Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
A pandemia deixa lições claras: “o novo coronavírus se alastrou pelo mundo graças à ação destrutiva e invasora do ser humano contra a natureza”, como afirmou o pesquisador Allan Carlos Pscheidt ao Brasil de Fato[1]. Um grande aprendizado da ecologia pode ser absorvido pelos indivíduos que vivem e refletem durante a quarentena do COVID-19. Somos apenas mais uma espécie no planeta Terra. Nossa soberba e irrefletida sanha de dominar os mais distantes quinhões da Terra com um modelo homogeneizado de relação ser humano-natureza colheu mais uma pandemia.
Imagine que delícia para um vírus aprender a se alimentar e aprender a viver no e do corpo humano. Pra quê se contentar de viver de/em morcegos, pangolins, cobras? O sonho de um vírus com pretensões “reais” é ser coroado como o desbravador de corpos humanos.
O reino microscópico ficou em alvoroço com mais essa conquista da evolução. A dinâmica da evolução microscópica é acelerada, a variabilidade genética boia no meio biótico. Crie a condição de um vírus conviver entre seus parentes que eles trocarão informações. Surgirá o suprassumo da seleção natural.
Um vírus com potencial pandêmico é aquele que balanceia transmissibilidade com letalidade. Se pesa demais na letalidade, seu hospedeiro padece rápido demais para se propagar. Se é pouco transmissível dá tempo para ser isolado e erradicado (saiba mais na Netflix: Explicando… Coronavírus[2]).
Para completar a performance desse novo jogador da evolução biológica, além de transmissível por vias aéreas, ele permanece de poucas horas no alumínio até 5 dias no plástico, e é possivelmente transmissível por via fecal-oral[3]. SARS-COV-2 disputa o páreo com Influenza e joga com ferramental qualificado.
Esse vírus é também sorrateiro, pode ficar até 14 dias para manifestar sintomas mais agudos, ou pode simplesmente não manifestar, usando pessoas como pontes para chegar em redes e perfis específicos, como exposto por Átila Iamarino [4]:
Na perspectiva de um parasita, a super população humana dá “água na boca”. É a mesma lógica das “pragas” que atacam uma monocultura. Monoculturas de soja dão água na boca da mosca-branca [5]. Se tivéssemos uma alfabetização ecológica [6] não ficaríamos assustados com a COVID-19.
O que assusta de fato é achar que o único caminho é fazer ambientes estéreis, itens descartáveis [7], manter as metrópoles superpopulosas e poluídas, sem saneamento, até que se encontre uma vacina para que possamos voltar à normalidade. O problema é a antiga normalidade!
Agora o Sars-CoV-2, covid-19 ou coronavírus – nomes dados ao vírus responsável pela pandemia em curso – parece apontar uma nova data para a mudança do século. Isso porque, segundo numerosos analistas, estaríamos diante de um evento que mudará a dinâmica do mundo contemporâneo. O nascimento do novo século – mais simbólico que cronológico – pressupõe mudanças culturais, sociais, econômicas e tecnológicas que reorganizarão os modos de vida e, sobretudo, as políticas de controle das populações (o que Michel Foucault chamou de biopolítica), bem como as políticas de controle das mentes (que Byung-Chul Han chama de psicopolítica), e que visam à otimização da produtividade por meio da autoexploração: cada indivíduo torna-se sua própria empresa, cujo sucesso ou fracasso só depende de si. [9]
A sociedade global precisou de duas décadas do novo século para cair na real da crise ecológica?
O retorno à antiga normalidade significa postergar a solução das causas das crises ecológico-sanitárias. A saúde humana é um estado complexo condicionado pelos determinantes sociais da saúde, que inclui uma relação dialética entre saúde humana e saúde ambiental. Ninguém se mantém muito tempo saudável em um ambiente doente.
Quando seu corpo demonstra padecer com sintomas de uma doença, o sábio altera hábitos, práticas e alimentações para auxiliar o sistema imunológico para superar a doença. Quando uma reação alérgica desponta, o sábio limpa o ambiente e se afasta do elemento alérgico.
As mudanças climáticas sozinhas não conseguiram despertar as massas para uma mudança de paradigmas de produção e consumo global. Perdemos a comunicação com as estações, com a dinâmica das águas, com os signos sutis do clima. Será que uma pandemia conseguirá?
Dizem que o peso de todas as formigas do mundo ultrapassa a massa de todos os seres humanos[10]. Porque a crise ecológica não foi desencadeada pelas formigas? Porque elas estão fazendo sua função ecológica. Nós, seres humanos, estamos fazendo nossa função? Estamos em contato com os sinais da natureza? Estamos buscando aprender essa linda enciclopédia ou estamos exterminando-a da forma como exterminamos culturas inteiras?
[3] Uma pequena porcentagem de indivíduos com coronavirus teve SARS-COV 2 identificados em seus tratos gastrointestinais: https://www.rivm.nl/node/153991?fbclid
Combinando a crítica anarquista ao Estado e ao Capital com uma perspectiva ecocêntrica vinda do veganismo, do primitivismo, da crítica à sociedade industrial ou da ecologia profunda, a filosofia eco-anarquista tem se mostrado uma fonte valiosa de reflexões e provocações para o contínuo desenvolvimento das teorias e práticas anarquistas, desafiando os paradigmas das escolas de pensamento mais tradicionais.
São consideradas como ligadas ao eco-anarquismo as seguintes tendências: o anarco-naturismo (inspirado por Thoreau, Tolstoi e Élisée Reclus), a ecologia social (que não se limita ao movimento iniciado por Bookchin), o anarcoprimitivismo (representado por John Zerzan e os autores da revista Green Anarchy) e o veganarquismo (movimento anarquista e vegano).
O anarcoprimitivismo e o veganarquismo se destacam em tempos de pandemia pela crítica que já faziam há muito tempo à sociedade de massas e à domesticação de animais como fatores da produção de pandemias e novas doenças. (Janos Biro)
CONHEÇA OS DEBATEDORES:
PEDRO TABIO é urbanista, bioconstrutor, agricultor, inpermacultor libertário, eco-anarquista e editor na Monstro dos Mares.
JANOS BIRO é formado em filosofia pela UFG e membro do coletivo eco-anarquista Contra a civilização (contraciv.noblogs.org). Criador do site Contrafatual (contrafatual.com).
RENATO COSTA é chef vegano e estudante de jornalismo na UFG.
EDUARDO CARLI é jornalista, filósofo, mestre em Ética e Filosofia Política pela UFG, professor do IFG, fundador d’A Casa de Vidro, onde atua como agitador cultural.
I) E O LOCKDOWN, ANARQUISTAS?Se observarmos as crises econômicas e políticas, os alertas climáticos, e agora a crise epidemiológica, muito do que um suposto alarmismo radical anunciava vem se concretizando. Hoje os bolsonaristas acusam a pauta do isolamento de alarmismo. Entretanto subjaz o problema da condução das medidas de isolamento por parte do Estado, amparado pelas recomendações dos organismos internacionais de saúde. Na visão de vocês, a possibilidade de isolamento total, obrigatório, conhecido como lockdown, contraria o princípio libertário defendido pelo anarquismo? O fator de controle sanitário, e consequentemente, a necessidade compulsória de isolamento legitimado pela ciência, em “defesa de vida”, contrariam as liberdades individuais e os princípios da auto-gestão coletiva? Quero dizer, o lockdown atenta, por princípio, contra a organização autônoma das comunidades? Ou seria manipulável apenas em caso de qualquer tipo de autoritarismo se valer da pandemia como álibi da repressão, no oportunismo da condução da crise em favor do Estado e do Capital?
II) TECNOFOBIA vs TECNOFILIA
Os ativistas eco-anarquistas, no que diz respeito às táticas de enfrentamento das forças sociais que causam as catástrofes ecológicas, aceitam de bom grado o uso das tecnologias digitais e das mídias sociais como ferramentas de mobilização? Percebem pautas em comum com movimentos como o Software Livre e certas vertentes do circuito hacker? Ou vocês consideram que a anarquia verde aproxima-se mais do anarco-primitivismo, da recusa diante de um cenário cibernético dominado por empresas como Facebook, Google, Apple etc.? Digo isso pois uma publicação do Comitê Invisível,Foda-se o Google (faccaoficticia.noblog.org), coloca em foco a diferença entre movimentos caracterizados por tecnofilia ou por tecnofobia, arriscando também a seguinte caracterização:
“O grosso dos marxistas e pós-marxistas juntam à sua propensão atávica para a hegemonia um certo vínculo à técnica-que-liberta-o-homem, enquanto uma boa parte dos anarquistas e pós-anarquistas se acomodam sem dificuldade numa confortável posição de minoria, ou mesmo de minoria oprimida, acantonando-se geralmente em posições hostis à ‘técnica’. Cada tendência dispõe até da sua caricatura: aos partidários negristas do ciborgue, da revolução eletrônica pela multidão conectada, respondem os anti-industriais que fizeram da crítica do progresso e do ‘desastre da civilização tecnicista’ um gênero literário bem rentável, feitas as contas, e uma ideologia de nicho onde nos mantemos quentes e aconchegados, à falta de entrever uma qualquer possibilidade revolucionária. Tecnofilia e tecnofobia formam um par diabólico unido por essa mentira central: que uma coisa como a técnica existe.” (Cap. 4)
Fragmento do livro Aos Nossos Amigos do Comitê Invisível que trata da expansão tecnológica e política sobre as formas de governo e controle social. “Uma empresa que mapeia todo o planeta, enviando equipes para fotografar cada rua de cada cidade não pode ter interesses apenas comerciais. Ninguém mapeia um território sem intenções de dominá-lo. ‘Don ́t be evil’”.
1. Não existem “Revoluções de Facebook” mas uma nova “Ciência de Governo”, a Cibernética. 2. Guerra a tudo que for Smart! 3. Miséria cibernética. 4. Técnicas contra tecnologia.
III) INTEGRAÇÃO COMUNITÁRIA EM TEMPOS DE CONSUMISMO PREDATÓRIO
Considerando mais especificamente o sujeito político contemporâneo, em relação com a coletividade massificada pelas formas de consumo predatórias, estimuladas em grande parte pela hegemonia neoliberal do culto ao mercado, quais seriam as dinâmicas entre o papel do indivíduo e sua integração comunitária para fixarmos uma agenda de transformações ambientais e sócio históricas, desejáveis no futuro próximo? Mais especificamente ainda, de acordo com os aspectos sociais da atual crise do Coronavírus, interpretados pelo crítica eco-anarquista ao capitalismo em geral, quais as estratégias eco-anarquistas que permitiriam a cada um e cada uma de nós influir numa conjuntura de luta contra as opressões coletivas e a degradação ambiental? Ou seja, minha pergunta vai no sentido de buscar saber como equacionar indivíduo e sociedade, do ponto de vista da filosofia anarquista, no contexto da crise ecológica e sanitária!
IV) A BADERNA ORGANIZADA?
A coleção de livros Baderna, originalmente publicada pela ed. Conrad, depois relançada pela Veneta, trouxe ao público brasileiro a oportunidade de conhecer mais sobre grupos anarquistas e similares, como Luther Blissett, organizados mundo afora, além de propiciar contato com pensadores como Hakim Bey e Raoul Vaneigem. Qual seria, para vocês, a importância de organizações coletivas de ativistas eco-anarquistas? Quais os exemplos destas que vocês poderiam citar? O que pensam sobre certas experiências no mundo atual, citadas por Camila Jourdan e Acácio Augusto, de regiões “liberadas” onde princípios anarquistas estão presentes na prática? Os autores se referem sobretudo “À experiência zapatista no México, cujos territórios autônomos se organizam de maneira federalista libertária, sem Estado e de modo comunal, e o confederalismo libertário de Rojava, no território de ocupação majoritariamente curdo que derrotou o Daesh (Estado Islâmico) e hoje está sob ameaça militar do Estado turco.” (pg. 9)
V) CARNISMO INFECCIOSO – UMA OUTRA ALIMENTAÇÃO ANARCOVEGANA É POSSÍVEL? Em relatório da OMS, Ben Embarek, especialista em segurança alimentar, atesta-se que o novo coronavírus veio do morcego, provavelmente mediado por um outro animal “criado para fornecer alimento”. Além disso, confirmou o que Manuais Epidemiológicos chineses já atestavam: a doença pode circular entre gatos, furões e cachorros. Estes fatos colocam em destaque o risco sanitário envolvido no consumo de carne e no morticínio de animais. O Vegan-arquismo vem denunciando há muito o abandono e a domesticação dos animais – uma sendo condicionante da outra. Pergunto: como vocês trata dessas urgências éticas e ecológicas, a exemplo da necessidade de se adotar uma dieta vegetariana, ou de se representar o veganismo como orientação ao consumo, e também como filosofia em si? Como vocês vêem o papel do veganismo na crise ecológica e na crise sanitária?
VI)A ABOLIÇÃO DO ESTADO: AINDA É O CENTRO DA PROPOSTA ANARCO?
Em Marx Selvagem, Jean Tible busca um “diálogo entre as concepções marxiana de abolição do Estado” com a noção de Pierre Clastres de uma “sociedade contra o Estado”. Sabemos que Marx polemizou com grandes anarquistas de sua época – Bakunin, Proudhon e Max Stirner – a respeito do processo de abolição do estado, visto como fim tanto pelo anarquismo quanto pelo comunismo. A diferença essencial estaria na reivindicação anarquista de extinção súbita do Estado em contraste com um processo mais gradual no âmbito do marxismo que prevê uma transição – a ditadura do proletariado servindo-se do Estado como “instituição transitória, da qual nos servimos na luta durante a revolução para reprimir à força os adversários” (ENGELS, citado por Tible, pg. 192). Para Lênin, o Estado burguês é sucedido pelo Estado proletário no pós-revolução de modo a “reprimir a resistência dos exploradores” (ou seja, combater a reação contra-revolucionária) mas também para “dirigir a grande massa da população na efetivação da economia socialista” (Lenin, 1918, citado por Tible, p. 194). Como compreendem os eco-anarquistas esta questão? É preciso abolir o Estado imediatamente ou gradualmente? De que modo a preocupação com as questões ambientais, ecológicas, de sustentabilidade, justifica práticas e movimentos que visam esmagar o Estado? E como ficam os Mercados e Corporações nesta luta, considerando-se que os Estados neoliberais atuais são basicamente lacaios das mega-empresas e seus financiadores, seus banqueiros, a classe rentista?
A Casa de Vidro Ponto de Cultura realizou o Webseminário Internacional “Desafios para a Popularização da Permacultura” na Sexta (20/03/2020, às 19h), com a participação de Eurico Vianna (Austrália), Sérgio Pamplona (DF), Adriana Galbiati (Mato Grosso do Sul), Djalma Nery (São Paulo), com mediação de André Baleeiro (Goiânia). Uma produção do Grupo de Estudos em Complexidade (EMA). Saiba mais: https://wp.me/pNVMz-6cW. ASSISTA AO VÍDEO DA TRANSMISSÃO COMPLETA (3h11min):
Temas abordados:
– O que é Permacultura? Um compilado de conhecimentos? Uma filosofia de vida? Uma escola de agricultura alternativa? Um movimento?
– Avanços da Permacultura: Histórico de estruturação, papel dos institutos, balanço dos PDCs, exposição de bons exemplos.
– Contradições da Permacultura: Nicho, influência na sociedade, apropriações indevidas.
– Benefícios para o planeta: A busca por uma vida regenerativa, importância em cenários disruptivos, de crise e distópicos.
– O que atravanca o crescimento e popularização da Permacultura? Limites e Potencialidades.
Palestrantes:
* Eurico Vianna (Austrália)
Doutor em desenvolvimento comunitário pela Griffith University na Austrália, autor, ativista socioambiental engajado com o planejamento de sistemas e propriedades regenerativas. Siga: Impacto Positivo com Eurico Vianna.
* Sérgio Pamplona (Distrito Federal)
Sérgio Pamplona tem formação em arquitetura e urbanismo pela UnB (1989). Conheceu a permacultura em 1995 e fez seu primeiro PDC em 1996. Desde então vem aprendendo e praticando permacultura. Editou a revista Permacultura Brasil (2000/04) e dá PDCs desde 2006. Vive no Sítio Nós na Teia, em Brasília, uma estação de permacultura com 22 anos de existência.
* Adriana Galbiati (Mato Grosso do Sul)
Adriana Galbiati é Engenheira Ambiental e professora de Permacultura. Pesquisadora na área de Saneamento Focado em Recursos, tem mestrado em Tecnologias Ambientais pela UFMS e é coautora do Catálogo de Soluções Sustentáveis de Saneamento, publicado pela FUNASA, em 2018. Atualmente trabalha principalmente coordenando e ministrando PDCs e outros cursos de Permacultura pelo Brasil.
* Djalma Nery (São Paulo)
Professor da rede pública estadual de ensino em São Carlos (SP), fundador da Associação Veracidade (entidade ambientalista do terceiro setor), permacultor, sociólogo graduado pela UNESP, mestre pelo programa de Ecologia Aplicada da USP, escritor e influenciador digital. Autor do livro independente “Uma alternativa para a sociedade: caminhos e perspectivas da permacultura no Brasil”, fruto de sua dissertação de mestrado, que debate a popularização da permacultura em nosso país.
Ao pensar no título deste livro, “Uma alternativa para a sociedade”, de que exatamente estamos falando? De que alternativa? Alternativa à que? Para quê?
Vivemos uma era que ameaça o planeta e todas as suas formas de vida por meio da exploração desmedida da natureza; uma sociedade que banaliza a violência e a miséria, explora os seres humanos e propaga aos quatro cantos a desigualdade e a injustiça. Tal cenário apresenta-se completamente insustentável, estando fadado a nos lançar ao caos e ao extermínio ainda que seja na busca de uma sobrevida para esse sistema que não dá valor a vida, mas sim vida ao valor.
O que a permacultura propõe para superar esses desafios, na prática, é uma revolução. É a busca de uma cultura da permanência em um contexto regido pelo imediatismo, individualismo e sem preocupação com nada nem ninguém que nos suceda; permacultura é a busca por um modo de vida e de organização humana que possa ser mais duradouro e sustentável de fato, e não apenas na retórica. Em outras palavras: essa é uma obra sobre possibilidades concretas de mudança.
Espero ser possível, durante a leitura deste livro, vislumbrar e contagiar-se com novas possibilidades, exatamente como aconteceu comigo durante a sua escrita: ao longo do processo, reforcei minha convicção de que é preciso experimentar outra maneira de existir e de estar no mundo, diferente desta que nos é oferecida a priori. Esperança e felicidade é o que sinto ao saber que não são poucas as pessoas dedicadas à construção destas e de outras tantas alternativas. – AUTONOMIA LITERÁRIA
* Grupo de Estudos em Complexidade (EMA): Grupo criado em Março de 2019 para estudar questões complexas a partir de múltiplas perspectivas, de forma a abranger o tema pelas diversas esferas que as envolvem. Este ano estamos focando na construção da Práxis Transdisciplinar, ou seja, na construção metodológica de um ser, fazer, pensar, conhecer e sentir reintegrado. Estamos basicamente dialogando a superação da “teoria + prática = técnica” com o campo epistêmico ampliado da transdisciplinaridade. ACESSE NOSSO MANIFESTO.
Mora em Goiás e quer participar do grupo? Mande e-mail para complexity.group.goiania@gmail.com ou entre em contato diretamente com Jardineiro Agroecológico @jardim.agroeco (instagram) – André Gepeto.
Possibilidades de participar:
Participação ativa no dia 20/03/2020, às 19h n’A Casa de Vidro (Goiânia-GO) – 1ª Av. 974 no Universitário.
Streaming (link será disponibilizado na véspera neste evento). Gravado via podcast Impacto Positivo e canal A Casa de Vidro no Youtube.
EXTERMINADORES DO FUTURO – A extrema-direita brasileira promove alguns dos piores crimes de ecocídio do século 21 na maior floresta tropical do planeta. Favorecidos pela política do desgoverno ilegítimo e oni-nefasto, bípedes irresponsáveis do agronegócio e do “ruralismo” predatório, os pecuaristas e latifundiários mais endoidecidos pela selvageria do capitalismo, avançam com fúria sobre a Amazônia. O clamor da Terra não é escutado por estes insensatos adoradores do vil metal, apaixonados pelas próprias polpudas contas bancárias, propulsionadas à riqueza mesmo que ao custo de ilegalidades e atrocidades.
Vão derrubando uma das áreas mais biodiversas da Terra para sobre as cinzas espalhar o gado e a monocultura – quando não o deserto. As arminhas que o fascista fã-de-torturador fazia no palanque estavam apontadas também para a cabeça da natureza – e agora elas estão atirando na cabeça de todos nós, terráqueos humanóides insanizados por uma doença chamada capitalismo.
Ao atentar contra direitos trabalhistas, salário mínimo ou aposentadoria digna, o governo destroçava “apenas” direitos de cidadãos brasileiros. Agora, em sua ofensiva contra Gaia, ao incinerar em ritmo acelerado a maior e mais biodiversa floresta tropical do planeta, avança sobre todos os cidadãos do planeta. O caráter necro e mortífero do desvario Bolsonarista, esta psicose de massas, manifesta-se ainda mais fortemente, com florestas virando cinzas e biodiversidade aniquilada irresponsavelmente. Tudo contribuindo para a intensificação de uma necropolítica, de um desgoverno da morte, de um reinado insano dos exterminadores do futuro.
Foto de Araquém Alcântara, 2019.
O Bolsonarismo é o triunfo da pulsão de morte, é uma espécie de estupidez piromaníaca, niilista e insensata, usando a máscara antiga da defesa de valores “tradicionais”. Um projeto político que diz ser “a favor da família tradicional brasileira”, mas que aniquila as condições de vida digna de centenas de povos que compõe a teia viva da brasilidade concreta, enquanto pratica o nepotismo oportunista mais grosseiro.
Neste Agosto turbulento, em nosso país obscurecido e adoecido pelo neofascismo, chegou a cair uma noite súbita sobre São Paulo às 15h da tarde. Não era um eclipse, nem nuvem pesada de tempestade, era a fumaça da floresta morta, a cinza de milhares de árvores chegando ao invés dos salutares rios voadores. Era a apocalíptica Queda do Céu anunciando-se, como na profecia xamânica de Davi Kopenawa, o sábio Yanomami.
A QUEDA DO CÉU. O céu está escuro às três da tarde. Não é preto, não é cinza. É uma mescla estranha de cores. É escuro. Há uma floresta queimada sobre São Paulo. Vai cair sobre a cidade a cinza de milhares de árvores. Assim se dá o encontro entre o Brasil que se julga civilizado e o Brasil que queimamos para civilizar. O Brasil que matamos cai sobre o Brasil que se acha vivo, esperto, moderno. A floresta vem visitar, vem avisar. Vai cair o céu. – Tarso de Melo
Em Brasília, onde mais de 100.000 mulheres manifestaram-se recentemente na Marcha das Margaridas e na Marcha das Mulheres Indígenas, o centro do poder federal era também chaqualhado pela potência popular no território também devastado do Cerrado. Brasília, se depender de nós, jamais será o bunker da Elite do Atraso como sonham os que se pretendem donos do poder em uma era pós-democrática.
A Amazônia em chamas fez Brasília acusar o golpe que começou a vir de todos os lados da Aldeia Global. O “mundo civilizado” enfim acordando para o flagelo terrível que é o necrogoverno neofascista brasileiro, #PrayForAmazonia ascendendo a trending topic, e muita gente se radicalizando e querendo ir muito além da oração. Afinal, orar é um modo de estar passivo e inativo, o que necessita-se de fato é de ação coletiva, como a que foi proposta de imediato por ecosocialistas, anarcoprimitivistas e neohippies: QUEIME FASCISTAS, NÃO FLORESTAS!
A Amazônia fica, Bolsonaro cai. Good deal, dudes. Pois precisamos muito mais de presidentes à la Evo Morales, que ascendeu de suas raízes como indígena Aymará e sindicalista cocalero à posição suprema do executivo Boliviano prometendo e cumprindo a proteção à Pachamama, do que de facínoras irresponsáveis como Jair Messias, este “projetinho de Hitler tropical” como diz Mário Magalhães. E é melhor já ir se acostumando com o total descrédito global desta figura que o mundo todo não compreende como pôde “hipnotizar” 57 milhões de cidadãos a ponto de concederem a ele seu voto. Tendo sido obviamente, nos últimos 30 anos, apenas um ricaço oportunista de opções morais retrógradas e práticas políticas truculentas, capaz de diarréias verbais em prol da ditadura e da tortura, e que nada fez em 30 anos enquanto deputado federal senão destruir a conta-gotas. Agora lhe foi dado o poder para destruir em larga escala.
Florestas e direitos vão sendo incineradas em velocidade recorde, a ponto de alguns movimentos sociais internacionalistas como o Extinction Rebellion estarem propondo um novo imperativo categórico para nossa época: percam toda a esperança e ajam como se a casa estivesse pegando fogo!Pois está. (Como bem expressou a jovem ativista Greta Thunberg)
“De acordo com o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), somente em junho deste ano, foram destruídos 920,2 km² de floresta na Amazônia, um aumento de 88% em comparação com o mesmo mês do ano passado. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) havia alertado que a devastação aumentou 88% junho e 278% julho na comparação com iguais períodos de 2018.”
O Sr. BolsoNero Motoserra, principal responsável pela catástrofe ambiental em curso, um ecocídio de vastas proporções que estarrece e preocupa a todo o planeta, colocando a Amazônia no centro do mundo, indicou para o Ministério do Meio Ambiente o Sr. Ricardo Salles.
Ninguém ainda soube explicar a contento como as instituições do país permitiram que tomasse posse como ministro de Estado o sr. Salles, uma vez que ele tinha sido condenado na justiça, em Dezembro de 2018, por improbidade administrativa e teve seus direitos políticos suspensos por três anos.
“Salles ocupava então o cargo de secretário estadual do Meio Ambiente do governo de Geraldo Alckmin (PSDB). A ação diz respeito à elaboração do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê, em 2016, área de proteção ambiental que contém 7.400 hectares. A área foi criada em 1987 e abrange 12 municípios da Grande São Paulo.” – Veja mais em UOL: https://bit.ly/2R7p0I5
A demagogia eleitoral engana-trouxas de Bolsonaro continha o promessa de que não indicaria para Ministro ninguém que tivesse sido condenado por corrupção – e eis o Brasil de 2019, com um condenado no MMA, um réu confesso de Caixa 2 (Onyx) na Casa Civil e um juiz ladrão que fraudou a eleição no super-ministério da Justiça e da Segurança Pública (Moro).
Derrotado nas eleições de 2018, em que concorreu para deputado federal pelo Novo, o Sr. Salles presidia o Movimento Endireita Brasil e sua campanha eleitoral teve vários momentos criminosos – como exemplificado pela imagem anexa. Reportagem do The Intercept Brasil, em Agosto de 2018, pede com ironia que “apreciemos um dos santinhos de Ricardo Salles”:
“Não sei se incitação ao crime contra adversários políticos pode ser considerada uma novidade na política. Salles escolheu o número 3006, uma referência ao calibre da bala que aparece no santinho, o que também não chega a ser uma novidade. O então candidato a deputado federal Delegado Waldir (PSDB) apresentava o número 4500, e seu slogan era “45 do calibre, 00 da algema”. O partido Novo rechaçou publicamente o candidato logo após a publicação da imagem, que claramente possui conteúdo ilegal. Se o partido desaprova e “diverge totalmente” dessa aberração, como é que aceitou que o criador dela se tornasse um dos seus principais candidatos a deputado federal?” – JOÃO FILHO. Veja mais: https://bit.ly/2nTcuf4.
O Sr. Salles nunca foi eleito para nada por ninguém. Mas como estes políticos estão cagando e andando para a democracia, isto não o impediu de ascender ao poder:
“Se o povo não lhe concedeu nenhum cargo público, Geraldo Alckmin resolveu esse problema. E não foi qualquer carguinho. Em 2013, Salles foi nomeado secretário particular do governador, uma função importante dentro do governo. Nessa época, o Movimento Endireita Brasil estava de vento em popa, e a página do grupo no Facebook já era uma referência para os reacionários brasileiros. Lá, eles faziam uma oposição radical aos governos petistas, se posicionavam radicalmente contra o casamento gay e defendiam, entre outros absurdos, a ditadura militar. O nível do Endireita Brasil é tão rasteiro que o grupo chegou a oferecer R$ 1000,00 para quem hostilizasse Ciro Gomes em um restaurante de São Paulo. Salles também chama o golpe de 64 de “movimento de 31 de março” e considera que “felizmente tivemos uma ditadura de direita no Brasil”. – THE INTERCEPT BRASIL (op cit)
Recentemente, em programa da Globo News, o Sr. Salles confrontou em debate Ricardo Galvão, ex-diretor do INPE (assista: https://www.youtube.com/watch?v=IpRUIvKbl0E), logo após o lamentável episódio em que, de modo autoritário e ditatorial, o sr. Jair Messias demitiu Galvão de seu cargo. A “falha” de Galvão, merecedora de demissão, havia sido divulgar dados verídicos e irrefutáveis sobre a escalada dos incêndios criminosos e do desmatamento ilegal na Amazônia. Como era de se esperar, Salles agiu diante de Galvão (professor titular de física da USP) como um rottweiller de seu patrão e um ardoroso defensor do facínora fascista que hoje ocupa a presidência da República.
É uma das primeiras vezes em nossa História que um idiota irresponsável age, na presidência da república, em prol da destruição insana das riquezas naturais e da biodiversidade do país que deveria governar, escalando um anti-ambientalista para o MMA, um aniquilador da educação pública para o MEC, uma pastora evangélica fundamentalista para o Ministério da Família e dos Direitos Humanos, um ex-juiz golpista para o Ministério da Justiça, um banqueiro Pinochetista com função de Privatizador Geral de Tudo no Ministério da Economia, uma dondoca agrotóxica conhecida como Musa do Veneno no Ministério da Agricultura, dentre outros absurdos surreais. Tá tudo de ponta-cabeça nestes tempos obscuros! Eis mais sobre o Ministro Salles:
“Ex-militante do DEM, incentivador do assassinato de sem-terras e defensor dos latifundiários, o ministro do Meio Ambiente que mente no currículo e foi condenado por fraude ambiental, tenta se esquivar da responsabilidade pelo aumento exponencial das queimadas que estão destruindo a Amazônia. Saiba mais sobre o ministro que, inclusive, tentou processar a Revista Fórum e perdeu” – saiba mais: https://bit.ly/2Hn7DgA.
Uma charge famosa que circula nas redes e que voltou a viralizar mostra o planeta Terra adoecido, todo esculhambado, cheio de esparadrapos e hematomas, sendo atendido por um médico que lhe diz: “Sinto muito, a sua doença é grave: você tem humanos.” A piada é afiada e certeira, mas acreditamos que o nome da doença, de fato, não é Humanidade mas sim Capitalismo.
Bolsonaro e Salles são monstros atrozes pois só enxergam a grana: obcecados pela insânia da ambição, agem de maneira completamente contrária ao que se espera de agentes públicos que tem por missão zelar pelo bem comum. Eles só querem saber do próprio ganho e do favorecimento de fazendeiros, latifundiários, pecuaristas e outros endinheirados. Bolsonaro e Salles são exemplos nefastos de gente desqualificada, irresponsável e brutal que entra na política com um único fim: o enriquecimento próprio e de seu círculo familiar:
“Em julho deste ano, o Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito para investigar suposto enriquecimento ilícito de Salles. De acordo com o MP, o ministro teve um enriquecimento atípico entre 2012 e 2017. Em 2012, quando foi candidato a vereador pelo PSDB, ele declarou à Justiça Eleitoral R$ 1,4 milhão em bens. Na última eleição, quando foi candidato a deputado federal pelo Novo, declarou R$ 8,8 milhões, um estranho aumento de 335%.” – REVISTA FÓRUM
Enquanto cresce no mundo todo uma tsunami de revolta e indignação diante dos crimes de ecocídio cometidos com a conivência do governo de extrema-direita brasileiro, que realizou a Festa da Desregulação Ambiental para favorecer pecuaristas, garimpeiros, madeireiros, latifundários etc., a Amazônia vai tendo altas porções de seu território reduzida a cinzas. Enquanto isso boa parte dos 57 milhões de eleitores do Coiso seguem passando pano pra fascista ou mantendo-se em silêncio conivente e cúmplice diante de crimes brutais contra o Brasil, contra o Planeta e contra as futuras gerações.
A imprensa internacional, com TeleSur, The Guardian e Democracy Now! na vanguarda, já repercute pelo globo o fato de que “os incêndios são sintomáticos das políticas mais amplas que estamos vendo do governo Bolsonaro”. Ou melhor, BolsoNero, o piromaníaco, o exterminador do futuro. O que nos empurra prum rolê Mad Max – não mais nos cinemas mas na distopia do real.
Se você acha que grana é mais importante que ambiente, tente segurar a respiração enquanto conta suas cédulas. O Brasil, que se rachou e se apartou por causa da polarização política em tempos de Golpes de Estado e Guerras Híbridas, não encontrou ainda o caminho à consciência coletiva da nossa interdependência: sem a Amazônia e seus “rios voadores”, o Cerrado e o Sudeste seriam lançados à desertificação. Ao colapso de um ecosistema biofílico. O Necrogoverno nos conduz a este abismo.
Estamos com 84 mil bolsas de estudo e pesquisa cortadas, 6.000.000.000 de reais bloqueados no orçamento da rede de educação federal, uma hecatombe ecológica na Amazônia e no Pantanal, e a festa do agrotóxico atingindo o auge (o veneno está na mesa, o veneno está no corpo…). Eis alguns dos efeitos do suicídio coletivo que o Brasil pratica ao permitir o prosseguimento do desgoverno neofascista, ilegítimo e oni-nefasto, ovo parido pela serpente do golpe de Estado.
O crime de etnocídio e de genocídio já estão bem tipificados no direito internacional, e possuem várias entidades de defesa de direitos humanos que buscam defender as populações contras estas atrocidades de extermínio. Mas o crime de ECOCÍDIO ainda é pouco conhecido – agora Bolsonaro e as hordas que se sentem por ele representadas e autorizadas servem como o sangrento emblema de um novo paradigma global de ecocídio. Boa parte da mídia progressista internacional, com o The Guardian e o The Intercept à frente, já perceberam que o mundo enxerga cada vez mais Bolsonaro como “exterminador do futuro”, como um estadista-demente que atinge o auge de insânia no trato com o meio ambiente.
Alguns podem pensar que o crime de ecocídio é menos grave que etnocídio ou genocídio, mas creio que estes três conceitos estão interligados de formas muito intensas pois quem destrói um ecosistema pratica de fato um genocídio e vários etnocídios caso consiga de fato aniquilar as condições para que a condição humana prossiga existindo em tal território.
O ecocídio, que é um gravíssimo atentado contra as condições da vida florescente, talvez deveria ser tipificado não como “crime contra a humanidade”, o que seria limitante pois confinaria o escopo do conceito à influência sobre os humanos, mas sim como “crime contra a Teia da Vida” (Fritjof Capra), pois implica agir como carrasco de uma fauna e flora que transcende o humano e constitui a pluridiversa Teia da Vida. A filosofia contemporânea, com Michel Serres e Hans Jonas, argumentou que a Teia da Vida deveria ser objeto de um Contrato Natural ou de um Pacto de Responsabilidade firmado entre os humanos e todo o restante da vida-em-teia-que-integramos.
O Bolsonarismo, para além da psicopatia de sua “política de costumes” (racista, machista, heterosexista, elitista, armamentista, sectária, sádico-perversa até os ossos), funciona concretamente sobre o planeta como mais uma mega-máquina exterminadora de Gaia, aniquiladora de diversidade. Um fascismo ecocida full throttle.
A Amazônia é de fato o centro do mundo, como disse Eliane Brum, mas no centro do mundo está uma distopia em chamas e uma floresta atrozmente devastada. E a necessidade inadiável de um planeta que se una em Resistência e que salve-nos – pela ação coletiva, nunca por preces inúteis à Providência Divina – da catástrofe ecocida-genocida conexa ao desgoverno bolsonarista.
Quando mais um jornalista tenta fazer seu trabalho, e pergunta ao presidente sobre a fundamental conciliação entre crescimento econômico e preservação ambiental, de forma inimaginável em situações normais de sanidade e educação, ele ataca o jornalista, falando para cagar dia sim, dia não, para poluir menos. Uma brincadeira incabível vinda da boca de um presidente, que desvia uma discussão importante para a mais vil das baixarias.
O ano de 2019 no Brasil inaugurou um gênero raro de análises políticas que chamo de “psicanálise política”. Nunca os psicólogos tiveram um papel tão fundamental na política. Afinal de contas, como não ver as atitudes do presidente sem notar que ele acumula complexos (ego inflado [1], pulsão anal-sádica [2], recalcamento da sexualidade com consequências fascistas[3]) mal lidados e transmitidos aos seus filhos?
Ao fazer uma brincadeira de que a solução para reduzir a poluição estaria em cagar a cada dois dias, Bolsonaro demonstra a forma como ele lida com seu sistema digestório. Com sua agressividade, ele se encaixa perfeitamente na situação do “enfezado”. Este termo, proveniente de “fezes”, demonstra em sua etimologia um conhecimento popular que é reforçado por conhecimentos científicos: Quem acumula suas fezes sofre de mau humor!
O Intestino delgado, com cerca de 6 metros, e o intestino grosso, com 1,5 metros, juntos tem realmente uma grande capacidade de produzir e armazenar bolo fecal. Mas estes órgãos não foram feitos para armazenar. Primeiramente, porque têm o formato de um corredor estreito e depois porque a deposição de fezes obstrui a passagem, atrapalha o movimento peristáltico, e esse contato maior com o bolo fecal faz com que as paredes reabsorvam toxinas das fezes. Essa alteração do funcionamento digestivo tem diversas consequências negativas para a saúde, das quais o mau humor é apenas uma delas.
Um presidente constipado, com uma obsessão especial pelo orifício final do intestino grosso, mais uma vez brinca com a questão ambiental. Uma brincadeira infeliz que me lembra uma aula da graduação em que meu professor conta a história do vaso sanitário. O vaso sanitário como conhecemos hoje foi inventado pelo neto da Rainha Elizabeth I no século XVI com o objetivo de se sentar para defecar. O problema é que, anatomicamente, a postura de cócoras é a que mais propicia os movimentos peristálticos, responsáveis pela evacuação. Portanto, dos vários problemas que as populações tradicionais sofrem, a prisão de ventre não está entre eles. O colonialismo é que é enfezado.
Após fazer a piada, o presidente aparentemente retoma seu ar de seriedade e fala que para conciliar crescimento econômico e preservação ambiental é preciso uma política de pla – planejamento familiar (sic), ressaltando a regra de que pessoas que tem mais cultura têm menos filhos, e que ele é uma exceção. Malthus acabou de ser revivido em sua versão piorada dois séculos depois. Mas porquê?
Thomas Malthus previu que a população mundial cresceria em progressão geométrica enquanto a produção de alimentos cresceria em progressão aritmética, resultando em uma fome mundial. Para os dados e tendências de sua época, sua preocupação era sensata. Apesar disso, ele errou pois não havia previsto o aumento de produtividade agrícola da forma como ocorreu.
Mas o fato curioso é que Malthus
“defendeu a abstinência sexual para reduzir a produção de novas bocas. Dentro da tradição de muitos moralistas modernos, não sentiu nenhuma compulsão de inibir a si mesmo e teve muitos filhos. A continência era, ao contrário, uma coisa a ser praticada pelos outros, para que os filhos e netos de Malthus pudessem viver num mundo ordeiro e bem alimentado. ”
(O Espectro de Darwin, Michael Rose, Zahar, 2000)
Como Bolsonaro não leu Paulo Freire, ele não vê que “é fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática”. Para Bolsonaro, a hipocrisia é uma opção ontológica. Por isso, seguindo a fraca lógica do presidente, ele não é a exceção à regra de que quem tem mais filhos tem menos cultura. Ele, com seus 5 filhos, é a regra.
Portanto, para a China, o planejamento familiar (e especificamente o controle populacional) é parte fundamental da solução ambiental. Da mesma forma que, para os EUA, a solução passa por reduzir o consumo, produzir de forma mais sustentável e produtos mais duráveis. No caso do Brasil, a centralidade desta discussão está em parar o desmatamento que esse governo incentiva, reduzir o fosso da desigualdade social, que provoca tantas injustiças socioambientais, reestruturar a produção nacional para mudar o papel brasileiro de vendedor de matérias-primas, que minera as montanhas para a retirada de metais, que minera o solo [5] para a retirada de commodities, e que deixa para o brasileiro o mar de lama, os desertos verdes, a fuligem e o veneno.
[5] Ana Primavesi, maior expoente da agroecologia no Brasil, se refere à prática agrícola do agronegócio como mineração do solo. A técnica de fertilização química, fruto da mineração, é aplicada no plantio homogêneo de extensas áreas de solo exposto (como na mineração), com uso intensivo de maquinário pesado e elementos tóxicos (como na mineração). Ver Manual do Solo Vivo, Ed. Expressão Popular. 2016.
A principal líder indígena do Brasil solicitou à União Européia a imposição de sanções comerciais para prevenir um desastre ecológico e “extermínio social”, sob o presidente eleito da extrema direita de seu país, o qual tomará posse em primeiro de janeiro.
Jair Bolsonaro tem aterrorizado comunidades indígenas com a promessa de tomar cada centímetro de suas terras, de classificar ativistas de direitos como “terroristas” e cortar a Amazônia com uma rodovia que poderia desmatar uma área maior que a Alemanha.
Sônia Guajajara, líder da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APBI), que representa mais de 300 grupos indígenas brasileiros, disse: “Tememos um novo genocídio contra a população indígena e não vamos ficar esperando que isso aconteça. Nós resistiremos. Defenderemos nossos territórios e nossas vidas”.
Antes de ser eleito, Bolsonaro, um admirador dos ditadores militares, convocou as minorias a submeter-se à decisão da maioria, ou desaparecer. Certa vez declarou: “É uma pena que a cavalaria brasileira não tivesse sido tão eficiente como os americanos, que exterminaram seus índios”.
“Bolsonaro é a clara expressão (o motivador) do extermínio social”, Guajajara informou ao The Guardian.
Durante o curso de sua campanha eleitoral de três meses, a APBI (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) observou aumentos significantes da violência, intimidação e destruição ambiental.
Bolsonaro promete aumentar a produção de commodities descartando regulamentos que protegem a Amazônia e os povos indígenas. Já existem alegações de uma “epidemia” de atividades ilegais de mineração.
Ativistas temem que os frutos amazônicos possam ser exportados conforme o trato de livre comércio que a UE está negociando com o Brasil, como parte de um acordo mais amplo com o grupo de nações do Mercosul.
A Europa é o segundo maior parceiro comercial do Brasil, responsável por 18% de seu comércio.
A UE deve “monitorar e controlar” as exportações brasileiras, considerando a destruição ambiental, disse Guajajara.
Guajajara disse: “A UE deve levar em conta os impactos sociais e ambientais de sua política comercial e boicotar produtos de áreas de conflito, tal como a soja da região Centro-Leste do Brasil”.
Medidas de diligência devida devem ser aplicadas a cadeias de fornecimento para detectar a origem de produtos de alto-risco, incluindo soja, carne e óleo de palma, antes que sejam exportados para a Europa, ela argumentou.
“A UE deve monitorar e controlar de onde se originam esses produtos”, disse. “Não é suficiente apenas acatar a informação oficial; também devem observar a situação em campo.”
Uma diretiva sobre desflorestamento, publicada por Bruxelas na terça-feira, objetiva “intensificar a ação da UE contra o desflorestamento tropical”, com cadeias de fornecimento mais sustentáveis, melhor coordenação global e fluxos de capital mais transparentes. Mas nenhuma regulamentação é proposta.
Espera-se uma nova comunicação da UE no próximo ano.
Fontes da comissão europeia alegam que o acordo do Mercosul possuiria um capítulo de desenvolvimento sustentável sobre a conservação de florestas, comércio de vida selvagem, direitos trabalhistas, e “provisões sobre condutas de negócio responsável”.
O pacto visa “um novo fórum para discutir como tornar nossos fluxos de comércio mais sustentáveis”, uma fonte informa, com vias para endereçar os direitos dos povos indígenas e permitir que preocupações ambientais sejam expostas.
Uma declaração da ONU já reconhece o papel vital dos povos indígenas na preservação dos ambientes florestais – e seus próprios direitos ao território conservado. Mas 49 defensores do meio-ambiente foram assassinados no Brasil em 2016.
“Não se pode conservar a floresta amazônica, a menos que sejam preservadas as vidas daqueles que vivem ali”, Guajajara disse.
Na semana passada, Bolsonaro comprometeu-se a abolir o Ministério dos Direitos Humanos e transferir a fundação dos direitos indígenas, Funai, para um novo ministério focado nos direitos das mulheres e famílias.
A Amazônia ainda contém uma estimativa de 120 povos indígenas não contatados, cujas vidas estão consideradas sob ameaça.
Se a UE se esquivasse de uma ação comercial agora, estaria fechando os olhos ao genocídio de povos e culturas, e acelerando a destruição do meio-ambiente e de mudanças climáticas”, disse Guajajara. “Isso trará consequências não apenas às populações indígenas, mas ao planeta como um todo.”
A autêntica riqueza não mora em contas bancárias nem em bolsas de valores, mas em nossa sociobiodiversidade em carne viva – eis um dos ensinamentos do documentário “O Futuro Nos Frutos”
Há 12 anos, o “Encontrão” também realiza edições anuais da Aldeia Multiétnica (http://www.aldeiamultietnica.com.br/), que “visa promover trocas e unir os povos indígenas para fortalecimento de suas culturas individuais e lutas em comum, além de proporcionar a aproximação de não-indígenas com alguns destes povos, criando a oportunidade de experiências, contato, sensibilização e aprendizado sobre as culturas e organização social de cada etnia em uma imersão de sete dias”.
O Encontro e a Aldeia são alguns dos frutos do trabalho perseverante e louvável da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge(foto acima, por Marcelo Santos Braga), um ponto-de-cultura exemplar, alinhado aos ideais e práticas de Gilberto Gil e Juca Ferreira quando estiveram à frente do MinC e do Programa Cultura Viva.
A “Cavaleiro”, como é conhecida, vê como sua missão “proporcionar encontros que valorizem a sociobiodiversidade, possibilitando a troca de saberes e fazeres.” A casa é um autêntico templo da Cultura Viva: “erguida em paredes de pedra toá, típica da região, com o propósito de ser um espaço democrático para manifestações da cultura popular tradicional e um símbolo sustentável de fortalecimento das expressões da diversidade cultural.”
Abaixo: fotos do Encontro de Culturas 2018
Durante as últimas duas décadas, a Cavaleiro e o Encontrão potencializaram os intercâmbios entre os diversos povos que habitam o Brasil, servindo como laboratório para o fortalecimento da nossa sociobiodiversidade e contribuindo para o fortalecimento dos povos originários e das populações quilombolas, sempre tendo as expressões artísticas e as festividades populares como eixo condutor. A Cavaleiro tem em mira:
“Proporcionar encontros que valorizem a sociobiodiversidade, possibilitando a troca de saberes e fazeres. Esta é a missão da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, nascida em meio ao cerrado goiano, em 1997, no distrito de São Jorge, antiga vila de garimpeiros, à entrada do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Valorização cultural, força, fé, alegria, resistência e diversidade são os valores que norteiam a história do Cavaleiro – como é chamado pela comunidade –, erguido em paredes de pedra toá, típica da região, com o propósito de ser um espaço democrático para manifestações da cultura popular tradicional e um símbolo sustentável de fortalecimento das expressões da diversidade cultural.”
Vivenciando eventos como o Encontro de Culturas, abre-se a possibilidade da descoberta de que a autêntica riqueza não mora em contas bancárias nem em bolsas de valores, mas em nossa sociobiodiversidade em carne viva. É este um dos muitos aprendizados propiciados pelo Encontro de Culturas, uma chance ímpar para a expansão dos horizontes dos sujeitos envolvidos em interações e intercâmbios transformadores.
São eventos que dão ânimo àqueles dentre nós que sabem que um outro mundo não só é possível: é necessário e inadiável. Aprendamos juntos como inventá-lo na escola daqueles que, desde já, estão inventando esta realidade alternativa onde (pasmem!) a diversidade é celebrada e não aniquilada, a arte é valorizada e não pisoteada, e o convívio fecundo, ao invés de exceção, é a regra.
O Futuro nos Frutos é um curta-metragem documental, de 29 minutos, que anseia comunicar um pouco da riqueza deste evento através de um concentrado audiovisual que sirva como portal rumo a uma realidade onde as pessoas já vivem como se o mundo melhor já fosse carne: conectividade com a alteridade ao invés de rumos de segregação; celebração das diferenças e das descobertas ao invés de fechamento solipsista em seu próprio meio ou classe; aprendizado com a diversidade multicolorida ao invés da acomodação à cinzenta monocromia que nos querem impor.
Sinto e penso que há poucos espaços mais ricos para fazer isso que devemos seguir fazendo até o último suspiro – ou seja, aprender! (“cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz”, como diz Gonzaguinha) – do que o Encontro de Culturas e, dentro dele, a Aldeia Multiétnica. Toda uma fervilhância cultural conectada ao evento – potencializada pelas seduções do ecoturismo: as cachus, cânions e tirolesas – faz de São Jorge e Alto Paraíso locais muito especiais na época do Encontrão.
Comparecem elementos como tambores e instrumentos de todos os timbres, peles de todos os matizes, madeixas de todas as formas, pinturas corporais e tatoos de todos os tipos, além de ambientes propícios para papos e parcerias envolvendo elementos díspares como ayurveda, permacultura, tarot, tantra, Prem-Baba-íces, holismo, sustentabilidade, astrologia, ufologia, ayahuasca…
As ruas são lindamente invadidas por trupes de músicos, dançarinos, piromaníacos, palhaços, batuqueiros, ciganos, hippies, místicos, viajeiros, rastafáris etc., num caldeirão humano de todas as cores e matizes, onde mesclam-se e praticam remixes os povos mais diversos: Kalungas, Fulni-Os, Krahôs, Xinguanos, e por aí vai… É a “geléia geral brasileira” de que nos falam Torquato, Gil e Pignatari. Expressão em carne viva de nossa rica multiplicidade humana, arco-íris cultural com bem mais que 7 cores (700? 7000?), como sugeriu Eduardo Galeano em sua poética comparação entre o arco-íris celeste e o terrestre.
Na convicção de que o cinema documental pode e deve explorar a senda do retrato multifacetado do arco-íris terrestre, realizamos este trabalho no espírito de quem deseja compartilhar com um público mais amplo aquilo que é experiência de muita valia e ensinamento. E diz o provérbio que uma sociedade sábia é aquela em que muita gente é capaz de plantar as sementes de árvores cujas sombras jamais irá aproveitar, e cujos suculentos frutos só serão provados por aqueles que ainda não nasceram ainda.
O FUTURO NOS FRUTOS: AS SEMEADURAS DO ENCONTRO DE CULTURAS – Créditos
Um filme de Eduardo Carli de Moraes. O filme contou com a participação e colaboração de Jefferson Passos, Odara Kadiegui, Tila Avelino, Turma Que Faz, Doroty Marques, Aíla, Tamyres Maciel, Juliano Basso, Flor de Manacá, Nãnan Matos, Sussa de Natividade, Caçada da Rainha de Colinas do Sul, Comunidade Kalunga, Fhanny Leal, Carol Viana, Cinthia Akemi, Julimar dos Santos, Barracão Centelha, Alessandra Leão, Luedji Luna, Xaxado Novo, João Arruda, Marcelo Taynara, Goiaba e os Tranquilos, Mateus Aleluia, Uapukun Mestokosho, Léane Tremblay. Além dos Povos conviventes na Aldeia Multiétnica: Fulni-ô; Kayapó Mebengôkré; Krahô; Xavante; Kariri-Xocó; Guarani M’Byá; Povos do Alto Xingu; Povos do Québec (Canadá).
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RENASCENDO DAS CINZAS: POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS EM QUESTÃO
Naquela ocasião, os “ponteiros” responsáveis por dar vida e fluxo à Cultura Viva do Brasil, após dias de intenso convívio e debates, publicaram um documento histórico, a Carta de São Jorge (Julho de 2015), que não perdeu um grão de sua atualidade e que serve de fio condutor e contexto sócio-histórico ao nosso livro Encontros no Encontro:
O Brasil, que pulsa diversidade, está atento à onda conservadora que assola o país e promove uma crise civilizatória. Setores reacionários atacam nossa juventude por meio da redução da maioridade penal e o genocídio do juventude negra, agridem povos de terreiro, mulheres e a comunidade LGBTT com o crescente fundamentalismo religioso. Indígenas, quilombolas e povos tradicionais sofrem uma ofensiva do grande capital contra seus territórios. Fica claro para nós que as conquistas sociais e econômicas dos últimos anos não são suportadas pelas elites do nosso país, que se unificam no congresso nacional, alimentados pela grande mídia, numa ofensiva, não somente contra a presidenta eleita, mas à democracia, afrontando os princípios constitucionais brasileiros.
Não aceitamos o imobilismo do governo, que opta por não enfrentar o debate político e recua em pautas estruturantes e urgentes para a nação. Repudiamos a política de ajuste fiscal que ataca direitos do povo brasileiro e interrompe um ciclo de redução das desigualdades sociais vividos na última década.
Entendemos que a cultura deve estar na centralidade do modelo de desenvolvimento do país. E um governo que tem como lema “Pátria Educadora” deve reconhecer as sabedorias, os conhecimentos e os ensinamentos próprios de seu povo. Deve reconhecer, também, que quem faz cultura, quem produz cultura, não são gestores em gabinetes, mas o povo no seu viver, conviver, sobreviver, existir e resistir.
A Política Cultura Viva (Lei 13.018) é a afirmação de que sem diversidade com base nos direitos humanos, não há cidadania. Ela é essencial para combater o avanço conservador em marcha e construir uma sociedade emancipada. Chamamos a responsabilidade dos governos Federal, estaduais e municipais a assumirem seu compromisso com a política e o cumprimiento das metas do plano nacional de Cultura.
Mais do que resistir, convocamos o movimento cultural brasileiro a assumir protagonismo na luta, organizando a sociedade nas redes e nas ruas por mais democracia e mais direitos, unificando esforços de mobilização no ato do dia 20 de agosto.
Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, Reunida entre os dias 28 de Julho a 01 de Agosto. Vila São Jorge, Alto Paraíso, Chapada dos Veadeiros – GO
Os agentes culturais reunidos em 2015 não podiam imaginar, naquela época propícia aos avanços de políticas culturais inclusivas e inteligentes, o quanto a maré iria mudar subitamente a partir do ano seguinte. Em 2016, com o processo político de Golpe de Estado que encerrou precocemente o segundo mandato de Dilma Rousseff, a maré parou de estar pra peixe no que diz respeito às políticas públicas de cultura no Brasil: o próprio MinC quase foi condenado à extinção, permanecendo em sua existência institucional (hoje quase decorativa…) apenas após mobilizações fortes da classe artística e dos produtores culturais, que ocuparam Iphans e Universidades, exigindo que o governo Temer voltasse atrás.
Assim como o fogo que reduziu uma porção do Cerrado a cinzas em 2017, o Encontrão sofreu em 2018 com as dificuldades decorrentes dos efeitos perversos da ruptura brutal da democracia no país ocorrida com o golpe parlamentar de 2016 e a emergência do criminoso governo encabeçado por Temer. Um (des)governo que, como sabemos, sempre procurou mandar a Cultura para a UTI: o colapso das políticas públicas culturais construídas durante a gestão Gilberto Gil e Juca Ferreira é hoje explícito como uma fratura exposta.
A utopia tropicalista no poder – isto que se tornou uma fulgurante realidade nos anos do “lulopetismo”, liderada por Gil e Juca no MinC – foi logo torturada e sufocada pelos usurpadores do poder.
Após a derrubada fraudulenta da presidenta legítima Dilma Rousseff (cujo mandato se encerraria neste 2018, com Lula como seu Ministro da Casa Civil, caso não tivesse sido encerrado antes da hora por um coup d’État de nefastíssimas consequências), a Cultura, no Brasil, vai padecendo da mesma inanição que nos lançou de volta ao Mapa da Fome.
Para incremento das dificuldades já consideráveis que se erguiam no caminho dos produtores culturais com a missão de fazer-acontecer o 18º Encontro de Culturas, há os traumas e as cinzas do passado recente. Em 2017, um gigantesco incêndio espalhou-se pela Chapada dos Veadeiros e o fogo consumiu vorazmente cerca de 66 mil hectares – o equivalente a 28% da unidade de conservação – da rica flora e fauna do Cerrado.
Em um dos piores desastres sócio-ambientais ocorridos no Brasil depois da hecatombe do Rio Doce, a Chapada dos Veadeiros viu-se lançada a um estado de emergência que exigiu solidariedade construída às pressas. Um mutirão de ativistas e cidadãos conscientes se mobilizaram em brigadas para apagar o fogo e triunfaram após 20 dias de intensos e fatigantes trabalhos (leia mais minúcias nesta reportagem da Mídia Ninja):
“Segundo Christian Berlinck, coordenador de combate ao fogo do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade, o Governo Federal gastou aproximadamente um milhão de reais na operação. Da sociedade civil, foram quase 200 voluntários envolvidos nas funções da operação e quase 600 mil reais arrecadados em um exitoso financiamento coletivo, que continuará a ser feito, na criação de brigadas voluntárias permanentes, que atuariam anualmente.” – Ninja
Neste contexto, foi um dos momentos mais tocantes do festival quando Mateus Aleluia tocou o blues-brasileiro, só na voz-e-violão, “Amor Cinza”, pedindo celebração pois “o amor há de renascer das cinzas”. O coro que se entoou na oca foi de grande potência expressiva e serviu como emblema dos esforços dos agentes culturais brasileiros. Nós, que precisamos fazer a Cultura Viva estar em modo permanente de Fênix, renascendo das cinzas após o fogo devastador que é o descaso de certos governos com o fomento e o fortalecimento da nossa diversidade cultural e de nossas expressões artísticas.
“Nascer é muito comprido”, escreveu o poeta Murilo Mendes (1901 – 1975). O que ele quis dizer com isso? Que nascer é um processo, mais que um momento? Que é um interminável amadurecimento e um vir-à-vida sem fim, e nunca um acontecimento que se pode dar por acabado?
Talvez nascer seja começar a carreira de “eterno aprendiz”, de que nos fala a belíssima canção de Gonzaguinha? Não se cumpre em pouco tempo a missão comprida de nascer, é verdade! Mas será que nascer dura toda uma vida? Assim como nunca se aprende por completo a arte de viver, nascer é um troço que a gente nunca termina de fazer. Os despertos saberão do que falo, pois estão alertas à eterna novidade do mundo.
“E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…”
FERNANDO PESSOA
Heterônimo: ALBERTO CAEIRO
Poema: O meu olhar é nítido como um girassol
A filosofia, acredito, pode ajudar os seres humanos, assim como o fazem grandes poetas, a caminhar com sabedoria-de-Heráclito pelo futuro adentro. A filosofia convida-nos a sermos sábios em nossa caminhada em que vamos ao encontro do futuro, inclusive daqueles eus que seremos. Cada um de nós não é, mas sim está sendo: indivíduos em fluxo, psiquês móveis, metamorfoses ambulantes.
Quem sabe que tudo flui (panta rei) vai pro porvir com a abertura de espírito daqueles que esperam o inesperado. Abertos à potência de transformação que pulsa no cosmos, os sábios caminham rumo àquele outros que serão, àqueles em quem se transformarão quando o rio do tempo tiver fluído adiante mais um pouco, arrastando-nos consigo.
Nascer, para Hannah Arendt, é adentrar no mundo comum e nele chegar como irrupção do novo: aquilo que nasce é o inédito. Diante de cada recém-nascido, pode-se dizer: nunca antes existiu um ente idêntico, a existência humana aqui se manifesta novamente em um exemplar de singularidade, por mais que suas semelhanças com os outros seres humanos sejam também significativas. Ninguém nasce igual a alguém que já tenha nascido, ainda que o nascimento nos seja comum a todos como porta-de-entrada que compartilhamos de maneira explicitada pela pintura “A Origem do Mundo” de Coubert.
“A ORIGEM DO MUNDO”, de Gustave Courbet
Acho bela e verídica a idéia que a filósofa formula, inspirada por Santo Agostinho e sua noção de initium: Hannah Arendt queria fazer de nós pessoas com antenas para o novo, com mentes atentas ao fato de que o nascimento é um fenômeno do mundo que tem a ver com a renovação necessária.
Estudando os fenômenos históricos escabrosos e brutais do século 20 em Origens do Totalitarismo, em especial comparando o III Reich alemão e o período Stalinista da União Soviética, Hannah Arendt ensinou-nos que se tratam de tiranias políticas sem precedentes, atrocidades inéditas, rupturas brutais com a tradição, situações-limite.
Nada disso impedia que, para ela, o nascimento continuasse sendo uma espécie de Princípio Esperança (para lembrar da monumental obra de Ernst Bloch), ou seja, o nascimento, fator de inovação, colocaria à educação e à política suas maiores responsabilidades, mas também suas mais imensas promessas, permanentemente a inspirar os trabalhos da vontade humana em seu trato com um porvir (inédito) a construir:
“Observa Hannah Arendt que, para santo Agostinho, a vontade é a faculdade integradora das outras aptidões mentais do homem, na sua relação com o mundo das aparências, e é por meio dela que os seres humanos se abrem para o futuro. Na análise agostiniana da temporalidade, além do começo absoluto que assinala a criação do céu e da terra – o principium -, existe para cada homem um começo relativo – o nascimento, o initium – que significa que os homens nascem como noviços num mundo que os precede no tempo. Neste mundo, existe a liberdade da espontaneidade, que se volta para o futuro através da vontade humana.
O initium de Agostinho – pensador sobre o qual Arendt se debruçou desde a sua tese de doutoramento – é uma das raízes da categoria de natalidade, que ela erige como uma das categorias centrais da política em A Condição Humana, nela vendo a explicação sobre a possibilidade de criar coisas novas. Precisamente porque são novas elas não são necessárias, mas contingentes. E é justamente a contingência da política, que frustra a previsão determinante, o que Arent, na sua obra, destaca pela ênfase que atribui à liberdade. Esta se encontra ao alcance de cada homem individual, permitindo-lhe agir de forma nova e dar início a novos projetos…” (CELSO LAFER, A Reconstrução dos Direitos Humanos, Cia das Letras, p. 403)
Esta visão “otimista” sobre o nascimento precisa ser problematizada, pois a novidade não é necessariamente um benefício: há horrores e tormentos inéditos, que nem por isso são amáveis. Podem-se inventar novos modos de torturar e de matar, antes desconhecidos, e podem nascer no porvir seres humanos dotados de capacidades sádico-perversas que ainda não estão mapeadas.
Além disso, para além do indíviduo que nasce, temos que lidar com o nascimento como problema global e coletivo da Humanidade como um Todo, e percebe-se que hoje as distopias biopolíticas dividem-se quanto ao diagnóstico sombrio. Há as distopias que frisam o perigo da Humanidade em seu caminho de explosão demográfica, enquanto outras distopias imaginam a demografia minguando até perto do zero em virtude de uma infertilidade em massa.
Cada vez são mais fortes, na cultura do século 21, as manifestações de uma virada distópica em relação ao tema do nascimento. Nestas obras, como o curta-metragem World of Tomorrow escancara, nascer pode ser uma desventura desagradável e sofrida, já que estamos falando da possibilidade concreta do nascimento de consciências pós-humanas, como aquelas que estão encarnadas em andróides (vide os dois filmes Blade Runner, dirigidos por Ridley Scott e Dennis Villeneuve) ou em clones.
O risco da governança totalitária – como aquela expressa em Minority Report (história de Philip K. Dick filmada por S. Spielberg) ou V for Vendetta (obra visionária) de Alan Moore – é hoje também retratada com o tema quente do futuro do nascimento. Que tipo de gestão da natalidade será imposta pelos Big Brothers, pelos Partidos Nazis do futuro? Afinal de contas, como estarão nascendo as gentes em 2.100, em 2.500, em 3,960 depois de Cristo?
II) UM IMENSO CENÁRIO DE DEMENTES
Tempos atrás, quando escrevi Nascer é Uma Encrenca, comparando o romance Enclausurado (Nutshell) de Ian McEwan com as teorias psicanalíticas de Otto Rank em O Trauma do Nascimento, eu buscava refletir sobre o acontecimento existencial que é vir-ao-mundo, e suas ressonâncias no sujeito vivente em seu processo de maturação. As reflexões ali compartilhadas vinham impregnadas de um certo sarcasmo melancólico, à la Machado de Assis ou Cioran, e também de uma angústia Shakespeareana, vinculada ao estado afetivo veiculado por frases como: “Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes” etc.
Desde então, cada vez mais percebi que o problema do nascimento precisa ser abordado não apenas na perspectiva de um existencialismo que foque suas atenções no indivíduo, mas essencialmente como um problema político, uma questão coletiva, uma encrenca comum. Nisso acompanho Hannah Arendt, grande pensadora dos temas da natalidade, pois ela diz que é através do “portal” do nascimento que adentramos o mundo comum, e será através do “portal” da morte que deixaremos para trás o mesmo mundo comum. Mundo comum que pode pois ser descrito como o palco para a sucessão das gerações de viventes humanos.
Além disso, Arendt destaca que o nascimento é a irrupção do novo, pois traz ao mundo algo de inédito, o que faz da Condição Humana algo de permanentemente cambiante. Do ser humano, com sua capacidade de agir e de fazer advir o que nunca houve antes, devemos esperar o inesperado, já que não cessam de nascer pessoas como nunca houveram antes. É aí que radica a importância crucial da educação, aquilo que na condição humana dá resposta à constante chegada de novos seres humanos ao mundo comum onde precisam ser integrados.
A explosão demográfica sem precedentes dos últimos séculos, na perspectiva de Aldous Huxley, coloca sérios problemas para a Humanidade e obriga-nos a levar a sério a necessidade urgente de praticar o controle da natalidade. No seu livro de ensaios Brave New World Revisited, publicado em 1958, Huxley destacava que “no primeiro Natal a população do planeta era de cerca de 250 milhões” e que “16 séculos depois o número de humanos havia escalado para um pouco mais de 500 milhões”; “em 1931, quando eu estava escrevendo Admirável Mundo Novo, o número estava perto de 2 bilhões.” A ascensão impressiona:
“At the rate of increase prevailing between the birth of Christ and the death of Queen Elizabeth I it took 16 centuries for the population of the earth to double. At the present rate it will double in less than half a century. And this fantastically rapid doubling of our numbers will be taking place on a planet whose most desirable and productive areas are already densely populated, whose soils are being eroded by the frantic efforts of bad farmers to raise more food, and whose easily available mineral capital is being squandered with the reckless extravagance of a drunken sailor getting rid of his accumulated pay.” (p. 9)
Algumas das melhores obras da arte e do pensamento vem nos colocando a seguinte questão: “qual é o futuro do nascimento?” É um tema que podemos formular em termos demográficos: a Humanidade, que ultrapassou os 7 bilhões de exemplares vivos, está com tendências a continuar expandindo-se no futuro próximo, sendo que estimativas supõe que seremos mais de 9 bilhões algumas décadas no futuro. Isso desperta nas vertentes ditas Catastrofistas um senso de perigo, de alarme, pois é de se suspeitar que haja um excesso de gente no mundo, em especial pois os recursos naturais que poderiam sustentar tantas vidas estão em crescente estado de desequilíbrio (aquecimento global, oceanos tóxicos, mutações genéticas e transgênicos etc.).
A explosão demográfica se dá no contexto do Antropoceno, das mudanças climáticas, da radical reconfiguração que a Humanidade como força geológica e biofísica impôs à Terra. O que nos torna os contemporâneos daquilo que Isabelle Stengers chama de “a irrupção de Gaia”. Em seu No Tempo das Catástrofes, Stengers diz que o inventor da Teoria Gaia, James Lovelock, chegou a estimar que o número de seres humanos no planeta será reduzido a cerca de 500 milhões devido às transformações sócio-ambientais catastróficas conexas ao desequilíbrio antropogênico dos ecosistemas globais hoje em curso, e que no futuro tende a se agravar.
Neste contexto, surgem obras-de-arte que tematizam o futuro do nascimento com um olhar sombrio e distópico, pintando um retrato de uma Humanidade que vai beirando a extinção. É o caso tanto de Children of Men – Filhos da Esperança, do cineasta mexicano Alfonso Cuarón, quanto de Snowpiercer – Expresso do Amanhã, do sul-coreano Joon-ho Bong. Em ambos, a Humanidade que um dia pôde se multiplicar de maneira estonteante, está reduzida a uma quantidade assustadoramente pequena. E os últimos exemplares do homo sapiens queseparam a espécie da extinção tendo que agir em circunstâncias transtornadas.
O que restou da Humanidade, em Snowpiercer, é tão pouca gente que cabe todo mundo dentro de um trem – e dentro dele, todas as velhas taras e equívocos da velha Humanidade estão reproduzidas em microcosmo, a começar pelo apartheid social imposto pela força bruta, já que o trem é dividido em diferentes “castas”, a dos operários-escravos sendo responsável por uma espécie de Levante Spartaquista do Fim do Mundo contra as classes dominantes repletas de privilégios.
III. O CONTO DA AIA: DISTOPIA DA DITADURA MILITAR TEOCRÁTICA EM ERA DE BIOPOLÍTICA TOTALITÁRIA
Uma das séries mais impactantes e pertinentes dos últimos tempos também lida com a temática do futuro do nascimento: The Handmaid’s Tale, uma produção da Hulu, baseada no romance da escritora canadense Margaret Atwood (Editora Rocco, 2017, 388 pgs), foi a obra televisiva mais premiada do ano de 2017, vencendo 5 Emmys. Além de celebrada como Melhor Série Dramática, levou também os prêmios de Melhor Atriz para Elisabeth Moss e de Melhor Roteiro para Bruce Miller (além disso, as atrizes que fazem as personagens da Ofglen e da Tia Lídia também ganharam prêmios por melhor atriz coadjuvante e melhor atriz convidada).
A obra de Atwood já havia sido adaptada ao cinema em 1990, ganhando o sugestivo título em português “A Decadência de Uma Espécie”, em um filme dirigido por Volker Schlöndorff (vencedor da Palm d’or Cannes por “O Tambor”) e roteirizado por Harold Pinter (1930 – 2008) (vencedor do Prêmio Nobel de Literatura). A Casa de Vidro facilita a vida de quem quer conhecer este filme e libera o torrent para download gratuito: http://bit.ly/2tkSbI5 (1h 44mn, 1.6 gb, legendas em português, via Fórum Making Off).
Sinopse via Filmow: “A República de Gileade é um estado totalitário que tenta usar a Bíblia para fundamentar seus atos. Kate (Natasha Richardson) foi presa por tentar atravessar a fronteira, seu marido foi morto e ela nunca mais viu a filha. Neste país qualquer mulher que comete um delito – homossexualidade está entre eles -, se é estéril vai para as colônias penais, mas se é fértil se torna uma “serva”. Como só 1% das mulheres são férteis, estas “servas” são obrigadas a terem relações sexuais com quem o governo determina e é bom ficarem grávidas, pois o defeito nunca é do homem. Esta esterilização em massa é consequência do ar ficar cheio de produtos químicos radioativos e as águas das chuvas terem sido contaminadas com moléculas tóxicas. Após ser cruelmente treinada por “Tia” Lydia (Victoria Tennant), ela é designada para ser a serva do comandante (Robert Duvall), o supremo chefe militar. Ao mesmo tempo um movimento de resistência começa a desafiar o regime.” – Veja também Wikipedia – Faça o download do filme na íntegra
Considero totalmente merecida a consagração de The Handmaid’s Tale: sem dúvida, esta é uma das melhores séries dramáticas lançadas recentemente e tem muito a nos ensinar. Oferece um alerta pertinente sobre uma barbárie teocrática e obscurantista que, longe de ser mera fantasia sci-fi, está bem próxima da lamentável realidade de nosso próprio tempo-espaço. A tirania puritana instalada em Gilead pelos usurpadores do poder revela uma prefiguração visionária de um planeta caotizado, uma autêntica Devastolândia. Este é o nome que Paulo Leminski deu à sua tradução do poema “The Waste Land” de T.S. Eliot, poeta que escreveu o verso lapidar, em “The Hollow Men”:
“This is the way the world ends. Not with a bang but a whimper.”
Em uma vibe distópica, The Handmaid’s Tale pinta o retrato de uma Terra futura que foi devastada por catástrofes naturais, mutações genéticas, belicismo sangrento, fanatismo religioso, dentre outros males, o que causou uma infertilidade galopante que ameaça extinguir a espécie não pela via dinossáurica – o meteoro que nos atinge vindo do exterior – mas pela via do que eu chamaria de “o fim do nascimento”. Beco-sem-saída onde a espécie torna-se incapaz de reproduzir-se como efeito de suas próprias manipulações do ambiente natural e de nossos próprios corpos.
Não sei se alguém já se aventurou a especular sobre um fator muito interessante na decifração da obra: Atwood parece ter criado uma distopia futurista indo buscar elementos no passado da colonização dos EUA pelos ingleses puritanos. Nas palavras da própria Atwood, “a República de Gilead é construída sobre a base das raízes puritanas do século XVII que sempre estiveram por baixo da América moderna que pensávamos conhecer.”
Uma chave de decifração para a obra está em compará-la com uma das obras-primas maiores da literatura em língua inglesa: “A Letra Escarlate” de Nathaniel Hawthorne. O próprio escarlate dos uniformes das aias é provavelmente uma referência à letra escarlate usada para estigmatizar a protagonista do romance de Hawthorne. Os horrores do passado – como bruxas sendo queimadas em Salem, tema da notável peça de Arthur Miller, “The Crucible” – servem para que Atwood fabrique a teia-de-aranha tão bem urdida de seu romance-pesadelo, lá onde a pálida luz da Razão já chafurdou totalmente nas violentas dissonâncias entre seitas de fanáticos misóginos.
Atwood imagina uma nova face da Banalidade do Mal, aquilo de que nos fala Hannah Arendt: trata-se do estupro institucionalizado, praticado cotidianamente pelos Comandantes e suas Esposas estéreis, em Cerimônias onde a Bíblia é lida e o nome de Deus invocado, em um rito de perpetração de atos que lançam a dignidade feminina no fundo-do-poço da Escravidão Sexual.
“Jacob Encountering Rachel with her Father’s Herds” by Joseph von Führich
O Comandante, fodendo Offred e invocando os precedentes bíblicos que supostamente o autorizam a isso (a história de Raquel, estéril, que dá permissão a seu marido Jacob para ter filhos com a criada, em Gênesis, 30:1-3), é um símbolo de quão porco pode ser um líder teológico-político na justificação de seus atos de ortodoxismo sectário.
Pendendo dos muros, os cadáveres dos resistentes e dissidentes ficam pendurados pelo pescoço em Gilead, servindo como espantalhos enforcados cuja intenção é assustar os que pudessem se sentir tentados a desobedecer. A Bíblia é a todo momento invocada pelas autoridades para convocar todos à obediência, à subserviência, ao silêncio: “bem-aventurados são os mansos e os calados, pois deles é o reino dos céus…”
Dentre os episódios mais impressionantes, lembro, por exemplo, da visita de Offred ao médico. O médico a examina e confirma que Offred é este recurso raro e precioso: uma mulher fértil. Diz a ela: “A maioria desses velhos não consegue mais ter uma ereção e ejacular. Ou então são estéreis.” Quase “engasgando de espanto”, Offred – narradora em primeira pessoa do livro – pensa: “ele disse uma palavra proibida, estéril. Isso é uma coisa que não existe mais, um homem estéril não existe oficialmente. Existem apenas mulheres que são fecundas e mulheres que são estéreis, essa é a lei.” (p. 75)
Esta tendência de lançar toda a culpa sobre a mulher – que tem precedentes mitológicos múltiplos: Eva, na tradição cristão, Pandora, na grega… – também se manifesta na cena em que Janice, durante o Testemunho, conta que “foi currada por uma gangue aos 14 anos e fez um aborto”. Diante dessa confissão, que deveria erguer indignação contra a Cultura do Estupro e suas práticas grotescas, que deveria nos convencer da plena justificabilidade do aborto em casos de agressão sexual, é em Gilead tratada como crime da mulher.
A Tia Lydia, uma espécie de freira fardada que é uma das autoridades que encabeça o status quo teocrático-obscurantista, exige que todas as mulheres apedrejem Janice e digam em uníssono: “a culpa foi dela, a culpa foi dela!” O ensinamento que o regime oferece em seus “institutos educativos” consiste em culpar a vítima para inocentar Deus (é de fato um Eva reloaded…): “Por que Deus permitiu que uma coisa tão terrível acontecesse? Para lhe ensinar uma lição…” (p. 88)
Muito haveria a dizer sobre o poder de resistência que vai sendo urdido pelas aias e que, na série, tem comoventes momentos de explosão: há a revolta quase niilista, auto-sacrificial, daquelas que simplesmente cansaram-se de sua condição de escravas e que preferem a solução violenta para acabar com tudo, como na cena em que uma das aias assume a direção de um carro e pratica um atropelamento dos soldados. Gilead é um lugar onde também pratica-se o suicídio em alta escala e onde as mulheres não podem ser deixadas no mesmo ambiente com uma gilete.
Mas uma mais comovente das cenas é aquela onde a Desobediência Civil de Offred mostra-se com todo o seu potencial de contágio quando ela, com a coragem que vem de sua empatia, recusa-se a tacar pedras na companheira que o Sistema manda trucidar. Diante das fogueiras de uma Nova Inquisição, ela se recusa a fornecer fogo. Aquelas pedras caindo ao chão, os punhos que deixam de estar retesados e ganham em maciez, as mulheres que dizem não, a irrupção da Desobediência Civil e da coragem de resistir à opressão, tudo isso, no ambiente sufocante de The Handmaid’s Tale, é um sopro de ar puro e renovador.
Offred, líder da desobediência civil, a que se recusa a tacar pedras, contagiando as outras aias com seu gesto, serve como o vento vivificante que traz a boa nova: sob a opressão, jamais adormece o ímpeto de revolução, de contestação, de renovação.
Elisabeth Moss interpreta Offred / June na série “The Handmaid’s Tale”
Quanto mais assistimos e lemos The Handmaid’s Tale, mais evidente se torna que se trata de uma Ditadura Militar, que justifica suas brutalidades com pretextos religiosos, ainda que seja sentida por suas vítimas como um mecanismo diabólico e horrendo. O que Atwood realizou tem certa semelhança com aqueles tratados anti-eclesiásticos típicos do Iluminismo do séc. 18, em combate com o trevoso Antigo Regime, de que o romance A Religiosa de Denis Diderot é um dos mais significativos livros.
Mas também é possível realizar uma analogia interessante entre a Ditadura Militar latino-americana, em especial aquela da Argentina pós-1976, e o plot da teocracia totalitária futurista de The Handmaid’s Tale – conexão estabelecida na reportagem de por Ligia Helena em MdeMulher:
“Offred é identificada como uma mulher fértil – uma raridade nesse futuro em que poluição, radiação e venenos fizeram com que muitos homens e mulheres perdessem a capacidade de ter filhos. Por isso, ela tem algum valor dentro da República de Gilead, o novo país que se formou no lugar dos Estados Unidos. Se torna uma Aia – mulher cuja função é prover filhos para as esposas dos Comandantes do país.
Absurdo? Pois saiba que aqui do nosso lado, na Argentina, em 1976, durante a ditadura militar, cerca de 500 crianças e bebês “desapareceram” – na verdade foram sequestrados e colocados para adoção. Muitas das crianças foram encontradas depois de anos vivendo em famílias de militares. Até hoje, em 2017, as mães de bebês e crianças desaparecidos se reúnem para protestar na Plaza de Mayo, em Buenos Aires, às quintas-feiras…”
O movimento social argentino Madres de La Plaza de Mayo emergiu como denúncia do terrorismo de Estado e das múltiplas atrocidades perpetradas durante a ditadura militar argentina, capitaneada por figuras como o general Videla, um regime político que causou a desaparição (ou seja, o assassinato seguido do ocultamento dos cadáveres) de cerca de 30.000 cidadãos argentinos. A TV Pública da Argentina já devotou uma série histórica que, em 8 episódios, conta a história dando voz às próprias mulheres que protagonizaram esta significativa e resiliente resistência feminista latino-americana.
“Con profunda emoción y con la fuerza que las caracteriza, las Madres hablan del golpe de Estado, las desapariciones, las denuncias, las primeras marchas, la guerra de Malvinas, la vuelta de la democracia y la reivindicación de la lucha de sus hijos y de los derechos humanos durante la última década.” – TV PÚBLICA ARGENTINA [CLICK PARA ASSISTIR SÉRIES]
Alexis Bledel interpreta Ofglen em “The Handmaid’s Tale”
Ao raiar de sua 2ª temporada, The Handmaid’s Tale nos promete esclarecer melhor porque se deu a ruptura entre os regimes políticos, ou seja, vai narrar como o Estado Teocrático de Gilead alçou-se ao poder após uma espécie de Golpe de Estado justificado como maneira de combater o terrorismo. Relatando em mais detalhes como era a vida da protagonista antes do Golpe e do início de sua servidão como aia, a nova temporada nos revela June Osbourne, loura de cabelos esvoaçantes, depois reduzida à aia trêmula (mas insubmissa e insurgente) cognominada Offred.
Os mecanismos de tortura psíquica e fisiológica utilizados pela Ditadura Teocrática-Militar de Gilead explicitam-se logo na primeira cena da 2ª temporada, em que toda a perversidade da Tia Lydia se manifesta com uma espécie de brilho diabólico. Ao teatralizar a execução em massa das aias desobedientes, ao colocá-las todas na forca, com a corda no pescoço, para no último segundo comutar a pena, Tia Lydia explora o medo extremo para mobilizar a fé num Deus sádico e opressivo. Assistindo aquela cena, pesadíssima e altamente melodramática, em que o espectador é levado às beiras de testemunhar uma chacina de feminicídio, lembrei-me do destino de Dostoiévski, que quando jovem, encarcerado na Sibéria, também foi posto diante do pelotão de fuzilamento.
Após sentir um gostinho do que Dostoiévski passou na Sibéria, Offred/June buscará por todas as maneiras se insurgir contra o sistema, e agora tem em seu ventre a mais preciosa das cargas neste mundo de infertilidade na ascendente. Grávida, Offred não pode mais ser brutalmente judiada pelo sistema. Seus pequenos atos de desobediência ao nomos opressor encarnado em Lydia se mostram ineficazes – quando ela se recusa a comer, é coagida a isso pela ameaça de aprisionamento e outras torturas.
Mas Offred já aprendeu muitas lições: o poder do desobediente individual, na luta contra a opressão organizada, é quase nulo, mas o poder dos desobedientes coligados é muito maior. Uma teia de resistência insurgente e desobediência organizada tece sua teia ao redor de Offred, com a participação ativa de seu amante Nick, até que ela se veja enfim liberta das garras dos Guardiões de Gilead.
Em um momento Van Gogh, ela mete a tesoura na orelha e, em meio ao sangue que jorra em cataratas, extrai de seu corpo o microchip que servia para vigiá-la. Ela rompe com os dispositivos biopolíticos do Estado Teocrático. A roupa escarlate da aia e este odioso microchip queimam nas chamas. The Handmaid’s Tale, afinal, não é apenas o retrato do domínio totalitário em um funcionamento que esmaga os indivíduos e torna a servidão inescapável, mas sim o pungente retrato social da liberdade que batalha para abrir seus espaços nos muros sufocantes da opressão totalitária-puritana.
Tudo isso torna a escritora canadense Margaret Atwood merecedora do apelido The Prophet of Dystopia que lhe concedeu a revista The New Yorker: “Her fiction has imagined societies riddled with misogyny, oppression, and environmental havoc. These visions now feel all too real.” Se as visões sobre o futuro que Atwood escreveu em 1985, em O Conto da Aia, hoje nos parecem assustadoramente possíveis, é pois vivemos em pleno processo de concretização de uma distopia biopolítica onde o domínio totalitário ameaça-nos novamente.
No último capítulo do livro, relata-se que, em 2195, em um simpósio acadêmico sobre Estudos Gileadeano debatia-se com ardor sobre a identidade da narradora do manuscrito hoje conhecido como O Conto da Aia. Conta-se que aquela mulher que recebe do regime o nome de Offred, e que antes havia se chamado June Osbourne,
“fazia parte da primeira leva de mulheres recrutadas para propósitos reprodutivos e fora destinada àqueles que não só requeriam esses serviços bem como podiam reivindicá-los por meio de sua posição na elite. O regime criou uma reserva imediata dessas mulheres ao declarar adúlteros todos os segundos casamentos e ligações extraconjugais, prendendo as parceiras do sexo feminino, e, com o fundamento de que elas eram moralmente inaptas, confiscando os filhos e filhas que já tivessem, que foram adotados por casais sem filhos dos escalões superiores que eram ávidos por progênie, quaisquer que fossem os meios empregados… Desse modo, homens ocupando altas posições no regime puderam escolher a dedo entre as mulheres que tinham demonstrado ser aptas reprodutivamente ao terem concebido e dado à luz uma ou mais crianças saudáveis, uma característica desejável numa era de índices de natalidade caucasianos em queda livre, um fenômeno observável não só em Gilead, mas também na maioria das sociedades caucasianas do norte na época.” (ATWOOD, p. 357)
O destino de Offred / June nada tem de individual, ela é parte de um “exército” de aias, escravas de um sistema teocrático-totalitário que se mantêm no poder através da ditadura militar. Já os motivos para o declínio da fertilidade caucasiana, é preciso lembrar que Atwood não poupa detalhes em sua descrição de um mundo devastado por epidemias de sífilis e de AIDS, além de repleto de “bebês natimortos e com deformidades genéticas”:
“essa tendência tem sido relacionada aos vários acidentes em usinas nucleares, panes e ocorrências de sabotagem que caracterizaram o período, bem como os vazamentos de estoques de armas químicas e biológicas e de locais de depósito de lixo tóxico, dos quais muitos milhares existiam, tanto legais quanto ilegais – em alguns casos esses materiais eram simplesmente lançados no sistema de esgotos -, e ao uso descontrolado de inseticidas químicos, herbicidas e outras substâncias líquidas pulverizadas.” (ATWOOD, p. 358)
São trechos assim que fazem de Margaret Atwood uma artista do primeiro time dos inventores de distopias, lado a lado com Huxley, Orwell, Zamiátin, Bradbury, K. Dick, dentre outros sagazes artistas sci-fi. Eles nos convidam a pensar que o nascimento, como Arendt já previra, jamais será o mesmo.
Os mais pessimistas colocam até mesmo no horizonte a possibilidade “apocalíptica”, já que é idêntica à extinção da Humanidade, de um fim do nascimento (como argumentamos acima ao comentar os filmes Children of Men e Snowpiercer). Mesmo os mais otimistas sabem bem que nascer, no futuro, não será o que é nascer hoje. Isso nos coloca nos ombros, como Hans Jonas bem argumentou, o peso de uma nova responsabilidade, em que nosso dever ético supremo passa a ser a questão: “que mundo estamos legando àqueles que vão nascer?”
O Conto da Aia, explorando esta mesma senda, revela o brilhantismo de Atwood que, no meio dos anos 1980, escreveu algo que talvez terá muito a nos dizer pelo século 21 afora. Os amanhãs cantantes e radiantes dos utopistas não nos parecem mais tão plausíveis. As fantasias de happy end parecem-nos cada vez mais com róseas mentiras. O porvir em direção ao qual nós nos aventuramos provavelmente será repleto de fúria, violência, injustiça, e é neste turbilhão que o nascimento – instância de renovação da condição humana – irá se desenrolar em contextos sem precedentes. Ignorar os alertas e alarmes que fazem soar os artistas distópicos da ficção científica não seria prudente, e muito provavelmente é sábio ouvi-los e ficarmos atentos. Pois o Futuro, é possível, não será doce – e o que pedirá de nós, como diria Guimarães Rosa, é sobretudo coragem.
Turista Espacial é um sci-fi fascinante e inovador. É capaz de unir os temas já bem batidos, como a viagem intergaláctica e o contato entre inteligências de diferentes planetas, com uma crítica social arguta de nossa civilização atual, ecocida e catastrófica. É uma obra em que a ficção científica abraça a ecologia, comentando de modo sagaz os dilemas e incógnitas do Antropoceno, ainda que o tom seja mais leve do que aquele dark mood que marca obras cruciais que depois explorariam sendas semelhantes: Filhos da Esperança (Children of Men), de Alfonso Cuarón, e Expresso do Amanhã (Snowpiercer), de Bong Joon-ho.
Assim que o filme se inicia, somos lançados a uma imersão em uma sociedade estranha, onde ocorre um ritual raro, difícil de decifrar: em meio aos verdes prados acariciados pela brisa, um matriarcado hippie realiza assembléias bucólicas onde debate-se, entre outros temas, a iniciativa de mandar representantes ao planeta Terra.
Logo o espectador percebe estar no seio de um filme de ficção científica dos mais espantosos, com aliens dos mais benignos e sábios, nada nojentos e fatais como aqueles construídos pelo clássico de Ridley Scott (Alien – O Oitavo Passageiro) e depois levado adiante nas obras de James Cameron e David Fincher.
Em La Belle Verte, de Coline Serreau, esses ETs humanóides têm anciãos que chegam a viver quase 300 anos. Esta longevidade toda foi alcançada bem longe do escarcéu terrestre de carros, bombas nucleares, guerras colossais, devastação ecosistêmica e extinção em massa da diversidade biológica e cultural. Longevos são os seres sábios que souberam acordar para a importância quintessencial do Verde, símbolo de uma união holística do organismo com o meio natural.
Na assembléia, um senhor pede a palavra e relembra os tempos em que esteve em Paris, na época turbulenta das Revoluções: lembra dos burgueses querendo guilhotinar a cabeça do rei, dos proletários querendo as cabeças de burgueses na bandeja, dos imperadores genocidas que se apropriam da república como se esta fosse sua propriedade e o instrumento dócil de seu imperialismo agressivo… O caos dos assuntos humanos é pintado em meio ao idílio extraterreno, onde Napoleão Bonaparte e Robespierre despontam com a aura tenebrosa de vilões, desprovido de halos heróicos. La Belle Verte tem a comunicar um outro ideal, anti-napoleônico, contrário às dominações imperiais mas também ao domínio humano excessivo sobre a Natureza, que nos leva a despencar na húbris e no ecocídio.
O filme, que além de dirigido, foi escrito e estrelado por Coline Serreau, abre com chave cômica: o retrato dos terrestes que nos é ofertado, se não chega a ser misantrópico, é pelo menos uma bem-dada caçoada risonha pra cima dos humanos da Terra. Somos risíveis criaturas estúpidas, ainda atreladas a carros que queimam energias fósseis e vomitam poluição; ainda cindidos em assassinas rivalidades patrióticas, étnicas ou tribais; tão pouco sábios que criaram uma situação planetária tão desgraçada e instável que nenhum dos ETs de inteligência média deseja entrar em contato conosco.
Na assembléia, não há quem se manifeste como voluntário para visitar a Terra; ninguém acredita na eficácia de uma intervenção humanitária alienígena; em suma, aos olhos da imensa maioria da assembléia de extraterráqueos, os earthlings são um caso sem esperança… O que lembra uma tirinha de Calvin e Haroldo que cai como uma luva neste contexto:
A protagonista do filme é única alien corajosa o bastante para vir nos visitar. Pousa na Terra e é subitamente fica maravilhada pelas grandes árvores de um parque de Paris, porém sente-se agredida e insultada em suas narinas pela atmosfera tóxica, mega-poluída, da megalópole francesa. O filme vai delineando suas barricadas no conflito ideológico, fincando sua fidelidade a figuras como Rachel Carson, autora de Silent Spring, que vociferou contra o DDT e os descalabros da indústria petroquímica em uma das obras fundamentais da ecologia no século XX.
A visitante do Além-do-Humano, desacostumada com aquilo que o hábito ensinou-nos que é natural, sai andando pelas calçadas de Paris, onde ela é intensamente consciente de que pisa sobre cimento que foi esparramado sobre a terra nua, o que impede o solo de ser espaço de uma florescência vegetal luxuriante. Nas calçadas, lotadas de bostas de animais que o poder público ainda não havia podido limpar através de seus lixeiros assalariados, ela não descobre muito espaço onde flores pudessem desabrochar do chão uniformizado pelo concreto. Cof, cof! – ela tosse enquanto desvia dos cagalhões dos totós de madame e viralatas de punks.
A ideia principal que impulsiona o enredo de La Belle Verte é a do planeta e seus habitantes humanos vistos a partir da perspectiva de alguém que chega provindo de uma civilização mais sábia. Mas aqui não se trata de viagem no tempo, rumo ao passado: nesta sci-fi, não há gente do futuro entrando em máquinas-do-tempo como as célebres parafernálias de Back Into The Future, a trilogia de Robert Zemeckis. Trata-se de viagem pelo espaço que conecta entes de diferentes graus de evolução da inteligência – sendo que os humanos perdem de lavada neste quesito. Somos os estúpidos do cosmos, ainda que, neste planetinha, alguns se gabem de serem os sabichões da Terra.
Enredos semelhantes impulsionam obras sci-fi como K-Pax (de Iain Softley) e Hombre Mirando A Sudoeste (de Eliseo Subiela), pois em ambos os filmes os visitantes do espaço sideral são tratados como loucos, internados em hospícios, alvos de hipnoses ou lobotomias. Em ambos se estabelece um contraste entre a sabedoria do forasteiro e a estupidez dos terráqueos, estratégia narrativa que frisa a possibilidade de criaturas mais inteligentes que nós existirem na pluralidade de mundos que constitui o Universo – para relembrar o título do livro clássico de Fontenelle.
A Bela Verde, neste caso, está experimentando pela primeira vez a poluição atmosférica, a barulheira estridentíssima e dissonante, de uma metrópolis humana no mundo dito Ocidental, civilizado, capitalista, consumista, auto-proclamado modelo supremo de como devem viver os povos. A Bela Verde é mais intensamente sensível a tudo o que os humanos tem de bizarro: com seu olhar limpo de interesses humanos, ela observa as mulheres fúteis que desfilam embonecadas pelos bairros comerciais e shopping centers, e pergunta-se, fitando os brincos espalhafatosos grudados às suas orelhas, se não seriam aqueles alguns símbolos religiosos de um culto bastante primitivo…
Uma das cenas mais significativas se dá quando ela pára diante de uma açougue e pela primeira vez depara com o espantoso espetáculo daquela “a exibição de cadáveres”. A Bela Verde, em sua ingenuidade, fica chocada por encontrar uma vitrine por detrás da qual estavam expostos partes dos corpos-sem-vida de animais recentemente sacrificados; as autoridades responsáveis pela construção e sustentação de tal sistema talvez explicariam à forasteira, do alto de suas presunções olímpicas, que aquilo que ela via no açougue era nada mais, nada menos, do que… mercadoria. “Deixemos de sentimentalismos quando se trata de incrementar nossos benefício$$$!”, poderiam dizer-lhe, ofertando-lhe um espetinho de vaca engordada à força, empanturra de antibióticos, criada em cativeiro absoluto, em meio à lotação desagradante de abatedouros que, se tivessem paredes de vidro, fariam vomitar a quase todos aqueles que hoje deleitam-se com salsichas e filés de frango…
Além da mercantilização em massa da carne animal, a Bela Verde também fica estarrecida com os carros, intermináveis, invasivos, que dominam a cidade como se fossem de fato seus imperadores, como se merecessem todos os privilégios. Onde outrora havia um pomar transbordante de frutas, ou um parque repleto de coqueiros, ou uma floresta abrigadora de miríades de diversas espécies de seres vivos, agora o que há… é um estacionamento! E este cobra preços abusivos. Em cada esquina, um posto de gasolina que vende petróleo roubado do Oriente Médio, provavelmenmte após invasão imperialista genocida justificada como “Cruzada Anti-Terrorista”.
O cogumelo atômico é a coroa na cabeça desta Sociedade Burguesa Globalizada, provando que sua estupidez, longe de ser negligenciável, é pra lá de perigosa. A extinção de espécies que o diga.
Quando nos auto-proclamamos os fodões da Criação, os filhos prediletos de Deus-Pai Todo-Poderoso, e partimos para a dominação e exploração generalizada da Natureza, produzindo escarros colossais de substâncias tóxicas e gases de efeito estufa no ambiente que sustêm a Vida em suas múltiplas formas, tornamo-nos os inimigos de nós mesmos, carrascos da mãe nutriz, aqueles que põe fogo em seu próprio lar (como sugere o mother! de Darren Aronofsky).
E assim nos tornamos os devastadores de boa parte daquilo que vive conosco. A miríade de organismos vivos que, só pelo fato de possuir a vida como propriedade comum e destino compartilhado, já mereceria ser tratado por nós como algo de mais digno do que estoque de bacon ou recheio de McNuggets e McChickens. Neste globo infestado por junk food e agrotóxicos, epidemias corporativas disparadoras de imensas crises de saúde pública, é bom lembrar: nos EUA de hoje, por exemplo, explodiram os índices de obesidade e diabetes, o que está intimamente conectado ao sistema de alimentação que eles deixaram tornar-se hegemônico.
Por essas e outras, considero Turista Espacial um filme digno de louvores e atenções, ainda que muitos espectadores possam torcer o nariz para um certo “didatismo” que transforma este filme de ficção científica em algo parecido com uma aula de ecologia. Junto com Ponto de Mutação (Mindwalk), filme baseado na obra homônima de Fritjof Capra, a obra de Coline Serreau tem muito a nos ensinar sobre como viver e conviver melhor neste planeta que a cada dia se parece mais com uma terra devastada.
A ideologia veiculada com o filme conecta-se com aquela dos teóricos do decrescimento, como Serge Latouche; com os ensinamentos de Alan Watts sobre O Que Está Errado Com Nossa Cultura; com os ensinamenos de Small Is Beautiful de Schumacher; com as obras de pensadores contemporâneos cruciais como Vandana Shina, Raj Patel, David Suzuki, Arundhati Roy, Davi Kopenawa. Que o cinema possa ser uma força de transformação social, ou mesmo de inseminação utópica, é algo óbvio para quem conhece iniciativas como a Films For Actione para quem já assistiu Dirt!,Disruption, The Age Of Stupid,The Secret of the Seven Sisters, dentre outros. Turista Espacial está aí para somar forças a esta eco-legião.
Mais um grande projeto ameaça a Volta Grande do Xingu, região já impactada pela hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. A empresa canadense Belo Sun quer extrair cerca de 108 toneladas de ouro em 17 anos, no maior projeto de extração de ouro a céu aberto do país. A expectativa é lucrar mais de R$3,3 bilhões. Para a natureza e as comunidades que ali vivem, a única herança será a destruição.
Os atingidos são povos tradicionais, ribeirinhos e indígenas, além de agricultores e garimpeiros artesanais que vivem há mais de 70 anos na região e no momento estão proibidos de exercer sua profissão pela empresa. Os impactos também chegarão a todos os municípios da bacia do rio Xingu, principalmente Altamira, Souzel, Anapu, Brasil Novo, Vitória do Xingu, Porto de Moz e Gurupá.
A empresa Belo Sun Mineração Ltda. é uma subsidiária brasileira da Belo Sun Mining Corporation, pertencente ao banco canadense Forbes & Manhattan Inc., um banco mercantil de capital privado que já investiu mais de R$4 bilhões para explorar os recursos naturais em várias regiões do mundo.
A região escolhida para o projeto é extremamente sensível, pois a água do Xingu foi desviada de seu curso natural para movimentar as turbinas na casa de força principal da hidrelétrica de Belo Monte. Com isso, a Volta Grande passou a ser chamada “Trecho de Vazão Reduzida” (TVR), pois a vazão do rio chega a diminuir até 80% no inverno Amazônico (período chuvoso). Os ribeirinhos e indígenas, que têm a pesca como modo de subsistência e geração de renda, já estão sofrendo impactos.
No dia 2 de fevereiro de 2017, a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) autorizou a instalação da Belo Sun na região. Diante dessa nova conjuntura, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que vem contribuindo na organização dos atingidos na região, apresenta 12 motivos pelos quais esse projeto nunca deveria ter saído do papel:
1. Os impactos vão se sobrepor aos de Belo Monte: Até 2025, a região da Volta Grande estará sobre monitoramento do Ibama (órgão licenciador de Belo Monte) para avaliar se as famílias e a biodiversidade conseguirão sobreviver às novas condições impostas com a construção da hidrelétrica, portanto, não é recomendável o início de mais um grande empreendimento nesse cenário de incertezas.
2. A Belo Sun já cometeu crime: segundo denúncia do Incra, a empresa comprou terras de pequenos agricultores assentados pela reforma agrária, o que é ilegal.
3. A empresa já está provocando miséria e desemprego: Após a Semas liberar a licença prévia, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) proibiu os moradores da região de continuarem com o garimpo artesanal, com isso, centenas de moradores ficaram desempregados e muitos desses chegam a passar fome.
4. A Belo Sun provoca êxodo rural: com o fim do garimpo artesanal, cerca de 800 pessoas já deixaram as comunidades da vila da Ressaca, Ilha da Fazenda e Vila do Galo, segundo cálculos dos próprios atingidos.
5. A Belo Sun viola o direito à informação: a empresa já lançou diversos estudos e relatórios sobre a região depois da publicação do EIA/RIMA (2012). No entanto, esses estudos estão em inglês e no site da empresa. Como parte considerável das famílias atingidas é de baixa escolaridade e não tem acesso à internet, as informações mais atualizadas não chegam para essas famílias e elas não ficam sabendo o que a empresa quer, de fato, fazer na região.
6. Imensa barragem de rejeitos e uso de substância tóxica: a empresa irá construir um reservatório para armazenar 92 milhões de m³ de rejeitos, quantidade superior a que foi liberada pela Samarco no rio Doce, no estado de Minas Gerais. Além disso, a empresa irá utilizar mais de 37 mil toneladas de cianeto durante todo o processo para separar o ouro dos minerais, substância nociva para o ser humano e o meio ambiente.
7. Contratação de empresa envolvida no crime de Mariana: a Belo Sun contratou a empresa VogBr e o engenheiro Samuel Paes Loures para fazer a avaliação do projeto do reservatório de rejeitos. Eles foram denunciados pelo MPF e pela Polícia Civil de Minas Gerais, juntamente com a Samarco, Vale e BHP Billiton, pelo crime em Mariana (MG) que assassinou 20 pessoas e contaminou 650 km do rio Doce.
8. Roubo de água: mesmo sem saber em que condições a região irá ficar com a redução da vazão do rio Xingu, a Belo Sun irá retirar dali grande quantidade de água para o processo industrial de ouro. Serão 6 milhões de litros de água por dia, equivalente ao consumo de 30 mil pessoas.
9. A Belo Sun consumirá muita eletricidade (e pagará barato): no Brasil, as grandes empresas eletrointensivas, como a Belo Sun, pagam uma tarifa de energia até 10 vezes menor do que os consumidores residenciais. A proximidade da hidrelétrica de Belo Monte é um fator que viabiliza o empreendimento e nos faz questionar: energia para que e para quem?
10. A Belo Sun não reconhece os indígenas como atingidos: as Terra Indígenas (TIs) Paquiçamba e Arara da Volta Grande, onde vivem as etnias Juruna e Arara, respectivamente, não foram reconhecidas como atingidas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da empresa, apesar de estarem distantes apenas 9,5 km e 13 km respectivamente da área do possível empreendimento.
11. A empresa não tem opção de reassentamentos para os atingidos: embora a Belo Sun tenha que remover famílias das vilas, segundo o EIA/RIMA, para criar o canteiro de obras, ela não garante opções de reassentamentos para as famílias. Segundo a experiência do MAB, reassentamento é a melhor política para os atingidos, pois permite a reconstrução da vida em outro local, o que não se viabiliza somente com indenização em dinheiro.
12. A riqueza gerada irá para os bolsos canadenses: apesar do ouro estar no subsolo brasileiro, o lucro gerado pela exploração dessas 108 toneladas de ouro serão apropriadas pelo capital transnacional. O que fica para a região, e para o país, são migalhas e destruição em plena Amazônia brasileira.
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e na compreensão desta práxis. [Karl Marx, 1845]
Combatendo a distorção e divulgação de notícias e conceitos falsos; Ocupando as redes sociais e denunciando moralistas e interesseiros de ocasião; Dialogando e formando amigos e conhecidos seduzidos por soluções autoritárias; Colaborando com ações e propostas conscientizadoras sobre as liberdades civis; Frequentando e defendendo os espaços plurais de produção, difusão e compartilhamento de saberes, conhecimentos e artes. RESISTA!