PSICOSES CORPORATIVAS NA ERA DOS SUPERPORCOS: O clash entre Carnivorismo Lucrativo e Libertação Animal no filme “Okja” (2017), do cineasta sulcoreano Bong Joon Ho

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

Na era da bioengenharia genética e das corporações psicopatas, a ideologia carnista prossegue dominando mentes e estômagos com uma força descomunal e efeitos nefastos que incidem sobre nós e sobre as futuras gerações. O que é extremamente preocupante diante de uma crise climática planetária que coloca em chamas nossa casa comum (como vem denunciando Greta Thunberg). Enquanto isso, centenas de milhões de humanos continuam a devorar seus hambúrgueres na inconsciência dos alienados que não sabem nem querem saber sobre a pegada ecológica que sua predileção por uma dieta carnívora acarreta.

Se o cinema de não-ficção já soou muitos alarmes sobre esta grave situação através de obras como Cowspiracy, Meat the Truth, Terráqueos – EarthlingsFood Inc., Ser Tão Velho Cerrado, dentre outros, também o cinema de ficção mostrou serviço com Okja (2017), fábula fílmica forjada pelo cineasta sul-coreano Bong Joon Ho – vencedor da Palma de Ouro em Cannes com seu filme mais recente, Parasita (2019).

Bem-vindos à era dos Superporcos: criaturas fabricadas em laboratório pela corporação Mirando pra proporcionar aos consumidores os hot dogs mais baratos do pedaço (o imperativo deste agrobiz é que os animais geneticamente modificados tenham um sabor suculento – “they need to taste fucking good”, na expressão da CEO da empresa). Por seu tamanho gigante, mais parecidos com hipopótamos (ou com Dumbo, recentemente reativado em filme de Tim Burton), os Superporcos são organismos geneticamente modificados (OGMs) destinados a virarem carne barata produzida em massa.

Os Superporcos são também o carro-chefe da estratégia corporativa da Mirando Corp. para limpar sua imagem pública trucidada por seus crimes socioambientais anteriores. Corroída em sua reputação por um passado em que comercializou napalm, devastou direitos trabalhistas e aniquilou equilíbrios ecossistêmicos com a fúria inconsequente de um psicopata que tivesse escapado da camisa-de-força, a Mirando agora aposta todas as suas forças num marketing enganador sobre os benefícios da produção em massa de carne-de-porco geneticamente modificada.

Nas propagandas, é claro, não se revela o grau de degradação e sofrimento em que vivem e morrem os animais nas fábricas-da-carne que mais se parecem com uma espécie de Auschwitz para animais. O grande escritor Isaac Bashevis Singer, laureado com o prêmio Nobel de Literatura, dizia que nós, humanos, seríamos culpados do crime de condenar os animais cujos cadáveres devoramos a um “eterno Treblinka”.

Em suas cenas finais, Okja é um dos mais pungentes retratos desta realidade. Após construir, no princípio do filme, uma relação afetuosa de alta intensidade entre o Superporco Okja e a menina sulcoreana Mikhta, a narrativa nos lança nas entranhas do pesadelo real que é a Indústria da Carne (factory farming). Segundo o célebre dito do vegetariano Paul McCartney, caso os matadouros (slaughterhouses) tivessem paredes de vidro, isso geraria um imenso surto de migração comportamental dos humanos rumo à dieta vegetariana.

Após abordar o fim da humanidade na magistral distopia Snowpiercer – Expresso do Amanhã (2013), em que o homo sapiens tornou-se uma espécie reduzida a alguns passageiros de um trem que se locomove através de uma nova Era Glacial, o cineasta sul-coreano Bong Joon Ho resolveu abordar este fator importantíssimo do nosso pesadelo climatizado (para emprestar a expressão de Henry Miller): nossa relação com os animais, em especial com aqueles que foram modificados geneticamente.

Nesta produção da Netflix, somos confrontados com uma ácida sátira de um mundo tresloucado pelo poderio excessivo de mega-corporações que põe o lucro acima de tudo e as salsichas acima de todos. Em Okja, não estamos mais diante do cenário apocalíptico de Snowpiercer, mas sim numa espécie de pré-apocalipse numa civilização ocidental-industrializada que mergulha fundo no irracionalismo do carnismo. Não escapará aos mais atentos a similaridade entre os nomes Monsanto (hoje fundida com a Bayer) e Mirando: no filme, o que está em questão é justamente a insanidade das corporações que tratam a Natureza como objeto de manipulação na conquista de capitais a concentrar nas contas bancárias de acionistas e banqueiros.

Em um cenário de carnivorismo globalizado, a demanda dos consumidores por carne é o motor de um processo que conduz ao pavoroso cenário distópico que o filme descreve: nos matadouros do futuro, mais parecidos com campos de concentração para Superporcos mutantes, as engrenagens sombrias que estão por trás do processo produtivo dos bacons salsichas são expostos na telona através de uma fábula cativante, didática, problematizadora e frequentemente horripilante.

Nossa tendência a conceber a psicose como uma neurose individual cai por terra quando começamos a estudar mais a fundo as forças dominantes de nosso tempo. Aí fica claro que não se trata de uma doença mental que aflige certos indivíduos, mas algo muito mais pervasivo e epidêmico: a psicopatia é aquilo que subjaz a estruturas sociais hoje hegemônicas. Psicopatas são as atitudes de boa parte das mega-corporações capitalistas que hoje infestam o mundo com suas mercadorias e que lançam ao meio ambiente os tóxicos e poluentes classificados, nas planilhas de CEOs e acionistas, como meras “externalidades”.

A tese da corporação-psicopata foi exposta com contundência em The Corporation – A Corporaçãodocumentário canadense lançado em 2003, dirigido por Mark AchbarJennifer Abbott, baseado no livro de Joel Bakan. Ali, as características básicas do psicopata, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) e seu Manual de Desordens Mentais (DSM-IV), são utilizadas para a análise das atitudes empresariais:

“If you did a psychological profile of the corporation, what would it look like? Self-interested, manipulative, avowedly asocial, self-aggrandising, unable to accept responsibility for its own actions or feel remorse – as a person, the corporation would probably qualify as a full-blown psychopath. (…) Behind its benevolent face, Joel Bakan argues, the most important institution of modern capitalism is a Frankenstein’s monster that has broken its chains and is now consuming the society that created it.” – The Guardian

No filme, a atriz Tilda Swinton encarna as duas irmãs gêmeas que disputam o domínio da empresa Mirando, tentando limpar a reputação corporativa manchada pelas atitudes psicopatas do pai das duas, um dos exemplares de psycho-CEO que Okja põe em tela. Um estudo recente do psicólogo australiano Nathan Brook revelou que 1 em cada 5 CEOs revelam traços de psicopatia, índice bem superior ao da população em geral (1 em 100). Outro estudo, da Universidade de Oxford, aponta que o presidente dos EUA, Donald Trump, ele próprio CEO da Trump Corporation, possui mais traços de psicopatia do que Adolf Hitler. No cinema e na teledramaturgia, o tela já ganhou representações icônicas em um filme como American Psycho – Psicopata Americano, de Mary Harron, e uma série como The Sopranos (HBO).

Em Okja, o que está em questão é o contraste brutal entre aquilo que a corporação apresenta de si através do marketing empresarial e aquilo que é sua prática cotidiana em suas fábricas (também conhecidas, vide caso Nike, como sweatshops). Há uma dissonância gigantesca entre a apresentação midiática e a realidade oculta. Oferece-se um showzinho espetaculoso e enganador aos consumidores desejosos de se empanturrar com carne suína barata, fazendo-os crer que não há nada de moralmente errado em financiar a indústria da carne e a ideologia do carnismo. A sátira do filme é certeira ao visar como alvos empresas e consumidores que lavam suas consciências na piscina suja do marketing mentiroso na tentativa de esquecer as brutalidades inerentes ao sistema de factory farming.

Em sua crítica para Omelete, Marcelo Hessel destacou:

Bong basicamente une Ocidente e Oriente ao referenciar Disney (o porco gigante geneticamente modificado tem as orelhas grandes e os olhos pequenos de Dumbo, e passa por altos e baixos emocionais que também evocam a animação clássica) e Hayao Miyazaki (em entrevistas a atriz Tilda Swinton conta que ela e Bong são fãs de Totoro, e mesmo as irmãs gêmeas que ela interpreta no filme são como uma releitura das irmãs de “A Viagem de Chihiro”), unidos por sua matriz fabular. Seu filme parte de uma premissa simples que não parece envelhecer: uma criança e seu bicho de estimação têm entre si a relação mais pura que pode haver num mundo onde deixar a infância significa perder a inocência. “Tirando ela e Okja todos os outros personagens são estúpidos”, brinca Bong.

(…) Nessa oscilação entre a caricatura e a gravidade (quando os ecoterroristas de “Okja” apanham da polícia, por exemplo, a câmera lenta tem ao mesmo tempo um efeito lúdico e agravante), ele encontra um meio termo que aos poucos se expande, e é por onde sua visão de mundo transita. Assim como em “O Expresso do Amanhã”, o filme anterior de Bong e o primeiro falado em inglês, esse meio termo inequivocamente toma a forma da sátira. A sátira é o meio de expressão mais caro a Bong, para dar conta de todos os absurdos que ele vê na relação entre capitalismo e geopolítica hoje, embora o discurso ambientalista-anarquista de “Okja” já pudesse ser sentido há anos desde “O Hospedeiro”, o blockbuster de monstro sul-coreano que colocou Bong em evidência mundial.

Em certo momento de “Okja”, o líder dos anarquistas vivido por Paul Dano, num acesso de fúria, diz aos seus companheiros globalizados que “tradução é sagrado”, e ao combinar uma variedade de registros e discursos fica claro que Bong Joon-ho está atrás de um esperanto próprio, um idioma capaz de resumir o desmanche e a fluidez de valores que presenciamos no mundo, capaz de capturar tanto a caricatura mais grotesca do homem quanto o gesto mais discreto de empatia.

Apesar da qualidade de seu comentário, o crítico Hessel falha ao se utilizar da expressão pejorativa “ecoterroristas” e ao não mencionar em nenhum momento a questão da Libertação Animal, central no filme. É explícito em Okja o desejo de debater sobre organizações como a Animal Liberation Front (ALF) (acessar verbete da Wikipedia em inglês), descrita na obra de Bong Joon Ho com certo sarcasmo mas também com boa dose de empatia.

O sarcasmo é devido às divisões internas do movimento e pelo radicalismo do ethos de certos ativistas, que correm o risco de prejudicarem suas saúdes e sobrevivências devido à alimentação vegana levada a extremos. O filme revela também certos desvios éticos que incluem a tradução mentirosa de um ativista, responsável pela interlocução entre a sul-coreana e os ativistas anglo-saxões, e o consequente espancamento punitivo cometido pelo personagem Jay (Paul Danno) contra seu tradutor-traidor. Apesar de comporem os quadros da mesma organização, os ativistas envolvem-se em rixas e conflitos graves.

Dizer que o filme problematiza o divisionismo interno e as ideologias abraçadas por membros da ALF não significa dizer que os ideais e práticas do grupo estejam sendo desprezados. Muito pelo contrário, Okja empresta seu vigor narrativo e a sua capacidade de gerar eletrizantes cenas de ação para uma espécie de captura pop da problemática da Libertação Animal – tema de célebre livro do filósofo australiano Peter Singer.

Na cena em que os ativistas sofrem com a truculência da repressão policial, o espectador é levado a sentir compaixão e empatia por aqueles corajosos defensores dos direitos e interesses dos animais. Estes anarco-ativistas colocam seus corpos em risco na defesa de um outro mundo possível e referi-los com a expressão “ecoterroristas” é equívoco e mentiroso, dado que o próprio filme enfatiza o caráter pacifista, não-violentocontrário a qualquer sofrimento imposto a quaisquer criaturas sencientes, das ações da ALF.

“The Animal Liberation Front (ALF) is an animal liberation group who engage in direct action on behalf of animals. These activities include removing animals from laboratories and fur farms, and sabotaging facilities. Any act that furthers the cause of animal liberation, where all reasonable precautions are taken not to harm human or non-human life, may be claimed as an ALF action. The ALF is not a group with a membership, but a leaderless resistance. ALF volunteers see themselves as similar to the Underground Railroad, the nineteenth-century antislavery network, with activists removing animals from laboratories and farms, arranging safe houses and veterinary care, and operating sanctuaries where the animals live out the rest of their lives. ALF activists believe that animals should not be viewed as property and that scientists and industry have no right to assume ownership of living beings. They reject the animal welfarist position that more human treatment is needed for animals; their aim is empty cages, not bigger ones.” – JUST SEEDS

De certo modo, teria razão quem fizesse a acusação de que Okja realiza uma espécie de caricatura tanto dos ativistas da A.L.F. quanto dos líderes corporativos da Mirando. O filme de fato adota um tom satírico, caricatural e fabuloso, despreocupado com o realismo e a informatividade (elementos que devem ser procurados em um documentário como o A.L.F. de Jérôme Lescure, lançado em 2012). Isso não o impede de ser uma obra importante para debater o tema, cada vez mais urgente e relevante diante da crise climática, daquilo que se conhece como carnismo ou especismo (expressões tornadas populares por Melanie Joy e Peter Singer, respectivamente).

Em sua resposta para a questão que dá nome a seu livro – “por que amamos cachorros, comemos porcos e vestimos vacas”? -, Melanie Joy aponta que os animais humanos não aderem ao carnismo por necessidade, mas sim por ideologia. Ou seja, é falso supor que apenas vegetarianos e veganos baseiam suas dietas e comportamentos em um sistema-de-crenças subjacente. Na verdade os carnívoros ou carnistas é que estão ideologicamente motivados de maneira muito mais tóxica e perigosa do que os veggies – pois o carnivorismo opera muitas vezes com base num belief system que é ideologia inculcada a operar de maneira sub ou inconsciente.

O carnismo seria uma ideologia, de pervasiva força cultural e de potência explicável pelos altos capitais investidos em brainwashing pelas corporações pecuaristas, que nos ensina a mentira de que é necessário comermos porcos, vacas e galinhas. Isto só é necessário para o lucro das corporações que vendem os cadáveres destes animais, mas nunca será verdade que é necessário para a nutrição humana.

No seguinte vídeo produzido pelo canal Like Stories of Old, destaca-se que os porcos são animais tão “inteligentes, sensíveis e sencientes quanto cães (se não forem mais)” – então o que explica que tratemos os cães como família e os porcos como propriedade e comida?

A crítica social envolvida no filme incide, de maneira pontiaguda, sobre a atitude dos psicopatas corporativos que lidam com seus consumidores como se não passassem de crianças tuteladas. Estas crianças consumistas que eles querem que sigamos sendo precisam ser protegidas a todo custo de se verem confrontadas com o dilema ético em que se apresenta a opção de deixarem suas posições como carnistas, indiferentes à ética e à práxis daqueles que combatem o especismo e criticam o carnismo. Mantendo os consumidores em estado de infantilismo, a ideologia carnista os enxergaria como crianças só interessadas em carne gostosa e barata, consumidores adestráveis através das palhaçadas de Ronald McDonald ou com a fantasia dos frangos sorridentes da Sadia.

O filme revela todo o investimento midiático das corporações psicopatas para ganhar as mentes dos consumidores, que são o epicentro da demanda por carne que as mega-corporações do ramo destinam-se a suprir mas também a pré-fabricar. Okja lida com a construção ideológica de um consumidor carnista a partir de instituições sociais como a mídia colonizada pela publicidade – parte de uma imensa engrenagem que acaba por naturalizar este construto sócio-cultural lucrativo-catastrófico que é o carnismo, perpetuando todos os males vinculados ao especismo (a presunção humana de que nossa espécie é superior às outras e por isso tem pleno direito ao predomínio e à opressão sobre outras espécies).

Problemático, porém, é o tratamento que o filme traz da Super-inteligência do Superporco, explícito naquela cena espetaculosa em que Okja salva Mikhta da morte quando a menina fica dependurada no precipício. Nesta cena revela-se um gosto duvidoso por cheap thrills cinematográficos conjugado com uma aposta quase supersticiosa na capacidade de inteligência prática do animal geneticamente fabricado.

É uma cena onde a Superporca pratica a salvação da heroína mirim que estava em perigo de morte, ou seja, onde se manifesta a velha tática conhecida como marmelada, mas este é o menor dos problemas. O maior problema  é a afirmação subjacente à cena de que a Superporca Okta teria uma inteligência descomunal, quase miraculosa para um animal, o que serviria como uma espécie de elogio lateral às proezas da bioengenharia genética.

O professor de Ética e Direito da Universidade de Harvard, Michael Sandel, problematiza estas questões em seu livro Contra a Perfeição – Ética na Era da Engenharia Genética:

MICHAEL SANDEL – “Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética” (The Case Against Perfection: Ethics in the Age of Genetic Engineering) – 160 páginas, Editora Civilização Brasileira. SINOPSE: Os avanços da ciência genética nos apresentam uma promessa e um dilema. A promessa é que em breve poderemos ser capazes de tratar e prevenir uma série de doenças debilitantes. O dilema é que apesar destes e outros benefícios, nosso repertório moral ainda está mal equipado para enfrentar as perguntas mais complexas suscitadas pela engenharia genética. O livro explora este e outros dilemas morais relacionados com a busca por aperfeiçoar a nós mesmos e a nossos filhos. Michael Sandel argumenta, de forma brilhante, que a revolução genética vai mudar a forma como filósofos discutem a ética e vai colocar as questões espirituais de volta na agenda política.

No livro de Sandel, há vários exemplos de como a bioengenharia genética já se faz presente em nossas vidas, por exemplo através da clonagem de pets. Consumidores que amam seus gatinhos e cachorrinhos, e que sofrem por antecipação com a perspectiva de que os pets vão morrer um dia, podem enviar uma amostra genética acompanhada por U$50.000 à empresa californiana Genetic Savings & Clone para que fosse produzida uma Carbon Copy do amado kittie. A empresa funcionou entre 2004 e 2006 e fazia propaganda dizendo: “Caso você ache que seu gatinho não se parece o bastante com o doador genético, nós devolveremos seu dinheiro integralmente, sem fazer perguntas.” (SANDEL, p. 18)

Para além da clonagem de gatinhos e cãezinhos, serviço disponibilizado para os donos de pets que estão com dinheiro sobrando, o autor se manifesta muito preocupado também com a engenharia genética da mente humana. Ou seja, com intervenções de caráter eugenista ou farmacológico, destinadas a criar uma espécie de Übermensch de laboratório, um projeto fáustico também presente na indústria farmacêutica e sua busca insaciável por “melhoradores cognitivos” e por modificadores do ânimo (como antidepressivos e anfetaminas):

“O melhoramento genético é tão possível para o cérebro quanto para os músculos. Em meados da década de 1990, cientistas conseguiram manipular um gene das drosófilas ligado à memória e criaram moscas com memória fotográfica. Mais recentemente, pesquisadores produziram ratos inteligentes ao inserir em seus embriões cópias extras  de um gene relacionado à memória. Os ratos modificados aprendem mais depressa e se lembram das coisas por mais tempo do que os ratos normais. Empresas de biotecnologia com nomes como Memory Pharmaceuticals estão ensandecidas atrás de medicamentos para melhorar a memória, os chamados ‘melhoradores cognitivos‘, para uso em seres humanos.” (SANDEL, pg. 25)

Okja manifesta uma ansiedade diante deste cenário de OGMs e de eugenia, reafirmando a figura de Bong Joon Ho como um dos cineastas-pop de maior impacto da Aldeia Global, sempre pautando temas importantes através de filmes fabulosos, propulsionados por uma narrativa cinematográfica poderosa, repletos de sátiras e caricaturas, mas que falam sobre os cruciais problemas de nosso tempo. Ele conta que visitou vários matadouros antes de fazer o filme e os descreve como “incrivelmente chocantes”, lamentando que não conseguiu colocar nem 10% dos detalhes de um matadouro real em seu filme.

Ao projetar na relação entre a criança e seu pet aquele vínculo afetuoso que liga milhões de humanos a seus bichinhos de estimação, o filme serve como uma espécie de arma de conscientização em massa que levará muitos a se questionarem sobre suas condutas enquanto consumidores dos cadáveres de bichos mortos. Aproximando-se de teses anarcoprimitivistas, Okja parece propor que os animais foram feitos para viver soltos na Natureza, in the wild, e que encerrá-los nas Treblinkas da indústria carnista é uma das piores opressões que os humanos podem impor a outros seres sencientes.


SAIBA MAIS – Monbiot @ Ted Talks

Por isso, por mais que soe caricatural e altamente satírico, o filme funciona como uma espécie de panfleto fílmico de divulgação das causas da Libertação Animal e do Veganismo. Ao mesmo tempo, deixa soar o grito que conclama pelo processo de re-selvagizar o mundo, sintetizado por um dos grandes pensadores contemporâneos, George Monbiot, em uma palavra emblemática: REWILD!

O anarcoprimitismo não propõe o rewind, mas sim o rewild; não acredita ser possível voltar no tempo, mas quer um futuro onde a selvageria volte a recobrar seus direitos em face das atrocidades terrificantes da auto-proclamada Civilização Industrial. Esta, cujo carnismo e obsessão com lucros vem gerando um ethos da ganância e da hýbris que mostra-se cada vez mais insustentável. Por isso, mais que nunca, em coro com as criaturas sencientes da Terra, cantemos a plenos pulmões o clássico do rock’n’rolling Steppenwolfiano: “Like a true nature’s child / We were born, born to be wild!” 

Eduardo Carli de Moraes @ A Casa de Vidro, Goiânia, 14/10/2019


SIGA VIAGEM:

CONFERÊNCIA DE IMPRENSA – Cannes 2017

A incontornável evidência do sofrimento animal: Safran Foer, Jacques Derrida, Isaac Bashevis Singer, Peter Singer etc.

A incontornável evidência
do sofrimento animal


“Para que este estufado indivíduo degustasse seu presunto, uma criatura viva teve de ser criada, arrastada para sua morte, esfaqueada, torturada e escaldada em água quente. O homem não dava um segundo de pensamento ao fato de que o porco era feito do mesmo material e que este tinha de pagar com sofrimento e morte para que ele pudesse saborear sua carne. Pensei mais uma vez que, quando se trata de animais, todo homem é um nazista.” –
 ISAAC BASHEVIS SINGER (1904-1991), Prêmio Nobel de Literatura.

quote-in-relation-to-them-animals-all-people-are-nazis-for-the-animals-it-is-an-eternal-treblinka-isaac-bashevis-singer-91-51-63

 Um pertinaz e impertinente antropocentrismo (ou, dito melhor, narcismo-de-espécie!) parece ter sobrevivido às 3 feridas narcísicas que, segundo Freud, foram infligidas à humanidade: não mais acreditamos que a Terra é o centro do Universo e o Sol gira a nosso redor, nem esperneamos escandalizados contra Darwin e a teoria da evolução das espécies, tampouco recusamos o peso e a importância de motivos inconscientes e desejos sexuais em nossa Psique; o problema é que ainda tendemos a enxergar a Humanidade como pico de uma pirâmide hierárquica, como algo de essencialmente distinto e superior à Animalidade, como se fôssemos o legítimo “rei” da Natureza e destinados ao domínio, como queria Francis Bacon (1561-1626) – que, imagino, não veria problema  ético algum em organizarmos um sistema de pecuária industrial destinado a transformar porcos em bacon

Nosso narcisismo ferido procura defender-se na trincheira daquela posição cartesiana – demolida por O Ponto de Mutação, de Fritjof Capra – que vê nos animais apenas “bestas desalmadas” e que concede ao ser humano o privilégio de ser o animal supremo e divino, a ponte entre o bicho e o anjo, o supra-sumo biológico sobre a face da Terra… Porém, pesemos as consequências planetárias de agirmos na base de fábulas auto-congratulatórias e racionalizações do nosso poderio sobre os viventes extra-humanos.

French Philosopher Jacques Derrida Holding His Cat

Um vínculo que une filósofos como Peter Singer e Jacques Derrida, ambos defensores de uma revolucionária mudança de paradigmas conhecida como Libertação Animal, é algo de muito simples: o reconhecimento de que o sofrimento solidariza-nos. Podemos negar que os outros animais possuam Razão e Linguagem, porém é bem mais difícil que alguém possa sustentar de modo crível que os animais não sofrem. O sofrimento animal, do qual existem tantas avalanches de provas empíricas (for those who care to look through the walls of factory farms), é de incontornável, de inegável, constituindo um problema ético e político de alta relevância e urgência.

 À questão “os animais sofrem?”, a resposta incontornável de qualquer mente lúcida é o reconhecimento, que têm necessariamente de fazer qualquer testemunha de boa-fé, do fato bruto enunciado por Derrida: “ninguém pode negar o sofrimento, o medo ou o pânico, o terror ou o pavor que podem se apossar de certos animais e que nós, os homens, podemos testemunhar.” (p. 56)

derrida

JACQUES DERRIDA

É uma ousada crítica contra a filosofia “logocêntrica” (“que se mantêm de Aristóteles a Heidegger, de Descartes a Kant, de Levinas a Lacan…” – pg. 54) o que Jacques Derrida empreende em O Animal Que Logo Sou (Ed. Unesp). A acusação que Derrida lança contra os “fanáticos da lógica” (aqueles que, segundo Nietzsche, “são insuportáveis como vespas”), é a de ter posto a questão errada: os filósofos logocêntricos se perguntam “os animais têm razão, têm linguagem, têm lógos?”, porém o principal, o fundamental, o mais essencial a se perguntar, “a questão prévia e decisiva seria a de saber se os animais podem sofrer. Can they suffer?” (p. 54)

Galinhas no Brasil

 A questão é urgente e colossal pois o sofrimento animal, longe de diminuir, parece estar em aumento exponencial nos últimos séculos: “além da caça, da pesca, da domesticação, do adestramento ou da exploração tradicional da energia animal” (animais de tração escravizados aos fins humanos, por exemplo), Derrida destaca:

“No decurso dos últimos 2 séculos estas formas tradicionais de tratamento do animal foram subvertidas pelos desenvolvimentos conjuntos de saberes zoológicos, etológicos, biológicos e genéticos, (…) pela criação e adestramento a uma escala demográfica sem nenhuma comparação com o passado, pela experimentação genética, pela industrialização do que se pode chamar a produção alimentar da carne animal, pela inseminação artificial maciça, pelas manipulações cada vez mais audaciosas do genoma…” (DERRIDA, p. 51)

 Exemplos dentre muitos deste empreendimento humano colossal de exploração e escravização dos viventes animais, ainda silenciado e pouco percebido, em especial em suas gigantescas proporções: a violência do “assujeitamento do animal” atingiu, segundo Derrida, “proporções sem precedentes.” (p. 51) Será tão absurda assim a ideia, que Isaac Bashevis Singer propagava, de que aos olhos de um animal “todo homem é um nazista”? Em outros termos: será que nossos sistemas econômicos, políticos, culturais, morais e jurídicos não conduzem a tratarmos os animais de uma maneira similar ao tratamento imposto pelo III Reich aos viventes que encerrou e dizimou nos campos de concentração?

 “Os homens fazem tudo o que podem para dissimular ou para se dissimular essa crueldade, para organizar em escala mundial o esquecimento ou o desconhecimento dessa violência que alguns poderiam comparar aos piores genocídios. Existem também os genocídios animais: o número de espécies em via de desaparecimento por causa do homem é de tirar o fôlego. (…) Todo mundo sabe que terríveis e insuportáveis quadros uma pintura realista poderia fazer da violência industrial, mecânica, química, hormonal, genética, a qual o homem submete há dois séculos a vida animal.” (DERRIDA, pg. 53)

 Não se trata, pois, de fazer qualquer apelo sentimentalóide e patético às consciências humanas para que “sintam pena” dos pobres bichinhos. O que se pede é bem mais que mera compaixão: o pensamento de Derrida é tão ousado e demandante pois ele nos exige uma completa subversão dos paradigmas logocêntricos e antropocêntricos que infestam nosso modo de pensar. A presunção humana de uma superioridade inata que decorria da humanidade possuir o Lógos, ser capaz de linguagem, ser dotada de racionalidade: eis o que está em questão.

O animal que se auto-denomina “racional”, e que presume-se superior às “bestas privadas de razão”, dá-se o privilégio de poder escravizar e subjugar todos os outros viventes. Os animais não são reconhecidos como Outros dotados de interesses e sentimentos, viventes finitos e vulneráveis como nós, dotados de senciência e de automotricidadem, organismos com sensibilidade, palco complexo de afetos, capazes não só de ser vistos mas de nos verem. A racionalidade instrumental dos humanos, rejeitando a animalidade en masse, acabe por eles reduzir – como mostram as atitudes de alguns entusiastas das churrascarias e dos açougues, a presunto, bacon, frango-assado…

A questão é: seria possível a existência das churrascarias sem os matadouros ou há um vínculo necessário que os une? A demanda do consumidor de carne não é aquilo que faz “brotarem” no mundo estas gigantescas “fábricas de opressão animal”, onde milhões de vidas são reduzidas ao status manipulável e explorável de mercadoria? Nestes locais, protegidos do nosso olhar pelos muros (“se os abatedouros tivessem paredes de vidro”, diz Paul McCartney, “todo mundo seria vegetariano), bilhões de viventes, que compartilham conosco o destino de serem sensíveis-sofrentes, são expostos aos mais intensos e prolongados sofrimentos existenciais, do parto ao abate, infligidos por nós. A isto Pete Singer chama “especismo”, uma espécie de fascismo aplicado por uma espécie (a nossa) sobre outras.

 Temos o direito de impor uma vida de terríveis sofrimentos a bilhões e bilhões de criaturas viventes, em quem reconhecemos ao menos a capacidade de sofrer, ainda que neguemos a elas a posse de faculdades racionais, e só porque tendemos a gostar do gosto de sua carne? O “aprecio muito o sabor da linguiça” justifica que tratemos seres vivos como meios e que se imponha a eles a prisão, o engordamento forçado, o abate impiedoso? Quem é que acredita, ainda hoje, que o presunto “brota” no supermercado como “produto industrializado”? Quem é que ignora que as fatias do presunto são partes de um cadáver que a Indústria tratou de matar e cortar em pedacinhos, devidamente refrigerados, para o conforto e bem-estar do consumidor? E quem é que se ilude pensando que este vivente morreu de velho? Não nos esqueçamos que nós impomos a morte: não nos contentamos em esperar que aconteça. Nem mesmo a fome é nossa desculpa: muitos animais são mortos, não por causa da humana fome, mas da humana gula.

 “Diante da negação organizada dessa tortura, algumas vozes de levantam (minoritárias, fracas, marginais…) para protestar, para apelar ao que se apresenta ainda de maneira tão problemática como os direitos do animal.” (pg. 53). E é de se notar que nos últimos anos o cenário filosófico têm se preocupado mais com estes ainda incipientes e frágeis Direitos Animais, por exemplo através da obra de Peter Singer, autor de Libertação Animal e Ética Prática, e do Eating Animals, de Jonathan Safran Foer, dentre outros livros. Inserem-se, talvez, no quadro das tentativas de “nos acordar para nossas responsabilidades e nossas obrigações em relação ao vivente em geral, e precisamente a essa compaixão fundamental que, se fosse tomada a sério, deveria mudar até os alicerces da problemática filosófica do animal.” (pg. 53)

 * * * * *

A relação dos animais humanos com aqueles que eles, os homens, chamam de “animais”, quase sempre tentando diferenciar-se deles, abrir um abismo que os separa, esteve marcada, através da História, pela violência. A violência da caça e da pesca, é claro: é inimaginável, de tão colossal, a quantidade de flechas e de balas que destroçaram vidas de animais na história deste animal genocida que somos – o animal que atira, que constrói bombas, que põe sua tecnologia no fabrico de matadouros high-tech. Estes viventes que os homens gostam de chamar de “animais” foram escravizados, oprimidos, mal-tratados, forçados ao trabalho, abatidos sem piedade, na presunção de que fossem “inferiores” e na presunção de que foram criados para “servirem” a nós, os auto-proclamados Senhores da Terra.

 É óbvio que isso não surpreenderá muito àqueles que conhecem os modos como os homens tratam-se uns aos outros: os europeus que invadiram a América a partir de 1492, por exemplo, adoravam agarrar-se àquelas doutrinas que diziam, dos africanos e dos indígenas, que eram “desprovidos de alma” e “não passavam de animais”, o que era justificativa suficiente para acorrentá-los, deportá-los em massa, enfiá-los em navios superlotados, levá-los para trabalhar até a morte longe de suas casas, debaixo do chicote e do sol inclemente. A justificativa do genocídio frequentemente passa por uma presunção de superioridade. Se o homem pôde cometer tamanhos horrores contra outros homens, realmente não surpreende que tenha podido agir diante dos chamados “animais” com um grau de violência inaudito no mundo humano.

 A filosofia, até hoje, pelo menos em suas “correntes dominantes”, desde Aristóteles e Agostinho, desde Sócrates e Platão a Descartes e Kant, chegando em Lévinas, Lacan e Heidegger, é marcada por um logocentrismo antropocêntrico que trata os viventes ditos “animais” como inferiores, já que são desprovidos de tudo aquilo que julga-se privilégio e glória do humano. São seres sem Razão, sem Lógica, sem Intelecto, sem Lógos, sem télos…

 Uma das muitas originalidades que Nietzsche trouxe à filosofia, como aponta Derrida, consiste numa “reanimalização” do pensamento: Zaratustra fala, em suas parábolas e paródias, do camelo, do leão e da criança – e um transmuta-se no outro! Há também a águia e a serpente povoando de animalidades os cenários do filosofopoema zaratustriano. O perspectivismo ameríndio não está distante destas epifanias místico-poéticas do autor d’A Gaia Ciência. Em sua solidão e isolamento de montanhês apaixonado pelas alturas, Nietzsche povoou seus arredores com figuras animais, até o colapso em Turim, episódio-esfinge de difícil decifração mas que parece essencial na compreensão deste destino singularíssimo do animal Nietzsche, ele “que foi suficientemente louco para chorar junto de um animal, sob o olhar ou contra a face de um cavalo. Por vezes, creio vê-lo tomar esse cavalo por testemunha, e sobretudo para tomá-lo como testemunha de sua compaixão, pegar sua cabeça entre as mãos…” (DERRIDA: 1999, pg. 67)

 O homem inventou a palavra “animal” – é esta uma das hipóteses derridianas – para se referir a “todos os viventes que o homem não reconheceria como seus semelhantes, seus próximos ou seus irmãos.” (p. 65). Os filósofos adoram enumerar as privações dos ditos animais, tudo o que lhes falta para serem como nós: eles são desprovidos de linguagem, não sabem dar respostas, não se comunicam em nossa língua, não conheciam ritos de luto nem têm a potencialidade de dar risada. Por essas e outras são tidos por inferiores, escravizáveis, transformáveis em bacon.

 O termo “animal”, que “dispõe um grande número de viventes sob esse único conceito” (p. 61), é algo que desagrada a Derrida, sempre tão “atento à diferença, às diferenças, à heterogeneidades e às rupturas abissais” (p. 58). Colocar todos os viventes não-humanos debaixo do guarda-chuva conceitual “animal”, como se fossem farinha do mesmo saco, é uma grosseira falsificação de uma realidade onde “espaços infinitos separam o lagarto do cão, o protozoário do golfinho, o tubarão do carneiro, o papagaio do chimpanzé, o camelo da águia, o esquilo do tigre, ou o elefante do gato… Interrompo minha nomenclatura e peço socorro a Noé para não esquecer ninguém na arca.” (p. 65)

 Os limites, traçados por humanos, entre homens e animais, são no mínimo suspeitos de serem artificiosas criações linguísticas que agem em causa própria. Um animal quis contar-se a confortadora fábula de que ele não era um animal. O animal homem sofre, pensa e sente tão pouco sobre os sofrimentos em geral, os sofrimentos dos viventes que não lhe assemelham, os sofrimentos que não são seus, a ponto de escamotear, reprimir e se esquivar do que Derrida não teme chamar, peremptório, de inegável. A filosofia é fiel à sua missão de busca da Verdade se não admitir e se não se predispor a enxergar esta incontornável evidência do sofrimento animal?

 * * * * *

 Na mitologia judaico-cristã, a presunção narcísica do Homem atinge uma culminância que prossegue até hoje a assombrar nossa cultura, nossa filosofia, nossas convicções sobre nosso estatuto cósmico. Derrida relembra que o homem, descrito como “réplica de Deus”, criado à sua imagem e semelhança, antes do Pecado Original,

 “recebe imediatamente a ordem de sujeitar os animais. Ele deve, para obedecer, marcá-los com sua ascendência, sua dominação, (…) seu poder de domar. (…) [Deus] criou o homem à sua semelhança para que o homem sujeite, dome, domine, adestre ou domestique os animais nascidos antes dele, e assente sua autoridade sobre ele. Deus destina os animais a experimentar o poder do homem, (…) para ver o homem tomar o poder sobre todos os outros viventes.” (pg. 35 e 37)

 Não demoraram a começar os sacrifícios, as hecatombes, os bodes expiatórios: o sangue animal jorrando para agradar aos deuses inventados pelos homens. Ouçamos a própria palavra “divina”, o verbo deste Javé sanguessuga que criou os homens para que eles reinassem sobre os vivos com presunçosa violência: “Iahvé Elohim diz: ‘Que tenham autoridade sobre os peixes do mar e sobre os pássaros dos céus, sobre os animais a domesticar, sobre todas as feras selvagens e sobre todos os répteis…” (pg. 35).

 Há só um passinho da presunção judaico-cristã, referendada nos livros “sagrados”, do Homem como ápice da Criação e filho predileto de um Deus que teria criado todos os animais para que servissem e fossem usados, à presunção dos filósofos de que a presença do Lógos no humano é sinal inconteste de um abismo imensurável entre nós, nesta margem, e eles, les animots, que são doravante segregados à outra margem, reduzidos a serem subjugados por nossa augusta superioridade suposta e pouco questionada.

 Derrida parte, em sua reflexão, da experiência de estar pelado diante de seu gato. Sente vergonha de sua nudez, e vergonha de sentir vergonha, enquanto o gato que nunca vestiu roupas está em plena naturalidade em sua peladice. O gato sem pudor olha o homem, acostumado a andar vestido, e o homem cora de vergonha diante do olhar felino. Esta experiência me remete ao dito de Camus: “o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é.” Nós vestimos roupas e “cobrimos nossas vergonhas”, coisa que nenhum outro animal faz: é de se suspeitar que a raiz desse costume seja a nossa tentativa de negar nossa similitude e nossa fraternidade em relação ao que chamamos, com ímpetos segregacionistas, de animais?

 O gato que está diante do filósofo pelado, o gato que observa com Jacques Derrida enquanto este se envergonha de estar nu diante de um olhar animal, é uma abertura para o abismo fecundo da alteridade e da diferença. O gato é um outro que me olha, e não apenas um outro olhado por mim; uma existência independente da minha, e que relaciona-se comigo de modos que, na maior parte dos casos, são ilegíveis, indevassáveis, misteriosos. “Ele [o gato] tem seu ponto de vista sobre mim. O ponto de vista do outro absoluto, e nada me terá feito pensar tanto sobre essa alteridade absoluta do vizinho ou do próximo quanto os momentos em que eu me vejo visto nu sob o olhar de um gato.” (pg. 28)

 Mas dizer “um gato” já é uma traição, já é tentar grudar uma palavra, que serve de direito a um gato qualquer, a este “vivente insubstituível”. Nenhuma onça é idêntica a outra onça: não podemos deixar que a linguagem, ou seja, o fato de utilizarmos a mesma palavra para nos referirmos a dois animais semelhantes, nos cegue para as evidências inegáveis da diferença – ou, como prefere dizer Viveiros de Castro, da diferOnça. “Nada poderá tirar de mim, nunca, a certeza de que se trata de uma existência rebelde a todo conceito.” (DERRIDA: p. 26).

 Derrida, filósofo que assinala e sublinha, sempre que pode, a “insubstituível singularidade”, convida-nos a enxergarmo-nos como animais entre animais, re-inseridos na fervilhante e complexa teia das alteridades, em relação fecunda com outras perspectivas sobre a realidade, sem impormos a nossa como absoluta. O acolhimento à diferença, a meditação junto ao Outro, inclusive um Outro-gato ou um Outro-ouriço, é um convite que Derrida nos estende: é um convite à ampliação da consciência e uma demanda de uma ética mais vasta, que supere o logocentrismo e o narcisismo que fundamentam os múltiplos genocídios animais de que os últimos milênios estiveram tão repletos. Nu diante do gato, pergunta-se um animal filosófico: “esse gato não pode ser, no fundo de seus olhos, meu primeiro espelho?” (pg. 92)

Outras vias sugeridas:

“Tudo o que vive não vive só nem para si” (William Blake)

Tenho sorvido com fascinação, em grandes goles, a embriagante poesia do William Blake. Fiquei sabendo da existência do “visionário” Blake, como tanta gente, através de alguns marcos da contra-cultura do século XX: primeiro Aldous Huxley, que evocava versos e imagens poéticas de Blake com frequência, em especial quando falava sobre estados alterados de consciência e êxtases induzidos pelo consumo de estupefacientes (como a mescalina, o peiote e o LSD).

O autor de A Filosofia Perene e Admirável Mundo Novo ajudou a transformar um dos versos de O Matrimônio do Céu e do Inferno (1790) em um dos emblemas de todo o agito Psicodélico que atravessará as gerações beatnik, hippie e além: “se as portas da percepção fossem purificadas, tudo apareceria como de fato é: infinito e sagrado”.

Por outro lado, no âmbito da música popular Blake foi reverenciado por muita gente graúda: Patti Smith, uma “Rimbaud de saias poetizando o rock and roll”, compôs uma longa poesia musicada inspirada pelo “Everything that lives is holy” de Blake.

E Jim Morrison e seu The Doors trataram de prestar também seus tributos ao poeta-xamã: o nome da banda homenageava o livro The Doors of Perception, impactante e desnorteante panfleto em que Huxley refletia sobre religião, mitologia, filosofia e misticismo tendo como base as experiências extáticas/místicas que viveu, seja através da leitura das escrituras sagradas das mais variadas culturas, seja através do consumo de substâncias químicas “nirvanizantes”.

“O homem esqueceu que Todas as Deidades residem no peito Humano”, escreve William Blake no encerramento de seus Provérbios do Inferno. Este é um dos poucos emblemas escancaradamente ateus na obra de um poeta que, sob a influência marcante de Milton e seu Paraíso Perdido, povoa sua obra com mitos e criaturas fabulosas e concebe o peito humano como um manancial de onde jorram infindos deuses, demônios, édens, infernos e “imagens poéticas” que procuram decifrar os maiores mistérios.

O mais interessante nestes Provérbios Infernais é que eles não são, como seu nome sugere, diabólicos, imorais, sádicos ou terríveis; pelo contrário, são repletos de sagacidade, inventividade, ousadia – e até mesmo (por que não?) sabedoria.

Toda uma filosofia-de-vida desenha-se nestes provérbios: uma perspectiva existencial que põe o valor na ação e não na passividade (“He who desires but acts not, breeds pestilence”), que desvaloriza a temperança e a contenção em prol de uma “ética do excesso” (“The road of excess leads to the palace of wisdom”), que enxerga saúde e força no lado do dinamismo e sustenta que males emergem de tudo o que decide se estagnar, se fixar, se solidificar em dogma (“Expect poison from the standing water“…).

Uma certa transvaloração de valores, pra falar nos termos da filosofia de Nietzsche, parece estar em jogo no fazer poético Blakeano. Em um dos raros momentos em que ele adquire ares professorais e ousa ser pedagógico e assertivo, William Blake ataca os Erros causados por “todas as Bíblias e códigos sagrados”.

“All Bibles or sacred codes have been the causes of the following Errors.

1. That Man has two real existing principles Viz: a Body & a Soul.

2. That Energy, call’d Evil, is alone from the Body, & that Reason, call’d Good, is alone from the Soul.

3. That God will torment Man in Eternity for following his Energies.

But the following Contraries to these are True

1. Man has no Body distinct from his Soul for that call’d Body is a portion of Soul discern’d by the five Senses, the chief inlets of Soul in this age.

2. Energy is the only life and is from the Body and Reason is the bound or outward circumference of Energy.

3. Energy is Eternal Delight.”

O poeta herege, promulgando audaz seus conceitos radicais, demolidor de todas as dogmáticas que encerram nosso horizonte na estreiteza, decide-se a reduzir a pó os dogmas e crenças errôneos propagados pelas religiões instituídas: a cisão do homem em Corpo e Alma; a demonização do corpóreo e a idealização do “espiritual”; a promessa de sofrimentos infindos àqueles que “obedecem suas energias”.

Um forte elemento anti-platônico marca presença nestas páginas repletas do que poderíamos chamar de um “misticismo xamanístico” onde a sensibilidade é revalorizada e reconduzida a um pedestal onde possa ser cultuada. As “portas da percepção”, afinal, são “nesta vida as cinco janelas da alma” (“This life’s five windows of the soul”) e se existe alguma “redenção”, ela não está em qualquer transcendência, mas na redenção da imanência – na “purificação” de nossa percepção sensível, num alargamento de nossa consciência corporal.

Enxergo em Blake uma figura que enaltece a abertura e a atentividade [AWARENESS] em relação aos processos colossais que se desenrolam eternidade afora nesta imensa orgia de energias em transa e em conflito que chamamos (ó miséria das palavras!) de Universo, de Tudo ou de Deus.

Em William Blake, a Energia adquire os contornos da divindade. E os seres vivos são como que as miríades de múltiplas encarnações desta Energia Cósmica que Blake diviniza. Uma via muito interessante de interpretação poética seria, por exemplo, a análise de como aparecem os ANIMAIS na poesia de Blake.

No lindíssimo poema “Augúrios de Inocência”, Blake escreve algumas das mais comoventes imagens poéticas em prol do que hoje conhecemos como Libertação Animal: um cachorro faminto, um cavalo maltratado, um pássaro com a asa ferida, uma ovelha diante do facão do açougueiro, uma mosca assassinada por um garoto “que há de sentir a inimizade da aranha”, são todos evocados num mosaico em que Blake defende os direitos dos seres mais ínfimos e critica a arrogância dos humanos em subjugar as outras criaturas.

“A dog starved at his master’s gate
Predicts the ruin of the State.
A horse misus’d upon the road
Calls to Heaven for human blood.
Each outcry of the hunted hare
A fibre from the brain does tear.
A skylark wounded in the wing,
A cherubim does cease to sing.
[…] He who shall hurt the little wren
Shall never be by woman loved.”

Manoel de Barros dizia: “fazer o ínfimo ser prezado me apraz”. Em William Blake também existe este esforço de, através da poesia, realizar na consciência dos homens uma transmutação do ínfimo. O poema “A Mosca”, por exemplo, parte do livro Songs of Experience, traz como eu-lírico um homem que acaba de esmagar um inseto que fazia no ar suas brincadeiras de verão.

Tomado por remorsos por ter aniquilado o pequeno artrópode, ele chega a uma “identificação mística” com o bichinho que não é sem-relação àquela retratada por Clarice Lispector em seu A Paixão Segundo G.H., uma obra-prima da inventividade humana que consegue extrair ouro poético e filosófico da maior das trivialidades: o encontro doméstico entre uma dona-de-casa e uma barata.

“THE FLY

Little Fly,
Thy summer’s play
My thoughtless hand
Has brush’d away.

Am not I
A fly like thee?
Or art not thou
A man like me?

For I dance,
And drink, and sing,
Till some blind hand
Shall brush my wing…”

Ao invés de misantropia (“os homens não passam de moscas!”), o que se manifesta nestes versos de Blake é a percepção da fragilidade comum de todos os mortais, humanos ou não. Os processos universais que transcendem o indíviduo, as “energias cósmicas” colossais ao seu redor, são “mãos cegas” que arrancam as asas de moscas e homens.

Mas Blake jamais escreve tentando deprimir seu leitor ou fazê-lo “caluniar a existência”, para usar a expressão de Nietzsche. Há em Blake um convite à reconciliação do homem, filho pródigo, com a natureza da qual as religiões instituídas e as moralidades anti-naturais o afastaram. Vai nesse sentido um dos poemas de Blake que mais me comove, que mais “inesgotável” parece em seu jorrar de exuberâncias e belezas, “The Book of Thel“, publicado em meio aos agitos revolucionários de 1789.

Thel é uma moça virgem, inocente, inexperiente e “cheia de temores que a impedem de se engajar na vida”, como diz Woodcock. William Blake cria então uma série de diálogos entre Thel e alguns elementos da natureza: um lírio, uma nuvem, um verme, que “a encorajam a abandonar seu idílio pastoral nos vales de Har e se comprometer a viver”.

Encarnação da fragilidade, da ansiedade e da melancolia temerosa, Thel, diz Woodcock, “é incapaz de enxergar que a vida individual é parte de um processo mais amplo”. Neste poema, Blake atinge uma eloquência ímpar na arte de despertar nossas consciências para estes “processos mais amplos” que estão a se desenrolar ainda que vivamos, cegos e tolos, na gaiola estreita de nosso egoísmo e de nossa percepção auto-centrada.

O poema se inicia com Thel entristecida, derramando na beira do rio uma “delicada lamentação que cai como o sereno da manhã”: “Why fade these children of the spring, born but to smile and fall?”, pergunta-se a moça para as flores do campo, destinadas a efemeridade comum a todas as crianças da primavera.

Na sequência, conversa com a Nuvem que passa nos céus, também ela cumprindo sua sina de transitoriedade: “O little Cloud, the Virgin said, I charge thee tell to me: Why thou complainest not, when in one hour thou fade away?…” Diante das efemeridades naturais, diante de tudo que nasce e morre sem soltar um pio de reclamação ou um suspiro de angústia, Thel sente-se singularmente aflita ao se descobrir a única que não aprendeu a arte de passar sem reclamar: “I pass away yet I complain…

A melancólica Thel chega ao ponto, enfim, de proclamar sua própria nulidade, de reconhecer sua insignificância cósmica, murmurando queixosa: “Without a use this shining woman lived / Or did she only live to be at death the food of worms?” Thel atinge a noite total no seio da primavera e conclui: não sirvo para nada além de ser, por fim, comida para os vermes.

Mas Blake não é poeta que abandone suas personagens e seus leitores nesta desoladora escuridão. Blake então convoca a Nuvem a responder aos queixumes de Thel e constrói assim alguns de seus versos mais comoventes:

“Everything that lives 
Lives not alone nor for itself.”

Como já dizia outro grande poeta, John Donne: “Nenhum homem é uma ilha”. O que Blake destaca é que as fronteiras entre o humano e o animal, e mesmo entre o orgânico e o inorgânico, são construtos culturais que nos cegam para a realidade da inter-conexão entre os vivos. 

Nenhum vivo é uma ilha: todos dependem uns dos outros e do ambiente no qual se encontram. Não há um só segundo de nossas vidas que não seja composto por dinamismo e interatividade: o dinamismo da respiração, da circulação, da alimentação, da decomposição, da recombinação – em suma, este constante intercâmbio de matéria que constitui, ao que parece, o passatempo predileto da eternidade.

Sem dúvida, esta é uma visão de mundo em harmonia com a noção, tão cara aos ambientalistas, de eco-sistema. Em Ponto de Mutação, o filme baseado na obra de Fritjof Capra, esta perspectiva é exposta com blakeana beleza.

No poema de Blake, Thel acaba vivendo uma certa “epifania” em que uma nova concepção de Deus emerge:  um Deus que não tem nenhuma “predileção” específica pelos humanos, um Deus que ama (até mesmo) os vermes e pune o pé malévolo que esmaga de propósito um ser indefeso.

Um Deus daquele tipo cultuado por místicos e panteístas e que se manifesta nas miríades de criaturas que, animadas de energias móveis, interagem, compartilham e transmutam-se umas nas outras numa eterna orgia cósmica. O efeito poético é avassalador: toda concepção de mundo solipsista, autista, isolacionista, que concebe um ente separado do Todo, independente do Resto, é explodida. E o que emerge é uma mística da interconexão que poderia ter como emblema este verso profundo e misterioso:

“We live not for ourselves.” 

 

Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro


“Ponto de Mutação” (Mindwalk) – baseado no livro de Fritjof Capra
Assista na íntegra 

If Slaughterhouses Had Glass Walls…

“Comer carne ou não?” – eis a questão que tem me apoquentado nos últimos tempos como se fosse um dilema hamletiano. Assisti aos principais documentários produzidos sobre o tema e todos eles  me causaram um grande impacto e me fizeram sentir a necessidade de uma revolução nos hábitos alimentares humanos: Earthlings – Terráqueos, A Carne é Fraca, Food Inc., Meat The Truth, Food Matters (todos recomendadíssmos!). Jamais vou poder olhar para a comida que ponho no prato e mando goela abaixo do mesmo modo depois de ter me conscientizado de todo o sistema que está por detrás da produção destes itens de consumo que só  as crianças e os tontos imaginam que já nascem no supermercado: as salsichas, os hambúrgueres e todo o resto do cardápio carnívoro. Li também boa parte das argumentações do Peter Singer, talvez o maior “guru” ativista do movimento da Libertação Animal, um intelectual que pretendo estudar mais a fundo nos próximos tempos; de qualquer modo, considero que Singer tem muito de relevante a nos dizer e que faremos muito bem em emprestar-lhe ouvidos atentos, discutir acaloradamente suas idéias e se aliar a muitas de suas lutas.

Muitas figuras que admiro são vegans confessos e militantes, de Paul McCartney (que é o “âncora” do filme“If Slaughterhouses Had Glass Walls Everyone Would Be Vegetarian”, produzido pela PETA – People for the Ethical Treatment of Animals) a Morrissey (lembrem-se do nome daquele álbum dos Smiths: “Meat Is Murder”, ou “Carne é Assassinato”). Até mesmo a adorável Lisa Simpson aderiu ao vegetarismo num clássico episódio da sétima temporada dos Simpsons, e até mesmo os porra-louquinhas altamente inescrupulosos de South Park revoltaram-se em outro episódio impagável contra o crudelíssimo tratamento infligido aos vitelos (criados no mais horroroso cativeiro, impedidos de movimentar suas perninhas para que seus músculos infantis não se desenvolvam, o que gera uma carne mais tenra, e que serão assassinados ainda na infância para serem vendidos a preços carésimos nos restaurantes mais chiques de Nova Yorke, Paris ou Genebra…).

Em primeiro lugar, acho crucial quebrar o tabu que ainda envolve a questão da carne e levantar um debate público tão intenso sobre este assunto quanto está sendo aquele sobre a descriminalização da maconha e do aborto ou a união civil de pessoas do mesmo sexo. Nós, adeptos ou simpatizantes do vegetarianismo, não queremos ser tratados simplisticamente como mero estraga-prazeres que só querem zuar o churrasco dos outros apontando sempre para o fato, que os carnívoros tanto gostam de manter ignorado, de que estão mastigando e engolindo pedaços de bichos mortos, fragmentos de cadáveres… Vegetarianos não são uns “metidos a bonzinhos” que querem atrapalhar a diversão dos que gostam de rodeios e para quem Barretos é a balada do ano. Vegetarianos não são uns hippies-bundamole cheios de frescura que ficam cheios de nhém-nhém-nhém pra comer e que deveriam ter apanhado mais quando criança para deixarem de serem frescos.

Não se trata de acabar com a festa carnívora com discursinhos moralistas e sentimentalóides, mas sim de levar a sério a responsabilidade que temos como sujeitos pensantes e cidadãos de um planeta em risco de pôr em questão problemas globais de primeiríssima importância: o aquecimento global causado pelo efeito estufa e as possíveis relações que isto possa ter com o modelo de agropecuária hoje dominante; o tratamento instrumental cruel e desumano que é dispensado a seres vivos sencientes (para usar um termo caro aos budistas e hinduístas) nas grandes “fábricas de carne” do capitalismo neoliberal; sem falar em questões de saúde pública: uma dieta baseada em carne é realmente o supra-sumo da nutrição mais rica acessível a humanos, ou haveriam outras dietas muito mais nutritivas e que fariam com que diminuíssem as torrentes de sangue animal que jorram pelo planeta como se este fora o Inferno de Dante?…

Há muito tempo já abandonei a visão bucólica e idílica que muitos ainda possuem sobre os “animaizinhos lindinhos” que coabitam pacificamente conosco neste planetinha. As embalagens da Sadia ou da Perdigão, que mostram franguinhos sorridentes e alegres, como se fosse por pura dádiva que eles se oferecem às nossas bocas para serem devorados, são altamente enganadoras e “ideológicas” (no sentido marxista do termo: uma imagem invertida da realidade). Não é novidade alguma que os publicitários mentem pra caralho.

Pois a realidade que enfrentam estes animais não é nada sutil: os pintinhos logo depois de nascer têm seus bicos cortados numa espécie de “guilhotina” de linha-de-montagem; são amontoados em imensos galpões, que fedem a urina e fezes, onde vivem sem ver a luz do Sol por um único minuto de suas vidas; são engordados à força, ou seja, obrigados a engolir alimentos goela abaixo (a sensação deve ser semelhante àquela vítima de Seven – Os Sete Pecados Capitais que é punida pelo serial killer por sua gula…); a lotação, o desconforto e a imundície são tamanhos que os animais “enlouquecem” e ficam furiosos a ponto de serem capazes de se matar a bicadas (donde a “sábia” precaução da debicagem adotada pelas grandes corporações…). Abaixo, dois exemplos eloquentes retirados do Food Inc.: a super-lotação absurda e a “obesidade” forçada:

 

Não é minha intenção fazer ninguém vomitar o jantar. Mas acho que já passou da hora de acordarmos todos para o fato de que o modelo massivamente disseminado nos dias de hoje não tem nada a ver com aquela Fazendinha ou Granja familiar idealizada, ao estilo do Cocoricó, o programa infantil da TV Cultura; boa parte da carne que compramos nos supermercados provêm de fábricas, não de fazendas; é produto de um sistema industrial que trata a vida como mercadoria e os lucros como deus, e não de uma agro-pecuária que mantivesse viva qualquer noção de reverência à Mãe Natureza e dependência mútua entre todos os seres vivos. Seria urgentíssimo e necessário que aquela concepção do Fritjof Capra em Ponto de Mutação fosse mais conhecida e disseminada como contraponto à atual doutrina capitalistóide que faz com que milhões de animais vivam vidas inteiras – do berço ao túmulo – em condições piores que aquelas dos campos de concentração de Dachau ou Auschwitz.

O seguinte trecho do Isaac Bashevis Singer, judeu polonês emigrado para os EUA, Prêmio Nobel de Literatura e um dos melhores contistas que já tive o prazer de ler, sublinha o fato de tratarmos os animais de modo “nazista”, sem respeito algum por sua dignidade – devida e merecida, ao menos, pelos milhões de anos em que estes organismos foram engendrados pelo processo de evolução (eles nos precederam, nesta longuíssima estrada, aliás!), o que os torna organismos de complexidade raríssima no Universo por nós conhecido…

“Há muito eu chegara à conclusão que o tratamento do homem para as criaturas de Deus torna ridículos todos os seus ideais e todo o pretenso humanismo. Para que este estufado indivíduo degustasse seu presunto, uma criatura viva teve de ser criada, arrastada para sua morte, esfaqueada, torturada e escaldada em água quente. O homem não dava um segundo de pensamento ao fato de que o porco era feito do mesmo material e que este tinha de pagar com sofrimento e morte para que ele pudesse saborear sua carne. Pensei mais uma vez que, quando se trata de animais, todo homem é um nazista.” (…) “Do derramamento de sangue animal ao derramamento de sangue humano há um passo”. (…) “Tu não matarás também inclui animais”. —— ISAAC BASHEVIS SINGER (1904-1991). Prêmio Nobel de Literatura.

Falar sobre vegetarianismo e libertação animal, pra mim, é pôr em questão uma das mais graves alienações de massa que ameaça hoje o nosso planeta. Digo “alienação” querendo dizer o seguinte: aquele que se depara com uma salsicha ou uma caixa de hamburgueres ou almôndegas e não tem a mínima capacidade intelectual de refletir sobre a origem daquele produto, ou que não tem a mínima empatia em relação ao ser vivo, de carne-e-osso, cujo sangue teve que ser derramado para que aquele fragmento de seu cadáver estivesse ali, disponível para consumo humano, está alienado das realidades humanas mais fundamentais e está cego a mecanismos econômicos cruciais que determinam nossa sociedade. (mas que podem ser transformados, se o quisermos). E ignorar estas questões me parece perigoso: o consumidor que se proclama inocente usando como álibi sua ingenuidade e seu desconhecimento é na verdade cúmplice desta engrenagem grotesca – já que a financia. Concordo plenamente com o mais célebre dos “slogans” do movimento vegan: “se os matadouros tivessem paredes de vidro, todos seríamos vegetarianos”. E se cada um de nós tivesse que matar sua própria janta com as próprias mãos (pensem em Alexander Supertramp, em Into The Wild – Na Natureza Selvagem, naquela cena altamente impactante em que ele papa um urso), iríamos certamente preferir que existisse uma alternativa. A boa notícia é: existe.

Volto ao assunto qualquer hora, assim que pensar mais sobre o tema e tiver algo mais a dizer. Quem quiser debater, a caixa de comentários abaixo está aí, disponível justamente para isso. Alguns documentários excelentes estão na íntegra na Internet e compartilho-os abaixo. Informe-se!

http://video.google.com/googleplayer.swf?docid=6361872964130308142&hl=pt-BR&fs=true