ESPEREM DE NÓS TUDO, MENOS O SILÊNCIO – Em “Espero Tua (Re)Volta”, de Eliza Capai, o ativismo juvenil é retratado no calor das lutas e contradições que povoam a História

O ponto de cultura A Casa de Vidro, em parceria com Levante Popular da Juventude e Taturana Mobilização Social, promoveram a exibição e o debate sobre Espero Tua (Re)Volta, de Eliza Capai.  O filme foi o vencedor dos prêmios da Anistia Internacional e do “Filme da Paz” no Festival de Berlim: “o primeiro deles premia o autor do filme que melhor aborda questões relacionadas aos Direitos Humanos e o segundo coroa a produção que se destaca com uma poderosa mensagem de paz e execução estética habilidosa dos seus temas.” (Ultimato do Bacon)

Exibimos e debatemos o filme em 21 de Setembro de 2019, com a presença de aprox. 40 pessoas, na convicção de que é salutar que a sociedade conheça, debata e valorize as mobilizações do movimento estudantil brasileiro na atualidade e no passado recente. Acompanhe no nosso vídeo – disponível em YouTube, Facebook e Vimeo – os preciosos diálogos que tivemos após a projeção com os debatedores:

* Helen Clara (do Levante Popular da Juventude)
Juliana Marra (Historiadora, Produtora Cultural, Doutoranda em História na UFG)
* Mateus Ferreira (Estudante de Sociologia da UFG e ativista do PT – Partido dos Trabalhadores)
* Isadora Malveira (Estudante da UFG e realizadora do curta-metragem Seja Realista, Exija o Impossível, também exibido na ocasião junto com outro curta-metragem, Tsunami da Balbúrdia, de Eduardo Carli de Moraes).

No vídeo, também registramos as contribuições ao debate feitas pelo fotógrafo José Carlos Almeida, da Mídia Ninja.

Agradecemos a todos que estiveram presentes, assistiram aos filmes, acompanharam e participaram dos debates, fortalecendo este rolê cultural de alta relevância e instigância. Também manifestamos nossa gratidão ao jornalista Marcus Vinícius Beck, que publicou a reportagem Resistência na Telona no Diário da Manhã (20/09/2019), destacando a importância da obra que retrata “minas, manos e tantos outros personagens que foram indispensáveis na luta contra o conservadorismo e em defesa da educação pública.” Na sequência, uma tentativa de artigo crítico-reflexivo escrito após a sessão por Carli:

CINECONFLUÊNCIAS DEBATE “ESPERO TUA (RE)VOLTA”:




ESPEREM DE NÓS TUDO, MENOS O SILÊNCIO! 

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Vamos botar ponto final em todos ativismos do Brasil” – esse foi um dos objetivos anunciados por Jair Bolsonaro pra seu governo assim que se confirmou sua vitória no 1º turno das eleições de 2018. Farejando as atrocidades envolvidas na proposta de extermínio dos ativismos, “mais de 4 mil organizações da sociedade civil e movimentos sociais, como Conectas, Greenpeace, Intervozes e Instituto Alana, divulgaram uma nota de repúdio à declaração de Bolsonaro (PSL) sobre acabar com o ativismo no país” (Folha de S. Paulo, 12.12.2018).

Em Espero Tua Re(Volta), retomada em citação direta, a frase autoritária do governante neofascista do Brasil recebe uma resposta coletiva à altura: “esperem de nós tudo, menos o silêncio!” No arco temporal de 2013 a 2018, desenvolve-se a epopéia de ativismo estudantil-juvenil que propulsiona um dos mais pulsantes documentários já realizados no país. Cinema-ativista, sinal salutar de que a cultura não vai se calar, o filme de Capai, segundo Eduardo Escorel na Piauí, “é acessível, descontraído, ágil e alegre”, além de “bem narrado, valioso como registro histórico e que agrega ao olhar da realizadora gravações feitas por vários documentaristas independentes.”

O filme de Eliza Capai condensa em 93 minutos toda a potência do “audiovisual como forma de luta” e serve como plataforma para as imagens captadas por Caio Castor (Agência Pública), Henrique Cartaxo (Jornalistas Livres) e Tiago Tambelli (documentário 20 Centavos). Este é um dos aspectos a enfatizar na obra: a conexão íntima entre o cinema documental e os fenômenos de midiativismo que ganharam inédita propulsão a partir das Jornadas de Junho de 2013 (contexto muito bem analisado por Ivana Bentes em seu livro Mídia Multidão).

O filme é protagonizado por 3 jovens que participaram ativamente das ocupações das escolas paulistas em 2015, em resposta aà reorganização escolar anunciada pelo governo de Geraldo Alckmin (PSDB). A proposta previa o fechamento de mais de 90 escolas e o remanejamento de cerca de 300 mil alunos para outras unidades. Sob o lema “Ocupar e resistir”, os estudantes protagonizaram a ocupação de mais de 200 escolas, o que serviu de inspiração para jovens de todo o país e ajudou a deflagar, ao final de 2016, a maior onda de ocupações de escolas e universidades públicas de que se tem notícia na História deste planeta.

No Festival de Berlim, o júri responsável por premiar o filme assim se manifestou sobre seu mérito:

“Imagine seus filhos marchando pelas ruas porque o governo quer fechar suas escolas. Imagine seus filhos sendo atingidos por gás lacrimogêneo e espancados com cassetetes. Isso faz parte da realidade brutal do Brasil atualmente. Setenta anos após ser promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, crianças e jovens no Brasil são privados de seus direitos humanos à educação de qualidade. Centenas de escolas públicas correm o risco de ser vítimas de políticas governamentais que negligenciam a necessidade e o direito à educação de todos, independentemente de seu status social. Famílias pobres e desfavorecidas são particularmente afetadas. Mas a juventude do Brasil não aceita isso sem resistência intensa, clara e corajosa.

O vencedor deste ano do Prêmio da Anistia Internacional rompe as estruturas convencionais usando narrativa documental não linear. Ilumina os jovens em sua luta pela democracia e pela educação. Também mostra como esses jovens protagonistas vivem relações pautadas por valores solidários e democráticos. Eles são assim por obrigação e, ao mesmo tempo, de modo irresistível, nunca deixando que suas vozes sejam silenciadas por aqueles menos corajosos e menos comprometidos entre eles. Eles lutam por seus objetivos, expressam seus sonhos, suas esperanças e seus direitos humanos, e é por isso que estão sempre um passo à frente de todos ao redor. Este filme extraordinário nos dá esperança e nos inspira, através de todas as gerações e além de todas as fronteiras, a elevar nossas próprias vozes e a tomar posição em defesa dos nossos direitos humanos básicos. E um dos direitos humanos mais básicos que nos cabe defender, e que devemos defender unidos, é a educação para todos.” (Via Revista Piauí)

Espero Tua (Re)Volta é um notável capítulo da história do cinema documental brasileiro ao apostar numa narrativa polifônica, que dá voz e vez à diversidade que constitui o movimento estudantil e juvenil no Brasil. Com sua tríade de protagonistas, o filme fala muito sobre corpos revolucionários, pondo seus cus na reta, rompendo com o status quo da letargia instituída.  É a juventude fogo-no-pavio que se une na resistência contra a opressão e improvisa soluções para os graves dilemas que vivenciamos. São atitudes que encontraram reflexões à altura na obra de Judith ButlerCorpos em Aliança. 

São manos, minas e monas querendo dançar e beijar na revolução – como queria Emma Goldman. É uma juventude que não se deixou domar pelos chicotes e açúcares do fascismo. Eis onde mora a esperança concreta de renovação. Porém, não há nada de homogêneo ou uniforme neste microcosmo da juventude brasileira que são os movimentos estudantis organizados (UNE, UBES, APNG, mas também C.A.s, grêmios, coletivos etc.). O filme de Capai é didático na explicitação das fraturas que dividem e partidarizam os jovens, sobretudo na cena em que é descrito o CONUNE 2017 – e vale lembrar que A Casa de Vidro produziu um documentário no CONUNE 2019, Não Matem Nosso Futuro, que flui por rios semelhantes:

O desafio maior, para a eficácia coletiva de um movimento cidadão, é criar unidade na diversidade. O filme Espero Tua (Re)Volta é brilhante ao focar neste dilema através do diálogo entre os 3 protagonistas que vão lutando por seus lugares-de-fala, numa espécie de cabo-de-guerra onde se decide: “quem narrará este rolê, e como?” A perspectiva do homem é questionada pela perspectiva da mulher; a perspectiva da UJS é questionada pela perspectiva “autonomista”; e nesta irônica metalinguagem constrói-se o concerto da contradição que é o charme maior no cerne do filme.

O filme dirigido por Eliza Capai utiliza-se de seus três protagonistas principais para enfatizar as diferenças que povoam tanto o movimento estudantil quanto a esquerda, porém insere as relações da tríade de narradores em uma estrutura básica de empatia uns pelos outros, já que compartilham a mesma luta, estão no mesmo campo de batalha contra inimigos compartilhados. É evidente, por exemplo, que a Nayara, sendo uma menina branca de raízes no interior paulista, não vivencia na pele a violência policial dos “enquadros” racistas que os fardados impõe a adolescentes negros como Lucas “Koka” Peteado. Porém, ao invés de erguer um muro de indiferença e de cegueira voluntária entre o eu e o outro, Nayara é uma jovem capaz de empatia com o sofrimento do companheiro estudante que, para além das opressões que ambos compartilham enquanto pobres e vulneráveis, sofre ainda mais do que ela nas mãos dos fardados e suas práticas truculentas e racistas.

O Congresso da UNE, evocado logo no começo do documentário em sua 56ª edição, em 2017, serve como excelente emblema das fraturas expostas do movimento estudantil brasileiro. No filme, é evidenciada a diferença entre as diferentes “tribos” que ocupam o Ginásio Nilson Nelson nesta ocasião, com oposições um tanto radicais entre as frações à esquerda capazes de alianças e coalizações (Juventude do PT, UJS do PC do B, Levante Popular da Juventude etc.) em contraste brutal com os estudantes do Tucanato (PSDB) – tanto que estes últimos são trollados no filme como “gente jovem falando um monte de baboseira como se fossem uns velhotes” (cito de memória).

O Congresso da UNE exige pois o conceito de hegemonia para a compreensão das forças políticas que dominam e as que são mantidas subalternas: dizer que nos dois últimos CONUNES (2017 e 2019), constituiu-se uma hegemonia da UJS na presidência da UNE, com o Levante Popular da Juventude na vice-presidência, é um modo de apontar para as coalizões que, no concreto das lutas, constituem os arranjos possíveis de construção da união na diversidade. Em um processo todo polvilhado de contradições e no qual não faltam os disparos de fogo amigo.

Seria mentir sobre nós mesmos, ativistas mobilizados em prol da causa da educação ou dos direitos civis básicos, caso pretendêssemos nos pintar como extremamente unidos e solidários – a união e a solidariedade são desafios, construções difíceis, tarefas intermináveis, e cada um de nós carrega as cicatrizes das fraturas que já vivenciou. Lendo e aprendendo, nos últimos anos, com Audre Lorde, fui desenvolvendo a noção de que estaríamos equivocados desde a linha de partida se acreditássemos que nossa unidade e nosso poder exigem uma união homogênea.

Precisamos banir de corações e mentes a noção de que qualquer revolução é feita com uniformes, isto é, com indivíduos uniformizados – por fora e por dentro – que constituiriam a mais eficaz das massas revolucionárias para tudo mudar. Não é a uniformidade que faz nossa força, mas nossa capacidade de sermos diversos, mas não dispersos (como Marielle Franco também compreendeu: sejamos diversas mas não dispersas!). Como mudaríamos tudo se repetíssemos esta falácia do homogêneo e do uniforme como cimentos necessários de nossas forças?

Se queremos agir desde hoje na transfiguração concreta do mundo para que ele se pareça com o mundo em que desejamos viver, então desde o princípio precisamos enxergar nossas diferenças não pelo prisma de algo que nos separa e nos fratura, mas sim pelo prisma de diferenças que podem nos engrandecer caso saibamos sintonizá-las. Desde que saibamos fazer mais do que aquele pouco que hoje nos pedem os reformistas acomodados, os desejos de mudancinhas que não balancem as estruturas: eles, os reformistas que se conformam com pouco, dizem-nos que precisamos tolerar as diferenças. Mas isto é pouco demais, cheira demais a mesquinharia, a horizontes utópicos estreitos. Queremos rumar para um além onde nossas diferenças, mais do que toleradas, pudessem ser celebradas.

Não há facilidade nenhuma nisso, mas quem jamais disse que a transformação radical do mundo é fácil, rápida e indolor estava sendo ingênuo, falsificador ou coisa pior. É nossa capacidade de celebrar nossas diferenças ao mesmo tempo que permanecemos unidos que fará o caldo heterogêneo, complexo e multifacetado das pessoas partejando um futuro menos sórdido.

Sei que, ao dizê-lo, deixo que fantasmas de pessoas mortas infundam sua sabedoria às minhas palavras e reconheço minha dívida de gratidão com Audre Lordeshe’s speaking throught me. Conheço poucas mentes que foram capazes de expressar com tanta potência e eloquência esta filosofia da diferença enquanto positividade do que Lorde. Ela ensinava: “In order to work together we do not have to become a mix of indistinguishable particles resembling a vat of homogenized chocolate milk. Unity implies the coming together of elements which are, to begin with, varied and diverse in their particular natures.” (Sister Outsider, p. 136)

Em Espero Tua (Re)Volta, não se vende a farsa de que o movimento estudantil brasileiro fosse de fato uma entidade monolítica e uniforme. Também sabemos muito bem que aquilo que se chama de “esquerda”, no espectro político, é algo fragmentado e que não está imune aos males do sectarismo (fenômeno investigado por Sabrina Fernandes em seu livro, lançado em 2019, Sintomas Mórbidos). 

Espero tua (Re)volta não está aí pra nos mentir sobre as possibilidades de vitória neste cenário de adversidade daquelas forças que lutam em prol de educação pública, gratuita, laica, de qualidade. As adversidades são tremendas e transcendem o âmbito da educação – e nos vínculos que estabelece entre diferentes opressões, o filme é extremamente lúcido: sabe que os problemas da mobilidade urbana, da especulação imobiliária e do encarceramento em massa não são desvinculáveis; que o fechamento das escolas, proposto pelo Picolé de Xuxu, tinha relações com muita coisa além de decisões pedagógicas e “técnicas”, envolvendo o interesse de grandes construtoras em construir condomínios de luxo no local onde estão hoje escolas públicas que se queria liberar para demolição.

Além disso, o filme é repleto de denúncias pungentes de uma violência policial onipresente nas ações de repressão contra os movimentos estudantis, o que o filme não desvincula do gravíssimo cenário que Koka torna explícito: São Paulo é disparado o estado brasileiro com o maior número de presos, sendo o Brasil um dos 3 países no mundo que lidera o ranking do encarceramento em massa. Argumenta com claridade o Koka: “se prender geral resolvesse alguma coisa, não estaríamos entre os 10 países mais violentos do planeta”. Assim é desvelado, como o feminismo negro tanto destaca através de figuras como Angela Davis e Michelle Alexander, o vínculo sórdido entre a opressão policial e a carcerária, entre a violência dos PMs no asfalto e a violência contra os milhares de detentos nos Carandirus repletos dos que antes moravam nas quebradas.

Se a crítica social que o filme inclui é ampla o bastante para abraçar várias formas de opressão coligadas, a expressão das individualidades não fica nisto soterrada. Pelo contrário, Espero Tua (Re)Volta carrega toda a força destas 3 singularidades que propulsionam o filme adiante com suas narrativas confluentes. A Marcela de Jesus, com suas mutações identitárias radicais, é um excelente exemplo do que eu chamaria, para homenagear Raul Seixas, de uma singularidade em metamorfose ambulante.

De cabelos roxos, ela revê cenas dos primórdios de sua atuação enquanto estudante secundarista mobilizada politicamente, contrasta suas madeixas atuais com as de outrora: para ela os cabelos são mais do que estética ou aparência, envolvem sua essência como pessoa em travessia. No caso, uma pessoa de essência transformante, uma mutante identitária – mas não seríamos todos?

A juventude, sendo a fase da vida de acelerações destas mutações vitais, com toda a radicalidade alteritária que se destrava quando a infância flui rumo à puberdade e à adolescência, é capaz de nos ensinar um bocado sobre esta profunda verdade da existência: estamos condenados à mudança. Tudo flui é uma lei universal e cada um de nós está incluído neste tudo flui: borboleta precária a voejar efêmera por uma vida cuja única certeza com que podemos caracterizá-la é que ela não dura. Estamos aqui de passagem, e que esta passagem possa ter ao menos o sentido precário de que lutamos juntos por um mundo melhor.

Marcela não quer ficar muito tempo presa a si mesma. Não só acolhe a mudança, ela a procura e a produz. Quer expulsar quaisquer vestígios de racismo interiorizado que porventura os opressores possam ter lhe imposto. A juventude é esta idade da vida em que, como Marcela, facilmente passamos a discordar de nós mesmos, pois já não somos o que éramos há pouco, pois mudamos para outra posição singular de nossa jornada identitária. Queimem os RGs e CPFs, pois é uma fraude que aqueles números fixos pretendam descrever algo sobre os rios que somos! Marcela se transforma em profundeza (o que, é claro, expressa-se por muitos sinais extremamente aparentes, e não só o cromático exuberante do roxo em suas novas madeixas).

O filme faz magia ao encapsular modificações-de-si tão profundas no fluxo impetuoso de uma obra que parece propulsionada pela energia indomável de corpos juvenis que não aceitam coleira. Nem vão se calar quando explodem contra estudantes as bombas de tóxico gás lacrimogêneo – cada um deles de preço equivalente ao de 500 merendas.

“Marcela Jesus participou das ocupações estudantis de 2015 e 2016 em que ocupou sua própria escola contra um projeto de reorganização escolar do governo do Estado de São Paulo. Em 2016, iniciou sua formação artística em 2016 com a peça ROZÁ. Em seguida, entrou para a ColetivA Ocupação, dirigida por Martha Kiss Perrone e em 2017 se apresentou na MIT – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – com a performance “Só me convidem para uma revolução onde eu possa dançar” e em 2018 integrou como atriz e dançarina a peça “Quando Quebra Queima” que é seu atual trabalho com a ColetivA Ocupação. Com a peça, chegou a viajar para a Inglaterra, onde se apresentou em Leeds e Manchester e também deu oficinas de teatro para alunos da The University of Manchester.” – TATURANA

É Emma Goldman e seu anarquismo festivo-combativo que o filme acaba por evocar fortemente – pois ele parece marcar o percurso não só de Marcela, a Senhorita “Só me convidem para uma revolução onde eu possa dançar”, mas também de Koka e Nayara. Esta juventude quer estar dançando nas ruas rufando seus tambores em uma realidade social de corpos mais livres para se expressarem.

Na atualidade, os corpos que se mostram em seus processos de mutação identitária radical – como nos casos das transições de gênero dos transexuais – vivem sob a paranóia justificada que a cultura de ódio e extermínio reinante visa impor. A expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil não chega aos 40 anos de idade, o que significa que uma das categorias sociais que mais está condenada à morte precoce, por extermínio violento nas mãos de um agressor alterofóbico, é o das pessoas trans, párias entre as párias, matáveis entre as pessoas matáveis.

É contra isto que se insurgem estes estudantes, plenamente cientes de suas diferenças, reivindicando a construção coletiva de uma cultura outra: mais colaborativa do que competitiva; mais solidária do que individualista. E a ocupação é o aqui-e-agora onde a urgência da História obriga a transformar a Escola em Casa.

Espero Tua (Re)Volta ajuda-nos a compreender um fenômeno histórico inédito: no segundo semestre de 2016, em especial nos meses de Outubro e Novembro de 2016, o Brasil chegou a ter mais de 1.000 escolas e universidades públicas ocupadas pelos estudantes em protesto contra as medidas do governo nascido após a deposição de Dilma Rousseff. Especialistas apontam que não há nenhum precedente histórico para uma onda de ocupações desta magnitude em nenhum país do mundo.

Os estudantes secundaristas e universitários brasileiros protagonizaram a principal frente de resistência contra o carro-chefe do governo Temer, a Emenda Constitucional que instituiu o Teto de Gastos Públicos por 20 anos, aprovada pelo Congresso ao fim de 2016 mesmo com uma intensa onda de mobilizações contrárias a ele.

Naquela ocasião, A Casa de Vidro, enquanto centro de mídia independente, produziu uma tríade de documentários em Brasília: “A Babilônia Vai Cair”, “Levantem-se!” e “Ponte Para o Abismo”, que retratam os protestos estudantis na capital federal contra aquilo que se chamava de “PEC do Fim do Mundo”. Dando sequência a este trabalho documentarístico, produzimos em 2019 uma série de curtas-metragens documentais que retratam os levantes em defesa da rede federal de educação que ocorreram no primeiro ano do governo neofascista-neoliberal de Bolsonaro. Tais movimentos, que ficaram conhecidos como “Tsunamis da Educação”, dão sequência à onda de ocupações e protestos que marcaram o ciclo de lutas de 2015 em São Paulo e em 2016 em todo o Brasil (com destaque para as ocupações de mais de 800 escolas no Paraná).

O filme de Capai retrata com empatia e entusiasmo o ativismo destes jovens em prol de um ensino público de qualidade. Revela também a defesa apaixonada que estes jovens fazem de uma educação para o pensamento crítico, em que professores não sejam silenciados ou criminalizados com base em propostas autoritárias como aquelas do “Escola Sem Partido”. Além disso, revela que estas lutas por direitos coletivos incluíram debates interseccionais sobre o feminismo, os movimentos LGBTQ e as lutas antirracistas, pautas que estiveram vivas e atuantes dentro das ocupações e marcaram presença em todos os atos cívicos conexos.

O filme revela de que maneiras as escolas e universidades sob ocupação estudantil foram transformadas em laboratórios de outros mundos possíveis. Revela as ações de jovens em um esforço de contestação de um status quo visto como injusto e opressor, conectado a um esforço coletivo de prefiguração de alternativas societárias. Deste modo,um filme como este ajuda a alimentar nossa potência crítica e contestatória ao mesmo tempo que dá oxigênio novo às energias utópicas de construção daquilo que Paulo Freire chamava de “inéditos viáveis”.

Nos 93 minutos do filme, podemos ver as ocupações como “zonas autônomas temporárias”, como diz Hakim Bey, onde as estruturas das relações humanas foram radicalmente transformadas, no âmbito restrito daqueles microcosmos de ativismo estudantil, onde a cidadania ativa era exercida de modo radical, ainda que às vezes através de táticas improvisadas e espontâneas. Neste sentido, a importância de “Espero Tua (R)evolta” está também na ênfase que dá às novas gerações como protagonistas na pré-figuração de realidades alternativas em que as opressões de gênero, raça e classe estivessem superadas por modelos radicalmente democráticos, inclusivos e autonomistas de educação e de sociedade.

Na ocupa, a galera improvisa o rango, dividindo as tarefas de limpeza e segurança, fazendo os corres dos colchonetes e barracas, num autêntico mutirão em que cada um sai da segurança dos ninhos familiares, deixa a dependência que as figuras de pai-e-mãe querem a estabelecer nos sujeitos, aventuram-se numa fascinante jornada de maturação. As ocupas podem ter sido inspiradas por muitas fontes – o filme evoca o MTST e sua liderança mais conhecida, Guilherme Boulos, como uma das inspirações, mas também reconhece a importância do Movimento Estudantil Chileno e do documentário de Carlos Pronzato que o retrata, A Revolta dos Pinguins. Mas a verdade talvez esteja não tanto nas influências externas que impulsionaram os jovens às ocupações, mas algo de mais íntimo, do âmbito das forças subjetivas, uma vontade muito disseminada de testar nossas forças no vôo, em perigo, justamente para expandir estas forças que, na inatividade, estagnariam.

São jovens que sabem o valor de uma liberdade em exercício. Pois uma liberdade só sonhada não é nada senão obscena quimera inútil – e bendito aquele que estraçalha idealizações no altar da ação concreta e conjugada! Na Ocupa, descobrem-se cidadãos. Tomam para si a gestão do que deveria ser administrado pelo Estado, instauram mecanismos de governança autonomista quando os que governam manifestam seu intento de fechamento (enclosure) do território declinante do comum (commons). Enquanto famílias, igrejas e partidos conduzem sujeitos às patologias deformantes do individualismo sectário, as ocupas podem servir como Zonas Autônomas Temporárias que conduzem às práticas comunais de cidadãos colaborantes. No caldeirão do improviso de outros mundos possíveis, forjados no calor das lutas, animados por beijos bem molhados e rabas bem reboladas.

Eduardo Carli de Moraes – Setembro de 2019

MULHERES COMPORTADAS NÃO FAZEM HISTÓRIA: Assista ao curta-metragem documental filmado no 8M Goiânia || “O feminismo é pra todo mundo.” Bell Hooks

“A Liberdade é uma luta constante.”
Angela Davis

“Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.”
Conceição Evaristo

“Quando Marielle Franco morreu”, diz a advogada e ativista Sara Macêdo Kali, “fizemos um compromisso de que seríamos semente”. Cerca de um ano após o assassinato da deputada do PSOL e seu motorista Anderson Gomes, tanto o 8M quanto o 14 de Março levaram às ruas do Brasil (e do mundo) a estrondosa e multidiversa voz destas coligações-de-sementes que garantem: Marielle vive, Marielle presente!

O Dia Internacional das Mulheres foi mobilizado não só pela memória de Marielle e pela demanda de justiça (afinal, apesar da prisão dos assassinos, a pergunta que não quer calar permanece: quem mandou matar, e porquê?), mas pela denúncia da opressão de gênero e pelos alarmantes índices de violência contra as mulheres: o Brasil registrou 60.018 casos de estupro em 2017, o que corresponde a uma média de 164 por dia, ou um a cada 10 minutos, segundo o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Um estudo divulgado em novembro de 2018 pelo UNODC (Escritório das Nações Unidas para Crime e Drogas) mostra que a taxa de homicídios femininos global foi de 2,3 mortes para cada 100 mil mulheres em 2017. No Brasil, a taxa é de 4 mulheres mortas para cada grupo de 100 mil mulheres, ou seja, 74% superior à média mundial.

Diante de um cenário como este, agravado pelo empoderamento da extrema-direita misógina nas últimas eleições, fomos às ruas com as câmeras e microfones em sincronia e sintonia com esta ideia manifestada por Rosângela Aguiar, jornalista e ativista que integra o Jornal Metamorfose: “mulheres comportadas não fazem história!”

LEITURAS SUGERIDAS: ELIANE BRUM E JUAN ARIAS EM EL PAÍS; LAURA CARVALHO NA FOLHA DE S. PAULO; BLOG DO SAKAMOTO

“A semente de Marielle Franco vive em nós hoje e sempre”, dizia a faixa na vanguarda da marcha 8M aqui em Goiânia. Marcadas pela Mangueira, cujo desfile de carnaval, campeão na Sapucaí, havia honrado a memória de Marielles e Malês, celebrando também os ícones culturais (Lecis e Jamelões), as manifestantes botaram a boca no trombone.

“Ai ai ai, Bolsonaro é o carai!”, cantavam em alegre insurgência musical. A preocupação era geral com os alarmantes índices de homicídio. E na boca de todos se dava voz à indignação contra a Reforma da Previdência que o governo Bolsoasno e o Congresso dos 300 Picaretas com Anel de Doutor pretende ao nosso povo impor.

Eis aí o curta-metragem documental que rodamos nas ruas de Goiânia/GO em 08 de Março de 2019, durante o ato do Dia Internacional das Mulheres: “MULHERES COMPORTADAS NÃO FAZEM HISTÓRIA”, disponível em várias plataformas (Youtube, Vimeo, Facebook):

Um filme de Lays Vieira e Eduardo Carli de Moraes; uma co-produção Jornal Metamorfose e A Casa de Vidro. Entrevistas com Sara Macêdo Kali, Mariana Lopes, Rosângela Aguiar. Músicas por Larissa Luz, Tássia Reis, Samba-enredo da Paraíso do Tuiuti 2018, canção “Bella Ciao” versão #EleNão. Prestigie e apoie o jornalismo e o documentarismo independentes! Dissemine e divulgue o midiativismo de relevância!

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FOTOGRAFIAS – por Eduardo Carli e Érika Borba / Mídia Ninja

JAMAIS PODERÃO APRISIONAR NOSSOS SONHOS – Sobre o imperativo da união em torno da bandeira #LulaLivre

EDITORIAL A CASA DE VIDRO – “Acho que a coisa mais gostosa da nossa passagem pela Terra é a convivência fraternal na diversidade”, diz Lula em seu livro “A Verdade Vencerá” (Boitempo, 2018, p. 105). O elogio da democracia, por parte de um dos estadistas mais populares da terra, é também a apologia da Política, antídoto contra a guerra, campo de diálogos e deliberações no espaço público, polvilhado de contradições:

“Em vez de ter um sem-terra e um ruralista se matando no campo de batalha, é muito mais bonito vê-los digladiando no Congresso Nacional, argumentando, provando tudo, votando… E vença aquele que tem melhor argumento. Eu acredito nisso. Acho que no Brasil, lamentavelmente, a democracia não é a regra, é exceção.

E isso é triste, porque eu jamais imaginei, depois de 1988, que a gente teria outro golpe. Eles civilizaram o golpe, agora não precisa ter guerra civil. Não precisa de golpe militar. Você faz dentro da lei: constrói a maioria, consegue ganhar a opinião pública, tem a imprensa para prestar o serviço. A imprensa presta o serviço, você então cria uma maioria da sociedade contra o governo, cria uma maioria dos parlamentares contra o governo e dá legalidade a tudo. E acontece o que estamos vendo no Brasil.”

O Golpe de Estado que se processa no Brasil desde 2016 teve no impeachment sem crime de responsabilidade, perpetrado contra Dilma Rousseff, apenas o seu primeiro episódio: naquela ocasião, os mais de 54 milhões de votos da presidenta re-eleita foram jogados no lixo, com o pretexto espúrio das “pedaladas fiscais” (que nunca foram nem nunca serão motivo para considerar um governante como criminosamente irresponsável).

A Aliança Golpista, sem precisar de tanques, pôde congregar ao seu redor uma maioria parlamentar (essencialmente ligada à Bancada BBB), um respaldo midiático fornecido pelo empresariado da comunicação de massas (com especial protagonismo daquele ovo da serpente que a Ditadura chochou e protegeu em seu ninho, a Rede Globo), além do apoio de setores da sociedade civil que foram cooptados por movimentos como MBL e Vem Pra Rua, servindo de úteis manifestoches da intentona putschista.

Mas ninguém dá um Golpe de Estado para simplesmente realizar novas eleições democráticas e justas, com o risco explícito da 5ª vitória consecutiva do PT – Partido dos Trabalhadores para a presidência da República – donde a necessidade do aprisionamento de Lula, nova fase do velho golpe que pôs Michel Temer no comando de um país que, ao invés de construir uma Ponte Para o Futuro, só está despencando no abismo.

“O mais grave, diz Lula, é a falta de capacidade de indignação da sociedade. Mas não é só com a democracia. É a falta de indignação com gente que está dormindo na rua. É a falta de indignação da sociedade quando eles acabam com investimento em ciência e tecnologia, quando querem acabar com o Fies, quando querem acabar com o Prouni, quando acham que fazer doutorado no estrangeiro é gasto desnecessário. E não é gente pobre, ão. Cadê a academia se manifestando contra a retirada de dinheiro de ciência e tecnologia?” (p. 105)

Este sentimento de indignação que inflama Lula e que o motiva à ação hoje se soma à revolta sentida pelo ex-presidente pela enxurrada de calúnias e pela perversa perseguição de que ele é alvo. O sentimento de um cara injustiçado está impregnado em todas as páginas do livro: “o sentimento de injustiça, de canalhice, da mentira mais escabrosa que se inventou neste país”, queima no peito de Lula contra esta “Elite do Atraso” de que nos fala Jessé Souza. “Eles não aceitaram a ascensão social dos oprimidos neste país.” (p. 79)

O cárcere que fez de Lula um preso político do regime nascido do golpeachment não diz respeito a um triplex no Guarujá, tem a ver com o futuro político de Lula, que trata-se de aniquilar, até mesmo porque a candidatura lulista para as Eleições de Outubro de 2018 provavelmente incluirá a proposta de uma nova Assembléia Constituinte, além de um referendo revogatório que cancele todos os atos do governo ilegítimo nascido do golpe, a começar pela Reforma Trabalhista e pela Emenda Constitucional do Congelamento de Investimentos Públicos em Saúde e Educação por 20 anos. Lula diz:

“Eu sempre tento me colocar do lado dos adversários. Eles devem ficar pensando assim: ‘A gente inventou uma fraude para dar o golpe e a gente conseguiu dar o golpe, tiramos a Dilma. E dizemos tudo isso pro Lula voltar? Correndo o risco de ele levar a Dilma de volta pro governo?’ Porque eu de fato levaria, para ela fazer coisas que sabe fazer como ninguém. Eles correriam o risco de eu montar um ministério ainda mais forte que o da primeira vez? Porra [bate na mesa], se tem uma coisa que o povo gosta é de viver bem. Ninguém se conforma de ganhar pouco, ninguém se conforma de comer mal. As pessoas gostam tanto de viver bem que o Sérgio Moro, quando acha que não ganha o que precisa, pede auxílio-moradia [risos].” (p. 69)

A crítica que se faz às práticas lulistas, ao PT no poder, de ter propiciado a inclusão de mais de 50 milhões de pessoas na economia, através de seus programas sociais, mas que o fez através de uma perspectiva que pensa o ser humano mais como consumidor do que como cidadão, Lula responde: “Eu pensei no cidadão. Porque o cidadão que não pode consumir não é porra nenhuma. O cidadão que não pode comer, não pode vestir e não pode beber é pária, não é cidadão.”

Bertolt Brecht aplaudiria.

Nos dias lendários que precederam sua prisão, Lula tornou-se um ícone histórico de estatura e magnitude similar à de um Martin Luther King, Jr. – cujo discurso “I Have a Dream” inspirou o seu próprio discurso emocionado com várias frases começando com “Eu Sonhei…”. Lula também recuperou o espírito de Che Guevara, citou Pablo Neruda, disse que “podem cortar todas as flores e não vão parar a primavera”. Lula quis nos dar um alento de esperança nestes tempos distópicos e desesperadores onde nossos direitos mais básicos estão sendo lançados no lixo da história pelo elitismo plutocrático que assaltou o poder. Lula nos disse que o problema do poder não é ele, um homem de carne-e-osso, mas o ideal que ele representa e que defendeu com sua vida. O ideal que sua morte não irá matar.

O problema do golpe não é Lula, o problema do golpe somos nós. Pois somos milhões de Lulas e não se pode encarcerar sonhos. Somos milhões de Lulas e não se pode deixar as idéias presas detrás de grades. Ainda que as forças golpistas o mantenham numa cela, incomunicável, torturado pela solidão, impedido de participar da eleição, nós aqui fora seremos Lula Livre. Ele respirará por nossos pulmões, andará por nossas pernas, gritará por nossas bocas, chorará por nossos olhos, lutará com nossos punhos. Pode ser que a gente vá perder, mas Darcy Ribeiro já disse tudo: há muitas lutas em que nós odiaríamos estar do lado dos vencedores, em especial quando eles são uma gangue perversa como esta que tem nos golpeado dia a dia.

É um tempo histórico que não nos permite o luxo da isenção. Há 3 lições de 3 grandes mestres que falam sobre isso com clareza. Desmond Tutu diz que “se você é neutro em situações de opressão, você escolheu o lado do opressor.” Florestan Fernamdes diz que “não existe neutralidade possível e o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou com os explorados.” Paulo Freire diz que não existe neutralidade ideológica e que todos tem ideologia, resta saber: “a sua base ideológica é inclusiva ou excludente?” Por isto, diante das injustiças históricas, não vejo possibilidade de estar ao lado dos “isentões”, já que a justiça é construção coletiva que demanda nosso engajamento.

“Querem me prender? Eu falarei pela voz de vocês. Eu andarei pela perna de vocês. Eu pensarei pela cabeça de vocês.”

Agora o problema deles não é Lula, o problema deles somos nós.

#LulaLivre!

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Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
www.acasadevidro.com || 11 de Abril de 2018

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FERMENTO PRA MASSA – Goiânia na Greve Geral (Documentário, Curta-Metragem, 2017, 21 min)

FERMENTO PRA MASSA – A GREVE GERAL EM GOIÂNIA
Um documentário curta-metragem de Eduardo Carli de Moraes
Uma produção independente A Casa de Vidro

“Hoje eu vou comer pão murcho, o padeiro não foi trabalhar / A cidade tá toda travada, é greve de busão, tô de papo pro ar!” É o que canta Criolo em “Fermento Pra Massa”, canção do álbum “Convoque Seu Buda”, convocada para inaugurar e batizar este doc em clima de samba-resistente. “Eu que odeio tumulto não acho insulto manifestação / Pra chegar um pão quentinho com todo o respeito a todo cidadão!”

Era um dia histórico na Nova República: a maior Greve Geral desta geração, com adesão de cerca de 35 milhões de pessoas em todo o país, coincidia com os 100 anos da pioneira, inaugural Greve Geral de 1917.

Em 1917, quando mulheres e crianças labutavam até 16 horas diárias, irrompeu em São Paulo a primeira grande luta operária brasileira, dirigida por anarquistas. Como começou. Quais suas conquistas e atualidade – Por Eduardo Alves Siqueira em Outras Palavras

A multidão em Goiânia, estimada pelos jornais Daqui em cerca de 30 mil pessoas – número inflado pela CUT a exagerados 70 mil manifestantes – era polifônica, multifacetada, pulsante como um mega-organismo da reXistência, parte de um todo-humano enigmático – “nós somos os 95%”! – que esparrama-se como um Octopus de mil tentáculos pelo território nacional.

Goiânia

São Paulo

Recife

Rio de Janeiro

Na Goiânia das dez vanguardas, nesta data, decerto houve caos e cacofonia. O tecido da sociedade está mesmo todo esgarçado, polvilhante de antagonismos. Em uma das vanguardas, onde as bandeiras negras dos movimentos anarquistas e antifascistas misturavam-se a cartazes coloridos propugnando “AMAR SEM TEMER”, ouviam-se em altos brados palavras-de-ordem como: “É barricada, greve geral, ação direta que derruba o capital!”

Re-aquecendo as brasas da Primavera Secundarista que fez História em 2016, com mais de 1.000 ocupações, a estudantada botou de novo a boca no trombone e cantou em alto e bom som todos os punk-hits da temporada. O hit do ano passado voltou a dar as caras neste dia de strike: “acabou a paz, mexeu com estudante, mexeu com Satanás! Olha o capeta!” Já o brado desafiador também não faltou: “o Estado veio quente, nóis já tá fervendo! Quer precarizar? Não tô entendendo! Mexeu com estudante, você vai sair perdendo!” Os batuques comiam soltos enquanto os coros de brados ressoavam pelo centro, informando a todos que “em Goiás tem escola de luta! Fica preparado: precariza nóis ocupa!”

Na frente da Assembléia Legislativa, a multidão concentrou-se pela manhã do dia nacional de paralisação e alguns traziam caixões de isopor – ecos do protesto do Acampamento Terra Livre diante do Congresso Nacional. Nos caixões se lia: “Morreram Antes de Se Aposentar”. Os nomes ali inscritos eram tantos que aquilo que parecia ser um caixão tamanho individual mostrou-se logo como símbolo de uma vala comum. A vala comum que o desgoverno em curso pretende impor com suas deformantes Reformas.

O “Fora Temer” parecia ser um consenso ruidosamente reafirmado em dúzias de ruas e esquinas, mas os Fora Iris e Fora Marconi também não ficaram atrás. Explosões de indignação diante da truculência da PM goiana também não tardariam, quando o sangue do estudante da UFG, Mateus Ferreira, seria derramado pelo brutal cassetete de um capitão da PM.

Em estado grave, na UTI, com traumatismo craniano, respirando por aparelhos, o estudante com o crânio esmagado serve como emblema do autoritarismo irracional daqueles que se fazem cães-de-guardas de um regime golpista que cada vez demonstra mais que seu único argumento contra a dissidência é a barbárie da porrada.

Esgoelando-se sobre o carro de som, Davi Maciel, professor de História da UFG, esbravejou:

“A Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista não visam apenas bater a mão na nossa carteira, não é apenas um estelionato pra tirar direitos, pra nos fazer trabalhar mais tempo e nos fazer trabalhar mais barato, mas visa sobretudo baratear nosso salário.” Evocando os 150 anos em que já estamos convivendo com o espectro de Karl Marx e das análises de seu “O Capital”, o professor conclamou ainda: “Temos que derrotar esse Governo estelionatário, esse Congresso estelionatário, que bate a mão na nossa carteira, que nos dá um golpe barato… Fora com essa pauta de reformas anti-populares, favoráveis ao capital! Greve geral enquanto essas reformas não forem vetadas! Fora Temer!”

Houve quem desfilasse pelas ruas seu catolicismo, re-aproximado da Teologia da Libertação pelas idéias e práticas de Jorge Bergoglio (o Papa Francisco). Este era celebrado no cartaz de uma manifestação por sua frase de utopista: “Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos.”

Em escudos, faixas e camisetas também prestava-se solidariedade a Rafael Braga. Quando a senhora pergunta “quem?”, a moça explica: “É o cara que foi preso numa manifestação por porte de Pinho Sol…”. De cima do carro de som, estudantes gritarão: “Eu falo por Amarildo, falo por Rafael Braga!”

Os estandartes vermelhos arrastados pela avenida eram também de várias faces: do MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto ao SINTEGO, o escalarte era uma das cores mais vistas no dia da Greve Geral, também pela profusão de camisetas da CUT Brasil.

Infelizmente, outro vermelho marcaria este dia: o sangue derramado pela truculência brutal da Polícial Militar. O estudante da UFG, Mateus Ferreira, que curta Ciências Sociais / Políticas Públicas”, sofreu uma violenta agressão por parte de um capitão da PM; a história deste crânio esmagado e da banalidade do mal está neste outro texto:

O sangue derramado sobre o asfalto pode até ter sido lavado, junto com o resto dos refugos da Greve Geral, mas ele não será esquecido tão cedo.

Ao escarlate do sangue misturavam-se as lágrimas indignadas que eu via correrem de muitas faces enquanto Mateus era atendido pelo Corpo de Bombeiros, estirado na Avenida Goiás, enquanto a galera gritava a plenos pulmões para a PM: “Polícia, fascista, você que é terrorista!”.

Passei as últimas horas obcecado com o pensamento de que aquele crânio esmagado poderia ter sido o meu. Ou o de algum amigo querido. Ou o de alguma companheira de midiativismo. A brutal agressão policial, furiosa irrupção de um autoritarismo brucutu, explicitação da completa incapacidade de reflexão e auto-controle por parte do criminoso fardado, poderia ter atingido qualquer um de nós.

Este texto poderia nunca ter sido escrito pois seu autor poderia estar agora numa UTI, com o crânio esmagado, pelo fato de estar nas ruas com uma câmera… O sangue entre as sobrancelhas da Júlia Aguiar, agredida por um policial enquanto tirava fotografias, não me deixa mentir.

Ao meio-dia deste 28 de Abril, enquanto o helicóptero da polícia sobrevoava baixo sobre nossas cabeças, ostentando o barulho de suas hélices e a metralhadora de seus soldados, eu filmava aquilo com as mãos tremendo: Mateus, desmaiado, a cabeça ensanguentada, carregado pelos companheiros desde a Anhanguera, através da Avenida Goiás, enquanto a Tropa de Choque e a Cavalaria já realizavam suas manobras para “dispersar” a multidão, usando aqueles métodos aprendidos com aquela Ditadura que alguns conjugam no passado, como se fosse matéria de livros de História, mas que ainda estamos longe de ter superado. A PM não só esmagou o crânio de um estudante de Ciências Sociais/Políticas Públicas; deixou-o ali para sangrar em praça pública.

Tudo isso aconteceu sob o olhar impiedoso da estátua do Anhanguera, genocida de pedra que decora o epicentro de Goiânia como um lembrete das autoridades ao povo: aqui tratamos como heróis e batizamos com nomes de avenidas aqueles que, no passado, marcaram época pelo sangue que derramaram em seus propósitos colonizadores. Se aquela estátua pudesse aplaudir, os PMs teriam tido as únicas palmas do dia. Agora, na cibercultura de nosso mundo cada vez mais insanizado e mais próximo de Black Mirror, fãs de Bolsonaro e fascistas de Facebook fornecem os aplausos ao horror…

Quem tenta justificar uma agressão homicida, que deixou o estudante da UFG com traumatismo craniano e respirando por aparelhos, já pôs-de do lado dos carrascos, já filiou-se como cúmplice do fascismo, já é funcionário inconsciente da banalidade do mal. “Se ele tivesse ficado em casa, isso não teria acontecido”; “Ele provavelmente quebrou umas vidraças de banco, caso contrário não teria apanhado da polícia”; “Ele teve sua cabeça destroçada por um cassetete da PM, é verdade; mas quem mandou cobrir o rosto com uma máscara?” Nem é preciso ter estudado a “Psicologia de Massas do Fascismo” de Wilhelm Reich pra perceber nestes argumentos a manifestação do fascismo cotidianizado, que enxerga vidraças como mais sagradas do que vidas humanas, que aplaude a crueldade fardada como se esta fosse panacéia pra pôr ordem em nosso caos… – LEIA MAIS

Sobre o episódio da lamentável brutalidade do policial contra o manifestante, a Faculdade de Ciências Sociais da UFG publicou a seguinte nota de solidariedade:

https://www.facebook.com/blogacasadevidro/posts/1901067016586281

A TV Anhanguera, filiada da Rede Globo, também realizou uma reportagem e entrevista com a mãe e o pai do Mateus:

Estes e outros agitos deste dia histórico no Brasil estão nos 20 e poucos minutos do filme. “Fermento Pra Massa” contou com a colaboração de Renato Costa, nas filmagens, e inclui fotografias de Annie Marques,Júlia Aguiar, Luiz da Luz e Jean Pierre Pierote. A trilha sonora inclui, além de Criolo, “Take The Power Back”, do Rage Against The Machine, “La Bala”, de Anita Tijoux, e “O Dia Em Que A Terra Parou”, de Raul Seixas. Acesse o post e saiba mais em A Casa de Vidro: www.acasadevidro.com.

Assista no Youtube:

Assista no Vimeo:

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“A BABILÔNIA VAI CAIR” – A Batalha de Brasília em 29 de Novembro de 2016 [Documentário, curta-metragem, 25min, uma produção A Casa de Vidro]

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marianna-cartaxo-7Fotos: Cartaxo Fotografias

We gotta take the power back!” – RAGE AGAINST THE MACHINE

“O Brasil é um país com um longo passado pela frente.” – MILLÔR FERNANDES

Em 29 de Novembro de 2016, mais de 40 mil pessoas confluíram para a capital federal para realizar uma mega-manifestação em frente ao Congresso Nacional. Na ocasião, o Senado votava em primeiro turno a aprovação da PEC 55, que congela os investimentos públicos em saúde, educação e previdência social por 20 anos. Caravanas de todo o país chegaram a Brasília, com forte presença de estudantes secundaristas e universitários, de professores e servidores técnico-administrativos, de sindicatos e movimentos sociais, numa imensa congregação popular que exigia que sua voz fosse ouvida e sua indignação reconhecida.

Marcaram presença o Levante Popular da Juventude, o Juntos, a UNE – União Nacional dos Estudantes, a UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, a POVO SEM MEDO, o MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, a RUA – Juventude Anticapitalista, a Frente Brasil Popular, o MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, além de representantes de ocupações e greves que ocorrem em escolas e universidades em todo o território nacional.

Neste documentário curta-metragem, uma produção independente de A Casa de Vidro, buscamos retratar todo o colorido e diversidade do ato que, ao ocupar o gramado em frente ao Congresso, começou a sofrer com a brutal repressão militarizada dos fardados que defendem o regime ilegítimo do usurpador Michel Temer. Dentre as pautas dos manifestantes, além dos onipresentes #ForaTemer e #OcupaTudo, estavam a demanda por uma greve geral “para barrar a precarização”; o protesto contra a permissão concedida ao imperialismo estrangeiro para a espoliação do petróleo no pré-sal brasileiro; a reivindicação de que o STF anule o processo de impeachment de Dilma Rousseff; a demanda de “poder para o povo” a fim de “criar um mundo novo”, dentre outras pautas.

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Gramado em frente ao Congresso Nacional no dia da votação da PEC 55 no Senado, primeiro turno, 29 de Novembro de 2016. Foto: Eduardo Carli.

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Passeata pela Esplanada dos Ministérios. Fotos: Eduardo Carli.

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O povo educando seus “governantes” #PedagogiaDoPixo. Fotógrafo desconhecido.

Brasília, 29-11-16. Foto: Marcelo de Francheschi.

Brasília, 29-11-16. Fotos, acima e abaixo: Marcelo de Francheschi.

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Repressão policial busca dispersar a multidão com o uso de bombas de gás venenoso, spray de pimenta, balas de borracha, cavalaria, tropa de choque e helicópteros.

Sem dúvida, a violência policial teve início bem antes da ocupação temporária da frente do Congresso Nacional: quando a passeata havia acabado de deixar a concentração, em frente à Biblioteca Nacional, e desfilava ao lado da catedral, começaram os abusos e arbitrariedades dos soldados, que começaram a prender, espancar e levar jovens para o camburão, sendo duramente contestados pela massa com as palavras-de-ordem que tanto se repetiriam neste dia: “não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar!” Quando a imensa massa concentrou-se no gramado do Congresso, alguns refrescaram-se na água, diante do cordão de isolamento policial; muitos batuques e cantos em coro animavam o ambiente numa potente festa democrática; um pequeno grupo, em tese anarquista, capotou um carro da Rede Record; alguns manifestantes tentaram ultrapassar a barreira policial e foram tratados na base da porrada e do spray de pimenta na cara.

Poucos minutos após a galera ter chegado ao Congresso, teve início a violenta repressão policial desencadeada sobre uma massa de 40 mil cidadãos desarmados, que foram tratados como exército inimigo e bombardeados com gás tóxico de (d)efeito moral. A irresponsabilidade crassa da polícia e de seus mandantes palacianos precisa ser denunciada como uma das mais graves violações dos direitos humanos acontecidas no Brasil pós-golpe, com dezenas de pessoas feridas, desmaiadas, sangrando, desaparecidas, perdidas de parentes e de amigos. Avançando com a Tropa de Choque e a cavalaria, os brucutus da força policial escancaram seus dentes fascistas ao transformar a Esplanada dos Ministérios num campo de guerra. Não satisfeitos em dispersar o povo que havia ocupado o gramado em frente ao Congresso, a repressão policial perseguiu os manifestantes através de toda a esplanada, onde surgiram várias barricadas feitas com lixo, pneus e toaletes.

Brasília fedia à ditadura. Ardiam lá também as chamas da insurreição. A barbárie fardada a serviço dos plutocratas golpistas tornou Brasília um cenário bélico. A Palestina era aqui. Agora, como sinistra continuação do horror em curso, o segundo turno da votação da PEC está marcado para o dia 13 de Dezembro, data em que foi promulgado o AI-5 em 1968. Pode até ser mera coincidência, mas é um paralelo significativo, apesar de tenebroso: a hecatombe dos direitos humanos que promove-se no país com esta Proposta da Estupro à Constituição, que congela nosso futuro por 20 anos, sucateando a educação e a saúde públicas, é a face atual do capitalismo mais selvagem, excludente e desumano; é o AI-5 de nossa geração.

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A polícia covarde e ditatorial a serviço do Sr. Michel Temer, protegendo os senhores parlamentares da república plutocrática dos Estados Unidos do Brasil, não tem o mínimo direito de avançar com sua máquina de guerra contra os cidadãos daquilo que, até poucos meses atrás, era uma democracia representativa. Temos o direito de demandar e contestar os nossos representantes pois somos nós que os pusemos ali. Vivemos em tempos, porém, onde a crise de representação atingiu seu zênite, onde a maior parte dos parlamentares se isolam em um bunker militarizado e não dialogam com a população.

Brasília, esta cidade inventada por Juscelino no meio do Cerrado despovoado, erguida do nada para ser ao mesmo tempo um monumento modernista e um pragmático centro de poder que ficasse bem longe do povo (no Rio de Janeiro ou em Salvador isso não era possível…), sempre teve um caráter elitista de urbe inventada por e para Os Poderosos. Este todo-poderosismo de nossas autoridades se manifestou nesta ocasião em toda a sua fúria, em toda a sua covardia, com a cidade sendo defendida como uma cidadela por estas tropas de mentalidade feudal-medieval, mas que infelizmente são dotadas de equipamento bélico de alta intensidade, somado às famosas “ordens de cima” que dão licença para aterrorizar, esculachar e machucar. “Polícia, fascista, você que é terrorista!”

O Brasil vive dias sinistros de sua História. O Golpe de Estado está prestes a consumar-se: vejam quem foram os parlamentares que votaram pelo impeachment de Dilma Rousseff e os que votaram pela PEC, e verão que os dois processos são como dois atos de uma mesma peça, a tragédia do golpe, que lançará as trevas da austeridade sobre a maioria de nossa população. As mamatas para empresários e banqueiros, é claro, são sagradas; hospitais e escolas públicos são dispensáveis. Quem não pode pagar, que se dane – eis o evangelho de São Michel e seus nobres asseclas.

Se vamos conseguir barrar a PEC? Não creio. Nem se colocarmos 200 mil pessoas nas ruas de Brasília em 13 de Dezembro? Não creio. Estamos diante de um cenário onde mais de 60 senadores já estão com a cabeça feita e devidamente vendidos ao diabo (que paga bem, viu…). Os poderes da república plutocrática dos Estados Unidos do Brasil, em breve de joelhos diante do deus Trump e seus dólares irresistíveis, não querem saber de soberania nacional ou participação social, são uma elite sórdida e vende-pátria que só serve a interesses particularistas. Levantarão o dedo médio, de dentro do bunker militar chamado Senado, para as dezenas de milhares de cidadãos nas ruas, dizendo: “danem-se vocês que não querem PEC; quem manda aqui somos nós.”

Tivemos golpe e está se instaurado uma ditadura plutocrática num dos países de polícia militar mais assassina e de aprisionamento em massa mais exagerado deste planeta; e temos que reconhecer os limites do poder do povo para pôr fim a este descalabro. Não, não somos tão fortes assim. Não estamos tão unidos assim. Não temos a mídia empresarial de nosso lado. As tropas de choque, as bombas, os tiros, as truculências e grosserias de que fomos alvo neste 29 de Setembro são prova de que o inimigo está longe de ser fraco, e que é bem capaz de ser cruel.

O clima insurrecional está instalado, e quem planta golpe há de sofrer contra-ataques, inclusive em formas neo-guerrilheiras e em táticas Black Bloc; a radicalização da contestação ao status quo que se instalou após a deposição de Dilma também é inevitável, o que nos coloca diante de um futuro de violentas conflagrações, já que parte da juventude ativista já pensa em reativar guerrilhas e já celebra a memória de Marighella, Lamarca e dos mártires do Araguaia…

Corretíssimo estava o Millôr Fernandes que, sobre o mítico País do Futuro de que falava Stefan Zweig, lapidou este diamante de cáustica ironia que contêm tanta verdade: “O Brasil é um país com um longo passado pela frente.”

ASSISTA AO DOC – Filmagem e montagem: Eduardo Carli de Moraes(curta-metragem, 25 min). Na trilha sonora: “Ouro Desça Do Seu Trono”, de Paulo da Portela, interpretada por Candeia; “Quando o Morcego Doar Sangue”, de Bezerra da Silva”; “Jah Jah Revolta”, do Baiana System. Visite A Casa de Vidro: www.acasadevidro.com. Veja no Youtube: https://youtu.be/CR6yMOzkzEU. Veja no Vimeo ou Facebook.

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VEJA TAMBÉM OUTRO DOC
QUE REALIZAMOS  NA MESMA OCASIÃO:

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“LEVANTEM-SE!”
(Filmagem: Renato Costa, Edição: Eduardo Carli)

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LEVANTEM-SE!

Contra a hipocrisia grotesca de Michel Temer, ao mentir deslavadamente sobre sua disposição e capacidade de “ouvir a voz das ruas”; nos lábios de Temer, isso soa como ironia das macabras, ainda mais depois da massacrante repressão policial ao ato em Brasília, neste dia 29 de Setembro.

O Sr. Temer, fiel guardião dos privilégios dos capitalistões gangsterizados do país, como aqueles larápios simbolizados por gigantes patos amarelos de borracha, como aqueles banksters que idolatram Tio Sam e Tio Patinhas, o Temerário consorte desta corja nos diz na cara dura que “ouve a voz das ruas”? Ele, que não faz muito reduziu as mega-manifestações do #ForaTemer e das #DiretasJá como se não passassem de “40 baderneiros que destroem carros”?

Ouve a voz das ruas? Cheque seu ouvido, sr. presidento, a surdez da velhice deve ter tomado conta dos teus tímpanos! Pois não ouve as ruas senão com orelha escrota de surdo seletivo este sujeito que está mandando descer o cacete, que está mandando bronca nas bombas e armas químicas, indo pra cima de estudantes, professores, sindicalistas, ativistas sem-terra e sem-teto, juventude em levante…

Por que apelar para força bruta senão pois Vossa Senhoria não tem argumentos cabíveis e razoáveis para explicar as medidas altamente impopulares que seu governo quer nos impor? Por que arreganhar os dentes de Ditador, fazer pose de César, só para disfarçar o fato de que este projeto de país jamais teria passado nas urnas? O Sr. Michel Temer e seus asseclas – como o Ministro da Justiça – são figuras perigosas, que beiram o fascismo, que enxergam a Segurança Pública como o campo privilegiado de sua ação de governança. São asseclas do Estado policial-penitenciário, e são aqueles que tem tudo a temer de uma democracia popular libertária, pois sabem que são profundamente odiados por uma população que não aceita seus desmandos.

A “Batalha de Brasília”, ontem, mostrou quão longe podem ir as forças subservientes à plutocracia que assaltou o poder; a “banalidade do mal”, denunciada por Hannah Arendt, continua entre nós, e não faltam fardados que, ecoando a mensagem do nazista alemão Eichmann, cometem atrocidades e depois dizem: “estava só seguindo ordens”. Teríamos muito a ganhar se tentássemos convencer as pessoas que estão por trás das fardas, a reprimir o movimento estudantil e popular, que não há dignidade ou decência nenhuma em ser pau-mandado deste Temerário projeto-de-ditador, usurpador e inelegível, que hoje age como títere da junta financeira que desgoverna este país e quer congelar por 20 anos nossos mais básicos direitos sociais. [Carli / 30-11-16]

Vídeo recomendado em The Intercept Brasil:

#ForaTemer #OcupaTudo#Pecdofimdomundo

ASSISTA TB:

A Globo News entrou ao vivo quando começou a repressão policial aos manifestantes que protestavam em frente ao Congresso Nacional. Segundo a Globo eram “mais de 12 mil” pessoas (estimativa bastante subestimadora, há quem fale em 40 mil!) e as imagens mostram claramente a massa sendo bombardeada com bombas de gás tóxico. Não deu tempo de maquiar e ideologizar com o LIVE ligado, de modo que este vídeo acabou sendo – pasmem! – bom jornalismo. O P.I.G. conseguiu! Mas foi por acidente…

VEJA TB: PLAYGROUND

O Palácio do Planalto também soltou um vídeo bastante cretino em que Mendonça Filho (do DEM), aquela pessoa que atualmente ocupa o cargo de Ministro da Educação, e sem ter direito nenhum a ele pois subiu ao posto após o golpe de Estado que instaurou o Machistério da Plutocracia Brazileira, ousa fazer pose de santo, de homem moral e digno, para criticar os “vândalos” que “depredaram” o MEC: https://www.facebook.com/PalacioDoPlanalto/videos/808739599263908/

Não fala, porém, uma palavra sobre o vandalismo em alta escala praticado por ele mesmo, à testa do MEC, ao aliar-se com a hecatombe dos direitos sociais proposta por aqueles que assaltaram o poder. Esconde, oculta, não menciona, a vandalização terrorista e a barbárie bélica galopante que foram as tristes intervenções da tropa de choque, da cavalaria da PM, das bombas de guerra tóxica, no ataque a milhares de cidadãos desarmados que ocupavam o gramado do Congresso.

LEIA TAMBÉM:

THE INTERCEPT BRASIL – REDE BRASIL ATUALJ.P. CUENCA

JORNALISTAS LIVRESUBESUNE

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ACESSE: ÁLBUM FOTOGRÁFICO

[Encontro De Culturas 2016 – Txt 04] “A câmera pode ser uma arma poderosa”, diz Rodrigo Siqueira Arajeju

X Aldeia Multiétnica. Foto: Santi Asef.

X Aldeia Multiétnica. Foto: Santi Asef.

“A câmera pode ser uma arma poderosa”

O empoderamento midiático de uma geração de novos realizadores audiovisuais aliados às causas indígenas anima os debates no cineclube da X Aldéia Multiétnica

por Eduardo Carli de Moraes para o XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros (17 / 07 /2016)

“Em tempos de enganação universal,
dizer a verdade torna-se um ato revolucionário.”
GEORGE ORWELL

Durante os dias de intensa convivência na X Aldeia Multiétnica, não faltaram debates sobre o papel da tecnologia no mundo contemporâneo, com foco no tema do empoderamento midiático e na auto-expressão dos povos indígenas, quilombolas, periféricos. Além das excelentes contribuições trazidas por  Denilson Baniwa, da Rádio Yandê, os (con)viventes também puderam debater o tema da “comunicação por direitos” com o fazedor-de-vídeos e documentarista Rodrigo Siqueira, realizador dos filmes Índio Cidadão? e Índios no Poder (click nos links e assista aos trailer).

A conversa com Rodrigo Siqueira teve como foco a produção de vídeos independentes, de teor documental e jornalístico, produzidos nas aldeias em momentos extremos, registrando situações quando ocorrem graves violações de direitos humanos. Ao anoitecer desta segunda-feira, 18 de julho, na Tenda Multimídia da Aldeia Multiétnica, Rodrigo Siqueira partilhou um pouco de sua rica experiência com os presentes. Sua participação no cineblube organizado pelo coletivo de audiovisual Brasileirando reforçou a certeza de que a democratização das tecnologias digitais de captura de áudio e vídeo abriu novos horizontes para o empoderamento expressivo dos povos indígenas, quilombolas e periféricos – como prova também o projeto Vídeo nas Aldeias.

Um exemplo debatido por Siqueira foram as ocorrências na aldeia Teles Pires, no Pará, que foi palco de cenas trágicas em novembro de 2012, quando Adenilson Kirixi Munduruku foi assassinado após uma intervenção violenta de tropas federais (saiba mais na reportagem de Ruy Sposati em Brasil de Fato). No calor do conflito, algumas pessoas puderam filmar, de seus celulares, os helicópteros militares que sobrevoavam a aldeia, os soldados fortemente armados com munição letal, as portas arrombadas e embarcações afundadas, o tiro na cabeça que arrancou brutalmente a vida de Adenilson. Este foi um crime cometido por agentes do Estado denunciado pelos celulares da própria comunidade vítima de uma atrocidade estatal.

Siqueira acredita que a câmera – mesmo que seja de um telefone celular – pode ser uma arma poderosa numa guerrilha midiática cada vez mais necessária. A sociedade civil, na era da digitalização, da interconectividade e da telefonia celular, está repleta de cidadãos com o potencial de tornarem-se agentes ativos de denúncia e informação. As redes sociais propiciam difusão imediata e o potencial de “viralizar”.

Unindo mídia independente com ativismo das causas sociais, Siqueira conta que, apesar de formado em Direito, preferiu praticar algo bem diferente da advocacia formal: ele atua naquilo que chama de “comunicação por direitos”. Boa parte de seus esforços consiste em ensinar as pessoas a utilizarem bem os recursos tecnológicos que elas têm em mãos. Um celular no bolso pode ser ferramenta importante na luta pelos direitos humanos ou na denúncia de atrocidades como as violências de Estado ou de milícias paramilitares.

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Os Munduruku, por exemplo, produziram um material informativo-didático interessante, o Guia De Como Filmar Com Celular, que dá dicas para aqueles que desejam, nas aldeias, contribuir para a documentação da realidade que vivenciam. O guia dos Munduruku, que foi um dos destaques da palestra de Siqueira, inclui dicas bem pragmáticas para filmar com boa qualidade técnica – “segure o celular na horizontal, evite mexer muito e mantenha a mão firme” – mas também esclarece sobre os direitos constitucionais (“a Constituição diz: filmar e fotografar é um direito de todo cidadão brasileiro”), o valor jurídico dos vídeos (que podem servir como provas para a justiça), os riscos que correm os cinegrafias (alerta: “filme para defender seus direitos e território, mas sempre avalie sua segurança”).

Os Munduruku são um povo guerreiro e que atualmente luta contra um complexo de hidrelétricas planejado para a região do Rio Tapajós. Já realizaram várias ações significativas de ativismo, como a ocupação da praça dos Três Poderes, em Brasília. Também realizaram uma ocupação do canteiro de obras da usina Belo Monte: “teve ordem de reintegração de posse e eles rasgaram o documento”, relata Siqueira. “Eles disseram: ‘se vierem nos tirar, a gente só sai morto’. Aí pousou lá um avião da FAB (Força Aérea Brasileira), que os conduziu à capital federal para uma reunião com a Presidência da República”.

Atualmente, os Munduruku estão em permanente mobilização e assumiram para si a tarefa de demarcação de terras. “Eles começaram a fazer a autodemarcação: já tinham os estudos que definiam os limites e eles mesmos foram marcando o território, tiraram madeireiros etc”.

“Hoje, você estar com uma câmera é como você estar com uma arma”, dispara Siqueira. “As pessoas querem te barrar, não querem deixar você fazer. No caso dos Guarani-Kayowá, no MS, não foram poucos os casos de tomarem celular de quem está filmando ações de despejos e de pistoleiros. Eles chegam e tomam porque não querem que aquela imagem seja divulgada. É sempre bom estar filmando com alguém próximo. Quando você está numa situação de conflito, com o celular você pode pegar, por exemplo, quem está com uma arma na mão. Lá no MS isso acontece muito: as pessoas ficam receosas de publicar um vídeo e depois serem perseguidas”.

O Brasil, segundo estudo publicado pela ONG internacional Global Witness, detêm o triste recorde de ser o país no mundo com maior número de assassinatos de ativistas das causas socioambientais, ecológicas, indígenas etc. Em um cenário de trevas como este, os cinegrafistas independentes que registram cenas de relevância, em que direitos humanos são violados e atrocidades cometidas, podem eles mesmos tornar-se alvo de violências caso divulguem as imagens.

Siqueira recomenda que vídeos deste teor não sejam publicados em contas pessoais nas redes sociais: “Vale mais a pena você mandar o material para a Rádio Yandê, por exemplo, do que você postar no seu perfil no Facebook”. É preciso avaliar com prudência os riscos que a publicação das imagens acarreta para quem filmou e buscar abrigo em coletivos ou institutos com maior força de defesa contra estes perigos. A expressão “guerrilha midiática” é adequada para descrever certas ações, relembradas por Siqueira, de cinegrafistas amadores que, após filmarem cenas de relevância sócio-política, escondem os cartões de memória no corpo – dentro da cueca, debaixo da língua… – para que não percam as imagens gravadas caso seus celulares sejam confiscados ou destruídos.

Abrem-se assim novos horizontes que visam oferecer alternativas contestatórias e contra-hegemônicas que contrastam com a cobertura da mídia comercial-corporativa. Muitas vezes são estes cidadãos com celulares que fornecem registros documentais e históricos sobre fatos recalcados ou censurados pelos poderes dominantes. A disseminação da digitalização hoje permite um “jornalismo cidadão” cada vez mais forte, como mostram iniciativas como a Mídia Ninja e o Jornalistas Livres.

A oficina de Siqueira também contou com a exibição de alguns vídeos gravados recentemente, durante o dia de mobilização nacional do “Ocupa Funai”, em 13 de julho. Em um deles, Valdelice Veron, do conselho Aty Guassu, denuncia a situação dos Guarani-Kayowá no MS: “estamos sendo dizimados num grande genocídio em nome do agronegócio”. Já a ativista Sonia Guajajara demonstra seu repúdio à possível nomeação de um militar (general Petronelli) para a presidência da FUNAI: “é inadmissível que a gente possa aceitar esses atos de ataque a nossos direitos”.

A câmera pode ser uma ferramenta importante para dar voz àqueles que estão sendo vítimas de várias violências, como é o caso da cacique Damiana, uma liderança dos Guarani-Kaiowá, que deu um eloquente depoimento para a câmera de celular de Siqueira, às margens da BR-364, no MS, em um ocasião em que mais de 100 agentes da Polícia Federal, fortemente armados, foram mobilizados para desalojar nove pessoas.

Como relata Siqueira, comentando o vídeo que exibiu aos (con)viventes, “a Damiana estava sofrendo naquela ocasião o seu quarto despejo. Ela denuncia que nove dos “parentes” de sua família extensa já foram “atropelados” – uma forma de assassinato utilizada no MS – e estão enterrados neste lugar onde ela está sendo filmada. Ali há a usina de biocombustível São Fernando, do Bumlai, que está preso pela Operação Lava Jato. A gente fica triste de presenciar todas estas tragédias que ocorrem, mas a gente cumpre um papel importante ao registrar estes vídeos. Eles servem como provas, podem gerar repercussão, sensibilizar a opinião pública. Se não houvese ninguém lá filmando, talvez o problema nem seria conhecido. Esta é uma linha de trabalho de guerrilha, em que a gente filma e já faz a postagem imediata na internet; às vezes também é possível enviar para a mídia.”

Um curta-metragem como O Massacre de Caarapó (click no link para assistir) revela as atrocidades cometidas em um ataque paramilitar contra os Guarani-Kayowá na cidade de Caarapó (MS) e que deixou morto o Kaiowá e agente de saúde indígena Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, 23 anos. O vídeo foi publicado no site do Cimi (que também produziu um dossiê sobre o caso) e teve mais de 300.000 reproduções. Depois foi republicado na web pela Al Jazeera e conquistou mais de 1 milhão e 400 mil reproduções.

O vídeo revela cenas chocantes, como aquelas filmadas dentro do hospital, em Dourados (MS), onde os baleados estavam sendo tratados com urgência. Mostra cenas do velório da vítima fatal, onde mesclam-se, no comportamento dos presentes, o luto pela perda da pessoa amada e a indignação diante da máquina assassina que tem vitimado tanta gente deste que é o 2º maior povo indígena do país.

Segundo censo do IBGE de 2010, os Guarani Kayowá são mais de 43.000 pessoas. Eles estão com 47 retomadas de territórios tradicionais aguardando demarcação. Em seu diagnóstico dos porquês desta lastimável situação, Siqueira pondera que “a demarcação das terras não sai porque o MS é um estado forte do agronegócio. Alguns dos políticos ruralistas no Congresso Nacional são do MS; o governador e os deputados estaduais são ruralistas; as polícias atuam do lado dos fazendeiros; há grupos de milícia paramilitar, que dizem que é “segurança privada”. Os povos indígenas estão tomando a iniciativa das retomadas, pois sabem que se esperar, não vai sair jamais. Enquanto isso, eles estão vivendo confinados em oito reservas de 3.000 hectares. Para os Guarani-Kayowá, as autoridades máximas são os caciques-rezadores e as rezadoras-tradicionais, os nenhanderus. Na retomada são os rezadores que vão na frente, eles confiam na espiritualidade”.

Desde o ano 2000, já foram registrados mais de 300 assassinatos de Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. “A denúncia deles é realmente de uma situação de genocídio”, afirma Siqueira. “As lideranças estão sendo mortas, a terra está sendo envenenada, as matas estão sendo derrubadas para que eles não tenham onde sobreviver”.

E esta terra, para eles, é algo bem diferente do que é para um fazendeiro que tem um título de propriedade; para os Guarani-Kaiowá, a terra é onde descansam os ossos dos ancestrais, é o território onde enraíza-se uma história que vive e resiste em carne-e-osso, nos corações e mentes daqueles que mantêm viva esta chama.

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"Índio Cidadão?", um documentário de Rodrigo Siqueira Arajeju

“Índio Cidadão?”, um documentário de Rodrigo Siqueira Arajeju, será debatido em evento promovido por De Olho Nos Ruralistas (SP, 06 de Agosto).

 PARTE II – SOBRE NOSSO FUTURO COMUM ,
por Rodrigo Siqueira Arajeju

Em suas reflexões finais, Siqueira fez um diagnóstico completo dos problemas da nossa civilização contemporânea, num discurso que compartilhamos em seguida e que fornece uma excelente leitura de conjuntura:

“Num Brasil, num projeto de nação, onde não se respeita o direito dos originários, dos primeiros habitantes, a gente não tem uma perspectiva de futuro boa para ninguém. É bom ter clareza que, ao apoiar os povos originários, a gente não está apoiando só eles, pois o avanço do agronegócio traz como resultados: rios envenenados, fim das florestas… As terras indígenas no Brasil hoje são as mais protegidas, mais até do que as áreas de conservação (estas últimas partem da noção de que você não deixa ninguém viver ali para deixar a natureza intocada). A própria Constituição fala que as presentes e as futuras gerações tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A gente vai ter este ambiente ecologicamente equilibrado com o agronegócio ou com as terras indígenas?

Minha atuação junto aos povos indígenas não vai só no sentido de como algo que ajuda a causa dos, mas sim pensando em nosso futuro comum, de todos nós. Se a gente entregar o país pro agronegócio, para as grandes hidrelétricas, vai chegar uma hora do colapso, como ocorreu em São Paulo com a crise hídrica. O clima não está mais como antes, está faltando água em alguns lugares, a qualidade do ar que se respira está degradada em vários locais. Hoje se fala em serviços ambientais: uma terra indígena produz água, alimentos; aí você vai expulsar os indígenas para as cidades pra quê? Pra virar favelado, mendigo? Eu me coloquei nesta luta muito por causa dessa consciência de que de um outro futuro possível. Pois qual é o caminho que a civilização traz?

A gente está rumando, numa velocidade impressionante, para um abismo. Todos os passos da nossa vida na sociedade ocidental é a morte. Hoje se está acontecendo um movimento médico pelo “parto humanizado”, ou seja, na “sociedade branca”, por assim dizer, a gente não nasce mais de modo humano. Nas maternidades, as gestantes chegam lá com suas malinhas e ficam esperando a hora da cesariana.

A nossa produção de alimentos está sendo feita com muito veneno: o Brasil é o país que mais consome agrotóxicos no mundo. Calcula-se que cada um de nós, em um ano, consome mais de 5 litros de agrotóxico pelos alimentos. Esses agrotóxicos não só envenenam nós que comemos, envenenam os trabalhadores e também o ambiente.

Depois de comer os alimentos envenenados, na hora de defecar somos os únicos animais terrestres que defecam na água. Enquanto tem bilhões de pessoas no mundo que não tem acesso a água potável, nas cidades a gente vai literalmente cagar na água tratada, que vai ser depois jogada no rio de onde a gente vai tirar a água pra beber. Olha o tamanho da loucura!

E até na hora de morrer, está virando problema: nos cemitérios, a quantidade de corpos enterrados juntos, nesta proporção que temos nas cidades, já está contaminando os lençóis freáticos. Ou seja, a civilização é uma loucura. Ou seja, a última chance que temos de ter uma vida digna neste planeta é se a gente for aprender com aqueles que ainda estão segurando as tradições e que ainda estão mantendo a natureza, pois se vêem como natureza.

Tenho aprendido muito com todas as lideranças dos povos indígenas com quem tenho deparado e meu trabalho é comunicar a visão-de-mundo deles, as lutas deles, e particularmente estou muito interessado em saber como a gente vai salvar a nossa própria pele desta loucura que é a civilização.” – Rodrigo Siqueira

©Bruna Brandão-7414

A X Aldeia Multiétnica debateu o empoderamento midiático e a comunicação por direitos. Na foto, vemos uma filmagem realizada dentro da aldeia por um homem conectado ao DSEI – Distritos Sanitários Especiais Indígenas – no Rio Tapajós. Foto: Bruna Brandão.

SAIBA MAIS: www.encontrodeculturas.com.br/2016

A MARÉ VERMELHA QUE NA TV NÃO SE VÊ – “A praça é do povo como o céu é do condor!” – Castro Alves

Brasília, 17 de Abril de 2016

“Ó pátria, desperta… Não curves a fronte
Que enxuga-te os prantos o Sol do Equador.
Não miras na fímbria do vasto horizonte
A luz da alvorada de um dia melhor?

Já falta bem pouco. Sacode a cadeia
Que chamam riquezas… que nódoa te são!
Não manches a folha de tua epopéia
No sangue do escravo, no imundo balcão.”

CASTRO ALVES. Recife. 1865.

ASSISTA O DOCUMENTÁRIO / REPORTAGEM:
“O CÉU E O CONDOR – Brasília em Transe”
(16 e 17 de Abril na capital federal)

Há 20 anos atrás, ocorria o Massacre de Eldorado dos Carajás, quando 19 ativistas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram assassinados pela Polícia Militar no Pará. É um escárnio grotesco que neste dia, 17 de Abril, que poderia ser devotado à construção coletiva da reforma agrária e do avanço no combate às hediondas desigualdades na distribuição de renda e terra que corrói nosso país, tenhamos visto – a maioria de nós com a bunda sentada no sofá e diante da TV – um complô golpista dos mais sórdidos e infames que já tivemos o desprazer de testemunhar.

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Deputado Chico Alencar (PSOL), um dos mais contundentes críticos da farsa parlamentar presidida por Cunha e a Bancada BBB.

A Câmara dos Deputados, presidida pelo delinquente Eduardo Cunha, perpetrou seu farsesco golpismo oportunista na tentativa de instalar um governo biônico, sem voto e sem legitimidade, atentando em gangue contra o mandato de Dilma Rousseff. Quem se beneficia com isso além do 1% no topo da pirâmide econômica?

O golpe faz a alegria dos capitalistões da Fiesp, gera muita comemoração nos bunkers habitados pela cleptocracia do P.I.G. e pela elite célebre por estrelar os Panama Papers – dentre outros listões da corrupção empresarial-estatal endêmica que nos afunda neste infernal lodaçal do capitalismo desenfreado e da política sequestrada por interesses financeiros.

Do lado de fora do circo armado pela Direitona lá dentro, teve muita garra e muita luta na caudalosa aglomeração de calor humano lá fora. Povo em flow em que pude embarcar como num rio, remando na multidão, com as mãos na câmera e o coração aos pinotes.

Aqui tento desvelar um bocadinho de experiência compartilhável sobre algo que a mídia corporativa “suína”, como era de se esperar, abafou e omitiu, mas que tem plena e intensa relevância: o “povo na rua”, o povo pedindo poder… O povo que o poeta Castro Alves dizia destinado à praça pública, à pólis dos indivíduos sociais interdependentes e solidários: “a praça é do povo como céu é do condor”.

Em 17 de Abril de 2016, os movimentos sociais que no espectro ideológico são classificados à “esquerda”, unidos contra o golpe e em defesa da democracia, mostraram uma impressionante capacidade mobilizatória. Pintaram de vermelho as ruas de Brasília numa belíssima passeata que foi do ginásio Gilson Nelson até a Esplanada dos Ministérios. Participaram do ato movimentos sociais como o MST, a CUT, o Levante Popular da Juventude, o Movimento dos Afetados por Barragens, dentre outros.

Jean Wyllys, Ivan Valente e Chico Alencar, do PSOL, além de Maria do Rosário e Jandira Feghali, do PT, estiveram entre a “turma” de parlamentares mais entusiasticamente aplaudidos pela multidão que, após a passeata, se concentrou diante dos telões para acompanhar a votação do impeachment. Tambores batucados com ímpeto e um mar de bandeiras vermelhas estavam nas ruas enquanto no “circo” do Congresso uma chuva de “Deus, Família e Propriedade” horrorizava as espinhas de quem não esqueceu as cicatrizes de nossa mau-enterrada ditadura.


“Eu estou constrangido de participar dessa farsa, dessa eleição indireta conduzida por um ladrão e apoiada por torturadores. Farsa sexista! Em nome da população LGBT, do povo negro exterminado nas periferias, dos trabalhadores da cultura, dos sem-teto/terra, voto NÃO AO GOLPE! E durmam com essa: CANALHAS!” – Jean Wyllys do PSOL 50

(BÔNUS) “SOBRE O CUSPE AO FASCISTA – Por Jean Wyllys do PSOL 50: Depois de anunciar o meu voto NÃO ao golpe de estado de Cunha, Temer e a oposição de direita, o deputado fascista viúva da ditadura me insultou, gritando “veado”, “queima-rosca”, “boiola” e outras ofensas homofóbicas e tentou agarrar meu braço violentamente na saída. Eu reagi cuspindo no fascista. Não vou negar e nem me envergonhar disso. É o mínimo que merece um deputado que “dedica” seu voto a favor do golpe ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército durante a ditadura militar. Não vou me calar e nem vou permitir que esse canalha fascista, machista, homofóbico e golpista me agrida ou me ameace. Ele cospe diariamente nos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. Ele cospe diariamente na democracia. Ele usa a violência física contra seus colegas na Câmara, chamou uma deputada de vagabunda e ameaçou estuprá-la. Ele cospe o tempo todo nos direitos humanos, na liberdade e na dignidade de milhões de pessoas. Eu não saí do armário para o orgulho para ficar quieto ou com medo desse canalha. #‎FascistasNãoPassarão‬. Foto: Oliver / Mídia Ninja. Deu tb n’O Globo.

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Le peuple a sa colère et le volcan sa lave.
(O povo tem sua cólera e o vulcão sua lava.)
VICTOR HUGO

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“O Sol, do espaço Briaréu gigante,
Pra escalar a montanha do infinito,
Banha em sangue as campinas do levante.

O povo é como o sol! Da treva escura
Rompe um dia co’a destra iluminada,
Como o Lázaro, estala a sepultura!…

Oh! temei-vos da turba esfarrapada,
Que salva o berço à geração futura,
Que vinga a campa à geração passada.

Quando nas praças s’eleva
Do povo a sublime voz…
Um raio ilumina a treva
O Cristo assombra o algoz…

A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor…

Dizeis, senhores, à lava
Que não rompa do vulcão…”

CASTRO ALVES.
O Povo ao Poder. Recife, 1865.

Na vanguarda da massa, faixas diziam: “1964 nunca mais, Globo mente!” Povos indígenas protestavam contra os latifundiários e exigiam demarcação de terras. As Mulheres Pela Democracia punham um colorido e aguerrido feminismo para sambar sobre o asfalto.

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Do carro de som, os discursos se sucederam, com destaque para o brado-hit: “NÃO VAI TER GOLPE (JÁ TEM LUTA!)”. Esperta contra o P.I.G., a massa em coro lembrava: “A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a Ditadura (E AINDA APÓIA!)”. A maré humana, caudalosa e cheia de vida, atravessou a cidade garantindo aos golpistas Temer e Cunha que não pensem que seguirão em frente, sem resistência, com sua usurpação criminosa do poder.

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Não se viu nenhum helicóptero da mídia burguesa cobrindo aquela que foi, talvez, uma das significativas e históricas mobilizações populares ocorridas na capital federal nos últimos anos. Minutos depois, no gramado da Esplanada, cartazes em punho, com tinta vermelha, direcionados ao helicóptero policial que nos sobrevoava, manifestantes mandavam alfinetada óbvia: “A PM não sabe contar!”

Isso porque, para escárnio geral, a PM divulgou nota estimando o público em 8 mil pessoas, enquanto de cima do trio elétrico o mar-de-gente era tamanho que o início da marcha perdia-se de vista no horizonte e fazia pintarem números de estimativa da marcha que oscilava entre 50 e 100 mil participantes.

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Lá dentro do bunker do Parlamento, a classe política revelava o grau de sua sordidez e hipocrisia com um torrencial mantra ideológico, “família” e “religião” como carros-chefe, disfarçando o fato de que as bases jurídicas do processo são absurdamente injustas, Dilma Rousseff vivendo na pele o Josef K. do romance Kafkiano. Como pode estes ilustres engravatados, altivos senhores, louvarem a Deus na mesma frase que tem por efeito lançar uma condenação sobre um governante por crime de responsabilidade que nunca houve? O tema da responsabilidade não se discutia, quase; a punição aos responsáveis pela corrupção era, no discurso de muitos vociferantes defensores do “impeachment já”, uma performance teatral, cortina de fumaça para os corruptos de sempre poderem encher a pança de pizza em Miami assim que Temer-Cunha estiverem nos controles.

Caso o Senado aprove a deposição de Dilma, caso os movimentos sociais discordem radicalmente desta “medida institucional”, então teremos enfim constituído um cenário explosivo, incendiário. Serão inevitáveis os clashes entre uma frente de esquerda – Povo Sem Medo, Frente Brasil Popular, MST, CUT, MTST, CTB, Levante Popular da Juventude, movimentos estudantis e sindicais, ativismos LGBT e críticas-práticas do feminismo militante etc. – que irá à luta, chocando-se contra as forças de repressão do “novo governo” e suas massas-de-manobra. Nesta hipótese, quanto sangue e quanta turbulência vão decorrer deste “assalto ao poder” da velhas dinossáuricas elites da cleptocracia tupiniquim?

Fico a imaginar as Olimpíadas do Rio, num eventual governo Temer – Cunha, caso estes usem as tropas estatais de repressão, comandando com “punho de ferro” na defesa do “novo governo”. Talvez muitos então repensem então o ceticismo com que encaram a denominação golpe de Estado (coup d’État) para explicar o que ocorre na crise política brasileira desta 2016.

O que se chama de “golpe” é um cancelamento da vontade de 54 milhões de eleitores, que se expressaram nas urnas de uma pátria que às vezes tenta se orgulhar de seguir o preceito republicano, consagrado em nossa constituição, de que “todo o poder emana do povo”. Golpe é rasgar isso, cuspir sobre isso, anular as urnas por meio de complôs de cúpula. Golpismo é usurpar o poder do representante eleito por sufrágio universal através de falsas acusações, processos caluniosos, linchamentos midiáticos, complôs de elites insaciáveis, nacionais ou gringas, dos magnatas da mídia e da construção civil aos interesses petrolíferos transnacionais…

Se Dilma for “chutada” do poder por causa de “pedaladas fiscais” que o próprio Temer assinou,  o governo já nasce podre por dentro, carcomido em sua legitimidade, com popularidade beirando o zero (vá lá: Temer seria o presidente biônico do 1% mais rico desta pátria ó tão desigual). Como viu Safatle, “não existirá governo Temer”, pois ele já nasceria natimorto, altamente contestado, sob uma enxurrada de greves e ocupações, com a perspectiva de resistência coletiva organizada envolvendo milhões de pessoas e ativistas país afora…

Este post serve também como um tiragosto do documentário curta-metragem independente que vocês podem conferir abaixo:

ASSISTA O DOCUMENTÁRIO / REPORTAGEM:
“O CÉU E O CONDOR – Brasília em Transe”
(16 e 17 de Abril na capital federal)

LINK PARA O ÁLBUM: http://bit.ly/1Sh59fA
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Fotos por Eduardo Carli de Moraes

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LEITURAS SUGERIDAS NA IMPRENSA:
O que disseram os jornais europeus sobre a votação do impeachment na Câmara

BRASIL DE FATO – Cientistas políticos criticaram a argumentação de deputados na sessão do plenário da Câmara que votou a admissibilidade do processo deimpeachment da presidenta Dilma Rousseff. Os parlamentares dedicaram os votos às suas famílias, a Deus, aos evangélicos, aos cristãos, aos prefeitos de suas cidades e correligionários. A sessão foi marcada pela presença de cartazes, bandeiras, hino e gritos de guerra.

Com 367 votos a favor (mais de dois terços dos 513 deputados), 137 contra, sete abstenções e duas ausências, o parecer pela instauração do processo de impeachment foi aprovado nesse domingo (17) na Câmara dos Deputados. Agora cabe ao Senado decidir se processa e julga a presidenta.

“Acho estarrecedor, em um país republicano, que tem princípios de laicidade do Estado, levantar argumentos religiosos e a família. Pouquíssimos levantaram os motivos reais que são julgados no processo. É entristecedor ver a qualidade de argumentos, todos arregimentados para seu entorno, em questões de seu interesse”, disse a professora do Departamento de Ciência Política e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marlise Matos. (LEIA NA ÍNTEGRA)

Na imprensa gringa, sugiro A Coup Is In The Air, do The Wire.In, e os trabalhos de Glenn Greenwald.

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Trechos do “Diário Pessoal-Mas-Nem-Tanto de Viagens”

Eduardo Carli de Moraes

Rumei para Brasília com a sensação de ir a um face-a-face com a história. Não a que ficou nos livros, mas a que um dia neles estará. Fui com Sérgio Sampaio nos tímpanos, pra “ver o que há” pros lados do Paranoá. A Gi diz que nunca me viu tão politizado (e atribui isso também à má influência dela…), e é verdade: os afetos políticos têm me dominado. Não me sinto capaz de isenção ou indiferença diante do que venho chamando de “intentona golpista”. Nunca vi este país tão intensamente polarizado, algo que o muro recém-edificado na Esplanada mostra bem. Sociedade cindida. As torcidas trocam insultos e sopapos: “coxinhas!” “petralhas!”

Tenho alguma ilusão de poder influir no resultado deste jogo? Eu em toda a minha insignificância individual e pequenez cósmica? Não… serei um anônimo na massa – e sei de que lado da barricada irei estar. Este impeachment é uma farsa golpista capitaneada por delinquentes engravatados. Cunha presidir é um escárnio. Uma vergonha pior que o 7 a 1 da Copa – a que quase não teve. A impunidade dos tubarões é grotesca. E boatos fortíssimos são audíveis que dizem claramente: o intento é fazer a corrupção, no Brasil, novamente acabar em pizza, com impunidade para golpistas e perdão geral a todos os assaltantes dos cofres públicos. Angeli foi brilhante em seu cartum: é um golpe de dinossauros pra instaurar um retrocesso jurássico…

Angeli

Contra o mito insustentável da História como progresso, cada vez mais aparece-me como evidente e concreto que História é capaz de retrocesso, que há em todo presente, em potência, catástrofe (mas também maravilha). Como julgar avanços e recuos? É uma questão ética, e por isso não é possível separar ética e política, sob o risco de cairmos numa política da barbárie, que somente continua a guerra por outros meios, ao invés de ser esforço coletivo de instauração de convivência ética e civilizada. A polêmica sobre o progresso e o atraso, porém, não pode ser ignorada: o que é retrocesso pra uns é avanço pra outros e a “vitória” da Fiesp é a derrota dos direitos trabalhistas – e vice-versa.

Acabou o ganha-ganha do lulismo. A luta de classes se exacerba. Não engulo o papo niilista de que os partidos se equivalem em sua idêntica escrotidão. Isso é um atentado às nuances e complexidades do real. “Tomar partido” não implica necessariamente sectarismo e unilateralidade: pode-se ser do partido que não é particularista, que defende o bem comum e a solidariedade social.

O interesse pela política tem a ver com ânsia de participação, de união, de estar com outros no esforço conjunto. Política é remédio pra solidão, antídoto ao isolamento, negação do solipsismo, superação da indiferença pelo coletivo, sociabilidade ética em ação. Ainda assim, sinto-me bem só. Desfiliado. Não estou enquadrado num partido ou movimento específico. Ainda aprendo os modos de funcionamento da pólis. Nem mesmo sou exatamente “nacionalista”. Os problemas pátrios às vezes me enojam e me dão vergonha do Brasil e seus males. Não junto minha voz ao coro do “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”. Ao assistir a votação do impeachment, meu sentimento era o avesso do patriotismo: sou brasileiro, com muito asco, com muito horror…

Tento agir como midiativista independente, com autonomia de olhar, mas nunca a-partidário e indiferentista. Sei que meu impacto é pequeno. Não é nulo, porém. Prefiro fazer o pouco que posso a não fazer nada. Alice Walker: “o modo mais comum das pessoas renunciarem ao poder é acreditarem que não tem nenhum.”

AliceWalker

Sei que poderio midiático tem muito a ver com grana – meios de difusão de mensagens. Sou uma formiguinha, minúsculo diante dos elefantes corporativos, só um carinha com um blog, sem hype nem anunciantes. Mais um do monte que tem página no Facebook e esforça-se para ter seguidores como micro-investidor. Em contraste com a grande mídia, sou quase ninguém. Uma alternativa disponível entre milhares de outras. Não dá nem mesmo pra ter a imodéstia de dizer que sou um “formador de opinião” – isso é pra quem escreve e é lido por milhares de leitores, seja qual for o espector ideológico (de esquerda, como Eliane Brum ou Sakamoto, de direita, como Reinaldo Azevedo ou Diogo Mainardi).

Ambiciono me tornar voz midiática de alguma importância? É minha “vontade de poder”? Talvez. Gostaria de influir mais, repercutir, ter voz mais ressoante. É deprimente o isolamento e me recuso ao cruzar-de-braços indiferentista. São esmolas para a auto-estima as curtidas no Facebook? Os acessos ao site me convencem de que não sou socialmente invisível? O que sei é que estou tendendo ao abuso de internet, pelo tempo excessivo que passo na postação e zapeando no feed, querendo ser uma “força da net”, querendo ver os posts “viralizar”… Que “festa” aos 1.000 compartilhamentos! Há essa possibilidade de que algo torne-se uma “bomba” informativa que se replica… Há a possibilidade imediata de contra-informar, de contestar algo que a mídia de massas está dizendo nos telepúlpitos da burguesia, dos antros do golpismo elitista.

Ainda que pequeno e quase inofensivo, há a chance deste micropoder servir como contra-poder, contra-cultura, que tece um fio numa teia de resistência e solidariedade. Isso é o que me anima na net, tecer teias de contatos, inaugurar algo – tipo um meme – que possa se espalhar e ser hit na web, no sentido de impactar de algum modo a opinião pública, ou pelo menos chaqualhar a indiferença letárgica dos silentes.

É vontade de aventura – aquilo que era tão quintessencial ao Che e à Rosa, ao Joseph Conrad e à Castro Alves, um ímpeto irrefreável de liberdade exploratória! É vontade de excitação vital, de colaboração (co-laborare, ou “trampemos juntos”!). É vontade, vivida existencialmente, de política, ou seja, política ontologicamente baseada nesta ânsia de ter não só vida pessoal mas também destino coletivo. Ter um coração que bata de indignação diante de qualquer sofrimento injusto sobre a face da Terra, como exortava o médico-guerrilheiro Ernesto Guevara…

Sofri por muito tempo por déficit de pertença – adolescente sem turma e sem muito lar que acontecia de passar muito temo sendo músico sem banda, jornalista sem revista, ativista sem movimento social, um tanto desajustado aos moldes caretas do mercado de trabalho, de tendências psíquicas subversivas e transviadas… Vou na política como se fosse – e é – vivência, existencialmente experenciada, de nossa pertença a um real comum, compartilhado, nosso commons. Constituído em seu cerne de uma teia de interdependêcia – “the web of life”…

Vou na viagem política na busca de aprender mais sobre  poder – aquele das cúpulas, aquele das bases; o poderio tirânico e teocentrado, o poderio contragolpista que desfere um levante de resistência “de baixo pra cima”… Interessam-me estes levantes da base contra o topo das pirâmides sociais historicamente constituídas. Recém-nascido neste mundo de tão complexos e desnorteantes legados históricos – da escravidão ao genocídio dos nativos – em meio aos quais o sentimento que poderia inundar e tomar conta, totalmente, o “fatalismo”. Nada fazer por nada poder. Niilismo. Nietzsche conclama a ir além dele, escapar ao niilismo fatalista de quem cruza os braços e recusa-se a agir.

Latuff

“Triste dia para ser ateu. Por dois motivos: 1) escutar tanto canalha falando de Deus no parlamento. 2) Não acreditar que há um inferno para todos eles passarem a eternidade.” Bruno Torturra. 17/04/2016. Ilustração: Carlos Latuff.

Neste vórtex vou explorando o poder – o meu, sei que é pouco, limitadíssimo, mas também que é dinâmico, expansível ou redutível. Uma potência passível de incremento e redução, como o sistema ético de Spinoza ilustra através de suas elucidações dos afetos humanos como conatus que sobe ou desce na escala da vitalidade. Meu “Paulo Freireanismo”, recém-adquirido, sugere-me que teias de alteridade dialogante podem galvanizar a eletrificação e revitalização de nossas vontades colaborantes, na re-elaboração perene de nossos fins coletivos (utopias) e rumos partilhados, no parto sempre difícil de nosso porvir possível, cheio da potencialidade de florescimento dos inéditos viáveis, dos nunca-dantes-visto.

Encontro em Marx um espírito livre o bastante para nunca dogmatizar, nunca pregar uma verdade indiscutível, mas sim praticar um método de crítica permanente e de perene predisposição à re-consideração. Contra a farsa idealista dos conceitos eternos e imutáveis, que empesteam a filosofia desde Pitágoras e Platão, Marx – nisso bem semelhante a Nietzsche… – denunciou como lorotas, pseudo-conceitos, muito do quê pregavam, de suas cátedras, os idealistas. Para Marx não há conceito que não seja historicamente determinado, como explica Engels no prefácio ao Capital:

“Nos escritos de Marx as coisas e suas influências recíprocas são concebidas não como fixas, mas como variáveis, os próprios conceitos também estão sujeitos a variações e mudanças. Nessas condições, não estarão contidos em uma definição, mas desenvolvidos conforme o processo histórico de sua formação.” – F. ENGELS

Marx foi sempre um destruidor de correntes, inclusive as que “prendem nos grilhões de definições rígidas”, como escreve Daniel Bensaïd neste livro que tem sido bom-companheiro-de-viagem, Marx – Manual de Instruções (autor também do magistral “MARX, O INTEMPESTIVO”). Mano Daniel Ben revela Marx como um “Prometeu” filosófico que quebra seus cárceres psíquicos e ideológicos, que exorta-nos a libertar-nos sem medo. A classe trabalhadora não teria nada a perder senão seus grilhões… e transformação não era só possível, era necessária. Um pensador-de-práxis, que espanta os abutres do obscurantismo e da inação niilista, através da exposição translúcida dos antagonismos da  realidade social, do conflito de poderes em disputa, que Marx revela sempre como sendo (Paulo Freire: não sou, estou sendo), tal como nossas vidas-em-teia constituída por uma natureza histórico-fluida, dinâmica, dialética, eflúvio de vida que flui, tudo sempre revolucionável. Permanentemente revolucionável. Revolucionável por natureza.

E.C.M. / Brasília e Goiânia, 17 e 18 de Abril de 2014

POST FACTUMMarx

“A fé no todo-poderoso mercado foi mortalmente abalada. Quando se deixa de acreditar no inacreditável, agrega-se à luta social uma crise de legitimidade ideológica e moral, que acaba por atingir a ordem política: ‘Um estado político em que alguns indivíduos ganham milhões enquanto outros morrem de fome poderá subsistir se a religião não estiver mais lá, com suas esperanças fora deste mundo, para explicar o sacrifício?’, perguntava Chateaubriand às vésperas das revoluções de 1848. Ele mesmo respondeu profeticamente: ‘Tente persuadir o pobre quando ele souber ler e não tiver mais crença, quando ele possuir a mesma instrução que você, tente persuadi-lo de que deve se submeter a todas as privações enquanto seu vizinho possui mil vezes o supérfluo…’ 

Sob a luz ofuscante da crise, milhões de oprimidos terão de aprender a ler.”

DANIEL BENSAID – MARX: MANUAL DE INSTRUÇÕES (Pg. 138). Editora Boitempo, 2013, trad. Nair Fonseca. 

GOLPE NUNCA MAIS: Curta-metragem documenta a manifestação em Goiânia neste 31 de Março de 2016 (Assista: 14 min, Março de 2016)

GOLPE NUNCA MAIS – Documentário curta-metragem que registra os agitos cívicos em Goiânia, no dia 31 de Março de 2016, um dia em que a cidadania nas ruas deu um show de democracia, participação social e engajamento cidadão.

ASSISTA JÁ:

“Amor tem que ser que nem ipê:
Florescer toda vez que parecer morrer.”
Bradam os muros grafitados de Goiânia

Um filme de Eduardo Carli de Moraes; assistente de direção: João Paulo Machado Côrtes; com participação do professor de teoria política da PUC-GO, Silvio Costa. Trilha sonora: Gonzaguinha, Clara Nunes, Criolo, Mukeka di Rato, Chico Buarque, dentre outros. Compartilhar no Facebook, no Tumblr, no Twitter.

LINKS:

https://vimeo.com/161237657 ou https://youtu.be/lkEgZs_3cSE.

FOTOS DO DIA DA FILMAGEM:

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Cartaz

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CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO:
Fuser 1 Fuser 2 “O BRASIL INTEIRO PRECISA SABER” – Por Igor Fuser

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CARTOOOON* * * *

Página Golpe Nunca Mais no Facebook: “52 anos depois, os golpistas encontraram o povo nas ruas. Para ser golpe, não precisa ser com tanques e fuzis. Qualquer ação, inclusive do Congresso ou do Judiciário, para tirar do poder um governo legitimamente eleito, é um Golpe à Constituição e à Democracia. Não passarão!” ‪#‎BrasilContraOGolpe‬. Fotos abaixo de São Paulo (à esq.), Recife (direita acima) e Brasília (direita abaixo):

31 03 Silêncio Nas Ruas Não Se Escuta by Mídia Ninja

Nesta quinta-feira, 31 de Março, as ruas pulsaram para manter viva a democracia. Cerca de 800 mil pessoas tomaram as cidades do Brasil para deixar claro: não vai ter golpe e já tem luta!

A gente mal lembra. Fazem dois anos que a nação descomemorava as cinco décadas do Golpe Militar de 64. Àquela época, o país já efervescia no pré-Copa e no pós 2013, com suas multidões difusas reinventando as ruas.

Os inimigos da legalidade permanecem os mesmos de 64. Fiesp, grande mídia, políticos inconformados e comprovadamente corruptos trabalham dia e noite para subverter a vontade popular expressa nas urnas. Movidos por revanchismo e rancor, querem a derrubada de uma Presidenta eleita pela maioria do povo brasileiro, sobre a qual não pesam investigações ou denúncias.

Talvez frustrados por ver tamanha mobilização popular florescer sem a sua convocação diária em rede nacional, os noticiários reduzirão o número de manifestantes desta quinta. Dirão que foram poucos, fração menor da população.

Mas, ao contrário de 64, o silêncio nas ruas não se escuta. (Ninja – SAIBA MAIS)

ASSISTA JÁ – GOLPE NUNCA MAIS – GOIÂNIA:

A VIVACIDADE DA CULTURA BRASILEIRA SEGUNDO IVANA BENTES [UFRJ/MinC] (Leia matéria da Revista Cult e vídeos selecionados de TEDs, ENTREVISTAS E PALESTRAS)

REVISTA CULT – #188
Matéria de capa com Ivana Bentes (Docente da UFRJ / Parceira do Ministro Juca Ferreira (acima) na Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural do MinC

Ivana Cult“Inocente, pura e besta”. É assim que a ensaísta e professora Ivana Bentes diz ter chegado ao Rio de Janeiro, em 1980, família de comerciantes, sem sobrenome para ostentar, nascida em Parintins, no Amazonas, e tendo passado a juventude em Rio Branco, no Acre. Foi a entrada em uma universidade pública, a Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que mudou sua trajetória.

Segundo ela, frequentar um espaço que ainda forma uma elite não foi uma inclusão, mas uma intrusão social, daquelas que fazem uma pessoa dar um salto astronômico. Foi naquele ambiente universitário borbulhante de oportunidades e desafios que Ivana foi traçando sua carreira profissional. Primeiro como redatora e ensaísta no Caderno Ideias, do Jornal do Brasil, onde teve a oportunidade de se conectar com centenas de escritores, intelectuais e pensadores. E antes escrevendo sobre cinema na revista TABU,do Grupo Estação Botafogo, o icônico cinema carioca, que deu a ela a chance de se formar cinematográfica e culturalmente e mais tarde protagonizar polêmicas como a que lançou em torno do filme Cidade de Deus e sua “cosmética da fome”. No Jornal do Brasil, entendeu o jogo de influência cultural, política e de intervenção no mercado da mídia e suas engrenagens.

No início dos anos 1990, engatou um mestrado e um doutorado na ECO, mas foi com a formação em grupos de estudo de filosofia, onde mergulhou no pensamento de Gilles Deleuze, Michel Foucault e mais recentemente Antonio Negri, que pôde perceber o poder de mobilização dos conceitos. Na ECO, onde entrou como aluna, se tornou professora da pós-graduação e diretora, tendo como professores e depois colegas Muniz Sodré, Márcio Tavares d’Amaral, Emanoel Carneiro Leão, Heloísa Buarque de Hollanda. Percebeu rapidamente que a Universidade só faria diferença se fosse o ambiente para o surgimento de formadores de opinião, críticos, pensadores e agentes de transformação e não formar o profissional fordista substituível das redações. Entre 2006 e 2013, ela assumiu a direção da ECO decidida a usar o grande laboratório universitário para radicalizar práticas democráticas, estimulando os alunos a participarem de ações de ativismo, movimentos culturais e sociais da cidade, redes de mídia e cultura.

Nesta entrevista, Ivana Bentes discute as novas diretrizes para os cursos de jornalismo, política e comunicação, o midialivrismo, a sociedade em rede e as mutações pós-mídiasdigitais. Para ela, se o capitalismo é comunicacional, a revolução terá que ser também midiática. Ciente da importância do campo das Comunicações nos dias de hoje, para muito além dos bancos universitários, a professora afirma que há momentos em que é preciso sair do figurino acadêmico para poder se comunicar e falar para o público fora da academia. Talvez por isso a jovem “inocente, pura e besta” topou posar para a foto dessa reportagem numa pose que ela chama de “respeitosamente vândala”.

Ivana Bentes 8

Qual a sua avaliação sobre os parâmetros curriculares recém-instituídos pelo Conselho Nacional de Educação para os cursos de jornalismo?

Um retrocesso e uma quase tragédia. Surge na contramão do entendimento de pensadores e teóricos da comunicação que fizeram o movimento oposto décadas atrás, procurando incluir o jornalismo como parte de uma formação mais ampla. Foge ao contexto atual de convergência das mídias e de produção da informação nas redes sociais que exige um profissional com múltiplas habilidades, um analista simbólico, um ensaísta, um ativador e produtor de desejos. Esse perfil não tem nada a ver com o profissional adestrado por uma formação fordista e extremamente limitada, do “quê, quem, como, onde”, e que passa longe de todos os clichês que construímos em torno desse personagem.

As novas diretrizes respondem a uma crise de mediação. Mas o jornalista não é mais o mediador privilegiado, o “gatekeeper”, o guardião do que é ou não é notícia, do que é ou não noticiável. As corporações de mídia e o jornalismo nunca foram tão questionados e buscam manter de pé uma mística da excepcionalidade da atividade jornalística. Com ou sem formação especializada, a mídia somos nós. O que não acaba com a necessidade de formação, mas a estende para toda a sociedade. O jornalismo é importante demais para ficar na mão de corporações, cartórios e especialistas.

Midialivrismo

A sra. começou afirmando que vê um retrocesso e uma quase tragédia…

É uma quase tragédia porque acredito que o paradigma das redes, do midialivrismo, do jornalismo-cidadão, a comunicação pós-mídias digitais, os estudantes, professores, ativistas e teóricos que lutam por uma formação des-engessada, todos eles vão canibalizar as diretrizes (do CNE) e subvertê-las. Pode ter retrocesso, mas não tem volta. As novas diretrizes são fruto de uma disputa por poder de um grupo de professores e especialistas a quem chamo de “as viúvas de Gutemberg”, extremamente corporativos e que funcionam no campo da Comunicação como a “vanguarda da retaguarda”, para sermos gentis. O que está em curso é a tentativa de manter uma excepcionalidade para a atividade jornalística e também uma manobra para a volta da exigência do diploma de jornalista para exercer a profissão, que foi derrubado em 2009 e até agora não fez a menor falta.

A sra. é contra o diploma de jornalista?

Sempre fui contra. O fim da obrigatoriedade não acabou com os cursos de Comunicação, nem diminuiu a busca pela habilitação em Jornalismo, campos que nunca foram tão valorizados. Os jornais sempre burlaram a exigência de diploma pagando muitas vezes os maiores salários aos não-jornalistas, cronistas, articulistas, vindos de diferentes campos. As universidades não precisam formar os “peões” diplomados, mas jovens capazes de exercer sua autonomia, liberdade e singularidade, dentro e fora das corporações. Não precisamos de profissionais “para o mercado”, mas capazes de “criar” novos mercados, jornalismo público, pós-corporações, produção colaborativa em rede.

O mais importante nenhuma entidade corporativa defendeu nem pensou: uma seguridade nova para os freelancers, os precários, aqueles que não têm e nunca terão carteira assinada. Essas são as novas lutas no capitalismo. A ideia de que para ter direitos é preciso se “assujeitar” a uma relação de patrão-empregado, de “assalariamento”, é francamente conservadora.

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“Se o capitalismo é comunicacional, a revolução terá que ser também midiática.” (Ivana Bentes). Acima, um clássico da história do cinema que debate a mídia, “Network – Rede de Intrigas”, de Sidney Lumet

Sem a obrigatoriedade do diploma, qual o sentido de um jovem ingressar em uma faculdade de Comunicação?

O capitalismo, as revoluções dentro do capitalismo e as ações anti-capitalistas, a publicidade, a economia imaterial, tudo isso depende desse domínio midiático e da posse dessas linguagens. O capital já entendeu isso faz tempo. E se quisermos pensar jornalismo público, jornalismo do comum, a produção de um midiativismo capaz de ativar os desejos por mudanças sociais, tudo isso passa por um outro tipo de formação. A comunicação é central na sociedade de redes. Se o capitalismo é comunicacional, a revolução terá que ser também midiática. É um campo fascinante, que não para de mobilizar os jovens.

Há duas décadas, a sra. iniciou sua vida acadêmica. Já formoucentenas de jornalistas que estão no mercado. Eles estão cumprindo seu papel social?

A Escola de Comunicação da UFRJ formou e forma desde a Fátima Bernardes, que até pouco tempo atrás dividia a bancada do Jornal Nacional com William Bonner, até o Rafucko, que acabou de lançar um vídeo com mais de 800 mil visualizações. Esse vídeo desconstruía, criticava e escrachava um editorial da Globo sobre as manifestações e a liberdade de expressão. Formamos a elite que reproduz o poder e os que lutam por mudanças radicais e se arriscam e inovam. Essa disputa é feita dentro da universidade. Somos criticados por formarmos editorialistas, jornalistas que colocam sua inteligência a serviço do capital ou nos entretendo com perfumaria. E, ao mesmo tempo, um blog da Veja, me acusou de ser uma “blackblocteacher”, de formadora de blackblocs e ativistas radicais, em um texto ressentido e equivocado, mas que não deixa de ser um elogio.

Ivana na Veja

A Revista Veja (Editora Abril) escreveu, sobre Ivana Bentes, os artigos “Mídia Ninja no MinC” e “Tom Crítico”. A revista também atacou o Fora-do-Eixo, o Ninja e outras iniciativas culturais e jornalísticas em artigos publicados por Rodrigo Constantino e Reinaldo Azevedo.

Quais são as implicações do surgimento da chamada nova classe média do ponto de vista comunicacional?

As periferias são laboratórios de mundos e a riqueza do Brasil. Não mais os pobres assujeitados e excluídos de certo imaginário e discurso, mas uma ciberperiferia, a riqueza da pobreza (disputada pela Nike, pela Globo, pelo Estado) que transforma as favelas, quilombos urbanos conectados, em laboratórios de produção subjetiva. A carne negra das favelas, os corpos potentes e desejantes, a cooperação sem mando, inventando espaços e tempos outros (na rua, nos bailes, lanhouses e lajes), estão sujeitos a todos os tipos de apropriação. É que as favelas e periferias são o maior capital nas bolsas de valores simbólicas do país, pois converteram as forças hostis máximas (pobreza, violência, Estado de exceção) em processo de criação e invenção cultural. Além disso, o midialivrismo ganha força na periferias, em projetos como a ESPOCC, Escola Popular de Comunicação Crítica da Maré, Viva Favela, Agência Redes Para a Juventude, que formam comunicadores populares e midiativistas.


MARCELO D2, “A MALDIÇÃO DO SAMBA”

Isso tudo é muito novo no Brasil.

O Rio de Janeiro serve de exemplo. É um termômetro da difícil e paradoxal tarefa de calibrar essa euforia pós-Lula, do presidente Macunaíma que turbinou a periferia, e os retrocessos no governo Dilma, que trouxe os “gestores de subjetividade”, que revertem e monetizam a potência das favelas e periferias para o turismo, corporações, bancos e para o consumo. O que vemos na publicidade das UPPs, da Copa do Mundo e dos shoppings é o que chamo de inclusão visual dos jovens negros ou da cultura da periferia. Mas os mesmos jovens são mortos pela polícia como elementos “suspeitos” nas favelas ou impedidos de entrar nos shoppings para dar um rolezinho.

Cartum do sátiro Carlos Latuff

Cartum do sátiro Carlos Latuff

A ascensão social de jovens das periferias tem deixado parte da sociedade em transe. Eles estão no centro da profunda transformação social…

EspetaculoAí vem a reação da Casa Grande, e a mídia em geral amplifica esse discurso, colocando travas e controle na mobilidade urbana e no direito de ir e vir da juventude popular. A juventude negra e periférica vira uma “classe ameaçadora”, que não é bem-vinda nos espaços de consumo da classe média branca. Ao estado de exceção e à violência contra os pobres se acrescenta uma polícia que reprime o funk e os rolezinhos. Essa incapacidade de entender as novas formas de sociabilidade e mobilidade dos jovens traz à cena o velho horror das classes populares e o apartheid racial, social e cultural. A ascensão social expôs a crise das cidades, a privatização dos espaços públicos e o desinvestimento nos equipamentos de lazer. O esquema de segurança dos shoppings, revistando e controlando os pobres, é a ostentação do fracasso do Estado e da sociedade na partilha da cidade.

As maiores publicações do país, como Veja, Folha de S.Paulo, Estado de S. Paulo, TV Globo, vieram a público explicitar seus critérios editoriais. Trata-se de uma resposta às inúmeras críticas que a imprensa vem recebendo da população?

A mídia no Brasil parece querer substituir o Estado de direito, se vê como braço do Estado, podendo, inclusive, colocá-lo em crise a qualquer momento. Negocia denúncias, pessimismo e otimismo, reputações. Mal disfarça a editorialização dos fatos. Mas o mais preocupante é quando infundem o medo das ruas, da política, dos pobres, da juventude, da “esquerda”. Interferem e direcionam fatos e investigações, produzem histeria coletiva e ódio a grupos e movimentos sociais inteiros. Ao mesmo tempo são espaços de controvérsias e disputas necessárias e estratégicas, por isso repito sempre: critica a mídia? Odeia a mídia? Torne-se mídia!

DKennedys

“NÃO ODEIE A MÍDIA, TORNE-SE A MÍDIA” – Um dos gritos-de-batalha de Jello Biafra, artista punk e anarco-ativista Californiano, que cantava no Dead Kennedys e hoje segue ruidoso com a banda Guantanamo School of Medicine

A morte do cinegrafista Santiago Andrade e a posterior perseguição de parte da imprensa aos blackblocs são um sintoma de um discurso midiático perdido ou, ao contrário, posicionado estrategicamente?

Já vimos essa história da construção de inimigos: os comunistas, os subversivos, maconheiros e agora os blackblocs, a ameaça que vai destruir a democracia, a Copa, a moral e os bons costumes. É redutor demais. Vidas são demolidas nesse jogo de demonização, como vimos na repressão brutal da polícia aos manifestantes, nas prisões arbitrárias e mortes, nas capas sensacionalistas da Veja e primeiras páginas e editoriais de jornais e televisões. O nível de manipulação dos fatos foi grosseiro depois da morte do cinegrafista da TV Bandeirantes. A lei que tipifica terrorismo, que querem votar a toque de caixa, e a pauta do medo buscam esvaziar e mudar foco das justas reivindicações para o comportamento dos manifestantes. E a mídia vem legitimando a desproporcional repressão policial, pouco questionada nos noticiários corporativos.Temos uma polarização das ruas contra a associação Mídia-Estado-Polícia, um confronto que produz avanços e retrocessos.

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A Mídia Ninja, que podemos chamar de filha pródiga do movimento Fora do Eixo, nasceu e ganhou muita evidência durante as manifestações de junho de 2013. A sra. vê a Mídia Ninja e suas derivações como o futuro da comunicação?

Um dos efeitos dos protestos de 2013 no Brasil foi a explosão das ações midiativistas. A Mídia Ninja fez essa disputa de forma admirável, amplificando a potência da multidão nas ruas. Ela passou a pautar a mídia corporativa e os telejornais ao filmar e obter as imagens do enfrentamento dos manifestantes com a polícia, a brutalidade e o regime de exceção. O papel dos midialivristas e dos coletivos e redes de mídias autônomas não pode ser reduzido ao campo do jornalismo, mas aponta para um novo fenômeno de participação social e de midiativismo (que usa diferentes linguagens, escrachos, vídeos, memes, para mobilizar). A cobertura colaborativa obtém picos de milhares de pessoas online, algo inédito para uma mídia independente. Nesse sentindo a comunicação é a própria forma de mobilização.

Abaixo: Cobertura fotográfica realizada pela Mídia Ninja do protesto feminista de 28 de Outubro de 2015 no Rio de Janeiro (#ForaCunha)

E o Fora do Eixo?

OFDE Fora do Eixo é um laboratório de experiências culturais e de invenção de tecnologias sociais radicais, que conseguiu transformar precariedade em autonomia. Ele inventou uma forma de viver coletiva e restituir o tempo que o capital nos rouba de uma forma que me toca e mobiliza. As causas políticas que defendem são as minhas e as de muitos: mídia livre, governança, democracia direta, combate a desigualdade e aos preconceitos, defesa da vida, potencialização da autonomia, da liberdade, economia colaborativa, invenção de mundos.

O Fora do Eixo possibilita que jovens dispensem empregos “escravos” ou precários na mídia tradicional, em produtoras comerciais, agências de publicidade, ou qualquer emprego fordista, e passem a inventar a sua própria ocupação. Conheço o Fora do Eixo desde 2011. Na prática,são uma rede de mais de mil jovens que revertem seu tempo e vida para um projeto comum com um caixa coletivo único que paga comida, roupa e casa coletiva, sem salário individual e um projeto comum. Eles não têm medo de dialogar com os poderes instituídos, ao contrário de um certo discurso midiático que procura criar um grande horror à política, que só afasta os jovens e muitos de nós das disputas.

E isso tem muito a ver com as suas pesquisas não se intimidam em enxergar novos dispositivos, conceitos e instrumentais, redes sociais. Qual é a resposta que a sra. procura?

Antes de tudo, viver e lutar por uma vida não fascista, no sentido colocado por Michel Foucault, de lutar contra o “fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”. Quero experimentar uma vida menos “normopata”, uma erótica do contato que restitua o prazer de vivermos juntos. Sou fascinada pelos dispositivos e a forma como co-evoluímos com eles, reinventando o social, produzindo novos prazeres e angústias, sem deixar de perceber como também expropriam o nosso tempo, nossa libido, nossa energia e nos colocam para trabalhar num novo regime de exploração da vida, brutal.

Tudo isso está provocando uma mutação antropológica. Acompanho e vivo de dentro esses atravessamentos. Recuso transformar os conceitos em juízes das experiências, o intelectual “justiceiro” que se vê ao largo, acima, distante dos fenômenos que analisa e estuda. Não tenho mais objetos de estudo, mas parceiros que me estimulam. Fiz a passagem para o que chamo de teoriativismo ou o tédio da erudição. No que faço está implicado todo o meu corpo e a minha vida. Como diria Nietzsche, ignoro o que sejam problemas puramente intelectuais.

Não lhe preocupa a difusão generalizada de manifestações rancorosas, preconceituosas, de baixíssima qualidade nas redes sociais?

As redes sociais têm tudo o que a sociedade tem: discursos de ódio, racismo, preconceito, desinformação, mas trazem a possibilidade veloz e massiva de combate e de embate. Não vejo os jornais e a mídia supereditorializada como “mais qualificada”. Ao contrário, um erro, uma distorção de análise, a manipulação de fatos, o sensacionalismo são questionados nas redes e não nas redações… Se esse novo ambiente produz venenos, ele cria com a mesma velocidade os anticorpos.

Há pouco, a sra. tangenciou o tema da Copa do Mundo no Brasil. Qual a sua opinião sobre esse tema? #NãoVaiTerCopa é algo a ser defendido?

O #NãoVaiTerCopa deixa irada a direita, a esquerda clássica e o governo ao seu simples enunciado. Eles e a mídia corporativa vão errar de novo, como erraram feio no inicio das manifestações em junho de 2013, com a histeria repressora e condenatória. O #NãoVaiTerCopa alarga o campo da democracia ao explicitar o dissenso, ao arriscar pensar diante de um fato consumado e de um processo que colocou os interesses empresariais, lobbystas e midiáticos acima dos direitos básicos. Vai ter Copa sim, mas não vai ter a Copa sonhada pela polícia de ordenamento e pelo ufanismo e desenvolvimentismo ultrapassado.

Os “idiotas da objetividade”, como dizia Nelson Rodrigues, são os que não conseguem ver que pós-junho de 2013 o Brasil provou que não existe incompatibilidade entre torcer pelo Brasil no futebol e fazer política. Ou seja,Vai Ter Copa e Não Vai Ter Copa. Particularmente vou torcer e participar para que ocorram manifestações e vou torcer pelo Brasil em campo. Essa é uma das formas de consolidar e aprofundar a jovem e provocativa democracia brasileira.

Tivemos um beijo gay numa novela global, casamento entre homossexuais é defendido abertamente por jornais, novas formações familiares passaram a ser aceitas. Já podemos comemorar ou ainda falta muito para termos uma sociedade mais tolerante?

O beijo gay na novela global faz parte das expressões da luta por direitos e narrativas afetivas novas. Em terra de Marco Feliciano, o beijo gay é político, é “fashion”, mas ainda estamos muito aquém de uma cultura não homofóbica, não racista, menos patriarcal e machista, ou que aceite a autonomia e liberdade das mulheres.O gay família, a lésbica fashion, o traveco amigo, os homens, as mulheres, os jovens, só têm um destino: o amor romântico em casal. Tabu é ter um relacionamento livre e autônomo.Está faltando um Nelson Rodrigues, mas um Lars von Trier também serviria, para fazer a narrativa dos novos tempos e nos atualizar de nós mesmos.

Cartum de Laerte

Cartum de Laerte

A sra. citou a necessidade de uma sociedade menos patriarcal e machista. A mulher continua tendo muito mais obrigações do que direitos.

Os homens continuam em pânico com a autonomia das mulheres. Um dia sexo vai ser considerado modalidade esportiva e prostituição (masculina e feminina), serviço e profissão de utilidade pública. Essa era uma das causas da Gabriela Leite, mulher e ativista admirável que criou a ONG Davida e a grife Daspu e morreu aos 62 anos. Moça de classe média que escolheu ser puta.O deputado Jean Wyllys apresentou no Congresso o projeto dela, que regulamenta a atividade dos profissionais do sexo. Uma causa que vale uma vida. E além dos evangélicos e cristãos ainda tem feminista que é contra regulamentar a profissão.

Tomo esse exemplo para dizer que as lutas das mulheres passam por aceitar essas diferenças. Admiro as meninas do funk que ressignificaram o feminismo nas favelas, ao fazerem a crônica sexual a quente da periferia de forma explícita, como Tati Quebra Barraco, que considero uma Leila Diniz dos novos tempos. Há os que pensam que ao se colocarem como protagonistas da cena sexual, as meninas do funk só ocupam o lugar de poder dos homens. Na verdade, é um discurso radical de autonomia e de liberdade que, vindo das mulheres, subvertendo o sentido de “cachorras” e “popozudas”, coloca o preconceito e o machismo de ponta cabeça. Vivemos um tempo difícil, mas apaixonante.

Fies e Prouni

A educação no Brasil melhorou ou piorou durante a administração petista?

Melhorou e muito. Não tem comparação os investimentos que foram feitos na educação pública e nas universidades públicas no governo do PSDB e na administração do PT. Fiz concurso público e comecei a dar aulas na UFRJ no governo de FHC e foram 8 anos de sucateamento com as universidades à míngua. O governo Lula reinvestiu nas universidades públicas criando 14 novas universidades federais e 100 campi pelo interior do país e também investiu fortemente nas Escolas Técnicas e Institutos Federais. O programa do Reuni de reestruturação do espaço físico, expansão das vagas e criação de novos cursos foi vital para as universidades federais. Só a Escola de Comunicação ampliou em mais de 30 o número de professores por concurso público, ampliou vagas, contratou-se técnicos etc. Claro que existem problemas nessa expansão, mas foi decisiva e mudou o cenário radicalmente.

Outras duas ações decisivas foram o Prouni (que abriu 700 mil vagas para jovens nas universidades particulares) e as cotas raciais e sociais, que trouxeram novos sujeitos sociais, vindos das camadas populares, para dentro da universidade. Ao contrário dos que temiam os defensores de uma abstrata “meritocracia”, que o nível de ensino iria “cair”, que iria se “nivelar por baixo” para atender aos pobres, os cotistas surpreenderam e o que estamos vendo é o contrário. Adisputa na produção do conhecimento feita por novos sujeitos políticos. Poderia ainda falar do Enem que articulou a entrada unificada para a rede de universidades públicas. Hoje recebemos na ECO estudantes de todo o Brasil.

Sobre o ensino básico e fundamental acompanhei alguns debates e desafios enormes que precisam ser enfrentados, entre eles o fato da escola fordista e disciplinar, a “creche da tia Teteca”, o ensino sem corpo, sem desejo, sem participação dos estudantes ter se tornado obsoleto e ineficaz. O desafio de diminuir drasticamente o analfabetismo no país passa não só por mais investimento na carreira e salário dos professores, mas por uma mudança de mentalidade, não dá mais pra insistir no modelo da decoreba e do “vovô viu a uva” num contexto de ampliação de repertórios e de universalização da cultura digital, em que oralistas dominam, sem passar pelo letramento, a cultura audiovisual e digital.

Dilma

A sra. votou em Dilma Rousseff? Qual a sua avaliação do primeiro governo dela?

Votei na presidenta Dilma esperando uma radicalização e aprofundamento das políticas iniciadas no governo Lula, mas o círculo virtuoso se rompeu em diferentes pontos. Tivemos retrocessos absurdos nas políticas culturais, enfraquecimento do Programa Cultura Viva, que deu protagonismo à produção dos Pontos de Cultura, vinda das bordas e periferias, retrocesso no diálogo com os movimentos sociais e culturais. O Brasil que estava na vanguarda de alguns processos, com a estabilidade econômica e emergência de novos sujeitos sociais e políticos pós-redistribuição de renda, apresenta uma reconfiguração do campo conservador, minando todo um capital simbólico e real construído.

Estou falando de projetos engavetados como a Reforma da Lei dos Direitos Autorais, os retrocessos no Marco Civil para a Internet, a Lei Geral das Comunicações, obsoleta e concentracionista, que continua intocável, o plano de barateamento e universalização da Banda Larga pífio, o retrocesso no Código Florestal, a inexistência de propostas para a legalização do aborto e legalização das drogas.

O projeto nacional-desenvolvimentista, fordista, da presidenta Dilma, que investe em automóvel, hidrelétrica, petróleo, passando por cima da maior riqueza brasileira, que é seu capital cultural, ferindo direitos, destruindo o meio-ambiente, é insustentável. O maior paradoxo do desenvolvimentismo é querer transformar a cosmovisão indígena, a produção da periferia, em “commodities”, faturar a riqueza cultural, vender as favelas e sua cultura como pitoresco, os indígenas como exóticos, a carne negra como produto desejável e fashion, mas deixar isolados e sem autonomia esses mesmos sujeitos políticos, destituídos dos seus direitos, assujeitados, ou tornados corpos dóceis.

Nesse momento, continuo filiada ao PT, partido para onde entrei em 2011, no auge da crise do Ministério da Cultura, com a nomeação catastrófica da ministra Ana de Hollanda. Entrei para criticar e disputar de dentro avanços nas políticas públicas e para discutir as novas relações de poder nas cidades, a emergência do trabalho informal e do precariado em diferentes campos, a produção social que é a nova força de transformação dentro do próprio capitalismo e para pensar a cidade e a sociedade que queremos.

O governo Dilma é sustentado hoje por uma coalizão conservadora. Então oscilo entre o hiperativismo pessimista (não vai avançar, mas vamos tensionar ao máximo) e o otimismo crítico, que vai guinar para esquerda, sob a pressão das ruas.

É com angústia que vejo o PT, partido com a maior base social do Brasil, abandonar pautas e avanços históricos. Por isso, estou no PT criticando de dentro, mas, ao mesmo tempo, faço parte do conselho do mandato do deputado Jean Wyllys, parlamentar extraordinário. E votei em Marcelo Freixo, ambos do PSOL. Acredito cada vez mais em frentes suprapartidárias em torno das pautas e questões que nos interessam e na transformação dos partidos e do Estado em redes de colaboração e num Estado-Rede, co-gerido pela sociedade.

Vejo a democracia direta e participativa como horizonte da política, mas enquanto isso, luto para que o atual sistema partidário, inclusive o governo Dilma, incorpore as pautas e questões urgentes que emergiram nas ruas. Temos que sair do infantilismo político e purista que é o compromisso atávico com o inviável, pois a governança e a democracia direta vão brotar da remediação e ruptura com o atual sistema partidário. Votando ou não votando no PT, as ruas são ingovernáveis e temos que lutar contra a financeirização da vida.

Revista Cult

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“IVANA BENTES é professora e pesquisadora da linha de Tecnologias da Comunicação e Estéticas do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ. É Doutora em Comunicação pela UFRJ, ensaísta do campo da Comunicação, Cultura, Cinema, Estética, Cultura Digital. É coordenadora do projeto Laboratório Cultura Viva, projeto de apoio e fomento à produção audiovisual dos Pontos de Cultura, em parceria com o MinC. É coordenadora do Pontão de Cultura Digital da ECO/UFRJ, ponto de articulação de ações em Cultura Digital. Atualmente desenvolve as pesquisas: “Estéticas da Comunicação: Novos Modelos Teóricos no Capitalismo Cognitivo” (pesquisa CNPQ) e “Periferia Global”: sobre o imaginário em torno das favelas e periferias, na cultura brasileira e no cenário global, e suas redes de articulação e produção bio-políticas. É diretora da Escola de Comunicação da UFRJ desde 2006. Atualmente suas pesquisas têm se voltado para os temas relacionados às periferias globais, o devir estético na cultura digital e capitalismo cognitivo e o campo da mídia-arte, arte e ativismo, redes colaborativas, arte e cognição.” – Via Vida Secreta dos Objetos

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Leia os artigos de Ivana Bentes:

Ivana Artigo 1

LEIA: Redes Colaborativas e Precariado Produtivo

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Na Imprensa:
O Poder Simbólico do Funk (Portal Fórum)

“Respeitosamente vândala” – Ivana Bentes entrevistada na Cult de Março de 2014

Ivana

Respeitosamente vândala

Confira, na íntegra, a entrevista com a pensadora e ativista Ivana Bentes, publicada na CULT 188

http://revistacult.uol.com.br/home/2014/03/respeitosamente-vandala/

“As periferias são laboratórios de mundos e a riqueza do Brasil. Não mais os pobres assujeitados e excluídos de certo imaginário e discurso, mas uma ciberperiferia, a riqueza da pobreza (disputada pela Nike, pela Globo, pelo Estado) que transforma as favelas, quilombos urbanos conectados, em laboratórios de produção subjetiva. A carne negra das favelas, os corpos potentes e desejantes, a cooperação sem mando, inventando espaços e tempos outros (na rua, nos bailes, lanhouses e lajes), estão sujeitos a todos os tipos de apropriação.É que as favelas e periferias são o maior capital nas bolsas de valores simbólicas do país, pois converteram as forças hostis máximas (pobreza, violência, Estado de exceção) em processo de criação e invenção cultural.Além disso, o midialivrismo ganha força na periferias, em projetos como a ESPOCC, Escola Popular de Comunicação Crítica da Maré, Viva Favela, Agência Redes Para a Juventude, que formam comunicadores populares e midiativistas…

O Rio de Janeiro serve de exemplo. É um termômetro da difícil e paradoxal tarefa de calibrar essa euforia pós-Lula, do presidente Macunaíma que turbinou a periferia, e os retrocessos no governo Dilma, que trouxe os “gestores de subjetividade”, que revertem e monetizam a potência das favelas e periferias para o turismo, corporações, bancos e para o consumo.O que vemos na publicidade das UPPs, da Copa do Mundo e dos shoppings é o que chamo de inclusão visual dos jovens negros ou da cultura da periferia. Mas os mesmos jovens são mortos pela polícia como elementos “suspeitos” nas favelas ou impedidos de entrar nos shoppings para dar um rolezinho…” – IVANA BENTES na CULT