O TEMPLO DO TEMPO – Sobre um dos grandes álbuns da música brasileira contemporânea: “Cordões Umbilicais”, de Flaira Ferro

“Eu sou o templo do tempo, o tempo acontece em mim”, canta Flaira Ferro em uma das mais belas canções de seu vigoroso álbum de estréia, Cordões Umbilicais (click para ouvir na íntegra o disco de 11 faixas que se estendem por 35 min; se preferir, faça o download).

Eis uma das obras mais magistrais da MPB nos últimos anos. Um disco que podemos habitar por meses e anos, como quem adentra um templo do tempo onde lá dentro podemos vivenciar o incrível poder da arte: ela transfigura a nossa consciência cotidiana, expandindo-a através das magias de todas as suas dinâmicas e fluxos:

“A gente não vê
Mas o ar está cheio de ondas
Um mundo invisível se mexe
E a gente nem se dá conta…

Por isso que olho pra dentro de mim
Buscando a força que existe no amor
Newton já disse em lei universal
Toda ação tem uma reação…”

Lacrando no desrecalque, Flaira segue o conselho de Gonzaguinha e vive a “cantar e cantar e cantar a beleza de ser uma eterna aprendiz”, criando ousadas expressões de empoderamento (individual e coletivo) através de motes como:

“Não tem coisa mais bonita
Nem coisa mais poderosa
Do que uma mulher que brilha
Do que uma mulher que goza…

Toda mulher que deseja
Acende a força erótica que excita a criação
Dê suporte à mulher forte
Quem sabe a gente muda a nossa sorte

Toda mulher que se toca
Instiga a auto estima
Estimula o botão
Mesmo que o mundo se choque
O clitóris é antídoto pra morte

Não me vem com tarja preta
Deixa livre a minha teta!

Cê tá maluco
Ou entorpecido
Pela falsa ideia
De dominação

Cê tá esquecido
Mulher sem libido
Não tem natureza
Vira papelão

Homem de armadura
Constrói prisão bélica
De postura fálica
Perde o coração

Homem de verdade
Enxerga beleza
Na mulher que é dona
Do próprio tesão
Na mulher que é dona
Do próprio não!”

Em sintonia fina com a complexidade da vida social contemporânea, Flaira Ferro também é uma mulher enraizada na ancestralidade. Uma visionária que põe o frevo em sinergia com a era da internet, que faz do folk uma ferramenta de demolição do palavrório do patriarcado, que bota de novo o mangue e seus beats no epicentro do cosmos.

Ela inunda de poesia e filosofia a nossa sempre inventiva e reinventiva MPB. Soma-se a Anelis Assumpção, Larissa Luz, Sara Não Tem Nome, Liniker, Maria Gadu, Tássia Reis, Bia Ferreira, Doralyce, Elza Soares, dentre outras musas, no epicentro deste fenômeno cultural de intensa maravilhosidade – a musicalidade das manas e minas brasileiras.

A Música Popular Brasileira renova-se através da práxis cultural desta cantora, compositora e dançarina que é Flaira Ferro. Ela compõe como quem compartilha sabedoria e com aconselha-se à superação de si. Trolla, delicado, com o ser humano, “bicho homem” que é esquisito, “armadilha de si mesmo”.

Avessa às açucaradas e lucrativas canções clichezentas de amor romântico banal, movidas a fórmulas vendáveis, Flaira sabe expressar melancolias, temores, fúrias, indignações. O colorido dos afetos que animam essas músicas é o que mais torna a arte de Flaira algo de tão impressionante potência.

Em uma comovente participação no TEDx Pernambuco, Flaira rememorou aspectos de sua trajetória biográfica e cantou sua linda canção “Me Curar de Mim” a capella. Quem não se comover com essa cantoria (e essa poesia de lirismo sofisticado) pode pegar na porta-de-saída o seu certificado de coração-de-pedra.

Essa mulher criativa e expressiva, repleta de promessa, maga das belezas múltiplas, falou assim sobre essa obra-prima do neocancioneiro: “Acredito que essa música ‘Me Curar de Mim’ não é mais minha. Ela não pertence mais a uma pessoa só. Eu me vejo muito mais como uma facilitadora de um sentimento que estava no inconsciente coletivo. Porque vivemos uma crise moral e espiritual muito grande. Há guerras por conta de religião, intolerâncias dentro do nosso próprio país. Acho que essa música é uma mensagem para que faça a gente olhar além do nosso umbigo, do alto da nossa responsabilidade” (Correio Brasiliense).

Na canção, esta jovem e sábia artista que floresce no cenário cultural de Pernambuco dá a lição, preciosa escola: “Para me encher do que importa/ Preciso me esvaziar/ Minhas feras encarar/ Me reconhecer hipócrita/ (…) Mas se eu não tiver coragem/ Pra enfrentar os meus defeitos/ De que forma, de que jeito,/ Eu vou me curar de mim?”

SIGA VIAGEM – EXPERENCIE FLAIRA FERRO:

ME CURAR DE MIMPor Flaira Ferro

“Sou a maldade em crise
Tendo que reconhecer
As fraquezas de um lado
Que nem todo mundo vê

Fiz em mim uma faxina e
Encontrei no meu umbigo
O meu próprio inimigo
Que adoece na rotina

Eu quero me curar de mim

O ser humano é esquisito
Armadilha de si mesmo
Fala de amor bonito
E aponta o erro alheio

Vim ao mundo em um só corpo
Esse de um metro e sessenta
Devo a ele estar atenta
Não posso mudar o outro

Eu quero me curar de mim

Vou pequena e pianinho
Fazer minhas orações
Eu me rendo da vaidade
Que destrói as relações

Pra me encher do que importa
Preciso me esvaziar
Minhas feras encarar
Me reconhecer hipócrita

Sou má, sou mentirosa
Vaidosa e invejosa
Sou mesquinha, grão de areia
Boba e preconceituosa

Sou carente, amostrada
Dou sorrisos, sou corrupta
Malandra, fofoqueira
Moralista, interesseira

E dói, dói, dói me expor assim
Dói, dói, dói, despir-se assim

Mas se eu não tiver coragem
Pra enfrentar os meus defeitos
De que forma, de que jeito
Eu vou me curar de mim?

Se é que essa cura há de existir
Não sei… só sei que a busco em mim
Só sei que a busco…
Me curar de mim.”

Flaira Ferro


Do álbum “Cordões Umbilicais”

VEJA TAMBÉM:

“Tristeza mora comigo
Por causa da solidão
Eu pareço andorinha
Querendo fazer verão
Uma gota de água doce
Querendo ser ribeirão
Uma semente caída
Querendo ser plantação
Mas olhando pro deserto
Eu sou apenas um grão de areia…
 
Eu sou um peixe do cardume
No mar da imensidão
Eu sou uma flor do Cerrado
Que nasceu fora da estação
Quero ser bom capoeira
E jogar com o coração
Mas olhando pro deserto
Eu sou apenas um grão de areia…
 
Queria ser o luar
Iluminando o meu sertão
Ou então ser uma estrela
De qualquer constelação
Vou levando minha vida
Com o meu pandeiro na mão
Mas olhando pro deserto

Eu sou apenas um grão…”

A POESIA EFERVESCE EM GOIÂNIA – Um minidoc A Casa de Vidro (2018, 9 min)

A POESIA EFERVESCE EM GOIÂNIA – Saiba mais sobre o atual cenário de poesia, literatura e artes integradas neste documentário curta-metragem realizado por A Casa de Vidro (2018, 9 min). Um filme de Eduardo Carli de Moraes.

Ultimamente, novas iniciativas vem contribuindo pra aumentar as doses de lirismo e criatividade verbal que circulam nas veias da capital de Goiás. Para sondar estas efervescências poéticas, ontem documentamos alguns destes agitos em vídeos filmados com esta trupe bacaníssima: Mazinho SouzaRaissa PagaldayRosa Neves e Gabi Rodrigues, galera que vem participando ativamente deste cenário.

Este curta-metragem, de 9 minutos e pouco, ainda serve para contrabandear versos do Bruno Brogio (declamado por Mazinho), de Maha Iza (declamada por Raissa), de  Paulo Manoel, de Rosa Neves, de Pio Vargas.

COM CATUPIRY

Já se pensou que o homem comum poderia
mudar tudo
que o homem comum não é um
é um milhão
e que da força dessa união se formaria uma
muralha
com corpos de sonho e margarida

mas o homem comum tá distraído
pela bola rolando
a novela passando
o pastor que não é santo
e de vez em quando
pela própria vida
os amores, os terrores
a dificuldade, a delícia
a falta de perspectiva
e de um salário justo

o homem comum tá preocupado demais pra pensar
o homem comum gosta mesmo é de coxinha de frango.

Bruno Brogio

Já pra trilha sonora convidei meu queridíssimo Sergio Moraes Sampaio, com “Cada Lugar na Sua Coisa”:

Um livro de poesia na gaveta não adianta nada
Lugar de poesia na calçada
Lugar de quadro é na exposição
Lugar de música é no rádio

Ator se vê no palco e na televisão
O peixe é no mar
Lugar de samba enredo é no asfalto
Lugar de samba enredo é no asfalto

Aonde vai o pé arrasta o salto,
Lugar de samba enredo é no asfato
Aonde a pé vai se gasta a sola
Lugar de samba enredo é na escola

A Poesia, pra quem está antenado ao que vem rolando no cenário artístico underground, vem marcando presença cada vez mais forte em Goiânia, tomando conta de festivais como o já tradicional Juriti – Festival de Música e Poesia Encenada e o novo-em-folha Goiânia Clandestina (que já realizou 2 edições e ainda realizará mais 3 até Dezembro).

Espaços como Evoé Café com LivrosLivraria Palavrear e a nova Casa Liberté são alguns dos points onde você corre o sério de risco de ser atropelado, de repente, por um caminhão de poesia. Apesar dos percalços, a Poesia mostra-se resiliente em propostas culturais louváveis como o Sarau das Minas GO, organizado pela Carol Schmid, ou a Feira E-cêntrica da Larissa Mundim & Rico Lopes.

Em saraus e slams, em feiras de economia alternativa ou em batalhas de MCs, a Poesia, vibrante e multiforme, toma conta dos espaços e praças da cidade. Está colada nos lambes pelos muros, gritando nos pixos, multicor e psicodélica na poesia visual dos muros (como expusemos no filme Gastrite, lindo trampo dirigido pelo Hugo Brandão, uma obra essencial para pensar o presente e o futuro das poéticas visuais na nossa urbe).

A Poesia, indomável, vem circulando também em zines punk (que o digam Matheus Germano e Gil Célio) e em antologias de poetas goianos, como é o caso “Antologia Clandestina” – que já esgotou suas 500 cópias iniciais e está com inscrições abertas para a 2ª Edição.

Ffiquem atentos, escritores locais: as inscrições encerram em 03 de Outubro; envie já seus versos para

curadoriagoianiaclandestina@gmail.com

e corra o risco de ir parar na coletânea mais chocantemente poética que será lançada neste ano cá na Goiânia véia do Cerrado.

Na antologia #1, 22 poetas inéditos dividem as páginas deste poderoso artefato literário clandestino. É o caso de poetas como Paulo Manoel, que manda versos direto no queixo, nos levando quase a um nocaute estético, como estes:

AÇÕES AFIRMATIVAS

Quando não tem ninguém olhando
Os três malucos das três raças
Saem da Praça, sobem a Goiás
E dão uma surra no bandeirante

A Poesia, irreverente e incansável, está também nos livros publicados recentemente por Walacy Neto, pela Nega Lilu Editora, pelo Adérito Schneider e a galera do Cidade Sombria

E não poderíamos deixar de mencionar as letras de música, em que a Poesia também hoje efervesce lindamente no caldeirão da arte goianiense. A Poesia, sempre tornando a vida mais doce e tragável apesar de suas muitas amarguras, vem usando como seu veículo as canções maravilhosas de Salma JôDiego De MoraesKleuber Divino GarcezDiego W’anderCamilo LuizaAdriel ViníciusVitor Hugo LemesFlávia Carolina AlmeidaPaula de Paula, Dinho Fernando Almeida FilhoBruno BrogioJordana LuzNegra, Carlos BrandãoNina SolderaA Jay Ajhota, dentre muitos outros.

Poucas cenas musicais alternativas no Brasilk atual, creio eu, possuem tanto alimento a proporcionar aos que tem fome de poesia, ânsia de beleza, sede de lirismo, vontade de criatividade e colaboratividade. É fenomenal que coexistam no mesmo-espaço tempo sócio-cultural estes fenômenos, sincrônicos e complementares, que fazem de Goiânia um dos maiores centros latino-americanos para a música alternativa: Boogarins, Carne DoceDiego MascateChá de GimAveEva, @CambrianaPó de SerBanda, Shotgun WivesTerra CabulaBanda Mundhumano etc. Porra, QUE CENA!

É poesia pra dar com o pau. É poesia que ameaça em breve pôr em estado de delírio lírico toda essa metrópole. E não tenham medo de overdose… pois de Poesia em excesso nunca se morre.

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P.S. – Evocações de Pio Vargas (fantasma de poeta defunto-vivo, pretérito-presente), para quem “o acaso é uma empresa para a qual tudo conspira”:

considerações necessárias

é preciso tirar a poesia da clausura dos concursos, das gaiolas do acaso, do exílio das gavetas, trazê-la para o sabor do consumo rápido e fácil, envolvê-la de popularidade, sem o vulgarismo perigoso do que é descartável, mas também sem a absurda pretensão do que se quer eterno.

poesia para fazer rir e refletir, evoluir e incomodar, propor e decompor. poesia para os botecos, para os gabinetes, para as praças, para os salões de festas, para os mocambos, para as favelas, estúdios, vídeo clipes e palanques.

poesia sem medo, poesia sem trauma, poesia-pão, poesia-sim, poesia-não. pois ia ousar um dia popularizar a poesia.

viva a poesia viva!”

https://acasadevidro.com/?s=Pio+Vargas

Pio Vargas (1964-1991)

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Aproveito o gancho e convido vocês a assistirem também meus outros filmes recentes:

“Afinando o Coro dos Descontentes”: PLAY >>> https://bit.ly/2NmELK9

“O Futuro nos Frutos: As Semeaduras do Encontro de Culturas”: PLAY >>> https://bit.ly/2pihvib.

Valeu a todos os artistas que estiveram colaborando e somando com meu trabalho. A gratidão não cabe em palavras. Sigamos adiante, contando com as benesses do Acaso, aquela empresa para a qual tudo conspira.

Por Eduardo Carli de Moraes / Goiânia, Setembro de 2018

LINDAS CANÇÕES DE PAULO CÉSAR PINHEIRO – Com Clara Nunes, MPB4, Joyce, Mariene de Castro, Teresa Cristina, dentre outros

Com Clara Nunes, Vinícius de Moraes e Paulo Gracindo no camarim do show Brasileiro Profissão Esperança. Canecão, RJ/ 1974


CANÇÕES ESSENCIAIS DE PAULO CÉSAR PINHEIRO – Com Clara Nunes, MPB4, Joyce, João Nogueira, Mariene de Castro, dentre outros

PESADELO – Paulo César Pinheiro / Maurício Tapajós

Quando o muro separa uma ponte une
Se a vingança encara o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta

E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí

Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente olha eu de novo

Perturbando a paz, exigindo troco
Vamos por aí eu e meu cachorro
Olha um verso, olha o outro
Olha o velho, olha o moço chegando
Que medo você tem de nós, olha aí

O muro caiu, olha a ponte
Da liberdade guardiã
O braço do Cristo, horizonte
Abraça o dia de amanhã

Olha aí…
Olha aí…
Olha aí…



Com Baden Powell na gravação do LP Paulo César Pinheiro, lançado em 1980 com participação dos parceiros.

LEIA EM ROLLING STONE: Paulo César Pinheiro, o letrista mais importante do Brasil (Nov / 2011)



JOGO DE ANGOLA – Paulo César Pinheiro

No tempo em que o negro
Chegava fechado em gaiola
Nasceu no Brasil
Quilombo e quilombola
E todo dia, negro fugia, juntando a curriola

De estalo, de açoite, de ponta de faca
E zunido de bala
Negro voltava pra Angola
No meio da senzala

E ao som do tambor primitivo
Berimbau, maracá e viola
Negro gritava “Abre ala!”
Vai ter jogo de Angola

Perna de brigar, camará
Perna de brigar, olê!
Ferro de furar, camará
Ferro de furar, olê!
Arma de atirar, camará
Arma de atirar, olê!

Dança guerreira
Corpo do negro é de mola
Na capoeira
Negro embola e desembola
E a dança que era uma festa para o dono da terra
Virou a principal defesa do negro na guerra
Pelo que se chamou libertação
E por toda força coragem, rebeldia
Louvado será todo dia
Esse povo cantar e lembrar o Jogo de Angola
Na escravidão do Brail

Ouça com Clara Nunes Guerreira:



CANTO DAS TRÊS RAÇAS – Paulo Cesar Pinheiro e Mauro Duarte

Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil

Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou

Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou

E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor

E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador
Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas
Como um soluçar de dor




Com Tom Jobim e Dori Caymmi, 1980

AS FORÇAS DA NATUREZA – Paulo César Pinheiro e João Nogueira

Quando o Sol
Se derramar em toda sua essência
Desafiando o poder da ciência
Pra combater o mal
E o mar
Com suas águas bravias
Levar consigo o pó dos nossos dias
Vai ser um bom sinal
Os palácios vão desabar
Sob a força de um temporal
E os ventos vão sufocar o barulho infernal
Os homens vão se rebelar
Dessa farsa descomunal
Vai voltar tudo ao seu lugar
Afinal

Vai resplandecer
Uma chuva de prata do céu vai descer, la la la
O esplendor da mata vai renascer
E o ar de novo vai ser natural
Vai florir
Cada grande cidade o mato vai cobrir, ô, ô
Das ruínas um novo povo vai surgir
E vai cantar afinal

As pragas e as ervas daninhas
As armas e os homens de mal
Vão desaparecer nas cinzas de um carnaval (2X)

Com João Nogueira e Joyce no show Paulo César Pinheiro 50 Anos. SESC Pompéia, São Paulo, 1999 (Foto Marco Aurélio Olímpio)



Toque de São Bento Grande de Angola – Paulo César Pinheiro

Nesse mundo camará
Mas não há, mas não há,
Mas não há quem me mande!
Eu só sei obedecer
Se mandar
Se mandar São Bento Grande
É de Angola, é de Angola, é de Angola
De Angola, De Angola, De Angola! 

Meu avô já foi escravo
Mas viveu com valentia
Descumpria a ordem dada
Agitava a escravaria
Vergalhão, corrente, tronco
Era quase todo dia
Quanto mais ele apanhava
Menos ele obedecia

Quando eu era ainda menino
O meu pai me disse um dia
A balança da justiça
Nunca pesa o que devia
Não me curvo à lei dos homens
A razão é quem me guia
Nem que seu avô mandasse
Eu não obedeceria

Esse mundo não tem dono
E quem me ensinou sabia
Se tivesse dono o mundo
Nele o dono moraria
Como é mundo sem dono
Não aceito hierarquia
Eu não mando nesse mundo
Nem no meu vai ter chefia!



SAGARANA

A ver, no em-sido
Pelos campos-claros: estórias
Se deu passado esse caso
Vivência é memória
Nos Gerais
A honra é-que-é que se apraz
Cada quão
Sabia sua distinção
Vai que foi sobre
Esse era-uma-vez, ‘sas passagens
Em beira-riacho
Morava o casal: personagens
Personagens, personagens
A mulher
Tinha o morenês que se quer
Verdeolhar
Dos verdes do verde invejar
Dentro lá deles
Diz que existia outro gerais
Quem o qual, dono seu
Esse era erroso, no à-ponto-de ser feliz demais
Ao que a vida, no bem e no mal dividida
Um dia ela dá o que faltou… ô, ô, ô…

É buriti, buritizais
É o batuque corrido dos gerais
O que aprendi, o que aprenderás
Que nas veredas por em-redor sagarana
Uma coisa e o alto bom-buriti
Outra coisa é o buritirana…

A pois que houve
No tempo das luas bonitas
Um moço êveio:
– Viola enfeitada de fitas
Vinha atrás
De uns dias para descanso e paz
Galardão:
– Mississo-redó: Falanfão
No-que: “-se abanque…”
Que ele deu nos óio o verdêjo
Foi se afogando
Pensou que foi mar, foi desejo…

Era ardor
Doidava de verde o verdor
E o rapaz quis logo querer os gerais
E a dona deles:
“-Que sim”, que ela disse verdeal
Quem o qual, dono seu
Vendo as olhâncias, no avôo virou bicho-animal:
– Cresceu nas facas:
– O moço ficou sem ser macho
E a moça ser verde ficou… ô, ô, ô…

É buriti, buritizais
É o batuque corrido dos gerais
O que aprendi, o que aprenderás
Que nas veredas por em-redor sagarana
Uma coisa e o alto bom-buriti
Outra coisa é o buritirana…
Quem quiser que cante outra
Mas à-moda dos gerais
Buriti: rei das veredas
Guimarães: buritizais!


ÁLBUNS COMPLETOS

POESIA MUSICADA: WALY SALOMÃO (1943 – 2003) por Caetano Veloso, Jards Macalé, João Bosco, Gilberto Gil, Adriana Calcanhoto, Lirinha, Paralamas do Sucesso, Luiz Melodia etc.

“Eu não sou um fóssil, sou um míssil.”
Waly Salomão

A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com) reúne neste espaço uma coletânea-amálgama com as canções que, através da história da música brasileira, desde o Tropicalismo até nossos dias, beberam na fonte fecunda que foi Waly Salomão (1943 – 2003). “Tenho fome de me tornar tudo o que não sou”, dizia Waly. Segundo Leminski, “essa fome se traduziu, com exuberância, num percurso vivencial e criativo em que Waly, se não chegou a se tornar tudo, foi muitas coisas” (Leminski, Veja, 10/8/1983).

Antonio Risério, tentando resumir o irresumível, arriscou: “pensamento agudo, língua afiada, voz de trovão, o baianárabe Waly é um happening ambulante. Um trickster. Uma verdadeira monta-russa de grossura e de finesse, indo das baixarias de botequim à suprema limpeza do construtivismo de Maliévitch.” Foi também Waly o “audaz navegante da Navilouca junto com Torquato Neto, mas tendo por timão as invenções de Oiticica”, como relembra Davi Arrigucci Jr, que destaca ainda: “o poeta retornava à raiz da modernidade e a Poe, evocando a concepção da poesia sob o signo de Proteu: da mudança ou da metamorfose, que ora assume e reafirma com força plena.” (p. 476).

Suba o volume, escancare os sentidos e boa jornada pelas Walycanções!

Seleção de canções por Eduardo Carli & Diego de Moraes



A FÁBRICA DO POEMA
Waly Salomão & Adriana Calcanhotto

In memoriam Lina Bo Bardi (1914-1992)

Sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite da pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.
sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema)

pois a questão chave é:
sob que máscara retornará?

OUÇA:

Por Lirinha (Cordel do Fogo Encantado)

Por Adriana Calcanhotto



MUSA CABOCLA
Waly Salomão e Gilberto Gil

Uirapuru canta no seio da mata
Papagaio nenhum solta um pio
Sereia canta sentada na pedra
Marinheiro tonto medra pelo mar

Sou pau de resposta, gibóia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela

Coração pipoca na chapa do braseiro
Sou baunilha, sou lenha que queima
Que queima na porta do formigueiro
E ouriça o pelo do tamanduá

Mãe matriz da fogosa palavra cantada
Geratriz da canção popular desvairada
Nota mágica no tom mais alto, afinada

Sou pau de resposta, jibóia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela




ALTEZA
Waly Salomão e Caetano Veloso

Quando meu homem foi embora
Soprou aos quatro ventos um recado
Que meu trono era manchado
E meu reino esfiapado
Sou uma rainha que voluntariamente
Abdiquei cetro e coroa
E que me entrego e me dou
Inteiramente ao que sou
A vida nômade que no meu sangue ecoa
Abro a porta do carro fissurada
Toma-me ao mundo cigano
E sou puxada por um torvelinho
Abraça a todos os lugares
Chamam por mim os bares poeirentos
E eu espreito da calçada
Se meu amor bebe por lá
Como me atraem os colares de luzes
À beira do caminho
Errante, pego o volante
E faço nele o meu ninho
Pistas de meu homem
Aqui e ali rastreio
Parto pra súbitas, inéditas, paisagens.
Acendo alto o meu farol de milha
Em cada uma das cidades por que passo
Seu nome escuto na trilha
Aldeia da Ajuda, Viçosa
Porto Seguro, Guarapari, Prado
Itagi, Belmonte, Prado
Jequié, Trancoso, Prado
Meu homem no meu coração
Eu carrego com todo cuidado
Partiu sem me deixar nem caixa-postal, direção
Chego a um lugar
E ele já levantou a tenda
Meu Deus! Será que eu caí num laço
Caí numa armadilha, uma cilada
E que este amor que toda me espraiou
Não passou de uma lenda
Pois quando chego num lugar
Dali ele já levantou a tenda
A tenda

OUÇA COM BETHÂNIA:



TALISMÃ
Waly Salomão e Caetano Veloso

Minha boca saliva porque eu tenho fome
E essa fome é uma gula voraz que me traz cativa
Atrás do genuíno grão da alegria
Que destrói o tédio e restaura o sol

No coração do meu corpo um porta-jóia existe
Dentro dele um talismã sem par
Que anula o mesquinho, o feio e o triste
Mas que nunca resiste a quem bem o souber burilar

Sim, quem dentre todos vocês
Minha sorte quer comigo gozar?

Minha sede não é qualquer copo d’água que mata
Essa sede é uma sede que é sede do próprio mar
Essa sede é uma sede que só se desata
Se minha língua passeia sobre a pele bruta da areia

Sonho colher a flor da maré cheia vasta
Eu mergulho e não é ilusão, não, não é ilusão
Pois da flor de coral trago no colo a marca
Quando volto triunfante com a fronte coroada de sargaço e sal

Sim, quem dentre todos vocês
Minha sorte quer comigo gozar?
Sim, quem dentre todos vocês
Minha sorte quer comigo gozar?

OUÇA COM BETHÂNIA:



ASSALTARAM A GRAMÁTICA
de Waly Salomão, Musicada por Lulu Santos

Assaltaram a gramática
Assassinaram a lógica
Meteram poesia
na bagunça do dia a dia
Sequestraram a fonética
Violentaram a métrica
Meteram poesia
onde devia e não devia
Lá vem o poeta
com sua coroa de louro,
Agrião, pimentão, boldo
O poeta é a pimenta
do planeta!
(Malagueta!)

OUÇA COM PARALAMAS NO SUCESSO (Ao vivo no Rock in Rio 1985)





MAL SECRETO
Waly Salomão e Jards Macalé

Não choro,
Meu segredo é que sou rapaz esforçado,
Fico parado, calado, quieto,
Não corro, não choro, não converso,
Massacro meu medo,
Mascaro minha dor,
Já sei sofrer.
Não preciso de gente que me oriente,
Se você me pergunta
Como vai?
Respondo sempre igual,
Tudo legal,
Mas quando você vai embora,
Movo meu rosto no espelho,
Minha alma chora.
Vejo o rio de janeiro
Comovo, não salvo, não mudo
Meu sujo olho vermelho,
Não fico calado, não fico parado, não fico quieto,
Corro, choro, converso,
E tudo mais jogo num verso
Intitulado
Mal secreto.

OUÇA COM JARDS E FREJAT

OUÇA COM WALY E LUIZ MELODIA



REAL GRANDEZA
Álbum de Jards Macalé: As parcerias com Waly Salomão

1 – 00:00 – Olho de Lince; 2 – 04:20 – Rua Real Grandeza; 3 – 07:30 – Senhor dos Sábados; 4 – 10:38 – Anjo Exterminado; 5 – 13:53 – Dona de Castelo; 6 – 17:20 – Vapor Barato; 7 – 21:52 – Mal Secreto; 8 – 25:40 – Negra Melodia; 9 – 29:59 – Revendo Amigos; 10 – 34:51 – Berceuse Crioulle; 11 – 38:09 – Pontos de Luz.



VAPOR BARATO
Waly Salomão e Jards Macalé

Sim
Eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu não acredito mais em você

Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general
Cheio de anéis
Eu vou descendo por todas as ruas
Eu vou tomar aquele velho navio
Eu vou tomar aquele velho navio
Aquele velho navio

Eu não preciso de muito dinheiro,
Graças a Deus
E não me importa, e não me importa não

Oh minha honey baby, baby, baby
Honey baby

Sim
Eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu estou indo embora

Talvez eu volte
Um dia eu volto, quem sabe
Mas eu preciso
Eu preciso esquecê-la

A minha grande
A minha pequena
A minha imensa obsessão
A minha grande obsessão

Oh minha honey baby, baby, baby,
Honey baby

OUÇA COM O RAPPA:



ANJO EXTERMINADO
Waly e Jards

Ouça com Adriana e Jards



ZONA DE FRONTEIRA
Waly Salomão, Antonio Cícero e João Bosco

Rei
Eu sei que sou
Sempre fui
Sempre serei
Oba
De um continente por se descobrir

Alguns sinais
Estão aí
Sempre a brotar
Do ar
De um território que está por explodir
Sim
Mas é preciso ser sutil
Pois justo na terra de ninguém
Sucumbe um velho paraíso
Sim, bem em cima do barril
Exato na zona de fronteira
Eu improviso o brasil.
Rei
Eu sei que sou
Sempre fui
Sempre serei
Oba
De um continente por se descobrir

Alguns sinais
Estão aí
Sempre a brotar
Do ar
De um território que está por explodir
E
Minha cabeça voa assim
Acima de todas as montanhas e abismos
Que há no país
Mas algo chama a atenção
Ninguém jamais canta duas vezes uma mesma canção.

Do álbum Zona de Fronteiraque inclui 12 faixas, a maioria delas parcerias entre Waly, Bosco e Cícero.
Ouça mais uma canção deste disco abaixo:



HOLOFOTES
Waly Salomão, Antonio Cícero e João Bosco

Dias sem carinho
Só que não me desespero:
Rango alumínio
Ar, pedra, carvão e ferro.
Eu lhe ofereço
Essas coisas que enumero:
Quando fantasio
É quando sou mais sincero
Desde o fim da nossa história
Eu já segui navios
Aviões e holofotes
Pela noite afora.
Me fissurarm tantos signos
E selvas, portos, places,
Línguas, sexos, olhos
De amazonas que inventei.
Eis a Babilônia, amor,
E eis Babel aqui:
Algo da insônia
Do seu sonho antigo em mim.
Eis aqui
O meu presente
De navios
E aviões
Holofotes
Noites afora
E fissuras
E invenções:
Tudo isso
É pra queimar-se
Combustível
Pra se gastar
O carvão
O desespero
O alumínio
E o coração

OUÇA:



SALOMÃO, Waly.  Poesia Total.  São Paulo: Companhia das Letras, 2014.  549 p.  13,5×21 cm.   ISBN  978-85-359-2400-8   Capa e projeto gráfico: Elisa von Randow.  Foto da capa: Marcia Ramalho.  Antologia com toda a obra poética do autor, em ordem cronológica. Inclui também uma fortuna crítica ao final. COMPRAR LIVRO NA LIVRARIA A CASA DE VIDRO.

SINOPSE – Waly Salomão foi uma das figuras mais fecundas e heterogêneas da vanguarda brasileira. Não é à toa que Caetano Veloso, em música dedicada a ele, diz: “tua marca sobre a terra resplandece […] e o brilho não é pequeno” (ouça abaixo).  Baiano, filho de sírio com sertaneja, Waly foi ponta de lança de uma geração de poetas que — num movimento de resistência à censura — contrariaram os princípios formais da tradição e pensaram a produção literária a partir de sua articulação com as outras artes, o que contribuiu para sua escrita tão permeável às diversas manifestações do inquieto cenário cultural no Brasil das décadas de 1970 e 1980. Seus versos continuaram se reinventando ao longo dos anos 1990 e 2000, e consolidaram seu papel de poeta múltiplo em livros como Algaravias, lançado em 1996.  Poesia Total reúne pela primeira vez a obra poética completa de Waly Salomão, desde Me segura que eu vou dar um troço, de 1972, até Pescados vivos, de 2004. O volume traz ainda uma seção de canções inéditas em livro, além de apêndice com os mais relevantes textos sobre sua obra, assinados por nomes como Antonio Cícero, Francisco Alvim e Davi Arrigucci Jr.  Em Gigolô de Bibelôs, seu segundo livro, o seguinte verso ecoa: “tenho fome de me tornar em tudo que não sou”. Tal desejo de abolir fronteiras e de confronto com os limites — entre o eu e o outro, entre a prosa e a lírica, entre a arte e a vida — é uma das principais marcas da obra de Waly Salomão. Poesia total é uma viagem sem volta: um “processo incessante de buscas poéticas”, como disse o próprio autor sobre seu trabalho poético-visual, os Babilaques.



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PATTI SMITH: Discografia completa de 1975 a 2012 (“There’s a million membranes to break through…”)

pattishoulder

PATTI SMITH
Discografia completa de 1975 a 2012:
http://bit.ly/1lFmtzp (torrent, 320kps, 2.6 gb)

1975 – Horses [30th Anniversary Legacy Edition] 2 Disc
1976 – Radio Ethiopia
1978 – Easter
1979 – Wave
1988 – Dream Of Life
1995 – Paths That Cross – 2 Disc
1996 – Divine Intervention
1996 – Gone Again
1997 – Peace And Noise
2000 – Gung Ho
2002 – Land – Best Of 1975 To 2002 – 2 Disc
2004 – Trampin
2007 – Twelve
2011 – Exodus – Live 1978
2012 – Banga

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