Conheça alguns sonetos do 1º livro publicado pelo poeta Mário Quintana, “A Rua dos Cataventos” (1940):
“Minha morte nasceu quando eu nasci.
Despertou, balbuciou, cresceu comigo…
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequenina rua em que vivi.
Já não tem mais aquele jeito antigo
De rir e que, ai de mim, também perdi!
Mas inda agora a estou sentindo aqui,
Grave e boa, a escutar o que lhe digo:
Tu que és a minha doce Prometida,
Nem sei quando serão as nossas bodas,
Se hoje mesmo… ou no fim de longa vida…
E as horas lá se vão, loucas ou tristes…
Mas é tão bom, em meio às horas todas,
Pensar em ti… saber que tu existes!”
* * * * *
Estou sentado sobre a minha mala
No velho bergantim desmantelado…
Quanto tempo, meu Deus, malbaratado
Em tanta inútil, misteriosa escala!
Joguei a minha bússola quebrada
Às águas fundas… E afinal sem norte,
Como o velho Sindbad de alma cansada
Eu nada mais desejo, nem a morte…
Delícia de ficar deitado ao fundo
Do barco, a vos olhar, velas paradas!
Se em toda parte é sempre o Fim do Mundo
Pra que partir? Sempre se chega, enfim…
Pra que seguir empós das alvoradas
Se, por si mesmas, elas vêm a mim?
* * * * *
Deve haver tanta coisa desabada
Lá dentro… Mas não sei… É bom ficar
Aqui, bebendo um chope no meu bar…
E tu, deixa-me em paz, Alma Penada!
Não quero ouvir essa interior balada…
Saudade… amor… cantigas de ninar…
Sei que lá dentro apenas sopra um ar
De morte… Não, não sei! não sei mais nada!…
Manchas de sangue inda por lá ficaram,
Em caea sala em que me assassinaram…
Pra que lembrar essa medonha história?
Eis-me aqui, recomposto, sem um ai.
Sou o meu próprio Frankenstein – olhai!
O belo monstro ingênuo e sem memória…
* * * * *
Quando eu morrer e no frescor de lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua…
Nada mais quero com nenhum de vós!
Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão…
Que lindo a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!…
Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas…
E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto…”
(Sonetos XIX, XX, XXVI e XXXV)