitos entre Israel e Palestina.” ELIANE BRUM [11]

A lenda do brasileiro como “homem cordial”, pacífico, desfaz-se como uma estátua de areia à beira-mar quando olhamos para os fatos concretos de uma das nações mais violentas do globo. Não costumamos nos referir à nossa realidade social como algo que inclui o apartheid, o Estado policial, o complexo fascistocarcerário, como constituindo estado de guerra civil. No entanto, do mesmo modo que no México, o Brasil vive nas periferias a guerra civil prolongada e normalizada. Há décadas, esta guerra recebe recursos e é justificada, por exemplo, por uma política proibicionista de Guerra às Drogas que pretende imitar o modelo yankee. 

Importar a truculência do FDA foi uma das piores idéias-de-jerico que nossas autoridades políticas tiveram nestas últimas décadas onde não cessaram de deflagrar a Cruzada Anti-Droguística, limitada, é claro, a seus trabalhadores do varejo, das “firmas” no morro. A mídia corporativa tende a falar dos “mortos no tráfico” como delinquentes justamente assassinados. Não são casualties of war, pelo contrário: para Olavo de Carvalho e seus fascitóides asseclas, estas pessoas assassinadas pela polícia não passam de lixo humano, ou escória social, digna apenas de encarceramento ou assassinato estatal sumário. Está aí, entre nós, esta nefasta doutrina, de vasta história em meio aos nazis, da superioridade inata de uma certa etnia ou grupo social, que pode legitimamente tratar os sub-humanos como bucha-de-canhão, burro-de-carga, bicho a enjaular em prisão…

“A guerra brasileira é revelada pelo olhar e pela voz das mães dos mortos no tráfico. São dessas mulheres os úteros que geram soldados – jamais comandantes – para a narcopátria. Seus meninos tombam por tiro, faca, granada. Não como exceção, mas como fato corriqueiro. Ao enterrar um filho e descobrir outro em seu lugar, estas mulheres são lançadas um passo além da insanidade.

A morte não tem apenas idade, mas cor e classe social. No estudo Cor e vitimização por homicídios no Brasil, os pesquisadores I. Cano, D. Borges e E. Ribeiro, da UERJ, mostraram que a probabilidade de ser assassinado é quase o dobro para os pardos e perto de três vezes maior para os negros. As estatísticas são mais altas onde a renda é menor e os serviços urbanos mais deficientes.” BRUM [12]

Um pais onde

O Brasil parece ser, parodiando Stefan Zweig, um Brasil cujo “Futuro” idealizado insiste em nunca chegar, o País Do Futuro Perfeito (Mas Sempre Adiado). Parece que neste curioso cosmos onde convivemos a distopia tem muito maior potencial de concretizar-se do que a utopia, este não-lugar, este lócus imaginário que foge no horizonte conforme caminhamos Tempo adiante – mas que, é a esperança de Eduardo Galeano, pode dar-nos força para caminhar – e lutar.

 Maria Rita Kehl fala da juventude – como faixa etária, como grupo social – dizendo que os “jovens são depositários da virtualidade contida no presente” e também “caixa de ressonância dos sintomas da cultura”; para o jovem, “a vida é um eterno agora” e eles tem “disponibilidade em abraçar a atualidade”; jovem é aquele que

“Ingressa na vida adulta sem bagagem, sem bula, sem mapa. Mas essa condição agravou-se na modernidade em que, segundo Walter Benjamin, a velocidade das inovações desmoralizou a possibilidade da experiência entre gerações.” KEHL, M. R. [13]

Betinho

Ser jovem e periférico, hoje, é estar desnorteado e sem mapas. É estar disposto a arriscar-se em ações radicais. Os Black Blocs, em Junho de 2013, chegaram a apavorar tanto nosso establishment que a Editora Abril, através da Veja, fez o diabo para crucificá-los, pregando-lhes na cruz como vândalos destruidores da segurança pública. Certo… mas e as causas produtoras de tamanha revolta, não vale a pena refletir nelas? E não vale a pena perguntar pela responsabilidade daqueles que foram alvos destes ataques, ou seja, o quanto contribuíram os bancos e as multinacionais na produção de nosso apartheid militarmente sustentado?

Não deveríamos estar perguntando mais a sério às empreiteiras, às mega-corporações, aos bancos – como o HSBC, envolvido num mega-esquema bilionário de fraude e corrupção – os mesmos desafios combativos que expressam os molotovs que voam contra as agências bancárias e os McDonald’s (dentre outras corporações junk-food-ficadoras da vida)? Não chegamos a uma era onde há necessidade de molotovs intelectuais, ataques críticos mais ferinos, contra a corja de Bolsonaros e Felicianos, Malafaias e Olavos de Carvalho, que pretendem impor-nos seu obscurantismo teocrático e sua ditadura do caretismo?

Contra os Hitlers e Mussolinis do futuro, precisaremos também inventar os beatniks e os hippies, os zapatistas e os guevarinhas, do futuro aqui-e-agora a ser inventado. Nos anos 1960, lembra Maria Rita Kehl, houve uma explosão de juventude que abalou os alicerces do status quo ocidental – os levantes de 1968 (França, México, Tchecoeslováquia…) somaram-se à bela balbúrdia de Woodstock e dos Verões do Amor para mostrar que a juventude era uma força de ação, de mobilização, de criação, de subversão (no bom sentido: agentes de viradas revolucionárias). Ícone contra-cultural: Hendrix, voodoo child, inserindo genialmente o ruído e a discórdia em seu anti-hino, seu punkaço “Star Spangled Banner”, uma cusparada na cara da Yankeelândia que inventou a KKK e a Guerra do Vietnã, que mandou assassinar Luther King e Malcolm X, que insiste em querer meter-se nos altos escalões de Washington para ali fazer fortuna servindo aos lobbies de quem tem a grana alta e disposição para comprar políticos prostituíveis e gananciosos…

Sonhos e Urnas

Talvez aproxime-se a época de urgências onde novamente seremos solicitados à ação direta em massa para impedir o prosseguimento da destruição ecológica planetária perpetrada, por exemplo, pela indústria dos combustíveis fósseis – ou seja, quero dizer que talvez se faça necessário que nos tornemos um pouquinho mais incendiários em nossas relações com Shells querendo drillar o Ártico e Monsantos querendo dominar todas as sementes da terra e patentear tudo quanto é transgênico G.M.O… Não poderemos imitar os rebeldes de outrora, que levantavam-se contra outros adversários e debatiam sobre outros problemas, mas tampouco é infrutífero relembrar um pouco da efervescência sócio-cultural dos anos 1960, já que podemos tirar de lá inspiração e força, como Maria Rita Kehl lembra também:

“A sexualidade saiu à luz do dia (com ajuda, convenhamos, dos anticoncepcionais), dispensando as culpas e tabus que fizeram a angústia e a acne das gerações anteriores. Mais que o sexo, jovens eram as pulsões de vida todas, eróticas ou agressivas que impregnaram a música, a política e os costumes, na esperança de que a vida pudesse se revolucionar de ponta a ponta, se estetizar, se fazer puro fluxo, em nome de tudo o que parecesse com o desejo. Titio Nietzsche, aquele velho bigodudo que pensava como um eterno rebelde, teria adorado.” [14]


Jimi Hendrix ao vivo em Woodstock. Agosto de 1969.

Para que a juventude possa pôr em ação seus ímpetos criadores de um outro mundo possível é preciso, parece-me, antes de mais nada, superar a noção de que juventude é apenas uma faixa etária no mercado de consumo, um poderosíssimo exército de consumidores, que as forças do capitalismo disputam para abocanhar e aliciar através de seus tentáculos midiáticos. A juventude faz muito mais do que consumir entreter-se, papel que quer-lhe impor boa parte de nosso establishment Global, e às vezes inventa o novo. E estamos sempre precisados de inventar o novo diante destas velharias obscurantistas que hoje são tanto hegemônicas quanto vendidas a nós como modelos insuperáveis (a “democracia de mercado” neo-liberal, dominada pela mão invisível do Deus de Wall Street, seria o “fim da história”, o cume mais alto a que podemos chegar!?!).

No Brasil dos últimos tempos, temos exemplos às mancheias de uma juventude que inventa o novo sob a forma, por exemplo, das redes de produção cultural e circulação de artistas bolada pelo Fora-do Eixo; nos festivais de música independente fabulosos que fazem do Brasil numa potência cultural-sônica de impacto potencialmente global; nos movimentos sociais de ativismo organizado à la RUA (Juventude Anti-Capitalista) ou Juntos; nos partidos políticos renovadores, como o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) – onde reúnem-se alguns dos mais ilustres dos novos heróis do ativismo brasileiro, como Marcelo Freixo, Jean Wyllys, Luciana Genro – ou em iniciativas feministas como a Marcha das Vadias e o partido PartidA deflagrado por Márcia Tiburi; em ONGs respeitáveis e empoderáveis como a Anistia Internacional ou o Greenpeace; nos laboratórios midiáticos interessantíssimos como a Ninja, a Pública, o Rafucko, o Guerrilha GGR, etc.; além disso, temos provas recentes do poderio transformador e mobilizador que possui o Movimento Passe Livre, o MTST (Trabalhadores Sem Teto), o MST (Movimento Sem Terra), a CUT, em especial quando somam forças em prol de uma mesma pauta; temos ainda intelectuais iluminantes de primeiríssima valia, como Viveiros de Castro, V. Safatle, Maria Rita Kehl, Mauro Iasi, Maria Cristina Franco Ferraz, Viviane Mosé… dentre muitos outros.

Tudo isso me dá entusiasmos para acreditar que não estamos assim tão desnorteados e que há sim lideranças de qualidade por aí. Tudo isso permite ver luzes não só no fim-do-túnel, mas na presença plena do presente de que somos contemporâneos. Em comum, trata-se de inventar um novo mundo comum, este palco da condição humana que, por uma série de cegueiras individualistas e competitivistas, esquecemos de enxergar como aventura-em-comum, convivência no seio da alteridade diversa, maravilhosa justamente pois incerta e aberta à possibilidade do melhoramento permanente, ainda que acossada pelo perigo da decadência e da extinção. Viver é muito perigoso, e só vivem visceralmente os que não se acovardam diante destes perigos e tomam os riscos necessários no processo de parir o novo.

“O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós. Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. (…) Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar.” [15] HANNAH ARENDT

* * * *

JUVENTUDE: NO BANCO DA ESCOLA OU NO BANCO DOS RÉUS?

No 10º e último vídeo da série “Sobre Crimes e Castigos”, da Ponte Jornalismo​, o historiador e deputado estadual Marcelo Freixo​ (PSOL 50 – Partido Socialismo e Liberdade​) afirma que a proposta de redução da maioridade penal é desumana, injusta e ineficaz sobre os números da criminalidade. Ele desafia o País a definir o que quer para suas juventudes urbanas e ricas e as as pobres e periféricas.

“É uma inversão do ônus, quem é a vítima da violência? Dos 50 mil homicídios que nós tivemos, 33 mil foram contra jovens, 70% era negros, os números são categóricos, a principal vítima da violência é a juventude pobre, negra, moradora de favela e da periferia. São eles que estão perdendo a vida. Qual é a solução para isso? Pega o jovem pobre e negro e bota no cárcere. E você não tem sequer eficácia nessa medida, essa é uma proposta exclusivamente vingativa.”

Educar primeiro para não ter que encarcerar depois: receita tão simples, mas à qual são surdos os que pregam em prol dos cárceres. Freixo refere-se a uma “inversão do ônus”, uma culpabilização da vítima: é a lógica de esculachar os esculachados que a elite brasileira pratica desde os tempos dos Senhores de Engenho, reinando pela violência e pela tirania sobre a Senzala, pregando a santa intervenção militar genocida no trato com os Quilombos…

No Brasil de hoje, talvez a cultura hip hop seja um dos principais locus de resistência, uma espécie de Quilombo cultural que tem nos Racionais MCs, no Criolo, no Emicida, no Planet Hemp (e nos vôos-solo de seus membros Marcelo D2, B Negão, Black Alien), dentre outros, alguns de seus mais expressivos representantes. Maria Rita Kehl enxerga na obra dos Racionais MC’s um “esforço civilizatório dos rappers” que procuram agir através de sua arte para emancipar os manos, mas que também acabam por revelar ao Brasil as nossas próprias contradições e cisões internas, o nosso não-declarado apartheid social:

Racionais

“Os Racionais MC’s se dirigem diretamente ao mal-estar que sinto por viver num país que reproduz diariamente, numa velocidade de linha de montagem industrial, a violenta exclusão de milhares de jovens e crianças que, apesar dos atuais discursos neoliberais que enfatizam a competência e o esforço individual, não encontram nenhuma oportunidade de sair da marginalização; jovens cujas vidas correm o risco de ser apenas o ‘efeito colateral que o sistema fez’ (Cap. 4, Versículo 3 – Mano Brown). É a capacidade que eles têm de simbolizar a experiência de desamparo destes milhões de periféricos urbanos, de forçar a barra para que a cara deles seja definitivamente incluída no retrato atual do país (um retrato que ainda se pretende doce, gentil, miscigenado), é a capacidade de produzir uma fala significativa e nova sobre a exclusão, que faz dos Racionais MC’s o mais importante fenômeno musical de massas no Brasil dos anos 1990.

O apelo parece simples: ‘permanecer vivo contrariando as estatísticas’. (…) O real se manifesta na figura do destino inexorável: hoje a pivetada, com o que restou da inocência infantil, vai para a escola, empina pipas na rua, joga bola. Logo mais estarão traficando, viciadas no crack, a caminho da morte certa. As letras de Brown e Edy Rock falam de um verdadeiro extermínio dos jovens de periferia; como acontece com os relatos dos sobreviventes dos campos de concentração, não há lugar para o sublime, aqui. (…) Os sonhos de consumo, de apropriar-se dos fetiches burgueses, “moto nervosa / roupa da moda / mina da hora”, parecem acenar com um certo semblant de felicidade (assim como para os consumidores da classe média, aliás), mas ficam inacessíveis a não ser que o cara enverede pelo crime… A inveja dos ricos, da vida nos bairros burgueses, dos privilégios que o dinheiro compra, é inevitável… Apesar desta inveja, os manos tentam afirmam sua diferença.

A periferia que se valorize; os negros que tratem de bancar sua cultura, seus valores – este é o antídoto contra a alienação, contra a sedução promovida pela propaganda, pela tevê, arautos da sociedade de consumo. (…) O real é a matéria bruta do dia-a-dia da periferia, é a matéria a ser simbolizada nas letras do rap. Uma tarefa que, como todo trabalho de simbolização, depende de um trabalho de criação de linguagem que só pode ser coletivo. É como se os poetas do rap fossem as caixas de ressonância, para o mundo, de uma língua que se reinventa diariamente para enfrentar a morte e a miséria. Para se manter junto à fonte de sua poesia eles não deixam a favela, não negam a origem.” KEHL [16]

A proposta de expandir o complexo carcerário (privatizando alguns de seus setores) e fortalecer o estado policial (com incrementos tecnológicos para os BOPEs e Robocops) é obviamente nascida da insânia paranóica das classes proprietárias, que sentem-se ameaçadas diante da ascensão dos pobres à plena cidadania; o Brasil, fatiado, tenta construir coesão e solidariedade, mas o sectarismo não permite unificação; estão apartados os Brasis que convivem no seio do Rio de Janeiro, antiga capital federal, já que uma coisa é ser jovem no Morro da Alemão ou na Maré ocupada pelo Exército (como se estivéssemos em 1968 e o AI-5 ainda estivesse valendo), outra coisa bem diferente é ser jovem no Leblon ou em Copabacana, em alguns dos cantos mais caros de todo o mercado imobiliário planetário…

A tendência repressiva – diminuir maioridade penal, construir mais presídios, tornar ainda mais truculenta a PM – é o desastre preconizado por alguns fascistas engravatados em Brasília. Doutrina devidamente tornada ressonante por essa corja de jornalistas elitistas de Veja, de demagogos da Direita (as Sherazades, os Constantinos, o “movimento Olavete”), para não falar do nefasto discurso e tenebrosa prática de vários pastores neopentecostais fundamentalistas (Malafaias, Felicianos, Edir Macedos, com vasto poderio sobre seus rebanhos). Diante do Brasil do apartheid, que deseja que permaneçamos cindidos entre um Bélgica e uma Etiópia, convivendo (em guerra) no mesmo território, é preciso afirmar o horizonte utópico de um outro mundo possível, inventado numa lógica da inclusão, da solidariedade, da radical redistribuição de renda, da reunião do diverso, da celebração do convívio e da cidadaniaUtopia: lugar que não há, lugar que há de se inventar e edificar. 

Calemos a boca e cortemos as asas da corja fascistóide que deseja pôr a juventude brasileira na jaula, em especial aquela fração desta juventude que a sociedade fracassa em fornecer acesso aos direitos humanos fundamentais, à todos os serviços públicos e seguranças sociais previstos na Legislação Federal de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente, nas Convenções da ONU de que somos pátria signatária. Que se povoe o Brasil com CEUs, onde a música seja ensinada, praticada, tocada; onde os cineastas e documentaristas do futuro possam frequentar escolas públicas do audio-visual; onde as artes gráficas desabrochem e pintem nossas ruas com grafites e poesias pixadas pelos muros; que nossa fabulosa capacidade de conexão-em-rede possa receber novos turbos, com a proliferação dos festivais – de música, de teatro, de dança, de circo… – e com a florescência profusa de nossa também fabulosa criatividade rítmica, artística, antropofágica. A juventude não foi feita para a jaula mas sim para as asas; não para o silêncio do cárcere, mas para pôr a boca no trombone, pra rimar ao microfone, pra guitarrar nos amplificadores, pra inventar o novo sem o qual a Vida cai na estagnação das múmias.

CONTINUA…

E.C.M. / Goiânia, Junho 2015

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E AUDIOVISUAIS:

[1] BRUM, Eliane. O Olho da Rua. Seção “Expectativa de Vida: 20 Anos”. Ed. Globo, 2006. Pg. 187 a 199. [2] DA SILVA, Bezerra. “Vítimas da Sociedade”. [3] Art. 227 da Constituição Federal do Brasil de 1988. [4] RUSSO, Renato. “Que País É Esse?”, da Legião Urbana.  [5] SÊDA, Edson. A Proteção Integral – Um Relato Sobre o Cumprimento do Novo Direito da Criança e do Adoloescente na América Latina. Campinas/SP, Ed. Adês, 1996. Pg. 55. [6] SÊDA. Op cit. Pg. 42. [7] SAFATLE, Vladimir. A Bancada do Medo. Jornal FSP. [8] MARÇAL, Juçara; GERMANO, Douglas. Canção “Damião”, do álbum Encarnado. [9] OLIVEIRA, Dijaci David de. Redução da Maioridade Penal: mais segurança ou mais violência?. Jornal da UFG, Ano IX, número 73, junho de 2015. [10] SAFATLE. Op cit. [11] BRUM, E. Mães Vivas de Uma Geração Morta.  Pg. 203. [12] BRUM. Op CIt. Pg. 205. [13] KEHL, Maria Rita. A Fratria Órfã. Pg. 6-7. [14] KEHL. Op cit. Pg. 10. [15] ARENDT, HANNAH. A Condição Humana. [16] KEHL. Op cit. Pg 73 e 96.

Dados
12

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 “QUERÔ” (2007, 08 minutos),
Da obra de Plínio Marcos,
Um filme de Carlos Cortez

“QUERÔ (interpretado por Maxwell Nascimento) é filho de uma prostituta, que foi expulsa do bordel em que trabalhava no dia em que deu à luz. Desesperada, ela se suicida tomando querosene. Violeta, a dona do prostíbulo, decide cuidar do garoto e o apelida de Querô, em referência ao modo como sua mãe morreu. Ao crescer Querô, revoltado com os maus tratos que recebe, passa a cometer pequenos delitos. Um dia ele é pego e encaminhado à Febem, onde sua vida é marcada para sempre.”

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O AMOR PELA PHILIA – A AMIZADE COMO IDEAL ÉTICO E CÍVICO EM MONTAIGNE & EPICURO (por Eduardo Carli de Moraes)

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Michel de Montaigne (1533 – 1592)

Statue de Michel de Montaigne, rue des Ecoles (face à la Sorbonne), Paris

Estátua de Montaigne em Paris, Rue des Ecoles, em frente à Sorbonne

O AMOR PELA PHILIA
A AMIZADE COMO IDEAL ÉTICO E CÍVICO EM MONTAIGNE & EPICURO

MontaigneNo próprio coração da palavra “filosofia” pulsa a philia, um dos três nomes que possuíam os gregos para se referir ao multiforme amor. Esta conexão entre a sophia (sabedoria) e a philia (o amor-amizade) é essencial à prática filosófica desde o seu nascedouro. No entanto, alguns pensadores encarnam e exemplificam melhor do que outros este ideal de convívio sábio que anima a filosofia desde os primórdios até hoje em dia.

Michel de Montaigne (1533 – 1592), no primeiro volume de seus saborosos Ensaios, dedica páginas sublimes ao tema da amizade. Celebra seu convívio com Étienne de la Boétie (1530 – 1563), uma relação que, apesar de ter durado apenas 4 anos, é sentida por Montaigne como uma espécie de cume e auge de sua existência:

“Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que o não saberia expressar senão respondendo: porque era ele, porque era eu. (…) Intervém em ligações dessa natureza uma força inexplicável e fatal que eu não saberia definir. (…) À nossa amizade fomos levados por não sei que atração total, a qual em se assenhoreando de nossas vontades as impeliu a um impulso simultâneo e irresistível de se perderem uma na outra, de se fundirem em uma só. E digo ‘perderem-se’ porque na verdade essa associação de nossas almas se efetuou sem reserva de espécie alguma; nada tínhamos mais que nos pertencesse pessoalmente, que fosse dele ou meu. (…) Nossas almas caminharam tão completamente unidas, tomadas uma pela outra de tão ardente afeição, essa afeição que penetra e lê no fundo de nós mesmos, que não somente eu conhecia a sua como a minha, mas teria, nas questões de meu interesse pessoal, mais confiança nele do que em mim mesmo.” (MONTAIGNE, M. Ensaios. Livro I, XXVIII. Pg. 98) [1]

Montaigne, que tem fama de cético, em matéria de amizade age mais como um devoto. Celebra a philia como uma “ligação de essência divina” e concorda com o dito de Aristóteles de que dois amigos são como “uma alma em dois corpos” (pg. 99).

Montaigne em ilustração de Pablo Casadas [Compartilhar]

Montaigne em ilustração de Pablo Casadas [Compartilhar]

O ensaio de Montaigne, com imagens que evocam a fusão das individualidades, as vontades marchando lado a lado, a perfeita harmonia intimidade entre duas metades perfeitamente conectáveis e que encaixam-se como chave e fechadura, parece flertar com o mito sobre o amor veiculado por Aristófanes no Banquete de Platão. Temos a impressão de que em La Boétie encontrou Montaigne sua cara-metade, o outro que lhe completa.

La Boétie, que marcou a história das letras francesas em sua adolescência ao publicar o tratado Da Servidão Voluntária, livro profundamente admirado por Montaigne, morreu precocemente, algo pungentemente lamentado nos Ensaios em palavras de um pathos onde mesclam-se o luto (a melancolia pela perda do outro amado) e a gratidão (a felicidade de relembrar aquilo que foi vivido na companhia do outro):

“Se, com efeito, comparo o resto de minha vida, a qual graças a Deus me foi suave e fácil, isenta de aflições penosas (à exceção da perda de meu amigo), cheia de tranquilidade de espírito, tendo-me contentado com as vantagens que devo à natureza e à minha condição social sem procurar outras; se comparo minha vida inteira aos 4 anos durante os quais me foi dado gozar a companhia tão amena de La Boétie, ela não passa de fumaça. É uma noite escura e aborrecida. Desde o dia em que o perdi… não faço senão me arrastar melancolicamente. (…) Já me acostumara tão bem a ser sempre dois que me parece não ser mais senão meio. Como diz Horácio: ‘Como uma morte prematura roubou-me a melhor parte de minha alma, que fazer com a outra? Um só e mesmo dia causou a perda de ambos’. Eu nada fazia, nem um só pensamento tinha que não lhe percebesse a ausência, como certamente, em caso semelhante, eu lhe faltaria. Porque se me ultrapassava em méritos de toda espécie e em virtude, também me sobre-excedia nos deveres da amizade. ‘Ó irmão, como sou infeliz por te haver perdido! Ao morrer, irmão, despedaçaste toda a minha felicidade: minha alma desceu ao túmulo com a tua.’ (Catulo)” (MONTAIGNE. Op cit. Pg. 100) [2]

Montaigne não seria o pensador magistral que é caso deixasse de problematizar a amizade, distinguindo com finesse entre suas diferentes experiências e manifestações. Não idealiza em excesso a amizade e enxerga todas as pedras em seu caminho: “Se temos dois amigos e ambos ao mesmo tempo pedem socorro, a quem acudiremos? Se solicitam favores antagônicos, qual deles atenderemos? Se um nos exige silêncio acerca de alguma coisa que interessa ao outro, que faremos?” (pg. 99)

Entre pais e filhos, por exemplo, Montaigne crê que a amizade é quase impossível, não só pelo abismo entre as gerações e a diferença entre as idades e portanto os graus de maturidade e de autoridade, mas também por causa de certos tabus que impedem o fluxo sincero de comunicação:

“Nas relações entre pais e filhos é mais o respeito que domina. A amizade nutre-se de comunicação, a qual não pode estabelecer-se nesse domínio em virtude da grande diferença que entre eles [pais e filhos] existe, de todos os pontos de vista; e esse intercâmbio de idéias e emoções poderia por vezes chocar os deveres recíprocos que a natureza lhes impôs, pois, se todos os pensamentos íntimos dos pais se comunicassem aos filhos, ocorreriam entre eles familiaridades inconvenientes. Mais ainda: não podem os filhos dar conselhos ou formular censuras a seus pais, o que é entretanto uma das primeiras obrigações da amizade.” (MONTAIGNE, op cit, pg. 96) [3]

Os filósofos muitas vezes negligenciavam seus deveres paternos na Antiguidade grega, a começar por Sócrates, sempre tão desleixado e negligente em matéria de prover o sustento dos rebentos nascidos do útero de sua esposa Xantipa. Enquanto Sócrates dialogava com seus discípulos ou adversários, como mostra bem o filme de Roberto Rosselini, abandonava a criançada à fome e ao desmazelo. Mais radical ainda era Aristipo, de quem Montaigne lembra a seguinte anedota: “quando falavam para Aristipo sobre a afeição que devia aos filhos, saídos dele, punha-se a cuspir dizendo que isso também saía dele. E acrescentava que, se engendramos filhos, engendramos igualmente piolhos e vermes.” (cf. MONTAIGNE, pg. 96)

É o que basta para exemplificar que os laços de família, bem sabemos, não são sempre amigáveis e com frequência são amargos, repletos de violências, a ponto de uns às vezes chegaram ao extremo de “lançar-se da janela do quinto andar”, para relembrar a canção da Legião Urbana, que tão bem expressa a variedade de vivências familiares problemáticas que estão entre os possíveis dentre o tesouro de potencialidades humanas.

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Epicuro & Metrodoro representados em um busto romano. Acervo do museu do Louvre em Paris.

Epicuro & Metrodoro representados em um busto romano. Acervo do museu do Louvre em Paris.

Outro exemplo muito interessante de “amizade filosófica”, equiparável à que uniu Montaigne e La Boétie, foi aquela que vinculou os convivas do Jardim, Epicuro e Metrodoro. Foi extraordinário descobrir uma escultura romana de Epicuro em que este é representado belamente: não como uma figura solitária, mas sim talhado na mesma pedra que Metrodoro. Como se Epicuro, o sábio, não pudesse ser isolado de seus amigos, já que o próprio Epicuro viveu a verdade que ensinou: é impossível ser sábio ou feliz na solidão. A sabedoria é um bicho que só se caça junto. A sabedoria é inconquistável para o isolacionista, o autista, o solipsista, o fechado.

Toda a amizade dos mortais é mortal, eis um fato fatal. Quando seu adorado amigo e discípulo Metrodoro falece, Epicuro consagra sua memória em uma biografia de 5 volumes, destinada a oferecer um retrato para a posteridade do conviva no Jardim. Epicuro, é claro, foi um dos mais prolíficos escritores da antiguidade – estima-se que tenha escrito mais de 300 obras – e dedicava-se com energia aos escritos destinados a celebrar a memória de companheiros falecidos. Já que não acreditava na imortalidade da alma – fiel ao materialismo de Demócrito – afirmava que a única imortalidade que nos é acessível está na memória, como Norman Wentworth Dewitt chama: “an immortality of remenbrance”, a imortalidade da relembrança [4].

A escola de pensamento epicurista, como Michel Serres mostra com tanto brilhantismo, é tecida a partir da abertura – abertura ao convívio, abertura à troca positiva de informações e afetos, abertura às vivências prazenteiras e benéficas. O materialismo atomista é uma explicação do mundo extremamente dinâmica, onde os fluxos e os turbilhões não cessam de circular, como podemos notar quando paramos para prestar atenção em nosso próprio organismo e à teia vital que ele integra: de nossas narinas, não cessam de entrar e sair fluxos de átomos aéreos que inspiramos e expiramos; nosso coração não pára, enquanto vivemos, de bombear o sangue que circula pelas avenidas tubulares de nossas veias e artérias; e o vinho bebido invade os tecidos, afeta o cérebro e os sentidos. Serres dirá que mesmo o ensino filosófico de Epicuro respeita às leis naturais que regem a Matéria:

Epicuro

Epicuro

“Não seria materialista quem excetuasse sua palavra ou seu escrito das leis físicas ou atomistas. Donde esse golpe de gênio: o corpo, sistema aberto, é o lugar ou a sede de uma troca de fluxos: nele eles entram, dele eles saem.  A troca de ensinamentos é avaliável nos mesmo termos que o circuito dos outros fluxos. Isso, o próprio Descartes viu: basta traduzir sua circulação dos espíritos animais em linguagem de informação para tornar sua obra legível hoje. Epicuro é a origem de um fluxo que entra em meu corpo.” (SERRES, M. O Nascimento da Física No Texto de Lucrécio. Pg. 109.) [5] 

No Jardim, apelido da escola de filosofia inaugurada por Epicuro e que atravessará 7 séculos de história, entre 3 a.C. e 4 c.C., um dos valores essenciais que norteia a convivência é justamente o cultivo cotidiano da amizade, como destaca José Américo Pessanha:

 “A aquisição e a difusão da sabedoria sustentam-se, com efeito, na philia que liga os discípulos numa sociedade de amigos, que os vincula fortemente ao mestre e une todos à mesma doutrina. Mas essa rede de amizade exige uma rede de palavras permanentemente recordadas e comunicadas: o amor à humanidade (filantropia) e o processo de libertação e conquista da serenidade sábia são construídos em tramas de linguagem que incessantemente tecem o luminoso discurso da verdade. Obra inteiramente humana, sem interferência de nada que transcenda o humano, esse discurso da razão apoiada na experiência sensível é tecido no tear do tempo: resgatando o passado — rememorando lições e falas — e urdindo o futuro.” (PESSANHA) [6]

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A sociedade alternativa criada por Epicuro – um Raul Seixista avant la lettre – tinha como um de seus valores norteadores justamente a philia – palavra que também compõem tantos deleitosos vocábulos além de “filosofia”: como filantropia (o amor à humanidade); filarmônica (como na orquestra,onde pratica-se a amizade musical e o amor à harmonia); além do vício delicioso da cinefilia (este companheirismo pelo cinema). “De todas as preparações que a sabedoria faz tendo em vista uma vida de bem-aventurança”, escreve Epicuro, “de longe a mais preciosa de todas é a aquisição de amizade.” (EPICURO, Doutrina Autorizada 27.) [7]

Tal doutrina ecoará na história do materialismo filosófico (e da sabedoria a ele vinculada) pelos séculos afora: no século 19, por exemplo, Ludwig Feuerbach, com quem Marx e Engels irão tanto aprender e com quem irão intensamente debater, escreve em seu A Essência do Cristianismo algumas belas palavras sobre a convivência, o viver-com:

“O convívio aprimora e eleva; espontaneamente, sem dissimulação, o homem torna-se outro no convívio, muito diverso do que é só para si. (…) No amor o homem expressa a insuficiência da sua individualidade, postula a existência do outro como uma necessidade do coração, inclui o outro na sua própria essência, só declara a sua vida unida ao outro pelo amor como uma vida verdadeiramente humana…Defeituoso, incompleto, débil, carente é o indivíduo; mas forte, perfeito, satisfeito, sem carência, auto-suficiente, infinito é o amor… Como o amor, atua também a amizade, pelo menos quando é verdadeira e sincera, quando é religião, como o era dentre os antigos. Os amigos se completam; a amizade é uma ponte para a virtude…” (FEUERBACH) [8]

A SER CONTINUADO…

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VÍDEO RECOMENDADO:
“A ARTE DE VIVER”
TV CULTURA / COM JOSÉ AMÉRICO MOTTA PESSANHA (55 min)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] MONTAIGNE, M. Ensaios. Livro I, XXVIII. In: Os Pensadores. Trad. Sérgio Milliet. Abril Cultural, 1ª edição, 1972. Pg. 98.

[2] Op cit. Pg. 100.

[3] Op cit. Pg. 96.

[4] DEWITT, N. W. Epicurus and His Philosophy. Pg 118-119.

[5] SERRES, M. O Nascimento da Física No Texto de Lucrécio. Trad. Péricles Trevisan. São Paulo: Editora UNESP; São Carlos: EdUFSCAR, 2003. Pg 109.

[6] PESSANHA, J. A. As Delícias do Jardim de Epicuro. 

[7] EPICURO, Doutrina Autorizada 27. In: DEWITT, Epicurus and His Philosophy. Pg. 190.

[8] FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo. 

PUXANDO O FREIO DE EMERGÊNCIA: Reflexão na companhia de “Crédito à Morte”, de Anselm Jappe (Ed. Hedra, 2013)

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PUXANDO O FREIO DE EMERGÊNCIA
Reflexão na companhia de Anselm Jappe

por Eduardo Carli de Moraes
http://www.acasadevidro.com

Cartão de Credito

AS ESPERANÇAS CATASTROFISTAS DE DECOMPOSIÇÃO DO CAPITALISMO

Uma velha esperança, que “gerações e gerações de revolucionários proclamaram”, é esta: o capitalismo será o “coveiro de si mesmo”. Segundo esta esperança, explica o filósofo Anselm Jappe, “o capitalismo é de tal modo devastador que forçará a humanidade a se desvencilhar dele ou, pelo menos, a fazer mudanças drásticas.” (pg. 28) É a tese que Jappe chama de “catastrofista”, disponível em versão ecológica e econômica, e que é expressa muitas vezes com um certo entusiasmo esperançoso: “O instinto de sobrevivência fará com que a humanidade pare às bordas do penhasco” e “diante do perigo extremo, as pessoas acordarão e um milagre acontecerá”! (pg. 29)

Mas se não há Providência divina que zele pelo futuro da Humanidade, nem ética que governe a livre barbárie do Mercado, de onde este evento milagroso surgiria para despertar as multitudes de seu conformismo, de seu consumismo, de sua zumbizice? O capitalismo não é algo que diz respeito somente às estruturas da economia, da produção objetiva de mercadorias e serviços, mas também à nossa estrutura subjetiva: “Desde pequeno fomos programados a receber / O que nos empurraram com os enlatados do U.S.A. das 9 às 6”, canta Renato Russo em “Geração Coca-Cola”. “Desde pequenos nós comemos lixo comercial e industrial – e não somente o capitalismo agarra-nos com seus tentáculos por fora, como também coloniza nosso mundo íntimo. 

Um dos conceitos mais interessantes mobilizados por Anselm Jappe em sua análise da presente crise ecológico-climática planetária (milhares de alarmes soando, enquanto a Shell avança pelo Ártico e a Monsanto coloniza nosso solo…) é a do capitalismo como forma-sujeito. Capitalismo é também uma forma do sujeito ser, o que acarreta a possibilidade, para todos e cada um, de que o capitalismo seja um crime de que somos cúmplices. Nós o sustentamos.

As “revoluções”, opina o autor de Crédito À Morte, emergem de um desejo de “romper com o capitalismo e com a própria forma-sujeito imposta por ele e que cada um carrega consigo” (pg. 112). Nosso imaginário foi colonizado e agora sonha seus delírios de consumo: sonhamos não mais sobre a esfinge proposta pelo dínamo estrelado da noitemas sim com um novo automóvel zero km que queremos comprar. Narcisos perdidos em suas narcoses de auto-celebratório conformismo, permanecemos firmemente abraçados a um Titanic que já teve seu casco ferrado pelo clash com o iceberg. 

É insistente, teimoso, este nosso velho conhecido: o antropocentrismo. Ele resistiu e sobreviveu às 3 feridas narcísicas de que fala Freud e que acometeram-nos quando as doutrinas científicas heliocêntricas, evolucionistas e psicanalíticas começaram o processo de demolição de nosso antropo-ego. Não cremos mais numa Terra imóvel no centro de tudo, mas cremos numa Terra que é legitimamente colonizada pelos humanos como se fosse algum tipo de rocha morta em território alienígena. Cremos no nosso direito de sujar a atmosfera com toneladas de poluentes, apesar de não crermos mais que todas as estrelas no céu foram criadas para agradar a nossa vista, como pintava aquela visão, teleológica e narcisista, tão finamente ironizada por Fontenelle no clássico iluminista Diálogos Sobre a Pluralidade de Mundos:

“A nossa loucura é acreditar também que toda a natureza, sem exceção, é destinada a nosso uso; e quando perguntamos a nossos filósofos a serventia desse número prodigioso de estrelas fixas… eles nos respondem friamente que servem para lhes agradar a vista. Nessa base, a princípio não faltou quem imaginasse estar a Terra necessariamente imóvel no centro do universo, enquanto todos os corpos celestes, que eram feitos para ela, davam-se ao trabalho de girar em volta para iluminá-la.” (FONTENELLE, Diálogos Sobre a Pluralidade de Mundos. Campinas/SP: Editora da UNICAMP. Pg. 53)

Se abandonamos o geocentrismo, no entanto ainda cremos numa Terra que está aí para que nós a dominemos, e que aceita passivamente tudo o que impusermos a ela como subprodutos de nossos empreendimentos produtivos: grande parte de nós não é capaz de “expressar dúvidas sobre o rumo como um todo da viagem empreendida pela sociedade industrial” (pg. 113). Jappe quer que foquemos a atenção em algo maior que qualquer existência individual, qualquer grupo social, qualquer pátria ou filiação étnica: é o rumo como um todo desta civilização o que interessa-lhe compreender e criticar, e a palavra rumo é interessante por seu “futurismo”: ruma-se para um certo futuro, ou ou z. Supondo que seja um futuro de caos climático generalizado e grandes emergências humanitárias e mortandades em vasta escala, não seria de interesse humano generalizado uma mudança drástica de rumo?

Rumo ao quê? Quicá a um certo futuro y, que não queime mais combustíveis fósseis como um junkie enlouquecido injeta heroína. Um futuro y em que, ao contrário, a superfície do planeta tenha reverdejado com o engendramento de novos verdes e reganhado a saúde de suas flores e suas colméias de abelhas. Um futuro y, que cabe a nós muito mais construir juntos do que esperar que algum deus, messias ou político faça pela gente, seria por exemplo movido a energia solar e eólica, sua dieta seria mais frugívora do que carnívora, a convivência social mais comunitária e celebratória, bem menos cruel e menos competitiva em relação ao que é hoje.

Que um outro futuro z, de catástrofe apocalíptica – digamos… 90% das espécies vivas do planeta sendo extintas antes de 2.500 d.C. – , seja possível é certamente a crença de Jappe. O pior é possível. E nossos rumos não nos dão razão para otimismos infundados. Rumamos sim para colapsos, para catástrofes climáticas, caso sigamos hoje certos rumos infelizmente já bem trilhados – e que muitos parecem querer seguir trilhando, quiçá pelo medo que nos geram as novas estradas.  “Houve já civilizações inteiras que desapareceram em vez de mudar seus hábitos”, opina Anselm Jappe, um autor bastante ducha-d’água-fria sobre os otimismos. O prognóstico Jappeano é sombrio: “O que está programado é a catástrofe e não a emancipação.” (pg. 28)

O que hoje conhecemos como “Aquecimento Global”, por exemplo, é uma catástrofe programada, já muito anunciada, já infinitamente prognosticada, que no entanto não soubemos, coletivamente, sequer encarar de frente, de olhos bem abertos e disposição para a ação renovadora. A perspectiva de uma iminente crise climática global agora serve como novo avatar deste velho mito: o capitalismo, coveiro de si mesmo. Estamos esperando que ele se auto-destrua, e enquanto isso passeamos pelos shoppings centers e circulamos pela metrópolis queimando fósseis em nossos motores? Mas e quanto – eis a questão do milhão… – à tarefa de matar o capitalismo dentro de si?

Antidepressivos

A globalização do sistema de produção capitalista trouxe-nos à beira do penhasco, mas muitos de nós estão demasiado distraídos, clicando compulsivamente em botões de celulares e PCs, zapeando por centenas de canais de TV repletos de besteirol imbecilizante e iscas para o consumo sem freios, e enquanto isso a atmosfera do planeta é tratada como se fosse uma gigantesca privada. O privatismo caga sobre a biosfera, perdido na narcose de seu narcisismo, obcecado com o conforto e o bem-estar, mas despreocupado das próprias condições ambientais para o prosseguimento desta velha trama: a evolução da vida.

Lendo “Crédito à Morte”, de Anselm Jappe, fico com a impressão de que existem pelo menos duas vertentes para o catastrofismo intelectual atual, e que daria para rotular, de modo um tanto simplista, como vertentes otimistas e pessimistas. Os otimistas acham que “o instinto de sobrevivência fará com que a humanidade pare às bordas do penhasco e reconheça que a continuidade do capitalismo é incompatível com os interesses fundamentais de sobrevivência.”

Já os pessimistas, como Jappe, argumentam: “infelizmente não existe instinto de sobrevivência generalizado… A consciência dos riscos ecológicos não leva necessariamente à emancipação. Pelo contrário, também pode levar a soluções autoritárias, à concorrência extrema para ter acesso aos lugares não poluídos, ou a novas guerras. A derrocada econômica também não traz consigo um vento que sopra rumo à emancipação…” (pg. 29)

Emancipação, palavra menos judiada pela história que “revolução”, prossegue servindo-nos como conceito fundamental para pensar nossa ação, ainda que precisemos renovar o rol de tudo aquilo de que precisamos (urgentemente) nos emancipar. Anselm Jappe despeja seu sarcasmo sobre movimentos políticos que desejassem, por exemplo, demandar “o direito de todos comerem no McDonald’s”, quando ele acredita que “a emancipação não pode ser outra coisa senão a libertação em relação àquilo que impede a autonomia num nível mais profundo e mais geral. Essa emancipação só pode dizer respeito ao sistema capitalista e tecnológico em seu conjunto.” (pg. 30)

Diante da disseminação dos transgênicos e dos pesticidas, da proliferação dos ecocídios petrolíferos e das táticas de fracking, da possível clonagem humana e do fantasma da eugenia rediviva, da certeza de que o capitalismo seguirá produzindo crises como a de 2008 (e quiçá ainda mais graves), diante do desmate de florestas tropicais e da extinção de milhares de espécies, e frente às geleiras que derretem-se enquanto a Shell avança como vampira sobre o Ártico, talvez devamos prestar um tantinho de atenção aos catastrofistas, estes que sugerem que talvez seja hora de… puxar o freio de emergência!

“É conhecida a frase de Walter Benjamin escrita na época em que o fascismo triunfava:

“Marx diz que as revoluções são as locomotivas da história. Mas talvez não seja bem assim. É possível que as revoluções sejam, para a humanidade que viaja nesse trem, o gesto de puxar o freio de emergência.”

(BENJAMIN, W. Notes préparatoire pour les thèses sur le concept d’histoire. Paris: Gallimard, Vol. III, p. 442)

Vivemos tossindo em nossas metrópoles megapoluídas e todo este CO2 causa no cérebro coletivo uma crise das utopias? De todo modo, aos que insistem em proclamar e decretar a invencibilidade do capitalismo, convêm perguntar: “Por que estamos tão certos de que o capitalismo pode escapar ao ciclo do nascimento, crescimento e morte? Será que ele não poderia conter limites intrínsecos a seu desenvolvimento, limites que não residem somente na existência de um inimigo declarado (o proletariado, os povos oprimidos), nem unicamente no esgotamento dos recursos naturais?” (JAPPE, pg 48)

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O prognóstico catastrofista sobre nosso futuro é o de que caminhamos correndo rumo a um abismo que não enxergamos pois diante de nossas mentes está a imensa Matrix do Mercado. Caminhamos a passos largos para a catástrofe ecológica de vasta escala, a uma desregulação tão bárbara do sistema climático que suas consequências para o futuro da vida são imensos, e muitos seguem tão apegados a seus cartões-de-crédito quanto o são de seus crucifixos e pingentes santos. Evocando Céline, Anselm Jappe diagnostica que o capitalismo é morte à crédito. E que “o crédito, que é um lucro consumido antes de ter sido realizado, pode adiar o momento em que o capitalismo vai atingir seus limites sistêmicos, mas não abolir esse limite.” (pg. 51)

Celulares em 10 parcelas, sem juros! Financie seu carro e sua casa, pague nas três décadas futuras! Quem não ouve às mancheias, hoje em dia, serem trombeteadas, como iscas, pelos publicitários de plantão, convites ao crédito, seduções sobre as maravilhas inumeráveis do crédito? Ser pessoa “digna de crédito” é elogio. Tem quem adorne-se com terno e gravata (item de vestuário apelidado pelo iconoclasta Tom Zé como uma “forca portátil”) pois quer parecer pessoa de crédito. E no entanto o crack de 2008 chegou feito cataclismo, com muitas analogias históricas com a Grande Depressão iniciada em 1929, e mostrou que crédito e catástrofe são irmãs siamesas. A tese de Anselm Jappe é a de que a mais grave das crises do capitalismo global recente não pode ser explicada apenas com aquela que é a “explicação mais despachada, e também a mais difundida, que atribui a culpa de tudo isso à ‘avidez’ de um punhado de especuladores que teriam jogado com o dinheiro de todos como se estivessem num cassino.” (pg. 40)

crédito massificado merece ser o alvo de nossa crítica, argumenta Jappe, não para encontrarmos aí um bode expiatório, mas para que sejamos ilustrados por um dos sintomas do capitalismo contemporâneo e sua Schumpeteriana “destruição criadora”. O trem do capitalismo globalizado choca-se com os limites naturais e as resistências ético-políticas, está sob ameaça de desintegração, pois duas fronteiras foram transgredidas: “um limite externo foi atingido, tanto com o esgotamento dos recursos – principalmente do recurso mais importante e o menos substituível: a água potável -, quanto com as mudanças irreversíveis do clima, a extinção das espécies naturais e o desaparecimento de paisagens. Mas o capitalismo também se dirige a um limite interno… a transformação do trabalho em valor está historicamente destinada ao esgotamento por causa das tecnologias que substituem o trabalho.” (60) A tecnê há de enterrar o velho vilão?

Dahmer Tecnê

Os catastrofistas encontram esperanças onde podem. É perdoável diante do trauma daquilo que vivenciaram assim que ousaram pôr as caras fora da Matrix midiática, para investigar o que de fato está sendo feito com o planeta atualmente. É de imensa valia a obra, nascendo tão belamente diante de nossos olhos, de pessoas como Arundhati Roy, Raj Patel, Naomi Klein, Vandana Shiva, dentre tantos outros, que corajosamente ilustram-nos sobre nosso habitat e nossa responsabilidade, ajudando-nos também a confrontar o monstro em si, monstro dentro de cada um, esta tarefa que muitos pensadores da esquerda radical anti-capitalista às vezes praticam de modo débil e esquivo… Não basta dizer que é tudo culpa de uma conspiração de ricos, uma corja de canalhas endinheirados, que gerem um desastroso cassino capitalismo: precisamos confrontar, cada um de nós, dentro de nós mesmos, o quanto somos cúmplices do capitalismo que às vezes, da boca pra fora, repudiamos.

Se ando julgando que a obra de Anselm Jappe merece ser lida, é um pouco pelo efeito de gerar no leitor uma sensação de repúdio refletido ao capitalismo. Jappe defende uma “lucidez” que nos faça ir além do mero “engrossar o coro dos populistas de toda cor que se limitam a resmungar contra os bancos, as finanças e as bolsas… Esse populismo desembocará facilmente na caça ‘aos inimigos do povo’, na parte de baixo (os imigrantes) e na parte de cima (os especuladores), no caso da França, evitando toda e qualquer crítica dirigida contra as verdadeiras bases do capitalismo, que aparecem, ao contrário, como sinônimo da civilização a ser salva: o trabalho, o dinheiro, a mercadoria, o capital, o Estado.” (pg. 63)

Parece vigorar uma espécie de desilusão crônica no seio da intelectualidade crítica. Hoje em dia Zizek, Badiou e Negri, três dos principais representantes de uma filosofia crítica à supremacia capitalista, não me parecem exatamente otimistas quanto ao futuro, já que é “mais fácil imaginar o fim do planeta do que imaginar o fim do capitalismo” (Zizek). Mas será que não se trata de algo mais do que imaginar fim do capitalismo? Não se trata sobretudo de emancipar os corpos e mentes dos seres humanos da escravidão em que insistem em viver, comprando fielmente as mercadorias e as ideologias das mãos daqueles que são os coveiros do nosso futuro“Efetivamente, dá vertigem encarar o fim de um modo de vida em que todos estamos afundados até o pescoço”, escreve Anselm Jappe, e “que agora está naufragando sem que ninguém tenha decidido, deixando-nos numa paisagem de ruínas.” (p. 63)

Bem vindo à wasteland do real. O lugar da distopia realizada, onde a utopia (eco-socialista, por exemplo) só brilha por sua ausência. Ou melhor: as utopias anti-capitalistas parecem queimar em fogo baixo, enquanto proliferam-se os reformismos e os green capitalisms, pregando que o capitalismo seria eternamente corrigível, como se tivéssemos que nos resignar ao melhorismo gradativo do que aí está.

O fundamentalismo de mercado pôde impor em boa parte do globo terrestre as suas maquinarias de produção e consumo, mas ainda não colonizou totalmente nossos corações e mentes, disso Jappe bem sabe. O outro mundo possível frequentemente acompanha os catastrofistas em sua atribuladas jornadas teóricas e práticas – e a tarefa do intelectual jamais pode ser somente denuncista e nada propositiva. “Para além das rebeliões abertas, há infinitos atos cotidianos que dão o testemunho da resistência, frequentemente muda, que quase todos os homens, num momento ou em outro de seu dia, opõem à utopia invivível de uma sociedade inteiramente capitalista. (…) Talvez seja uma ‘utopia ingênua’ crer que a humanidade possa viver sem a propriedade privada e as hierarquias, a dominação e a exploração; é seguramente uma utopia terrível crer que a vida possa continuar a se basear sempre no dinheiro e na mercadoria, no vender e no comprar, quando as consequências disso já estão debaixo dos nossos narizes.” (JAPPE, pg. 202)

Walter Benjamin

“Marx diz que as revoluções são as locomotivas da história. Mas talvez não seja bem assim. É possível que as revoluções sejam, para a humanidade que viaja nesse trem, o gesto de puxar o freio de emergência.” (BENJAMIN, W. Notes préparatoire pour les thèses sur le concept d’histoire. Paris: Gallimard, Vol. III, p. 442)

* * * * *

Este post dialoga com o livro “CRÉDITO À MORTE”, de Anselm Jappe. Editora Hedra/SP, 2013.

200 CLÁSSICOS DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA NAS DÉCADAS DE 1960, 1970 E 1980 (EM ORDEM CRONOLÓGICA) [PARTE I]

MPB

200 CLÁSSICOS DA MÚSICA BRASILEIRA
NAS DÉCADAS DE 1960, 1970 E 1980
(EM ORDEM CRONOLÓGICA)

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Uma das maravilhas que a Internet nos proporciona é o acesso a uma imensa biblioteca musical. Este baú de tesouros – não somente guardados mas compartilhados – está acessível a qualquer um que se conecte à grande rede, mas as pepitas estão dispersas por toda parte e a compilação da fina flor deste gigante acervo exige todo um trampo de garimpagem e coleta. Na intenção de organizar um pouco todo este vasto material musical, A Casa de Vidro apresenta aqui uma seleção com 200 álbuns da MPB nas décadas de 60, 70 e 80, todos eles disponíveis para audição na íntegra no YouTube. Obras cruciais na história cultural brasileira estão aí reunidas para degustação livre. A lista vai ser expandida constantemente e as sugestões de vocês são muito bem-vindas. Subam o volume e boa viagem!

Tem João Gilberto, Jorge Ben, Nara Leão, Sambalanço Trio, Chico Buarque, Vinicius de Moraes e Baden Powell, Tom Jobim, Caetano Veloso, Gal Costa, Os Mutantes, Paulinho da Viola, Tom Zé, Ronnie Von, Egberto Gismonti, Erasmo Carlos, Som Imaginário, Rita Lee, Dom Salvador e a Abolição, Clube da Esquina, Tim Maia, Eumir Deodato, Novos Baianos, Jards Macalé, Clube da Esquina, Secos e Molhados, Gilberto Gil, Luiz Melodia, Walter Franco, Luiz Bonfá, Marcos Valle, Rogério Duprat, Arnaldo Baptista, Hermeto Pascoal, Lula Côrtez e Zé Ramalho, Adoniran Barbosa, Cartola, Clara Nunes, Belchior, Raul Seixas, Elis Regina, Sergio Sampaio, Taiguara, Odair José, Banda Black Rio, Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Paulo Vanzolini, Titãs, Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor, Legião Urbana… e muito mais!

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Acesse o post 2 com outros 100 álbuns!

  1. JOÃO GILBERTO
    O Amor, o Sorriso e a Flor (1960)
  2. BOSSA NOVA AT CARNEGIE HALL (1962)
  3. TAMBA TRIO (1962)
  4. JORGE BEN
    Samba Esquema Novo (1963)
  5. STAN GETZ E JOÃO GILBERTO (1963)
  6. SAMBALANÇO TRIO (1964)
  7. FLORA PURIM
    Flora é M.P.M. (1964)
  8. LENNIE DALE E SAMBALANÇO TRIO (1965)
  9. BADEN POWELL,
    AfroSambas (1966)
  10. BADEN POWELL, VINICIUS DE MORAES, QUARTETO EM CY
    Afrosambas (1966)
  11. CHICO BUARQUE (1966)
  12. CHICO BUARQUE
    Vol. 2 (1967)
  13. TOM JOBIM
    Wave (1967)
  14. CAETANO VELOSO E GAL COSTA
    Domingou (1967)
  15. QUARTETO NOVO (1967)
  16. OS MUTANTES (1968)
  17. GIL, CAÊ, DUPRAT, OS MUTANTES & CIA
    Tropicalia ou Panis et Circencis (1968)
  18. CHICO BUARQUE
    Vol. 3 (1968)
  19. TOM ZÉ
    Grande Liquidação (1968)
  20. PEDRO SANTOS KRISHNANDA (1968)
  21. RONNIE VON (1968)
  22. RONNIE VON
    A Misteriosa Luta Do Reino De Parassempre Contra O Império Nuncamais (1969)
  23. JORGE BEN (1969)
  24. GAL COSTA
    Gal (1969)
  25. EGBERTO GISMONTI (1969)
  26. OS MUTANTES
    II (1969)
  27. OS MUTANTES
    A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (1970)
  28. TOM JOBIM
    Tide (1970)
  29. ERASMO CARLOS
    E Os Tremendões (1970)
  30. SOM IMAGINÁRIO (1970)
  31. CHICO BUARQUE,
    Construção (1971)
  32. DOM SALVADOR E A ABOLIÇÃO,
    Som, Sangue E Raça (1971)
  33. AIRTO MOREIRA
    Seeds on the Ground (1971)
  34. RAUL SEIXAS, SERGIO SAMPAIO, EDY STAR E MIRIAM BATUCADA
    Sociedade da Grã Ordem Kavernista (1971)
  35. CAETANO VELOSO,
    Transa (1972)
  36. EUMIR DEODATO
    Also Sprach Zarathustra (1972)
  37. TIM MAIA (1972)
  38. JORGE MAUTNER,
    Para Iluminar a Cidade (1972)
  39. NOVOS BAIANOS
    Acabou Chorare (1972)
  40. ALCEU VALENÇA E GERALDO AZEVEDO
    Quadrafônico (1972)
  41. QUINTETO VIOLADO (1972)
  42. JARDS MACALÉ (1972)
  43. LÔ BORGES (1972)
  44. RAUL SEIXAS
    Krig Ha, Bandolo! (1973)
  45. SECOS E MOLHADOS (1973)
  46. GILBERTO GIL
    Ao Vivo na Poli USP (1973)
  47. NOVOS BAIANOS F.C. (1973)
  48. SOM IMAGINÁRIO
    Matança do Porco (1973)
  49. TOM ZÉ
    Todos os Olhos (1973)
  50. LUIZ MELODIA
    Pérola Negra (1973)
  51. GUILHERME LAMOUNIER (1973)
  52. WALTER FRANCO
    Ou Não (1973)
  53.  SERGIO SAMPAIO
    Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua (1973)
  54. RAUL SEIXAS
    Gita (1974)
  55. JOÃO DONATO E EUMIR DEODATO
    Donato / Deodato (1973)
  56. MARCOS VALLE E AZYMUTH
    Previsão do Tempo (1973)
  57. O PESO
    Em Busca do Tempo Perdido (1974)
  58. TIM MAIA,
    Racional (1974)
  59. WILSON SIMONAL
    Vinil Mexicano da Philips (1974)
  60. ARNALDO BAPTISTA
    Lóki? (1974)
  61. ROGÉRIO DUPRAT
    Brasil com S (1974)
  62. O BANQUETE DOS MENDIGOS (1974)
  63. RITA LEE & TUTTI FRUTTI
    Fruto Proibido (1975)
  64. EMÍLIO SANTIAGO (1975)
  65. LULA CÔRTES E ZÉ RAMALHO
    Paêbirú (1975)
  66. O TERÇO,
    Criaturas da Noite (1975)
  67. DI MELO (1975)
  68. ADONIRAN BARBOSA (1975)
  69. EDUARDO GUDIN, MÁRCIA E PAULO CÉSAR PINHEIRO
    O Importante é que Nossa Emoção Sobreviva (1975-1976)
  70. RAUL SEIXAS,
    Eu Nasci Há 10 Mil Anos Atrás (1976)
  71. BELCHIOR
    Alucinação (1976)
  72. TOM ZÉ
    Estudando o Samba (1976)
  73. CARTOLA (1976)
  74. DOCES BÁRBAROS (1976)
  75. ELIS REGINA
    Falso Brilhante (1976)
  76. CHICO BUARQUE
    Meu Caro Amigo (1976)
  77. SERGIO SAMPAIO
    Tem Que Acontecer (1976)
  78. CARTOLA (1976)
  79. TAIGUARA
    Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara (1976)
  80. ALCEU VALENÇA,
    Espelho Cristalino (1977)
  81. HERMETO PASCOAL,
    Slaves Mass (1977)
  82. MILTON NASCIMENTO E CLUBE DA ESQUINA,
    II (1978)
  83. CLARA NUNES,
    Guerreira (1978)
  84. TOM ZÉ
    Correio da Estação do Brás (1978)
  85. BANDA BLACK RIO (1978)
  86. HERMETO PASCOAL,
    Zabumbê-bum-á (1979)
  87. CÁTIA DE FRANÇA,
    20 Palavras ao Redor do Sol
  88. MPB4
    Bons Tempos, Hein?!?
  89. ITAMAR ASSUMPÇÃO, 
    Beleléu, Leléu, Eu (1980)
  90. EGBERTO GISMONTI
    Circense (1980)
  91. ARRIGO BARNABÉ
    Clara Crocodilo (1980)
  92. PAULO VANZOLINI
    Por Ele Mesmo (1981)
  93. EDU LOBO E CHICO BUARQUE
    O Grande Circo Místico (1982)
  94. ARNALDO BAPTISTA
    Singin’ Alone (1982)
  95. PARALAMAS DO SUCESSO
    O Passo do Lui (1984)
  96. ULTRAGE A RIGOR
    Nós Vamos Invadir Sua Praia (1985)
  97. LEGIÃO URBANA
    Dois (1986)
  98. TITÃS
    Cabela Dinossauro (1986)
  99. PATIFE BAND
    Corredor Polonês (1987)
  100. LEGIÃO URBANA
    Quatro Estações (1989)

Acesse o post 2 com outros 100 álbuns!

Confira também:
Revista Rolling Stone Brasil elege 100 melhores álbuns da MPB

Coleta de Música Brasileira 19ª edição – Rodrigo Amarante, Tom Zé, Boogarins, Porcas Borboletas, Carne Doce, Mundo Livre S.A. e por aí vai…

NO CARDÁPIO:

01) TITÃS, “Estado Violência”
02) LEGIÃO URBANA, “Música Urbana II”
03) MUNDO LIVRE S.A., “A Cidade” (Chico Science)
04) TOM ZÉ, “Politicar”
05) RODRIGO AMARANTE, “Maná”
06) PORCAS BORBOLETAS, “Todo Mundo Tá Pensando Em Sexo”
07) BOOGARINS, “Lucifernandis”
08) CARNE DOCE, “Dignos”
09) CÁSSIA ELLER, “Na Cadência do Samba”
10) RAPHAEL RABELLO & DINO 7 CORDAS, “Conversa de Botequim”

* * * * *

“Em cima dos telhados
as antenas de TV
tocam música urbana,

Nas ruas os mendigos,
com esparadrapos podres,
cantam música urbana.

Motocicletas querendo atenção
às três da manhã
É só música urbana.

Os PMs armados
e as tropas de choque
vomitam música urbana.

E nas escolas as crianças
aprendem a repetir
a música urbana.

Nos bares os viciados
sempre tentam conseguir
a música urbana.

O vento forte, seco e sujo
em cantos de concreto
parece música urbana.

E a matilha de crianças sujas
no meio da rua –
música urbana…”

RENATO RUSSO

“Calar a Boca Nunca Mais!” – 22 canções políticas e de protesto da música brasileira (ouça as coletâneas…)

Saindo do forno mais duas novas mixtapes que agregam só música popular brasileira, de todos os estilos e várias épocas, numa salada-gororoba que vai do rap ao rock, do samba ao manguebeat, do indie à tropicália… Estas últimas coletâneas focam em músicas de protesto e de conteúdo político, sendo ótimas trilhas-sonoras para as mobilizações de massa e manifestações de rua que tomaram o Brasil em Junho e Julho de 2013. Suba o volume e embarque nessa!

CALAR A BOCA NUNCA MAIS!
(BRASILIANADA! 15ª EDIÇÃO)
Coletânea de música brasileira:
01) TOM ZÉ, “POVO NOVO”
02) BEZERRA DA SILVA, “PASTOR TRAMBIQUEIRO”
03) CHICO BUARQUE, “APESAR DE VOCÊ”
04) GABRIEL O PENSADOR, “ATÉ QUANDO?”
05) OTTO E LECI BRANDÃO, “VÍTIMAS DA SOCIEDADE”
06) RITA LEE & TUTTI FRUTTI, “COM A BOCA NO MUNDO”
07) FLICTS, “ASSIM CAMINHA O BUSÃO”
08) RAUL SEIXAS, “MOSCA NA SOPA”
09) TOM JOBIM, “O MORRO NÃO TEM VEZ”
10) GERALDO VANDRÉ, “PRA NÃO DIZER Q NÃO FALEI DE FLORES”
11) BELCHIOR, “A PALO SECO”
12) ITAMAR ASSUMPÇÃO, “Nego Dito”

http://8tracks.com/depredando/calar-a-boca-nunca-mais-brasilianada-15

01) EMICIDA – “Dedo na Ferida” (Ao Vivo)
02) LEGIÃO URBANA, “Mais do Mesmo”
03) RAUL SEIXAS, “Cidade de Cabeça Pra Baixo”
04) DOM SALVADOR & A ABOLIÇÃO, “Uma Vida”
05) WILSON DAS NEVES, “O Dia Em Que O Morro Descer e Não For Carnaval”
06) CRIOLO, “Não Existe Amor em SP” (Ao Vivo)
07) CURUMIN, “Guerreiro”
08) FILOMEDUSA, “Baixaria Blues”
09) EL EFECTO, “O encontro de Lampião com Eike Batista”
10) CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI, “Banditismo por Questão de Classe”

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Ouça mais de 50 coletâneas no nosso 8 Tracks!