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O ANEL DA INVISIBILIDADE COMO ESPELHO DO SUJEITO ÉTICO Por André Comte-Sponville, filósofo francês contemporâneo, em seu livro Viver – O Mito de Ícaro, 2º Volume
Giges é pastor, hoje seria bancário ou cabeleireiro, e não era melhor nem pior que outro qualquer. É cada um de nós. Mas eis que ele encontra, em circunstâncias espantosas que Platão narra com abundância de detalhes, um anel: anel milagroso que o torna invisível a seu comando! É o inverso de Édipo: este furou os olhos para não ver mais o mal que fizera; Giges tem um meio para que não se veja mais o mal que ele fará…
“O Anel de Giges”, Anônimo da escola de Ferrara, século XVI
[Diz Glauco:]
Que os justos não o são por querer, mas pela impossibilidade de cometer injustiças, veríamos bem se imaginássemos o seguinte: se, dando aos dois oportunidade de agir como quiserem – ao justo e ao injusto -, os seguíssimos de perto, observando aonde o desejo os conduz. Em flagrante apanharíamos o justo indo ao mesmo lugar que o injusto, por conta do privilégio, que a natureza busca como bem, mas de que, por força da lei, é desviada à estima da igualdade. Seja a oportunidade de que falo esta: se conseguissem o poder que dizem ter conseguido Giges, ancestral do rei dos lídios.
Giges era um reles pastor que servia ao governante da Lídia de então; certa vez, sobrevindo chuva intensa e terremoto, a terra se abriu e surgiu uma fenda perto do lugar em que pastoreava. Vendo aquilo, assombrado, desceu e viu muitas coisas de que a lenda conta, mas sobretudo um cavalo de bronze, oco, com pequenas portas, pelas quais passou e viu um cadáver que parecia maior do que os homens comuns; não tomando-lhe outra coisa que não o anel dourado que tinha na mão, partiu.
Ao costumeiro encontro que os pastores faziam a cada mês para que mandassem ao rei um relato sobre seus rebanhos veio ele também, com o anel. Estando sentado com os outros, por acaso virou a pedra do anel em direção da palma da mão; feito isso, tornou-se invisível aos que se sentavam ao seu lado, e falava-se dele como de alguém que partira. Ele se assombrou e, tocando o anel, virou a pedra para fora e, ao virá-la, tornou-se visível. Percebendo isso, testou o poder do anel, e lhe aconteceu que, quando virava a pedra para dentro, tornava-se invisível, quando a virava para fora, visível. Logo que o notou, negociou para ser um dos mensageiros que falariam ao rei e, indo ao palácio e tornando-se amante da rainha, com ela atacou o soberano, o matou e tomou o poder para si.
Se houvesse dois anéis desse, e o justo colocasse um, e o injusto, o outro, não haveria ninguém (como poderia parecer) que fosse tão férreo ao ponto de permanecer justo e ousar se abster dos bens alheios e não tocá-los, sendo-lhe possível, sem medo, tomar do mercado o que quisesse, entrar nas casas e dormir com quem quisesse, matar e soltar da prisão quem quisesse e fazer qualquer coisa, como um deus em meio aos homens. Desse modo, os dois não agiriam diferente e iriam na mesma direção.
Pode-se usar essa história como grande indício de que ninguém é justo por vontade, mas porque é forçado, não considerando a justiça um bem em si; pois, quando julgam que podem fazer uma injustiça, todos a fazem. Todo homem pensa que é muito mais vantajosa a injustiça do que a justiça, e pensa a verdade, segundo quem defende essa posição, uma vez que, se alguém tivesse oportunidade semelhante e não quisesse cometer injustiças e nada tomasse aos outros, ao sabê-lo as pessoas o considerariam um pobre diabo e um imbecil – mas elas o elogiariam na frente umas das outras, enganando-se pelo medo de serem injustiçadas. Esse é o fato.
Glauco, nesse texto, quer provar que o justo e o injusto, o bom e o mau perseguem ambos o mesmo fim (aonde, diz Glauco, “o desejo os conduz”), divergindo apenas pela escolha, puramente tática, dos meios. O anel mágico, dispensando quem o usa de toda e qualquer preocupação tática (quanto aos meios), faria a identidade dos fins aparecer à luz do dia.
A força desse exemplo reside na possibilidade que cada um tem, solitariamente, de comprovar seu rigor e de repetir, por conta própria, sua imaginária e crucial experiência. Imaginemos, pois, se pudermos sem mentir. Você é Giges. Você tem o anel. É invisível quando quiser, quanto tempo quiser e tantas vezes quantas quiser. Nenhum homem o vê; nenhum deus o julga. Reflita: o que você fará? O que não fará?
Sua alma tem sua pedra de toque. Tudo o que você hoje veda a si mesmo, do assassinato ao roubo, do estupro à indiscrição (“pegar sem medo, introduzir-se nas casas, matar quem quiser, unir-se com quem lhe agradar…”), mas que talvez fizesse se possuísse o poder maravilhoso de Giges, não é honestidade, candura, discrição ou respeito (numa palavra, não é moralidade), mas medo, prudência, amor-próprio ou covardia. Virtude? Nada disso. Hipocrisia.
Faça a experiência uma vez, quero dizer, interiormente, com toda a seriedade de que você é capaz. Em seguida mire a sua imagem que essa experiência lhe reflete. O anel de Giges é um espelho singular… O que você faria? O que não faria? Pense bem. Giges fez tudo, e do pior, e morreu rei. E você? Glauco diz: o bom e o mau farão as mesmas coisas, cometerão os mesmos crimes. Portanto o bom não é verdadeiramente bom, e o mau não é mais mau que outro qualquer. Não há moral. Tudo se reduz ao princípio de prazer (quanto aos fins) e aos princípio de realidade (quanto aos meios).
Você é Giges, você tem o anel: agora você vai fazer várias coisas que não fazia até então… Se tivéssemos o anel, nossa vida toda mudaria, sem dúvida, e muitos de nossos comportamento “morais” desapareceriam, revelando assim sua amoralidade de sempre. Se tivéssemos o anel faríamos com certeza muitas coisas que hoje não fazemos; e deixaríamos de fazer outras, sem dúvida, a que nos sentimos compelidos hoje. Mas não é tudo… Também há coisas que, mesmo então, nós nos vedaríamos fazer; e outras, desagradáveis, a que, mesmo então, nos sentiríamos obrigados. O anel de Giges é um espelho singular: ele reflete nossos vícios nus e crus; mas, com isso, nossas virtudes também aparecem melhor.
Somos menos bons do que tentamos parecer: é bom saber; mas também somos melhores do que se poderia temer: não devemos ignorá-lo tampouco. Vários de nós, se tivessem o anel, o utilizariam para fazer mais bem do que podem ou ousam fazer hoje… Conheço gente quem nem mesmo a realeza faria mentir.
Dostoiévski se engana: mesmo se Deus não existe, não é verdade que tudo é permitido. Porque – invisível ou não – eu não me permito tudo: tudo não seria digno de mim. Minha moral é essa dignidade, e essa exigência. Giges não pode nada contra isso: mesmo invisível, mesmo invencível, há atos que não me autorizo e outros a que me sinto obrigado. A tal ponto que, se eu cometesse aqueles ou me dispensasse destes, e por mais invisível que eu fosse, nem por isso deixaria de saber distinguir, entre meus atos, aqueles de que posso me orgulhar ou sentir-me satisfeito, nem que apenas em meu foro interior, daqueles que, mesmo sem que ninguém saiba, me fazem sentir como que magoado ou diminuído.
O âmago do problema é a liberdade. Um homem mau só é mau, moralmente falando, se for livre de sê-lo. Um louco, por mais cruel que possa ser ou parecer, é legitimamente considerado irresponsável, moralmente, por seus atos… ninguém escolhe ser louco, ou não o faz livremente. Portanto o louco é inocente, sempre, dos crimes de que é culpado; perigoso, talvez; malvado, não. O Código Penal francês, em seu artigo 64, legaliza a coisa: “Não há crime nem delito quando o réu estava em estado de demência no momento da alão, ou quando foi coagido por uma força a qual não pôde resistir.” A mesma coisa se poderia dizer do animal ou da criança – ninguém culpa o recém-nascido que morde; e nos protegemos das feras – porque elas não escolheram ser tais – sem as odiar.
É o paradoxo da moral: é preciso poder ser bom para ser mau, e escolher livremente não o ser. “O princípio da ação moral é a livre escolha”, dizia Aristóteles. A liberdade do querer é, por isso, o “fundamento negativo da moral”, isto é, “aquilo sem o que a exigência moral não teria significação.” (Ética a Nicômaco, VI, 2) O homem mau só o é na medida em que é responsável por seus atos; e só é responsável por eles na medida que dependem de sua vontade. Mas não é tão simples assim. Que sejamos responsáveis por nossos atos, é possível; mas somos responsáveis por nós mesmos?
Quem escolhe nascer?… Alguém escolhe seu corpo? E se ele ficou mau, é culpado pelas circunstâncias que o fizeram assim? Acaso alguém escolhe sua infância, sua educação, sua família, seu inconsciente?… Um velho mau nunca é mais que um recém-nascido que deu errado. Mas que se pode reprovar a um recém-nascido? E que criança escolhe dar errado? Se não nasceu mau e mau se torna, é que foi mal criado, ou mal amado, ou vítima à sua maneira de uma sociedade demasiado dura ou demasiado injusta. Sócrates é que foi assassinado… Mas de quem é a culpa, se ele se torna Giges?
Voltemos a nosso exemplo inicial. Giges encontra um anel mágico e se torna um tirano sanguinário. Se Sócrates tivesse encontrado o anel, teria continuado a ser Sócrates. Pelo menos é a aposta da moral… Daí esta questão: quando Sócrates escolheu ser Sócrates? E quando Giges escolheu ser Giges? Se nunca escolheu ser o que era, se nunca escolheu ser Giges, é inocente, por isso, de todas as escolhas de que é culpado, já que não teve, primeiro, a escolha de quem escolhia…
As escolhas ficam submetidas, sempre, à personalidade de quem escolhe. O eu seria então um destino e uma circunstância, em cada caso, absolutamente atenuante. Afinal de contas, Giges sempre pode argumentar a seus eventuais juízes (e talvez poderia fazê-lo até sem mentir) que teria preferido ser Sócrates, e que não é culpa sua ser Giges, já que não fez a escolha… Condenar um homem, dizia um biólogo (Jean Rostand), nunca é mais que condenar cromossomos ou circunstâncias.
Ilustração por Charb, presente no livro de Daniel Bensaïd, “Marx: Manual de Instruções” (Ed. Boitempo)
DIVINAS EPIDEMIAS: A propagação das religiões explicada pela midialogia de Régis Debray – por Eduardo Carli de Moraes
“Sem dúvida, crer é natural para o único animal que sabe que vai morrer.” – Régis Debray em Deus, Um Itinerário (p. 16)
Foi Deus quem criou Humanidade, ou foi a Humanidade quem criou Deus? Talvez este seja o equivalente teológico da famosa querela zoológica do ovo e da galinha. Quem nasceu primeiro, afinal de contas, o Criador ou suas criaturas? O homo sapiens inventa Deus, ou Deus inventa o homo sapiens?
A esta enrolada controvérsia, adiciona a querela entre os crentes: há um único Deus, ou os deuses são vários? Os inumeráveis e muito variados povos, através da história, que aderiram a uma espiritualidade politeísta – como os gregos que idolatravam um Olimpo repleto de deuses, e que povoaram suas epopéias homéricas com as brigas por supremacia entre as divindades – “morreriam de rir se ouvissem falar que só há um deus verdadeiro”, como diz Débray [2001, p. 82].
Para além da briga interminável entre teístas e ateus, e entre os primeiros a treta que opõe monoteístas e politeístas, há algo mais a se considerar: as representações sobre o Tempo, radicalmente discrepantes, que os seres humanos fazem de acordo com as opiniões e crenças que nutrem (por terem sido com elas nutridos).
Um dos debates científicos e filosóficos mais quentes da contemporaneidade resume-se na pergunta: Nature or Nurture? Isso que nós pensamos sobre o Tempo e sobre os Deuses, vem da natureza e nos é inato, ou então fomos nutridos com algo que nos inculcou aquilo que hoje consideramos como dogma, artigo de fé e verdade absoluta?
É impossível que estejam ambos com a verdade estes dois personagens irreconciliáveis, ícones da controvérsia milenar entre Fé e Razão: 1) aquele que afirma , com as Escrituras cristãs, que um deus único criou tudo o que existe há cerca de 6.000 anos, como está escrito no Gênesis, e 2) aquele que afirma com base na Ciência que o planeta Terra formou-se há cerca de 4,56 bilhões de anos e que as primeiras formas de vida só nasceram um bilhão de anos depois.
É impossível que ambos personagens estejam certos, pela razão simplérrima de que o Mundo não pode ter simultaneamente 6.000 anos e 4,5 bilhões de anos de idade. O que quer dizer que… das duas uma: ou ambas as hipóteses estão erradas, ou um destes dois personagens está equivocado e delira, falseando o Tempo pretérito já transcorrido com uma representação falsa do Passado.
“Vamos abrir a Bíblia. Uma semana para criar os céus e a terra, pronunciando algumas palavras-chave – luz, água, árvore, estrela, animais, homem -, seguida de milhões de semanas de boca fechada, sem se manifestar. Sem revelar sua proeza – ou seu delito…” (Regis Débray, Deus: Um Itinerário, Companhia das Letras, 2001, p. 36)
Ora, o mito de Criação do monoteísmo situa a invenção do ser humano por Deus – o parto milagroso de Adão e Eva, que nascem já prontos, com corpos de homo sapiens que nunca precisaram antes evoluir a partir dos símios através dos milênios – há 6.000 anos atrás. Darwin gargalha no túmulo diante de tamanha ingenuidade da Humanidade nos primórdios toscos de sua cultura ainda bárbara.
Ora, os historiadores e arqueólogos sabem muito bem que, há 6.000 anos atrás, os seres humanos já estavam sobre a face do planeta há muito tempo, tendo logrado o controle do fogo há cerca de 500.000 anos atrás… Reduzir a História total de tudo o que já ocorreu à cifra minúscula de 6.000 anos é quase que certamente um equívoco, um erro, uma ilusão, uma mentira. Uma crença merecedora de ser aposentada por quem respeite as evidências.
A questão pode ser formulada de outro modo: se considerarmos como correta a teoria da evolução das espécies, comprovada cientificamente por milhares de experimentos empíricos e descobertas arqueológicas (os paleontólogos e antropólogos dirão: “os fósseis não mentem!”), seria possível dizer que Deus ou deuses existiram durante os milhares de milênios onde ainda não havia surgido sobre a face da terra o homo sapiens?
Não é verdade que a crença em Deus, recentíssima na história natural, que se manifesta apenas em uma espécie animal entre milhões de outras, dependeu, para se constituir, do advento das capacidades simbólicas e da “função fabulatriz”, de que nos fala o filósofo Henri Bergson? Para que os deuses começassem a nascer, não foi preciso que a história cósmica, que o processo natural, atravessasse milhões de anos até que nascesse este primata ereto que somos, este mamífero com polegar opositor e tele-encéfalo altamente desenvolvido?
Em outros termos: se os símios nunca tiveram religião (alguém já viu orangotangos rezando ou gorilas construindo catedrais?), não é evidente que a religião começa a certo ponto do processo de hominização da criatura que Platão chamou de “bípede sem plumas”?
Os estudos de história das religiões, conduzidos por pesquisadores respeitáveis como Mircea Eliade e Leroi-Gourhan, não demonstram, através das revelações que nos fazem sobre as crenças e mitos da pré-história, que a religião faz sua entrada no palco do mundo a certo ponto da caminhada humana? Ora, a caminhada humana é profundamente determinada pelos avanços técnico-científicos, de modo que o surgimento histórico das religiões não seria separável de fenômenos tecnológicos e científicos que foram pontos-de-virada na evolução da espécie.
Aquilo que chamamos de Deus único, sustentáculo do credo monoteísta, quando visto de uma perspectiva histórica e genealógica, aparece-nos como uma invenção recentíssima: os crentes monoteístas chamam de Eterno aquilo que nasceu agora pouco!
Os credos monoteístas, nos seus cerca de 3.000 anos de existência (uma gotícula minúscula na vastidão do oceano do Tempo!), não cessaram de transformar-se sob o impacto das transformações nas condições materiais e concretas da Humanidade.
Por isso, em seu instigante livro Deus – Um Itinerário, Régis Debray propõe realizar uma “história do Eterno no Ocidente”, mobilizando todo o arsenal da disciplina científica que ajudou a fundar: a midialogia.
Debray dedica-se a explicar como se deram as inúmeras metamorfoses do monoteísmo em sua curta estadia neste planeta. Afirma com todas as letras que a invenção de Deus só pôde se dar quando os humanos tinham desenvolvido a escrita e a roda:
“O Deus [Único, o deus dos monoteísmos] é impensável sem a escrita essencialmente e sem a roda secundariamente, as quais reduzem, em vários graus, a dependência do homem em relação ao espaço (a roda) e ao tempo natural (a escrita). O Único é tardio porque foram tardias as próteses que remetem a certas maneiras de circular e de memorizar, dependentes elas próprias de ecossistemas bem delimitados.
Não foi no alto do monte Sinai, numa bela manhã, que o Todo-Poderoso finalmente encontrou a ocasião apropriada de manifestar-se como tal. Foi um certo uso político, dado a inovações técnicas, que conferiu consistência e necessidade ao monoteísmo. As panóplias do primata inventivo têm seu tempo próprio (ultra-rápido desde a Revolução Industrial, porém ainda bastante lento após a Revolução Neolítica). O homem descende do símio, mas Deus descende do signo, e os signos têm uma longa história.” (Débray, 2001, p. 38)
É em virtude de um preconceito tenaz, que nos foi inculcado desde tenra idade, que nós temos a tendência a pensar no Deus judaico-cristão como algo que sempre existiu, não atentando ao seu processo de constituição e às técnicas culturais que estiveram em ação na formação deste produto histórico.
Enxergar toda a história das religiões anteriores ao monoteísmo como uma longa noite bárbara-pagã, onde os idólatras adoravam os falsos deuses do politeísmo greco-romano ou os orixás das cosmologias africanas, é um vício do olhar retrospectivo. Não podemos seguir falseando o tempo pretérito com uma visão contaminada de presunção etnocêntrica, como ocorre tão frequentemente entre judeus, muçulmanos e cristãos, os acólitos de religiões monoteístas.
Eles querem tornar o monoteísmo uma norma, algo que deve ser universalizado, algo que deve ter a aderência de todos, mas acabam mentindo sobre a eternidade, pois supõe como Eterno aquilo que veio-a-ser, postulam como dogma um Deus sem História que na verdade é um produto histórico do caminhar coletivo dos seres humanos. Assim, muitos crentes monoteístas acabam reprimindo, perseguindo ou mesmo massacrando aqueles que querem contar a história dos respectivos processos de constituição e propagação das seitas.
Regis Debray, pensador francês
“Quando se trata do Deus judaico-cristão, é difícil, para nós, nos desfazermos de hábitos de pensamento imperial, no qual um teocentrismo tranquilo recobre a presunção etnocêntrica. Esse Deus central e culminante se apresenta, ao nosso espírito, como o ponto de origem de um impulso irreversível característico da humanidade civilizada, ultrapassado o limiar das religiões ‘primitivas’. (…) Podemos ler, no Dicionário de Teologia Católica: ‘a revelação bíblica indica aos crentes que, na origem, existiu não o animismo, mas uma religião pura e monoteísta. Os politeísmos antigos não passam de uma degradação.’
Para essa convicção de anterioridade cronológica não contribui pouco a imemorial feitiçaria da fonte. Por natureza, o Ser perfeito predispõe a isso. ‘A concepção de que, no início de todas as coisas, encontra-se o que há de mais precioso e de mais essencial’, Nietzsche a caracteriza como ‘resíduo metafísico’. Como conjurar a quimera da origem no cume da metafísica, na figura de um Deus que não passa do que a idéia de origem O faz ser? Como escapar à suposição de que, no Seu berço, se encontra a essência mais pura?
(…) O monoteísmo nada tem de princípio fundador e genérico, desde a origem destinado a preencher toda a terra… Podemos nos dirigir em voz alta a um cadáver, dialogar com ele por meio de oração e oferendas, depositar na sua tumba algo com que se restaurar, sem supor um onipotente a controlar, amorosamente, todos os homens. Isso ocorreu bem antes do nosso bom deus e continuo a acontecer depois Dele por longo tempo. O reflexo que consiste em investir a morte com uma mensagem de vida, para suavizar o traumatismo de uma perda, não implica nenhuma teologia particular… Sustentar que a primeira personagem que intervém na espiritualidade é Deus é esquecer o Sol, os ancestrais, os espíritos e o Grande Pã, ou seja, nove décimos do trajeto.” (Débray, 2001, p. 42)
“Sem dúvida, crer é natural para o único animal que sabe que vai morrer”, escreve Débray, sugerindo que o homo sapiens já vem ao mundo com uma certa predisposição inata para a crença, já que é o único animal cuja evolução psicobiológica o conduziu à difícil e angustiante posição de um ser consciente de sua finitude.
Condenados pela biologia à incompletude e à dependência – que criatura frágil e dolorosamente incompleta é esta que sai do ventre da mãe, e que precisa ser amamentada e cuidada com esmero por um tempo muito mais amplo do que recém-nascidos de outras espécies, que já “se viram sozinhos” desde muito mais cedo! -, os seres humanos estariam predispostos à credulidade.
Porém, através da história, esta credulidade passará por imensas mutações de acordo com fatores variáveis como cultura, etnia, estado da tecnologia na sociedade. Normalmente não pensamos no quanto uma discussão sobre técnica pode elucidar nossas controvérsias sobre teologia. E é nisso que a obra de Débray chega para provar, com um brilhantismo que emana de suas páginas em jato contínuo, que não é possível compreender as religiões sem atentar para os meios de transmissão das mesmas.
Não é possível compreender a Reforma Protestante inaugurada por Lutero desvinculada da invenção da imprensa de Gutenberg, assim como não é possível compreender a constituição do cristianismo sem o trabalho de difusão da boa nova realizado por figuras como Paulo, o marketeiro de Cristo. O que nos obriga a concluir que Jesus de Nazaré jamais fundou o cristianismo e que foi apenas séculos após a morte de Jesus que a instituição que agia em seu nome pôde de fato inventar o cristianismo sobre o legado de um judeu dissidente, executado na cruz, e que nunca foi cristão.
“A Dúvida de Tomé”, 1599, de Caravaggio
“Não foi São Tomé, mas São Paulo – o qual não chegou a ver ou ouvir Jesus de Nazaré – que tornou transportável a fé no Cristo. Esse ‘contágio’ operou-se à distância, historicamente e geograficamente, de seu ‘ponto de origem’, por vias não genéticas e não familiares, sem efeito de multidão nem sugestão sonambúlica, sem que os convertidos tivessem sido hipnotizados. Eis a razão pela qual essa propagação teve necessidade, precisamente, de uma instituição, a Igreja, e de determinado conjunto de técnicas de inculcação (a evangelização).” – DÉBRAY, Transmitir – O Segredo e a Força das Idéias (Ed. Vozes, RJ: Petrópolis: 2000, p. 137)
O que Débray ensina é que a difusão de uma doutrina – no caso, a dogmática cristã – só pode ser corretamente compreendida se atentarmos para as técnicas de difusão, dependentes dos meios tecnológicos disponíveis em determinada época e lugar. De modo que o cristianismo não teria sido o que foi, isto é, um caso de bem-sucedida epidemia simbólica de disseminação global, caso e os evangelizadores não tivessem sabido se aproveitar das tecnologias de comunicação e de transporte que tinham às mãos em seu tempo histórico e território geográfico:
“Que o grandioso nascimento do Deus único não rejeite, em nota acessória, a itinerância em meio desértico e o grande nomadismo pastoral que forçaram a inventar uma coisa diferente do altar de mármore em seu perímetro citadino, uma coisa diferente dos deuses do lar intransportáveis, a saber: um Deus móbil e amovível!” (Débray, Transmitir, p. 153)
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PARTE 2: TALVEZ DEUS NÃO EXISTA, MAS SEUS FÃ-CLUBES EXISTEM COM CERTEZA
É claro que poderíamos discutir até o fim dos tempos se Deus (o Criador da Natureza, causa de si mesmo, Pai que não tem pai…) existe ou não. Eis uma questão das mais polêmicas já formuladas pelo ser humano, o único animal que se pergunta e que se angustia.
Porém, ainda que muitos possam negar a existência de Deus, poucos ateus ou agnósticos seriam capazes de negar a presença da crença religiosa através da história humana, o que nos leva a uma discussão que se desvia da teologia e abraça a antropologia, como o velho Ludwig Feuerbach já propunha: o ser humano é naturalmente crédulo? É inimaginável um tempo histórico vindouro onde vivesse uma humanidade completamente desprovida de fé?
Em outros termos: ainda que Deus não exista, nem nunca tenha existido, não existirão sempre os crentes? Ainda que os céus estejam vazios do divino, não seguirão os humanos dirigindo às nuvens e às estrelas as suas preces?
A história das controvérsias sobre a existência ou não de Deus, ou seja, as controvérsias infindáveis sobre a natureza do Ser Supremo, dão pano pra manga a intermináveis conversas de boteco, simpósios acadêmicos e guerras sangrentas. Milhares de histórias poderiam ser contadas sobre os conflitos de religião, desde querelas meramente verbais e intelectuais às chacinas e massacres sectários. Das tretas escolásticas opondo os fiéis de Tomás de Aquino aos adeptos da Reforma de Lutero, às Noites de São Bartolomeu e às fogueiras da “Santa” Inquisição.
Outra pergunta, no entanto, tem me fascinado e me forçado a mobilizar minhas limitadas forças intelectuais e sensíveis para decifrá-la: se Deus não existe, se nunca houve uma divindade que fabricou a Natureza (e tudo que ela contêm) a partir de sua potência criadora, se a crença nesta entidade não passa de um calmante psíquico inventado pelo único organismo vivo que se sabe mortal, como é possível que a religião, como mero ópio mental, possa determinar em tão larga medida a história concreta dos povos? É esta questão que a midialogia pode nos ajudar a elucidar.
Quando Marx, em sua célebre formulação, afirmou que a religião é o ópio do povo, talvez não estivesse inconsciente do quanto o ópio foi uma mercadoria de suma importância, muito demandada e ofertada no mercado, a despeito de quaisquer leis proibicionistas.
Se a fórmula de Marx é verdadeira, aconteceria com a religião o mesmo que ocorre com os opiáceos: se tentássemos proibi-la, ela se vingaria de nosso tolo ímpeto proibicionista e se faria uma mercadoria clandestina, amplamente comprada e vendida nos supermercados das ideias, valores e pertenças que são as religiões instituídas.
Ademais, precisamos compreender a fundo os meios de comunicação e mobilização que as religiões instituídas detêm, e que vem sendo há milênios amplamente utilizados para pôr em circulação esse sagrado ópio.
Em seu artigo “Marxismo e Religião: O Ópio do Povo” (presente no livro Centelhas), Michael Löwy chama a atenção para o fato de que a luta de classes se aplica também ao campo religioso e que não é à toa que certos grupos sociais filiem-se à Opus Dei, alguns outros encham os mega-templos da Igreja Universal do Reino de Deus, enquanto outros se digam fiéis da Teologia da Libertação, todos eles declarando-se igualmente cristãos, a despeito das imensas diferenças de comportamento que implicam estas diversas pertenças.
Deveríamos, portanto, estabelecer uma diferenciação entre vários tipos de ópio religioso? Poderíamos, além disso, julgar esses ópios não apenas a partir de seus efeitos analgésicos, mas pela veracidade da experiência vivida que eles implicam para seus usuários?
“Partidários e adversários do marxismo parecem concordar num ponto: a célebre frase ‘a religião é o ópio do povo’ representa a quintessência da concepção marxista sobre o fenômeno religioso. Ora, essa afirmação não tem nada de especificamente marxista. Podemos encontrá-la com poucas diferenças, antes de Marx, em Immanuel Kant, J. G. Herder, Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer, Moses Hess, Heinrich Heine e muitos outros.
Heine já a usava de uma maneira positiva, embora irônica: ‘Bendita seja a religião que derrama no amargo cálice da sofredora espécie humana algumas doces e soníferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, esperança e crença.’ Moses Hess, em ensaios publicados na Suíça em 1843, adota posição mais crítica: ‘A religião pode tornar suportável a infeliz consciência da servidão da mesma forma que o ópio é de boa ajuda nas doenças dolorosas.’
(…) A expressão apareceu pouco depois na introdução de Marx para ‘Crítica da Filosofia do Direito de Hegel’ (1844), onde Marx diz que a religião é dual: expressão da miséria real e protesto contra ela. Ora legitimação da sociedade existente, ora protesto contra ela.” (LÖWY, Centelhas, p. 34)
Parece-me evidente – e creio que ateus e agnósticos não discordariam – o quanto vivemos hoje em um mundo radicalmente moldado pelas religiões, a despeito do avanço de uma restrita maré de secularização / laicidade.
Os povos não parecem nem um pouco a fim de renunciar ao seu cômodo ópio espiritual, remédio que não se encontra nas farmácias e que visa amainar a fúria dos sentimentos de angústia e finitude que experimentam os seres humanos, esses animais mortais que sabem que vão morrer (feito inédito na história dos corpos vivos conscientes).
A sociedade em que vive o ateu fornece-lhe inúmeras provas de que sua negação da existência concreta do ente venerado sob o nome de Deus, seu a-teísmo enquanto tese sobre a realidade cósmica, não permite ao ateu negar que as ilusões são fecundas em consequências.
Tanto que Sigmund Freud não chamou seu livro de O Passado de Uma Ilusão… Ou seja, não fez uma arqueologia da fé morta e posta sob autópsia, mas sim falou sobre O Futuro de Uma Ilusão. O ópio da fé, por mais mentiroso que seja, terá ainda um longo porvir. Freud explica: isso se dá porque a força da fé não está em sua verdade, mas nos desejos humanos que ela visa satisfazer. Não há sinal de vitória final, de triunfo total, das Luzes sobre as Trevas. Os iluministas estão sempre sendo obrigados a testemunhar as re-ascensões do obscurantismo.
É só pensar que, por mais ateu que eu seja, não escapo de viver numa sociedade em que todos estão em consenso sobre contar o tempo a partir de um certo sujeito nascido em Nazaré, na Galiléia, há cerca de 2018 anos atrás. Por mais agnóstico roxo que você seja, não há como evitar que no dia 25 de Dezembro seja feriado. Nem que haja diferenças significativas na vida social organizada em épocas do ano em que tudo se transmuta: o labor comum é paralisado, ações rituais de massa ocorrem, quando o Calendário aponta dia de Páscoa, Sexta Feira da Paixão… Quem explicou isso brilhantemente foi Maurice Halbwachs (1877 – 1945), filósofo da Memória Coletiva, autor de Les Cadres Sociaux de la Mémoire.
Por mais descrente que o sujeito seja, ele não pode negar tampouco o quanto a religião tem força de mobilização, convocando como ímãs os fiéis para encherem os templos da Universal, peregrinarem a Meca ou ao Vaticano, participarem de imensas procissões hindus na Índia, ou incorporarem em mil terreiros o poderio ancestral dos orixás…
O animal que pergunta e que sabe que irá morrer é também o único bicho religioso. Ao menos é o que indica a experiência empírica, através da História, que nunca ofereceu ao biólogo ou zoólogo o espetáculo de orangotangos que construíssem igrejas ou de cachorros que ficassem de joelhos rezando sob um crucifixo.
Por mais ateus que sejamos, não é possível decretar, no íntimo da subjetividade, que o conceito de Deus é apenas um fantasma vazio, uma ilusão que perdura nas mentes ingênuas, um ópio a que se apega o vulgo para suportar as agruras da existência, não tendo as religiões nenhuma importância objetiva. Isso equivaleria a ser cego àquilo que temos diante de nossos olhos: o resultado de uma História onde as ideologias religiosas estiveram diretamente envolvidas com o tecer coletivo do mundo que compartilhamos.
Pois as religiões, se é óbvio que nos separam, também nos unem. A própria etimologia o sugere, pois religião vem de re-ligare, e não são poucas as pessoas que tem uma religião por causa da vontade de pertença a uma comunidade, o que sugere que quando comungamos da mesma religião, ela opera no espaço entre nós um trabalho de religação, criando a coesão que dá coerência a uma seita e a distingue de outras.
“Trânsfugas da zoologia que somos, animais políticos, nós teríamos interesse em observar de perto como se engendra um lar durável de pertença”, escreve Débray. “O nascimento de uma Igreja é, a esse respeito, uma lição de coisas, um fenômeno a ser perscrutado como um arquétipo numa dinâmica de grupos.” (p. 233)
Ou seja, a chave de compreensão das religiões pode estar numa análise de psicologia social, ou de sociologia psíquica, que enxergasse nas massas unidas pela argamassa religiosa um fenômeno de identificação do sujeito com o coletivo que representa uma força concreta na história.
Há nisso um risco, um perigo, que permanentemente nos assola: a identificação excessiva com um grupo X, por parte de Fulano, pode transformar os grupos Z e Y em entidades malévolas aos olhos deste Fulano. Sendo Z uma comunidade religiosa que discorda de todos os dogmas de X, e sendo Y uma comunidade de pessoas que se dizem liberadas da religião, Fulano tem grandes chances de transformar-se num sanguinário militante da causa X, que pegará em armas em santa Cruzada para limpar o mundo dessas impurezas que são os crentes em Z e os descrentes de Y.
Deus pode até não existir, mas os diferentes fãs-clubes de diferentes deuses existem com certeza. Deus pode até ser o nome da mais bela mentira que teimamos em inventar para remédio de nossas insônias e agonias, mas os exércitos de Deus decerto existem, e seu entrechoque nos campos de batalha já forneceu aos vermes da terra um farto alimento de cadáveres de seres humanos mortos precocemente. Ainda somos a todo tempo lembrados do quanto o solo deste planeta já foi banhado com o sangue dos mártires.
Isso coloca a necessidade, mesmo para o filósofo ou o sociólogo que se comprometem com a causa do ateísmo e da laicidade, de um esforço de compreensão de como se mesclam o Homo Religiosus e o Homo Politicus. Desde pelo menos Spinoza e seu fulgurante Tratado Teológico-Político, aprendemos a não separar em territórios estanques o que é da teologia e o que é da política. Podemos sem dúvida criticar a fé em milagres ou a subserviência a um deus de mentirinha como “asilos da ignorância”, mas o mundo social é indelevelmente transformado e transtornado por ações humanas conectadas a ideias, práticas, valores e ritos de natureza teológica.
A distinção entre sagrado e profano, analisada com maestria por Mircea Eliade, é uma chave importante para sondarmos de que modo as religiões se metem a fazer política. Sacralizar um certo espaço significa tomar as medidas cabíveis para que a sujeira comum do mundo profano não penetre naquela área santificada. A noção de santo está conectada à de uma pureza, àquilo que não se mistura com o que é baixo, sujo e vil.
“A etimologia da palavra o estipula: é ‘santo’ o que foi posto à parte, separado do profano e do impuro. Não haveria, na noção mesma de sacralidade, um fermento de apartheid?” (DEBRAY, Régis. Deus – Um Itinerário. Cia das Letras, p. 106)
Apartheid vem do termo inglês apart. As religiões, se unem certos grupos através do cimento invisível de uma fé comum, inegavelmente também acarretam divisões radicais entre seitas de crentes, tendo como frutos amargos estas instituições bastante concretas de apartação. Os muros do apartheid são com frequência construídos com o combustível psíquico de crenças religiosas motivadoras dos indivíduos que, constituídos em grupos, por razões de fé, tornam-se xenófobos e racistas, ou seja, odiadores da diferença.
Não é novidade para ninguém que a Nação que faz imprimir em suas cédulas o In God We Trust desejaria que a economia global caísse inteira de joelhos diante da supremacia dos U.S.A., a ponto de até nos reinos de Alá ou nas regiões onde quem diviniza-se Mao Tsé-Tung ou Ho Chi Minh, tudo se curve ao poderio do Deus Dólar…
Débray nos lembra, bem a propósito, que “na Guerra Fria, o Senado dos EUA integrou o ‘One Nation Under God’ ao ‘Pledge of Allegiance‘; o banco federal, pouco depois, emitiu dólares com o famoso ‘In God We Trust’.” (p. 166) Mesmo na nação que alguns insistem em idolatrar como Primeiro Mundo, como Paradigma de Modernidade, o obscurantismo religioso e os genocídios motivos pela fé são moeda corrente.
A as chacinas de George W. Bush e sua corja, perpetradas no Oriente Médio, na Guerra Contra o Terror que visava destruir o diabólico “Axis of Evil”, não nos deixam mentir. Posando de Cidadãos-de-Bem, em Missão Sagrada de Intervenção, os EUA conseguiram cometer alguns dos piores crimes contra a humanidade do século 21 (como está vastamente argumentado nos livros políticos de Arundhati Roy). Longe de serem os Bons, os Justos, os Salvadores, os que encabeçam o militarismo imperialista Yankee não podem ser descritos como aqueles que vão nos livrar do Estado Islâmico, são ao contrário co-responsáveis por seu surgimento, pois esta é uma treta de fanáticos, um clash de obscurantismos.
Esse recorrente “retorno do religioso”, apesar dos Iluminismos, faz da crença em Deus uma espécie de perpétuo bumerangue: quando parece que distanciou-se, volta voando em nossa direção. É esse um dos temas discutidos pelo brilhante Daniel Bensaïd em Os Irredutíveis:
“As novas místicas reagem às formas modernas de desolação social e moral do mundo, assim como às incertezas sobre a maneira de habitar politicamente um mundo em convulsão. Não são, como se ouve muito frequentemente, ‘velhos demônios’ que voltam, mas demônios perfeitamente contemporâneos, nossos demônios inéditos, nascidos das núpcias bárbaras entre o mercado e a técnica.
Quando a política está em baixa, os deuses estão em alta. Quando o profano recua, o sagrado tem sua revanche. Quando a história se arrasta, a Eternidade levanta vôo. Quando não se querem mais povos e classes, restam tribos, etnias, massas e maltas anômicas. No entanto, seria errôneo acreditar que essa volta da chama religiosa seria particularidade dos bárbaros acampados sob as muralhas do Império. O discurso dos dominantes não é menos teológico, como mostra o revival de seitas de todos os gêneros nos próprios Estados Unidos.
Quando George Bush, no dia seguinte ao 11 de Setembro de 2001, falou de Cruzada contra o Terrorismo, não se tratava de um lapso infeliz. Quando se pretende conduzir não mais uma guerra de interesses contra um inimigo com o qual será preciso acabar negociando, mas uma guerra do Bem absoluto contra o Mal absoluto (com o qual se diz que não se pode negociar), trata-se de uma guerra santa, de religião ou de ‘civilização’. E quando o adversário é apresentado como uma encarnação de Satã, não é de espantar que ele seja desumanizado e bestializado, como em Guantánamo ou em Abu Ghraib.” (BENSAÏD, p. 15)
“Judas Iscariotes se enforca”, um detalhe do afresco sobre o Juízo Final, de Giotto, na Capella degli Scrovegni, em Pádua, Itália.
BIBLIOGRAFIA
BENSAÏD, Daniel. Os Irredutíveis – Teoremas da Resistência Para O Tempo Presente. Boitempo, 2017.
DÉBRAY, Régis. Deus – Um Itinerário. Cia das Letras, 2004.
Jamais teremos uma relação apropriada com o processo histórico se não agirmos simultaneamente como “construtores do futuro e intérpretes do passado”, escreve Nietzsche na Segunda Consideração Extemporânea [1]. E eu adicionaria: jamais conheceremos o passado adequadamente se não atentarmos para a voz dos vencidos. Temos que aprender a ler a sina multiforme dos derrotados. O fato de Rosa Luxemburgo ter sido assassinada não significa que ela não estivesse certa, e errados os seus algozes. Como bem disse Daniel Bensaïd: “a sua derrota não prova que os vencidos não tivessem razão.” [2]
É um pouco por aí que transita também o Darcy Ribeiro naquela sua célebre auto-celebração, em que classifica-se como fracasso em tudo: um ser humano integrante dos vasto rol dos “derrotados”:
Se não ouvirmos a voz dos vencidos, nosso relato histórico terá a falsidade de todas as lorotas contadas pelos vencedores, de todas as falácias espalhadas pelos que triunfaram sobre o cadáver dos assassinados, sobre o silêncio dos amordaçados, sobre os gritos dos torturados.
Sendo os papagaios da História Oficial, ou seja, acreditando que existe apenas o Tempo dos Vencedores, perdemos o essencial: aquilo que no passado é semente ainda não desabrochada. Paulo Freire se referia a si mesmo como “andarilho da utopia”, em permanente busca de partejar “inéditos viáveis”: aquilo que nunca houve, mas pode perfeitamente vir a ser. Aquilo que não é impossível, mas realizável, desde que o ser humano saiba agir coletivamente para construi-lo.
O inédito viável – aquilo que o Fórum Social Mundial chama em seu slogan de “Um Outro Mundo Possível” – não pode prescindir de um estudo interessado da História. Pois a possibilidade de construção deste alter-mundo, desta outra realidade de que nos fala o altermundialismo, tem que estar também no nosso trato com o passado, ou seja, é necessário instituir um pacto com os vencidos, o que não significa nunca que estaremos resignados à derrota. Nosso pacto é com os vencidos por enquanto, e nossa revolta é contra os vencedores desumanizadores, opressos, injustos, fratricidas.
A pista para a construção de uma outra História possível está também nas pegadas daqueles que resistiram “à mecânica nazi e à engrenagem staliniana” (Bensaïd, op cit, p. 210), os que se recusaram a obedecer os ditames de Pinochets, Francos e Médicis… Os que tombaram defendendo a liberdade, os que foram assassinados pregando a paz (que emblema mais forte do que Gandhi, ou John Lennon?), os que perderam a vida sob balas assassinas ou amarguraram cárceres duros impostos por ditaduras, tiranias, governos ilegítimos, golpes de Estado (Mandela, Pepe Mujica, Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva, sendo apenas alguns dos exemplos mais recentes).
Patricio Guzman, Cineasta Chileno, no Centro Cultural Gabriela Mistral. Foto: Reinaldo Ubilla.
E o cinema-do-real: é capaz de ser uma janela para esta audição atenta das vozes pretéritas? Assistir a filmes documentais pode nos elevar a consciência acima de seu nível comum de compreensão histórica? Estou convicto que sim, e uma das obras que é mais intensamente responsável por essa aposta num aprendizado do passado propiciado pelo cinema é aquela do cineasta chileno Patricio Guzmán.
Nostalgia Pela Luz, parece-me, é um dos mais importantes documentários latino-americanos realizados no continente após o colapso das ditaduras militares – e só tem equivalente à altura, na filmografia brasileira, em obras como Memória Para Uso Diário e Orestes. Guzmán é o responsável pelo épico documental A Batalha do Chile, além de tratados fílmicos sobre Salvador Allende e Augusto Pinochet, e é amplamente reconhecido como figura pública de percepção relevante sobre a história de nosso continente,ao pesquisar e questionar a fundo as ocorrências e os resquícios da Ditadura em seu país. No Brasil, o grande Silvio Tendler vem realizando uma magistral obra também deste teor.
O cinema chileno, nestes últimos anos, tem realizado com admirável maestria um resgate histórico pelo viés dos vencidos: em excelentes filmes como Dawson – Ilha 10 (click e leia a resenha em Cinephilia Compulsiva)e Colônia – Amor e Revolução (Florian Gallenberger, 2015),pudemos conhecer em todo seu horror os campos de concentração pinochetistas, desde o enclave germano-fascista que foi a “Colônia Dignidade” ao presídio onde foram enjaulados, após 11 de Setembro de 1973, os principais líderes da União Popular.
Já em No (um filme de Pablo Larraín, 2012),tivemos um pujante retrato, baseado em história de Antonio Skármeta, do plebiscito popular que tentou enterrar a Era Pinochet com um “Não!” em 1988.
Neste contexto é que refulge Nostalgia pela Luz. Guzmán nos leva para uma temporada de reflexão profunda no Deserto do Atacama. O Atacama, no Chile, é o melhor observatório de estrelas da Terra. Telescópios formidáveis estão ali instalados, perscrutando os céus. São janelas abertas para o cosmos. Buracos-de-fechadura por onde os terráqueos espiam os mistérios celestes.
No Atacama têm-se acesso também a um Portal para o Passado. Enquanto os astrônomos tentam responder aos insondáveis enigmas sobre as Origens do Universo – como e quando surgiram as estrelas, os planetas, as galáxias… – os arqueólogos debruçam-se sobre os desenhos sobre as pedras, ali incrustados mais de 1.000 anos atrás pelas tribos nômades pré-colombianas que ousavam atravessar aquela imensidão de secura.
Olhando a Terra do espaço, podemos notar que aquele território na América do Sul se distingue pelo teor amarronzado, contrastante com a vastidão azul dos oceanos: o Atacama, visto lá de cima, é um deserto que impressionaria o OVNI alienígena por sua extensão. Quase sem umidade em sua atmosfera, com firmamento livre de qualquer nuvem, o Atacama fornece aos olhares humanos uma das melhores oportunidades para espiar o carrossel das constelações. A transparência do éter faz com que não haja obstáculos entre as estrelas e as retinas.
Estima-se que cerca de 30.000 chilenos tenham sido torturados durante o truculento governo que tomou conta do país a partir do golpe de estado de 11 de Setembro de 1973, quando o governo de pendores socialistas de Salvador Allende foi derrubado na base da força bruta, com o devido auxílio dos EUA.
Até hoje viúvas enlutadas vagam pelo deserto a procura dos ossos e crânios dos seus parentes, assassinados pelos militares por serem opositores políticos. Mulheres traumatizadas, de olhos molhados, incapazes de esquecer da ausência dos que amaram, querendo vencer o poder do olvido e erguer um monumento em nome da memória.
Nostalgia Pela Luz, o brilhante documentário de Patrício Guzmán, consegue transitar por todas estas áreas do conhecimento humano – a astronomia, a arqueologia e a história – guiado pelo mistério das estrelas e da memória. Estes mistérios estão conectados: sempre que nossos cérebros formam uma imagem mental de uma estrela, sempre que nossos olhos entram em contato com a luz provinda de uma, estamos diante da paradoxal presença do passado.
Os 8 minutos que os raios do Sol demoram em sua jornada até a Terra, mesmo sendo velocípedes feito um Papa-léguas (300.000 mil quilômetros por segundo é uma velô de deixar qualquer Schumacher humilhado!), provam-nos algo fascinante: o que vemos no céu são emanações de distantes rincões do Universo que talvez não existam mais. Emanações não somente das lonjuras, mas das próprias entranhas do passado. Qualquer estrela que produziu aquela luzinha vaga-lumeante nos céus pode estar morta há muito tempo; mas não suas luminosas reverberações.
Está aí a conexão entre estes dois pesquisadores aparentemente tão diferentes, o astrônomo e o arqueólogo: ambos lidam com o passado e tentam interpretá-lo de modo a esclarecer o mistério das origens – seja da raça humana, seja do planeta, da galáxia e do universo que nos abriga.
O Gênese bíblico, para estes audazes perscrutadores do firmamento e da poeira terrestre, já foi descartado como a superstição anti-científica que é; o Big Bang é o verdadeiro mistério a decifrar. Carl Sagan, em um dos episódios mais acachapantes de Cosmos, sugere que não há nada neste planeta que não tenha sido gerado, centenas de milênios atrás, no útero das estrelas.
Um dos entrevistados pelo documentário de Guzmán, seguindo na trilha saganiana, pede ao espectador que medite sobre o seguinte: de onde saiu o cálcio presente em seus ossos? Ora, a resposta talvez seja esta: o cálcio que todos temos em nossos ossos é provindo das estrelas. “We’re made of starstuff!“, exclamava quase em epifania um sorridente Sagan, nos anos 1980. Pesquisas mais recentes parecem dar razão a ele. Cada vez parece mais absurdo conceber uma separação rígida entre nós e o universo – ele lá, nós aqui, e entre ambos algum abismo intransponível.
Não há esse abismo: há sim uma inegável conexão que nos conecta ao cosmos de modo irrecusável. A matéria que nos constitui é matéria cósmica, lançada pelos ares pela Grande Explosão primeva. Aquilo que somos, devemos às estrelas, sem às quais nunca teríamos surgido nem poderíamos sobreviver.
A imagem grandiosa de um Universo exuberante, repleto de energia, em eterno fluxo sem fim, emerge também deste filme. Uma moça chilena, que teve os pais assassinados pela ditadura Pinochet, conta às câmeras como encontrou na astronomia uma anestesia para suas feridas, um bálsamo para seu luto. Ela foi uma filha que, na primeira infância, perdeu os dois pais para a maquinaria assassina da ditadura, e que depois se sentirá sempre como alguém “com um defeito de fábrica”.
Ela nos diz que passou a enxergar esta traumática perda com um senso de seguir-avante, ao invés de render-se à depressão ou buscar o suicídio. E ela o fez contemplando a corrente cósmica em que a matéria é perenemente reciclável e onde não há nada eterno a não ser o moto-perpétuo em que tudo precisa desfazer-se, mesmo as estrelas, para que o novo possa formar-se.
“The cosmos was originally all hydrogen and helium. Heavier elements were made in red giants and supernovas and then blown off to space, where they were available for subsequent generations of stars and planets. Our sun is probably a third generation star. Except for hydrogen and helium, every atom in the sun and the Earth was synthesed in other stars. The silicon in the rocks, the oxygen in the air, the carbon in our DNA, the gold in our banks, the uranium in our arsenals, were all made thousands of light-years away and billions of years ago. Our planet, our society and we ourselves are built of star stuff…” – CARL SAGAN
Ali, nas imensidões desérticas do Chile, pode-se adentrar um Passado de múltiplas faces, ou melhor, podemos experenciar ontens de várias idades. É essa a grande sacada da obra, esta mescla de História humana e História que transcende o curto período em que nós, humanos, neste rincão cósmico existimos.
Enquanto astrônomos buscam decifrar a luz que, para chegar a nossos telescópios, viajou por alguns milhões de anos, à estonteante velocidade de 300.000 quilômetros por segundo, vagam também pelo território as traumatizadas pessoas que buscam os restos mortais de seus entes queridos que foram “desaparecidos” pela Ditadura Militar instaurada pelo golpe militar de Setembro de 1973.
Cineasta Patricio Guzman, diretor de um dos grandes documentários na história do cinema latino-americano: “A Batalha do Chile” (3 partes)
Para nos maravilhar e nos fazer refletir com a vastidão do tempo pretérito, Guzmán explicita, com imagens de arquivo mas também através das sobrevivências do horror no tempo presente, a brutalidade de um regime que torturou pelo menos 30.000 pessoas (ainda que alguns estimem que esse número possa ser de até 60.000 torturados) e que assassinou milhares de ativistas políticos e artistas.
A câmera documental de Guzmán, talvez inspirada por obras-testemunho como a série Shoah de Claude Lanzmann, vai captar imagens dos campos de concentração do regime Pinochetista. Rodeados por arame-farpado, os presos políticos eram encarcerados, no Atacama, em antigas moradias abandonadas pelos mineiros do salitre que ali penaram, no século 19, em um trabalho de condições análogas à da escravidão.
Guzmán consegue conversar com um idoso que esteve encarcerado nos anos de 1973 e 1974, e ele conta que a observação astronômica das estrelas acima de suas cabeças era uma atividade que lhes permitia conservar sua “liberdade interior” em meio às degradantes condições de vida no campo de concentração. A Ditadura proibiu os detentos de olharem para o céu.
Um dos elementos que faz a imensa importância desse filme está no chamado, ou na convocação, que ele nos lança para que tomemos conhecimento sobre o que já passou, sabendo que o processo humano de desvendar todos os outroras envolve um esforço transdisciplinar. O historiador, que investiga o passado humano recente, difere do arqueólogo, que se debruça sobre um passado mais antigo, por exemplo sobre os resquícios de sociedades pré-colombinas que deixaram pinturas nas pedras.
Já o geólogo, ou o pesquisador de fósseis, quanto mais se aprofundam em suas pesquisas e quanto mais adentram o ventre do planeta, mais descobrem na crosta da Terra os resquícios atuais de um passado terrestre que se afasta milhões de anos atrás de nós.
Porém são os astrônomos aqueles que vencem todos os outros profissionais da memória no quesito “velhice” do passado investigado: através dos mega-telescópios, com seus olhos de vidro, atentos às estrelas visíveis através dos límpidos céus do Atacama, os astrônomos investigam uma luz que pode ter sido emitida há bilhões de anos atrás. Com equipamentos hi-tech e equipes integradas por pessoas de várias nacionalidades, sondam as energias cósmicas em busca de pistas para entender a origem do Universo, as ocorrências do Big Bang, as formidáveis explosões primordiais que, como supõe os astrônomos de hoje em dia, ainda hoje ressoam e repercutem.
O Big Bang, nesta perspectiva, não é um evento que ficou no passado, enterrado, separado de nós para sempre, mas sim o início daquele processo de que somos ainda os contemporâneos. A explosão primeva não passou: ainda podemos ouvir seu estrondo a esparramar-se pelo espaço cósmico, com mais decibéis do que milhões de bandas de rock humanas tocando juntas com os amplificadores todos do planeta Terra com o volume no máximo. Um punk rock pode até ser um estrondo, mas estrondoso mesmo é o cosmos.
E, no entanto, uma certa melancolia tinge o filme de Guzmán – que aqui realiza uma práxis documentarística de clima afetivo bem próximo ao desalento lúcido de Werner Herzog. É que Guzmán sente que o Chile não está realizando o trabalho que devia de resgatar devidamente o seu passado. Em especial no aspecto histórico, há a vigência de uma certo ocultamento dos horrores vinculados ao golpe de Estado que derrubou a União Popular, encabeçada entre 1970 e 1973 por Salvador Allende.
Todas as violações dos direitos humanos, todo o terrorismo de Estado, ficou abafado debaixo de uma pilha de negacionismos e de recusas ao conhecimento. Guzmán acusa o Chile de querer virar seu rosto somente na direção do futuro, deixando de prestar atenção ao passado recente e sua procissão terrível de ossadas desaparecidas.
Nesse contexto, as mulheres que vagam pelo Atacama, em busca dos ossos daqueles que desapareceram na era ditatorial, não podem ser simplesmente varridas do quadro sócio-político como se não passassem de casos psicopatológicos, gente ressentida que não sabe enterrar o passado e seguir em frente. Essas mulheres representam uma práxis de resgate da memória que tem seu principal motor nos traumas sofridos e nunca esquecidos.
Pois a sociedade chilena, assim como a brasileira, infelizmente oferece oportunidades demais para uma re-traumatização dos sujeitos outrora traumatizados. Por exemplo: o trauma novo de encontrar, caminhando pelas ruas, livre e solto, completamente impune, um general que, nos tempos de Pinochet, “trabalhava” como torturador e assassino de escritório. O que re-traumatiza é a impunidade daqueles que, para lembrar a apropriadíssima expressão de Hannah Arendt, realizaram e realizam os “massacres administrativos”.
“Diante dos seus juízes, Eichmann confessa-se vencido. É um facto. Mas não culpado: como bom nazi, supõe que o dever de obediência o descarta de qualquer responsabilidade. Não que ele não tivesse consciência, precisa Hannah Arendt, mas porque a ‘sua consciência lhe falava com uma voz respeitável, a voz da sociedade respeitável que o envolvia. Obedecia às ordens como cidadão respeitoso da lei. A questão terrível está mesmo aí: os nazis ter-se-iam sentido culpados se tivessem ganho?’ [4] Ninguém em Jerusalém, sublinha Arendt, teve ocasião de pôr a questão aos dignitários judeus: por que é que haveis colaborado na exterminação do vosso próprio povo? ‘Por que a lição destas histórias é simples, ao alcance de todos: é que a maioria das pessoas inclina-se diante do terror, mas alguns não se inclinam… Humanamente falando, não é preciso mais, e não se pode pedir razoavelmente mais para que eles planeta permaneça habitável.” [5]
Instigado por Guzmán a fazer uma comparação entre o trabalho de astrônomos e das mulheres que buscam seus parentes desaparecidos, um dos cientistas entrevistados em Nostalgia Da Luz diz que os casos são incomparáveis, e isto pela intensidade dos afetos de tormento que dominam os sujeitos traumatizados pela perda. Segundo ele, os astrônomos podem passar os seus dias de trabalho observando o passado, ou seja, a luz das estrelas, e depois podem ir para a cama e dormir tranquilos; já as mulheres que buscam os restos mortais daqueles que perderam estão muito mais na condição trágica de Sísifos, fazendo um trabalho inglório, em que a ânsia de aclaramento do passado não se satisfaz e, após os trabalhos fatigantes e mau-sucedidos, nenhum sono tranquilo e sereno as espera.
O que espera aos sobreviventes de prisioneiros políticos, assassinados e desaparecidos aos milhares nos 17 anos de ditadura, é muito mais o pesadelo continuado de um presente em que, ao redor, forças funestas desejam barrar o acesso ao passado, recusando a entrada de uma luz curativa, um dos temas também do excelente livro Relampejos do Passado, de Amanda Brandão Ribeiro (Ed. Unifesp, 2017).
Guzmán vai atrás das histórias específicas dos parentes de desaparecidos políticos. Entrevista a irmã de Jose Saavedra Gonzalez, assassinado com dois tiros na cabeça. A irmã encontrou apenas fragmentos de ossos, pedaços de crânio, peças esparsas de um quebra-cabeças que nunca será montado em sua inteireza.
Estas mulheres, com lágrimas nos olhos, cabelos bracos na cabeça, que caçam os ossos pelo deserto, talvez sejam um símbolo emblemático da tragédia da América Latina sob suas ditaduras. Uma das entrevistadas por Guzmán, se questionada se vai seguir em sua busca, responde que, apesar da velhice (ela já passa dos 70 anos de idade), vai continuar sim, ainda que suspeite que os ossos nunca serão encontrados pois podem ter sido lançados ao mar. E ela se dirige ao espectador que porventura esteja perplexo e se perguntando: “Por que essa gente quer ossos?”. Ela re-afirma sua vontade de reencontrar os ossos do ente amado, Mário, pois o sumiço dos ossos é o insuportável, o inaceitável, o inesquecível.
Quando lhe informaram que haviam encontrado uma mandíbula de Mário, ela não se deu por satisfeita e disse que desejava o esqueleto inteiro. Com esta frase de quebrar o coração, ela diz: “Eu o quero inteiro! Eles o levaram inteiro e não o quero de volta aos pedaços. Se eu encontrá-lo hoje e eu morrer amanhã, partirei feliz.” (1h 02 min)
O direito ao luto aparece aqui como tendo que ser somado ao códex dos direitos humanos básicos. Os militares, que sumiram com os oponentes políticos, que ocultaram os cadáveres, que espalharam os ossos por desertos e mares, deveriam ser obrigados a abrir todos os arquivos e colaborar para que os familiares pudessem realizar o enterro digno dos entes amados. Mas obviamente que não é assim: os perpetradores dos crimes, os genocidas de farda, jamais iriam contribuir para amainar o sofrimento dos traumatizados. Cabe a nós a responsabilidade de escrever o Passado sendo dignos a bastante para dar voz aos silenciados.
“No mundo em que vivemos, o problema a ser enfrentado não é mais só o declínio da memória coletiva e o conhecimento cada vez menor do próprio passado; é a violação brutal do que a memória ainda conserva, a distorção deliberada dos testemunhos históricos, a invenção de um passado mítico construído para servir ao poder das trevas. Somente o historiador, com sua rigorosa paixão pelos fatos, pelas provas e pelos testemunhos, pode realmente montar a defesa contra os agentes do olvido, contra os que reduzem documentos a farrapos, contra os assassinos da memória e os revisores das enciclopédias, contra os conspiradores do silêncio.” [6]
A importância crucial da arte de Guzmán está em buscar convencer todo um país a exumar os ossos do passado, pô-los na mesa, na tentativa de, ao olhar de frente o terror, inventar um futuro menos sórdido. Para aprender como se faz um futuro melhor não há escapatória: é preciso fazer o aprendizado com os ossos. E os ossos são feitos do mesmo cálcio que pulsa nas estrelas cuja luz os telescópios capturam.
A “impressão digital de uma estrela”, explica-nos o cientista George Preston, registrada nos computadores da estação astronômica do Atacama, dá-se através do cálcio – impressão digital de ossos e estrelas! Como Carl Sagan já ensinava em Cosmos, nós somos feitos de poeira estelar, o que Preston re-afirma: “Uma parte do cálcio dos meus ossos foi formada um pouco depois do Big Bang. Nós vivemos entre árvores, mas também vivemos entre estrelas e galáxias: somos parte do Universo e o cálcio dos meus ossos estava lá desde o início.”
A “sacada” brilhante que faz de Nostalgia Da Luz um marco na história do cinema está nos vínculos que ele estabelece entre o Céu e a Terra: ele é capaz de enxergar o que une as mulheres que vagam pelo deserto em busca de ossos com os astrônomos munidos de telescópicos que sondam os corpos celestes. Nos dois casos, vai-se em busca de um conhecimento sobre o passado, ainda que em um caso seja o passado recente e traumático, e em outro caso o passado distante e cósmico. Ao invés de reduzir os ossos dos mortos durante a ditadura a uma espécie de matéria morta e insignificante, o filme-ensaio de Guzmán nos convida a pensar em um fragmento de osso como algo que está conectado a todo o Cosmos.
Poderíamos dizer que eles podem até ter arrancado as mãos de Victor Jara, para que ele nunca mais tocasse violão, antes de finalmente assassiná-lo, logo após o golpe de 11 de Setembro de 1973; mas esta mão decepada, estes ossos que estiveram presentes no organismo senciente de Jara, conecta-o às estrelas – e ao nosso céu, o dos sobreviventes. E não há nenhum preço que vocês possam pagar para comprar nosso esquecimento (seguiremos cantando as músicas de Jara mesmo depois de vocês terem fechado sua boca para sempre com balas). Pois nos recusamos ao olvido e não está à venda a possibilidade de simplesmente passarmos a borracha nestas páginas de nossa história.
Os que Eles, os vencedores (por enquanto…), não querem que lembremos, eis o que temos o dever se recuperar do olvido e transmitir através das gerações, para que vivam os destinos precocemente abreviados pelas brutalidades dos que triunfaram. Eis justamente com quem deve estar nosso Pacto de Verdade: com os que suaram e sangraram em prol da transformação deste mundo em algo diferente de um hospício esférico. Temos que pesquisar e falar sobre os ontens tendo em mente todos os tombados, todos os anônimos, todos os escravizados, todos os desvalidos, todos os roubados de sua dignidade e de seu direito à boa vida.
Triunfar pela força não é nenhum certificado de superioridade moral, muito pelo contrário: o apelo à força bruta, a convocação da violência para defender o seu interesse particular, é evidência de que a ideologia ou a causa política não possuem a seu lado a força dos argumentos racionais ou da retórica convincente, que dobra pelo verbo persuasivo o entendimento do outro, convencendo-o a aquiescer à razão mais forte.
Quem solta os cachorros furiosos sobre os outros, ou chama o pelotão de fuzilamento ou a fogueira para hereges, manifesta assim não sabe ter a delicadeza de expor uma cadeia de pensamento bem articulada. Prefere lançar o oponente aos dentes das feras. Ou à crueldade impiedosa das chamas.
O cadáver de Che Guevara na Bolívia não é “prova” de que o médico-guerrilheiro argentino estivesse na desrazão e no erro, mas evidencia sim a crueldade impiedosa de seus executores. A mando, é claro, do imperialismo yankee e seu séquito de horrores triunfais – que o povo do Vietnã, e do Afeganistão, e do Brasil (etc.), tão dolorosamente conheceram e conhecem.
Perder nunca é definitivo, toda vitória é precária: os vencidos de outrora podem ser os vencedores, outra hora. De Heráclito a Bob Dylan, alertam filósofos e artistas que tudo flui e os dados ainda estão rolando. The times they are a-changin.
Por isso, defendamos uma História que se conte sem que o sujeito contador se pretenda neutro, objetivo, sem partido. Ninguém aqui está defendendo a miopia do sectarismo, pelo contrário: queremos diálogo amplo com o pluralismo histórico, com tudo que no palco da História está em debate e em conflito, mas não aceitamos que sejam caladas, hoje, as vozes dos que foram obrigados, em tempos idos, a engolir o amargo cálice do sumiço.
Não há respeito possível ao trabalho de um historiador das Ditaduras latino-americanas que nada nos diga sobre os ossos dos desaparecidos políticos ou sobre os gritos de agonia dos torturados. Temos que ser fiéis àqueles sofrimentos que realmente ocorreram, e expor com sinceridade as atrocidades que, caso não as reconheçamos, podem voltar para nos atacar com novas e atrozes ditaduras novas.
Ouçamos a voz dos vencidos, caso contrário nossa compreensão da História será uma farsa, uma miopia calculada, uma escolha inaceitável pela auto-cegueira. Não enxergar o lado dos esmagados é estar ao lado dos esmagadores. A pior abordagem do passado é aquela que tem fé na História escrita pelos vencedores e nem escuta os que foram calados pela forca, pela fogueira, pelos fuzis, pelos campos de extermínio, pela pobreza planificada, pelos estigmas excludentes e assassinos…
Nas obras de Walter Benjamin, de Mary Wollstonecraft, de Flora Tristán, de Marx e Engels, de Olympe de Gouges, de Arendt, de Camus, de Brecht, dentre tantos outros, pulsam ainda as vidas insurgentes, revoltadas, indignadas, que puseram mãos à obra para a transformação do mundo, e que por esta razão padeceram alguns dos piores horrores, legando porém à posteridade um enriquecido horizonte de possíveis. O que de fato aconteceu em nosso passado não era o único evento possível: havia outras possibilidades, e caso saibamos “abrir uma outra perspectiva sob o passado”, tal qual nos convida a realizar Eleni Varikas, podemos aprender uma imensidão com os pretéritos fracassos:
“O que nos ensinam os fracassos: os fatos, as ações, as ideias, os movimentos, as esperanças que não vingaram? Privilegiando a perspectiva do fracasso em vez da do êxito, e os pontos de vista dos vencidos em detrimento daqueles dos vencedores, essa postura não é unicamente de ordem ética. Não que haja por onde se abster de um posicionamento de ordem ética. Como frisava Hannah Arendt em sua esplêndida resposta a Eric Voegelin, não é possível relatar acontecimentos tais como a extrema miséria das classes populares na época da Revolução Industrial como se eles tivessem acontecido na Lua… A análise do político é indissociável de uma atividade de julgamento ancorada na experiência viva do pesquisador.
A perspectiva do fracasso, ou a da derrota, interessa principalmente por seu potencial heurístico, pela contribuição preciosa que pode trazer ao trabalho árduo da anamnese… A ótica do fracasso nos impele – queira ou não – a nos afastarmos dos caminhos batidos da transmissão, a ‘escovar a história a contrapelo’, como diz Benjamin… Estudar as ‘minorias’ e a ‘marginalidade’ (as mulheres, os escravos, os metecos, as crianças, os estrangeiros) para ‘chegar ao centro’ da Cidade é um desses desvios que esclarecem (…) tensões e contradições da Cidade ocultadas pela ótica da vitória e do sucesso.
Pois certamente há na vitória como que uma propensão ao esquecimento; como se os vencedores fossem espontaneamente levados a crer que eles têm os deuses, a Providência ou, o que dá na mesma, a História do lado deles. Esse esquecimento é, antes de qualquer coisa, o esquecimento da injustiça que garantiu a vitória… o esquecimento da injustiça contra a qual a vitória foi obtida… Interrogar o político do ponto de vista daquilo que é marginal e minoritário é um exercício precioso.” [7] (VARIKAS, p. 72 – 72)
Walter Benjamin talvez o disse melhor do que ninguém em suas imprescindíveis Teses Sobre a História:
“Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são os que chamamos de bens culturais. Todos os bens materiais que o materialista histórico vê têm uma origem que ele não pode contemplar sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima de seus contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que também não fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.” [8]
É este o conceito de História que anima Nostalgia Da Luz e que faz deste filme uma espécie de tratado Benjaminiano, a nos lembrar da relevante lição de que “o dom de despertar no passado as centelhas de esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” [9]
Por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 2018
Originalmente publicado em A Casa de Vidro
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] NIETZSCHE. Segunda Consideração Extemporânea, citado por BENSAÏD, Daniel. Quem é o Juiz?. Ed. Piaget: p. 43.
[2] BENSAÏD, Daniel. Quem é o Juiz? – Para Acabar com o Tribunal da História (1999).Ed. Piaget: p. 207.
[3] ATWOOD, Margareth. Vulgo Grace (Alias Grace). Romance (Ed. Rocco) e Mini-série (CBC).
[4] ARENDT, Hannah. Eichmann à Jerusalem. Paris, Gallimard, 1996, p. 445.
[5] BENSAÏD, op cit, p. 50.
[6] YERUSHALMI, 1990, p. 23-24, citado por ROSSI, Paolo. O Passado, A Memória, O Esquecimento. São Paulo: Unesp, 2010, P. 36.
[7] VARIKAS,Eleni. Pensar O Sexo e o Gênero. Campinas/SP: Unicamp, 2016.
[8] BENJAMIN, Walter. Citado por CHAUÍ, Marilena, em Civilização e Barbárie (organizador: Adauto Novaes). São Paulo, Ed. Cia Das Letras.
[9] BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 11-12.
Há muitos anos, os movimentos sociais de combate ao racismo têm insistido na necessidade de re-significar as imagens difundidas das populações africanas – e de seus descendentes – como intelectualmente inferiores, trazendo elementos que desmistifiquem a presença da população negra em nosso país. Desde 2003, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (art. 26-A), determina que em todo o currículo dos ensinos fundamental e médio brasileiros estejam presentes conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileira, em todos os componentes curriculares incluindo, dessa forma, a Filosofia. Eis, portanto, o momento de pensar a filosofia em/desde outras cores…
O objetivo deste espaço é disponibilizar materiais em língua portuguesa que possam subsidiar pesquisas sobre a filosofia africana e afro-brasileira, assim como auxiliar na tarefa de professoras/es do ensino fundamental e médio em acessar recursos ainda pouco conhecidos em nossa língua. Afirmam-se aqui diversas perspectivas distintas, sem a intenção de preterir nenhum material que fosse encontrado sobre o tema em nossa língua, cuja publicação virtual não fosse impossibilitada em virtude de restrições por direitos autorais.
Alguns destes textos dialogam com outras áreas do conhecimento, como educação, sociologia, antropologia, história, artes, entre outras, atendendo ao aspecto multidisciplinar que muitas vezes permeia o debate filosófico e que, também, auxilia a tarefa docente interdisciplinar. Esperamos que este material sirva para difundir outras imagens sobre as populações africanas e afro-brasileiras, múltiplas, plurais e que não se reduzam ao imaginário inferiorizante tão comum em nosso cotidiano, ainda marcado pelas feridas coloniais.
Ligações para espaços virtuais com pesquisas em outras línguas
Série África (em inglês)
Dezessete livros sobre filosofia africana publicados pelo Conselho para a Pesquisa em Valores e Filosofia, em Washington DC, Estados Unidos, que enfatiza a herança cultural e as mudanças contemporâneas do pensamento africano.
Nova Africa (em espanhol)
Revista do Cetro de Estudos Africanos e Interculturais de Barcelona. Embora a revista não seja especificamente sobre a filosofia africana, diversos artigos sobre este tema podem ser encontrados no periódico.
African Studies Quarterly (em inglês)
Publicação do Centro de Estudos Africanos da Universidade da Flórida. Embora a revista não seja exclusivamente de filosofia africana há diversos artigos sobre o tema e em especial o número 4 do volume 1 de 1998 (http://asq.africa.ufl.edu/files/Vol-1-Issue-4.pdf)
Journal on African Philosophy (em inglês)
Publicação do Africa: Centro de Recursos em Nova Iorque.
É necessário registrar-se gratuitamente no site para baixar os arquivos.
Philosophy in Africa (em inglês e um texto em alemão)
Textos do XX Congresso Mundial de Filosofia, apresentados sobre a filosofia africana em Boston, 1998.
Publicação da Universidade de Boston, através da Plataforma Paideia.
Thought and Practice(em inglês)
Publicação do Departamento de Filosofia e Estudos Religiosos da Universidade de Nairobi, no Quênia.
African Philosophical Bibliography
Extensa listagem bibliográfica organizada por A. J. Smet, do Instituto Superior de Filosofia da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.
Audre Lorde, bell hoolks e Angela Davis são alguns nomes do feminismo negro que, apesar da sua dimensão, são pouco traduzidas no Brasil: apenas um livro hooks foi publicado no país – Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade (Martins Fontes, 2013) – e dois livros de Angela Davis, que começou a ser publicada pela Boitempo no final de 2016. Partindo dessa lacuna, as pesquisadoras Sueli Feliziani e Isabela Sena criaram o projeto Bibliopreta (http://bibliopreta.com.br/), uma plataforma online gratuita que agrega produção acadêmica sobre feminismo negro.
São traduções, artigos, resenhas, dissertações, vídeos e cursos produzidos e coletados pela dupla, e que têm como tema central a interseccionalidade – uma forma de pensar a relação entre gênero, raça e classe na construção das opressões. Entre as traduções estão textos de Davis, hooks e Lorde, além de poemas de Florencer Harper e contos de Alice Walker. As teses, por sua vez, recuperam importantes pensadoras negras brasileiras como Lélia Gonzalez, Thereza Santos e Sueli Carneiro. – Saiba mais
LEIA TAMBÉM:
Folha de S.Paulo – Os ideais mais elevados de Locke, Hume e Kant foram propostos mais de um século antes deles por Zera Yacob, um etíope que viveu numa caverna. O ganês Anton Amo usou noção da filosofia alemã antes de ela ser registrada oficialmente. Autor defende que ambos tenham lugar de destaque em meio aos pensadores iluministas. Leia o artigo.
A impermanência não é um argumento contra a vida, mas é parte essencial de seu esplendor: um tributo a Alan Watts
por Eduardo Carli para A Casa de Vidro
Mescla de poeta beatnik, dotado de linguagem vívida e irreverente, com sábio zen-budista,propagando sabedorias orientais entre os caras-pálidas do Ocidente, Alan Watts é uma daquelas figuras que salvam a figura do “guru” de ser sinônimo de charlatão e mercador de ilusão. Considero, com convicção, Alan Watts como uma figura que nos ensina um bocado sobre esta encrenca que nos foi dada pelo cosmos como tarefa: a arte de viver.
Ele diz que os mitos são imagens que criamos para tentar dar sentido à vida e ao mundo. Estas imagens – humanas, demasiado humanas – podem e devem ser criticadas através do critério de qualquer pensador lúcido: a adaptação do mito, da imagem-de-mundo, àquilo que podemos saber, conhecer, averiguar e concluir sobre a realidade objetiva. Por exemplo: um cristão de boa educação, aberto à busca pela sabedoria, fará muito bem a si mesmo questionando sua imagem mítica de Deus como um pai cósmico, do sexo masculino, com uma barba branca, sentando em um trono de ouro por cima das estrelas.
A crítica de Watts incide sobre a visão do mundo como artefato em que Deus é descrito como artesão. Nas palavras de Watts, este mito propõe “the world as artifact” (o mundo como artefato) e “God as potter with obedient clay” (Deus como artesão que manipula argila obediente). O mito de Adão e Eva propõe Deus como essa figura que fez os primeiros humanos como se manipulasse massinha. Deus como cosmocrata, como figura sobrenatural e transcendente, que nos faz como se estivesse construindo bonecos para uma animação stop-motion feitas com personagens de massinha. Que esta seja a imagem mítica que melhor descreva a emergência do ser humano em certo momento da existência cósmica é algo bastante discutível e contestável.
Watts quer ampliar o nosso cardápio de opções. Quer nos ensinar sobre o que pensaram outros povos, com religiões diferentes destas às quais estamos mais acostumados no continente americano. Quer nos levar para além do confinamento no âmbito da tradição judaico-cristã-islâmica, para além do nosso monoteísmo monótono e esclerosado de ortodoxia. A tradição cristã, para Watts, é puro gambling, ou seja, uma espécie de jogo-da-sorte no campo da fé. Pascal havia visto isto muito bem ao argumentar em prol da fé como uma aposta. O crente cristão aposta que Deus existe pois, caso não exista, pelo menos ele viveu a vida consolado por uma reconfortante ilusão; e caso Deus exista de fato, então ele viveu uma vida na fé que agora será recompensada com inúmeros deleites no Paraíso dos prazeres imorredouros… É uma aposta auto-interesseira, é como um jogo de capitalismo selvagem mas sem moedas, onde o dinheiro que lança-se na mesa do cassino é a própria alma…
Acreditar em Céu e Inferno é visto, desde Epicuro, como uma das piores infelicidades que pode acometer uma mente humana. Uma espécie de vírus mental que só sabe fazer propagar a ilusão perniciosa, o tormento interior, a incapacidade para a ataraxia, a serenidade. Acreditar no Céu também pode ser uma crença atroz: São Tomás de Aquino dizia que os santos no Céu iriam se deleitar ao assistir os malfeitores sendo punidos no Inferno. O cristianismo é uma aposta num Deus vingativo, com requintes de crueldade, que tem no Inferno um campo de concentração cheio de danados que ficam sendo torturados. Ter a presunção de ser o eleito por um Deus assim é um perigoso sintoma de psicopatia!
Watts considera que a filosofia atual perdeu seu sendo de maravilhamento, de espanto. Os ingredientes que falta reinjetar no pensamento, na nossa compreensão de mundo, são o que ele chama de wonder, awe, astonishment. Neste sentido, técnicas como o ioga e a meditação aparecem-lhe não como dogmas ou mandamentos de um cosmocrata mandão, a bossy cosmocrat, mas sim como “técnicas experimentais para a mudança de consciência” cujo alvo é “ajudar seres humanos a se libertarem da alucinação de que cada um de nós é um ego contido dentro de nossa própria pele” (minha tradução apenas razoável para o trecho: “helping human beings to get rid of the hallucination that each one of us is a skin-encapsulated ego.” (p. 75)
A superação da alucinação egocêntrica talvez seja o grande intento da pedagogia de Watts. Lembro das semanas em que eu passava ouvindo, horas e horas por dia, às preleções de Alan Watts, realizadas em seu barco, para alguns seletos ouvintes, reunidas no audiobook Out of Your Mind. Foram palavras que ajudavam aatravessar o outono e o inverno de Toronto com o calor daquelas palavras de sabedoria que me garantiam: meu organismo não está separado do ambiente – pergunte ao frio nos teus ossos em meio a estas snowstorms canadenses! – mas sim é uma parte integrante do mesmo. Organismos e ambientes integram o mesmo processo, e neste há a unidade dos opostos: nunca um vendedor sem um comprador, nunca luz sem sombra, nunca vida sem morte, nem morte sem vida. Nunca yin sem yang. Nunca nirvana sem samsara.
Para Watts, num jardim zen você torna-se novamente ciente de ser parte da natureza; e o mestre zen quer te ensinar o respeito à senciência, que se manifesta às vezes nas formas exteriores mais humildes, na aparição de uma espécie de mendigo esfarrapado que pode ter, por dentro, queimando a chama de uma sophia que olhos preconceituosos não enxergam. What seems a tramp or a wandering idiot can be in fact a sage, an awakened one…
Do Taoísmo Watts acolhe a noção da vida como processo fluido, como fluxo em processo de escoamento eterno. “Man, and the mind of man, is not a separate entity observing the process from outside, but it is involved with all of it.” É o Oriente unindo mãos, para uma ciranda, com o Ocidente em uma de suas manifestações culturais mais impressionantes: a Grécia dos pré-socráticos, em especial em Heráclito, inventor da dialética, propositor do panta rei, do tudo flui, do nunca se entra duas vezes no mesmo rio.
Estamos envolvidos em um processo de mutação cósmica para o qual não conhecemos nenhuma possibilidade de apertar, no controle remoto do Universo, a tecla pause. O cosmos não é algo que a gente possa estudar de longe, feito um quadro na parede que olhamos à distância, pois no rio cósmico estamos embarcados. Estamos por ele sendo arrastados e a um só tempo integramos este fluxo, como gotículas fazem, gerando com seus corpúsculos miúdos os maiores rios, mares e oceanos.
Lendo sobre essas coisas todas, eu buscava os meios para trazer um pouco de harmonia ao caos interior, pacificando aquilo que aprendi a chamar de mente-macaco, amonkey-mind, que fica pulando de ideia em ideia dentro do crânio como um macaco que vai de galho em galho em busca de bananas. Fumava a ganja maravilhosa comprada – sem carteira de usuário medicinal – nos mercados clandestinos de Kensington Market e deixava Alan Watts ser meu guia de viagem.
A vivência me capacita minimamente para aconselhar: jamais se acanhem de misturar THC com Alan Watts. Dá jogo demais, dudes. E aí eu rabiscava nos meus cadernos versinhos em inglês um pouco bestas, que jamais se alçavam àquela sábia simplicidade dos koans e haikais (aliás tão preciosos à formação de um dos maiores escritores brasileiros, Paulo Leminski). Jogava versos sobre o papel, ambicionando um dia poder musicá-los, querendo seguir o mestre até o limite, que era fazer da Sabedoria por ele comunicada algum tipo de música dançável (confesso que fracassei, mas eis uma estrofe de exemplo):
Pacify the monkey-mind!
Like a clear lake reflects sky!
No wobbling jazz inside!
Just hear the wings of butterflies
As they flow with you through time!
O misticismo, segundo Watts, é a experiência da abolição da separação (“experience of abolishment of separateness”). O misticismo é o que possibilita uma harmonia ou unidade com o ambiente, o que demanda que não estejamos em um frenesi de atividade, mas que possamos aquietar tudo para simplesmente ser (“with no frenzy of activity, simply to be” – p. 37). É a sabedoria dos Beatles: let it be.
O misticismo é a superação da perspectiva estreita, limitante e falaciosa do ego. O ego é aquela crença alucinatória de uma consciência que sente seu próprio confinamento em um espaço exíguo. A ilusão egóica consiste em pensar que a nossa pele, os limites materiais de nosso corpo, esgotam o escopo de nossa existência. Que somos apenas uma pessoa minúscula sem conexão alguma com o cosmos lá fora. Um pedacinho de carne-e-osso que vai morrer e que existe em pleno estado de solidão e isolamento em relação a todo o resto. O ego é uma crença triste, uma amputação de nosso potencial.
Watts convida a pensar em nossa subjetividade como estando necessariamente conexa ao mundo objetivo, numa teia de interdependência. All insides have outsides and the outside of skin is the whole cosmos. É o tipo de coisa que a gente é capaz de compreender numa boa viagem de LSD, num setting adequado. E que raramente, durante a viagem, conseguimos pôr em palavras tão bem quanto Watts o faz com seu talento linguístico espantoso de poeta beat, frequentemente alçando-se às alturas de um Allen Ginsberg.
A reconexão com o cosmos talvez seja o sentido originário do religare que dá na nossa palavra religião. E aí o prosélito do Budismo se manifesta em Watts. Ele considera o Budismo uma força inter-cultural, trans-cultural, que não é privilégio nacional nem da Índia, nem do Japão, nem da China, nem do Tibet, nem do Camboja, nem de ninguém: o Budismo pertence à humanidade e “todos os seres sencientes devem beneficiar-se dele.”
O Budismo não é uma religião policialesca, punitivista, que assusta os crentes brandindo a imagem de um Deus violento que ameaça-nos com o perigo de que sejamos assados eternamente nos espetos de um Inferno póstumo.
O Budismo está repleto de místicos, mas não de profetas. O Budismo não promete um futuro idealizado para o depois da morte, mas busca apontar o dedo para a Lua – não para que olhemos para o dedo, mas sim para que acordemos para a Lua e nossa conexão com ela.
O Budismo é um caminho de libertação, a way of liberation, e Sidarta Gautama é na história do mundo o “primeiro grande psicoterapeuta”, the world’s first great psychotherapist. O que interessa ao Budismo é propiciar uma radical transformação do estado de consciência.
O Budismo é o LSD antes da Ciência, antes da síntese farmacopéica dos agentes daquela “abertura das portas da percepção” de que nos falam William Blake, Aldous Huxley, Jim Morrison e os The Doors…
A desgraça humana está na nossa incapacidade de nos alçarmos à consciência das inter-relações que constituem a teia do mundo, a teia da vida (no eggs without chickens, no fingers without hands…). O Buda propõe que há uma doença, esta doença tem uma causa, e a cura chama-se nirvana, mas para atingi-la é preciso seguir um caminho. A doença está sediada na vontade, é a sede insaciável, o craving, a incapacidade de controlar a possessividade e o desejo de permanência. Para Watts, o que nos condena ao samsara é a negação da impermanência, the denial of impermanence.
Temos que acolher a impermanência de tudo que é, foi e será. Só acolhendo a impermanência poderemos acolher com amorosidade a nós mesmos e aos outros, afinal impermanentes somos todos. Esta também é uma das mais claras sabedorias veiculadas por Gilberto Gil nas suas conversas com Leonardo Boff e Fritjof Capra em Amoráveis Disposições. Trata-se de um caminho de libertação espiritual que passa por um ataque feroz contra as fronteiras, ou melhor, contra as segregações. O ego que se segrega do cosmo, o ego que se segrega do outro, a vida que não deseja a morte, o ser finito e temporal que recusa a finitude e a temporalidade, são os inimigos a derrotar, são os nossos carcereiros que nos mantêm na jaula do samsara.
E o nirvana, ensina Watts, não é um Céu acessível para os que foram bonzinhos na vida e assim foram promovidos a uma realidade só de delícias. O nirvana é pra aqui e é pra agora, é um modo de consciência em que amplia-se nossa senciência, nosso senso de pertença, nossa certeza da interconexão. A separação se desvanece. Separateness vanishes (p. 10).
O Budismo, ensina Watts, não está nem no pólo do ascetismo auto-mortificante, tão escorraçado por Nietzsche, nem no pólo de um hedonismo da busca simplória por prazeres (o que não deve jamais ser confundido com a doutrina epicurista, muito mais aparentada à sabedoria budista do que se reconhece hoje em dia…). Epicuro e Buda são ambos excelente psicoterapeutas. A corrente budista Mahayana, segundo Watts, que forma-se entre 100 antes de Cristo e 400 depois de Cristo, é uma elaboração filosófica profunda dos ensinamentos originais do Buda e propõe nos acordar de um pesadelo, emancipando-nos de hábitos fixados de pensamento.
O Budismo quer isso: disseminar lucidez, e não alucinações. To awake from a bad dream. To emancipate yourself from fixed habits of thought. Watts cita um certo Lin Chi que teria dito a um discípulo: My duty is to beat ghosts out of you. O Budismo é um ghostbuster, é um mata-fantasmas. Quer que a gente esteja alerta e atento para o que é. E para o que somos no seio disso que é.
Quem nos ajuda nisso são os bodhisattvas, os seres sencientes que conseguiram jornadear pelo caminho de libertação o bastante para sentirem que tem algo a ensinar aos outros, companheiros de jornada. O bodhisattva é aquele que sabe compartilhar sabedoria ao invés de retê-la só para si, buscando um nirvana exclusivo, individual.
O bodhisattva é alguém que está no processo de chegar ao nirvana com os outros, não na vibe do cada-um-por-si. O bodhisattava nega o atman, o ego substancial, imutável. O budismo mahayana, tal como Watts o explana, não separa um ego-experenciador da massa da experiência, não propõe um ego que está separado da experiência. Jamais propõe que o sujeito que experencia o mundo é uma espécie de ego-alma imutável que não se mistura ao processo cósmico total. Watts diz que não há ego substancial e imune a mudança, “nenhum chofer imortal por trás do volante” (“there’s no substantial, unchanging ego, no immortal chauffeur behind the wheel”).
Watts assim é capaz de denunciar um tabu social milenar que reza que a sexualidade é um pecado, a sensualidade é suja e pecaminosa… Não faltaram padrecos, papas, aiatolás e outras autoridades eclesiásticas pregando, por exemplo, sobre os terríveis males que esperam os masturbadores no Inferno… Aos homossexuais promete-se o destino sangrento de Sodoma e Gomorra… Para Alan Watts, um pouco satírico neste dito, “most churches are sexual regulation societies”. Muitas das religiões instituídas pregam a fórmula ascética simplista: a espiritualidade cresce em proporção direta à decadência da sexualidade no sujeito. É espiritual quem nega sua própria libido. Que diferença há no Tantra, admira-se Watts!
Querer livrar-se da sexualidade é outra daquelas alucinações danosas que Watts diagnostica em certas imagens do mundo, em certos mitos. A sexualidade está aqui pra ficar. Ela é pra celebrar e amar, não pra recusar e tentar matar. Nascemos por esta via, repovoamos a terra com novas gerações sob seu eterno encanto, já celebrado lindamente por Lucrécio em seu hino à Vênus ao princípio do clássico epicurista Da Natureza Das Coisas (De Rerum Natura). Sexualidade, diz Watts, é aquilo you can’t get rid of. Life is sexual. Um beatnik-hippie cantando um anarco-blues Ginsbergiano sob os auspícios do Doutor Sigismundo Freud. Não tem como não curtir a viagem do Alan Watts…
Watts sabe que o mundo físico é marcado por uma transiência, uma impermanência, inegável e incontornável. Tanto que os corpos necessariamente decaem de vitalidade e viram esqueletos. Toda beleza é mortal e ambígua, tanto é assim que toda rosa acaba por murchar e não há nenhuma desprovida de espinhos.
Diante disso, diz Watts, é preciso aprender com o Oriente a arte de um certo desapego, detachment. Não se trata de ascetismo, mas de ser alerta, contemplativo, reflexivo. “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”, como canta Gal em “Divino Maravilhoso” (Caetano/Gil).
Watts não pede que nos miremos no exemplo do asceta que machuca sua própria carne em busca de uma purificação espiritual. Watts quer que nos miremos no exemplo do espelho. “Be like a mirror, free from dust and stains, just reflecting what goes on.” (85) O que a mente do sujeito senciente, desperto do samsara de seu ego, acaba por perceber durante seu nirvana, ou seja, durante o colapso da ilusão de separabilidade e durante o fim da sede insaciável que nos impede a serenidade? Descobrimos que a transiência do mundo físico é parte necessária de seu esplendor. “The physical world’s transiency is part of its splendor.” (86)
A impermanência não é pra ser rechaçada, mas sim abraçada. Isso necessita uma pedagogia radical que liberte a mente humana das ortodoxias, das carapaças rígidas, que nos abra os sentidos, que nos deixe, por assim dizer, com a senciência boquiaberta. Os símbolos e os mitos podem tornar-se nossos inimigos, se os confundirmos com o real.Gosto dos ensinamentos de Watts sobre o que não devemos confundir: “Don’t confuse clocks with time. Don’t confuse the menu with food. Don’t confuse money with wealth. Don’t confuse map with territory.”
Principalmente não confunda Deus com um Patrão. O Ocidente, segundo Watts, está doente de sua concepção da divindade como uma espécie de cosmocrata, do sexo masculino, controlador, chefão de tudo. The world has no boss, garante Watts.
O mundo é atividade eterna em um cosmos onde a vida nasce não por ditames e ditados do sobrenatural, mas do próprio seio transbordante de vitalidade da Natureza. É só pensar na rosa que saiu de dentro da roseira: a rosa não é filha de Deus, vocês sabem muito bem, mas sim filha da semente. A semente, as entranhas da Terra, os processos físicos do Universo, é que explicam tanto a rosa e os seus espinhos, quanto nós, humanos – cheios também de nossos espinhos.
Watts dirá que do mesmo modo que uma macieira dá maçãs, o mundo dá gente. A vida emerge do próprio pulsante tumulto imorredouro do cosmos em processo de fluxo onde tudo constitui uma unidade em interdependência. Diante de uma visão de mundo dessas, que abraça e ama a impermanência, é preciso lembrar dos ensinamentos budistas sobre a ética da delicadeza, da flexibilidade, da capacidade de mudança, da adaptação a novos cenários, da renovação perene, da ética do possível aprimoramento constante dos seres impermanentes que imperfeitamente estamos sendo. “The willow tree survives the winter by flexible branches.”
Alan Watts cita então Lao-Tsé e seus ensinamentos: “suppleness and tenderness are the characteristicas of life, and rigidity and hardness… of death”. O nirvana é dos que tiverem a coragem da ternura, dos que forem capazes de amar a impermanência. O samsara é dos rígidos e durões, incansáveis cúmplices da morte em seus esforços vãos de negar a finitude. O nirvana é dos que se sabem conectados, conectíveis, cósmicos. O samsara é dos que se pensam como egos, separados do que chamam de “resto”. O nirvana é dos que sabem que a impermanência não é um argumento contra a vida, mas é parte essencial de seu esplendor.
Eduardo Carli de Moraes Texto inspirado nas “Anotações de Toronto” Canadá, 2014 Brasil, 2017
Todas as citações do livro Eastern Wisdom, Modern Life e do audiobook Out of Your Mind
SIGA VIAGEM:
“Why is it that we don’t seem to be able to adjust ourselves to the physical environment without destroying it?
Why is it that in a way this culture represents in a unique fashion the law of diminishing returns? That our success is a failure.
That we are building up an enormous technological civilization which seems to promise the fulfillment of every wish almost at the touch of a button. And yet as in so many fairy tales when the wish is finally materialized, they are like fairy gold, they are not really material at all.
In other words, so many of our products, our cars, our homes, our clothing, our food, It looks as if it were really the instant creation of pure thought; that is to say it’s thoroughly insubstantial, lacking in what the connoisseur of wine calls body.
And in so many other ways, the riches that we produce are ephemeral. and as the result of that we are frustrated, we are terribly frustrated. We feel that the only thing is to go on and getting more and more.
And as a result of that the whole landscape begins to look like the nursery of a spoiled child who’s got too many toys and is bored with them and throws them away as fast as he gets them, plays them for a few minutes.
Also we are dedicated to a tremendous war on the basic material dimensions of time and space. We want to obliterate their limitations. We want to get everything done as fast as possible. We want to convert the rhythms and the skills of work into cash, which indeed you can buy something with but you can’t eat it.
And then rush home to get away from work and begin the real business of life, to enjoy ourselves. You know, for the vast majority of American families what seems to be the real point of life, what you rush home to get to is to watch
an electronic reproduction of life. You can’t touch it, it doesn’t smell, and it has no taste.
You might think that people getting home to the real point of life in a robust material culture would go home to a colossal banquet or an orgy of love-making or a riot of music and dancing; But nothing of the kind.
It turns out to be this purely passive contemplation of a twittering screen. You see mile after mile of darkened houses with that little electronic screen flickering in the room. Everybody isolated, watching this thing. And thus in no real communion with each other at all. And this isolation of people into a private world of their own is really the creation of a mindless crowd.
And so we don’t get with each other except for public expressions or getting rid of our hostility like football or prize-fighting.
And even in the spectacles one sees on this television it’s perfectly proper to exhibit people slugging and slaying each other but oh dear no, not people loving each other, except in a rather restrained way.
One can only draw the conclusion that the assumption underlying this is that expressions of physical love are far more dangerous than expressions of physical hatred.
And it seems to me that a culture that has that sort of assumption is basically crazy and devoted – unintentionally indeed but nevertheless in-fact devoted not to survival but to the actual destruction of life.”
“The experiences resulting from the use of psychedelic drugs are often described in religious terms. They are therefore of interest to those like myself who, in the tradition of William James, are concerned with the psychology of religion. For more than thirty years I have been studying the causes, the consequences, and the conditions of those peculiar states of consciousness in which the individual discovers himself to be one continuous process with God, with the Universe, with the Ground of Being, or whatever name he may use by cultural conditioning or personal preference for the ultimate and eternal reality. We have no satisfactory and definitive name for experiences of this kind. The terms “religious experience,” “mystical experience,” and “cosmic consciousness” are all too vague and comprehensive to denote that specific mode of consciousness which, to those who have known it, is as real and overwhelming as falling in love. This article describes such states of consciousness induced by psychedelic drugs, although they are virtually indistinguishable from genuine mystical experience. The article then discusses objections to the use of psychedelic drugs that arise mainly from the opposition between mystical values and the traditional religious and secular values of Western society.”
Sabemos que o poema Hino à Vida, de Lou Salomé, era profundamente venerado por Nietzsche. Tanto que o filósofo compôs a música para acompanhar os versos de sua amiga, tendo sido esta a única partitura que publicou em vida, com arranjos para orquestra e coro a cargo de Peter Gast. A celebração da existência, o dionisíaco evoé entoado por um sujeito capaz de dizer um sagrado sim à tudo que a “vida-enigma” contêm é um elo de união entre Nietzsche e Lou Salomé, dois destinos que se entrelaçam de maneira inextricável. Nietzsche, tanto adorava a filosofia de Heráclito, sua descrição da Phýsis como um devir cósmico onde tudo flui e o “combate é o pai de todas as coisas”, deve ter encontrado uma sabedoria heraclitiana em Lou: “deixa-me ainda no ardor da luta”, ela entoava, “sondar mais fundo seu enigma.”
Em ambos somos ensinados que a existência não precisa ser compreendida para ser amada. E que é possível um amor inclusivo, que abraça até mesmo o que a condição de ser vivo envolve de mais trágico e doloroso – a doença, a finitude, a fragilidade dos laços humanos. A vida, com tudo o que tem de exultação ou depressão, de delícia ou sofrimento, comovia Nietzsche a ponto dele parir uma obra que é pura “estrela dançarina” que brota de um íntimo em exuberante estado de caos. Que a loucura em que soçobrou não nos impeça de celebrar também a sabedoria deste maluco beleza que quis conclamarmos a esta “afirmação dionisíaca em face do mundo, tal qual ele é, sem redução, sem exceção nem escolha, (…) que é o estado mais elevado que um filósofo pode atingir: manter diante da existência uma atitude dionisíaca, e para isso eu tenho uma fórmula: amor fati. Para isso, devem-se considerar os aspectos renegados da existência não somente como necessários, mas como desejáveis.” (Nietzsche, F. Fragmentos Póstumos 13: 16 [32] verão de 1888).
Nietzsche age como porta-voz de uma sabedoria plenamente fiel à terra, agressivamente críticas das ilusões em forma de esperanças supraterrenas e deuses transcendentes. A celebração dionisíaca da existência imanente em todo seu esplendor e fúria é louvada como uma das capacidades supremas que marca o espírito libertado. Nietzsche, pois, transmite na história da ética as coordenadas e os horizontes para que pratiquemos coletivamente uma transvaloração da axiologia hegemônica, que postula a transcendência como o lócus do valor e da redenção e exige, por isso, os mais atrozes sacrifícios: assassinar a vida em prol da quimera de uma outra condição no além-túmulo que não passa de delírio da mente crente, alienada de sua efetiva condição.
Em Humano Demasiado Humano – Um Livro Para Espíritos Livres, podemos aqui e acolá notar a presença do tema do amor: Nietzsche faz uma conclamação, um apelo, para que o amor tenha por meta a imanência e não a transcendência, isto é, que amemos esta vida real e concreta onde florescemos e fenecemos, desapegados de qualquer fantasia sobre uma vida paradisíaca no além-morte, artigo de fé nefasto que arrasta-se desde o idealismo platônico e segue marcando a ideologia de todas as doutrinas teístas. Nietzsche, no livro dedicado a Voltaire no centenário de sua morte, dá conselhos de moralista: “Eis o melhor meio de começar cada dia: perguntar-se ao despertar se nesse dia não podemos dar alegria a pelo menos uma pessoa. Se isso pudesse valer como substituto do hábito religioso da oração, nossos semelhantes se beneficiariam com tal mudança.” (§589) O filósofo expressa este louvor ao amor terrestre e mundano, em oposição à idolatria religiosa de ídolos sobrenaturais ou metafísicos, em frases lapidares: “Não há no mundo amor e bondade bastantes para que tenhamos direito de dá-los a seres imaginários.” (§129)
O espírito livre nietzschiano quer prestar suas homenagens à tradição Iluminista e seus combates contra o obscurantismo – este, que com tanta frequência justifica os horrores que pratica na Terra invocando a quimera do paraíso transcendente. Se matam hereges na fogueira, se assassinam uma Hipátia ou um Giordano Bruno, se queimam livros de Demócrito e Epicuro, se mandam calar na marra a voz dos dissidentes, é tudo para melhor garantir que os “Homens de Bem” possam gozar das delícias de crer no Paraíso.
Neste, aliás, segundo Tertuliano, uma das mais deleitosas gostosuras que hão de gozar os bem-aventurados que forem promovidos para o Céu terão como um de seus gozos celestiais a observação das penas crudelíssimas e ultra dolorosas de que serão vítimas os danados no Inferno. Os que Deus aceitará de volta no ninho de seu Éden, que presenteará com a concretização da promessa messiânica do “os últimos serão os primeiros”, blessed are the meek ‘cause theirs is the Kingdom of God, poderão se deliciar no Céu com a visão de seus adversários terrestres ardendo na câmara de torturas infernal. Eis aí uma autêntica religião para sádicos e vingativos…
Todos os horrores descritos por Dante Aleghieri no Inferno da Divina Comédia, todos os quadros apavorantes da mentalidade paranóica medieval capturados nos quadros de Hieronymous Bosch, atordoam a consciência do crente demasiado convicto na existência de um Além, de um prosseguimento de nossa consciência no período pós-morte, as punições e recompensas celestiais ou infernais que Epicuro e Lucrécio já denunciavam como algumas das principais inimigas da serenidade, da felicidade, da ataraxia humana.
Tais delírios de vida supraterrena podem lançar o sujeito ao niilismo da fé: a negação do valor à vida concreta, ao corpo presente, aos sentidos reais, aos prazeres possíveis de serem vivenciados pelos entes que somos, isto é, consciências corporificadas e com prazo de validade neste fluxo ininterrupto do Universo que integramos: onimovente, cíclico, animado por uma Vontade transpessoal que nos transborda por todos os lados e que é plena exuberância criativa e cosmo-poiésis infinda. Somos parte disso, e que felicidade pode dizer Sim!
Para Nietzsche, não há paraísos senão os imanentes, logo precários, como tudo que é real. Tanto sabedoria quanto amor são para aqui e para já – ou nunca serão. No “Hino à Vida”, o poema de Lou Salomé que Nietzsche tanto reverenciava, percebemos uma significativa contribuição filosófica e estética ao tema do amor à imanência e da fidelidade à terra.
Dorian Astor, autor de duas biografias dedicadas às vidas e espíritos entrelaçados de Nietzsche e Lou Salomé, relembra alguns dos principais momentos deste convívio. Nascida em 1861, em São Petersburgo, na Rússia, a jovem Lou Salomé, quando tinha aproximadamente 20 anos, seria “iniciada à filosofia árida e fascinante de Nietzsche, que espera dela muito mais do que ela pode dar, mas que lhe passa todas as armas do espírito livre” (ASTOR, 2015, p. 8) A jovem Lou teria sido para Nietzsche não somente uma discípula que ele fervorosamente desejava ter sob seu círculo de influência, mas também uma das mulheres que mais conseguiu encantar e apaixonar ao filósofo – que propôs a ela casamento em duas ocasiões, e em ambas foi rejeitado.
Motivo de inumeráveis fofocas e boatos, o ménage à trois que envolveu Lou Salomé, Nietzsche e Paul Rée possui uma imagem icônica dos três, Lou com o chicote em mãos, Nietzsche e Rée na posição de cavalos atrelados a uma charrete – fotografia que ilustra a obra magistral O Bufão dos Deuses, de Maria Cristina Franco Ferraz, uma das mais perspicazes e bem informadas comentadoras de Nietzsche hoje em atividade. Um tema ainda pouco comentado e difundido é a qualidade assombrosa das contribuições das mulheres para nossa compreensão de Nietzsche: além de Maria Cristina, figuras como Scarlett Marton, Rosana Suarez, Sarah Kofmann, Rosa Dias, além da própria Lou Salomé, autora do crucial livro Nietzsche Através de Suas Obras (1894), têm alargado nossos horizontes sobre o nietzschianismo com contribuições inestimáveis.
Em nenhuma destas duas obras a relação de Nietzsche e Lou Salomé ganha um retrato devidamente aprofundado, que revelasse a densidade psicológica e a complexidade do vínculo entre eles. Em especial, passa-se em silêncio, com frequência, sobre aquilo que mais fortemente os unia, que era a experiência da descrença, ou seja, a vivência da perda da fé. Na apostasia, eles comungavam. Nietzsche, filho de pastor protestante, que teve relações bastante conflitivas com a beatice da mãe e da irmã, iria se tornar um dos mais radicais críticos da religião cristã instituída, proclamando-se O Anticristo, o dinamitador de uma tradição decadente, o filósofo que a golpes de martelo vinha para pôr fim ao reinado de um deus quimérico e em seu século já moribundo, caído no descrédito crescente, submergido por marés cada vez mais altas de ceticismo, agnosticismo, ateísmo (uma vaga histórica de descrença militante que inclui Feuerbach, Marx, Engels, Darwin, Freud, Camus, Sartre, Comte-Sponville, Onfray, e por aí vai).
Ilustração: Charb, do Charlie Hebdo, em Marx: Manual de Instruções, de Bensaïd (Ed. Boitempo)
“Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!” – Nietzsche, Gaia Ciência, §125
Lou, é evidente, era muito mais serena, menos agressiva e bélica, mais tranquila e sábia, na expressão de seu pensamento às vezes profundamente subversivo dos dogmas vigentes e fés hegemônicas. Também na vida de Lou são relatados conflitos familiares que a opõe à sua mãe: “a incredulidade da filha, suas atividades intelectuais, sua repugnância pelo casamento, suas uniões livres, ou seja, os ventos de liberdade e independência que soprarão sobre sua vida, foram constantes motivos de reprovação por sua mãe”, escreve Astor (p. 13).
Tanto Nietzsche quanto Lou, desde muito jovens, irão se rebelar contra uma noção sacrificial sobre a condição humana, quase sempre vinculada a uma crença religiosa demasiado dogmática e inquestionada que conduz o sujeito a sacrificar o que ele tem de mais seguro. O ascetismo é a ética enlouquecida pela mania da auto-mortificação, em que o sujeito alucinado de idealismo religioso volta-se contra seu corpo, sua mente, sua vida presente, sua vontade de existir pulsando em seu seio, seu conatus ou seu élan vital (como diriam Spinoza ou Bergson), sua vontade de potência como dirá Nietzsche, no altar da esperança, muito provavelmente infundada, falaciosa, mentirosa – de ganhar através deste sacrifício o tíquete de acesso, depois da morte, a uma vida melhor, paradisíaca, escondida em Cucolândia das Nuvens e prometida aos obedientes, aos servis, aos mansos, aos que não resistem à opressão, aos escravos satisfeitos de sua escravidão, que contentam-se em sonhar com uma vingança do além-túmulo.
Lou e Nietzsche comungam na suspeita de que aqueles que sacrificam a vida na esperança de uma vida-após-a-morte estão na ilusão, cometem um crime contra si mesmos e contra a energia da Vida que neles pulsa. Sem ser uma feminista militante – ela está longe de escrever um livro-manifesto como o Vindication of the Right of Woman de Mary Wollstonecraft – Lou Salomé contribui com seu exemplo vivo para a disseminação de noções libertárias sobre a mulher independente, autônoma, crítica, criativa, multi-talentosa, que ousa buscar o conhecimento para além das balizas tradicionais. Para Astor, “sem dúvida ela esteve em conflito com a imagem sacrificial da mulher” (p. 14)
Anaïs Nin (1903 – 1977), em seu prefácio à biografia escrita por H. F. Peters, Lou – Minha Irmã, Minha Esposa (RJ: Zahar, 1974), escreve:
“Graças à sensibilidade, compreensão e empatia do autor, adquirimos o conhecimento íntimo de uma mulher cuja importância para a história do desenvolvimento da condição feminina é imensa. Peters traçou com amor um retrato que nos comunica o talento e a coragem de Lou. Lou Andreas-Salomé simboliza a luta para transcender convenções e tradições nos modos de pensar e de viver. Como é possível a uma mulher inteligente, criativa, original, relacionar-se com homens de gênio sem ser dominada por eles? O conflito entre o desejo da mulher de se fundir com o amado e ao mesmo tempo manter sua identidade própria é a luta da mulher moderna. Lou viveu todas as fases e evoluções do amor, da entrega à recusa, da expansão à contração. Casou-se e levou vida de solteira, amou homens tanto mais velhos quanto mais novos. Sentia-se atraída pelo talento, mas não queria ser apenas musa ou discípula. (…) Como era bela, o interesse masculino passava com frequência da admiração à paixão; se Lou não correspondia, era considerada fria. Sua liberdade consistiu em dar expressão às suas necessidades inconscientes profundas. Viu a independência como a única maneira de realizar o movimento. E, para ela, o movimento era o crescimento e a evolução constantes.” (ANAÏS NIN, 1974, pg. 9-10)
Ficamos tentados a dizer que Nietzsche, que em Humano Demasiado Humano descrevia os espíritos livres como amigos imaginários, inventados pelo filósofo para que fizessem companhia a ele em sua solidão de adoentado nômade, encontra em Lou Salomé um espírito livre em carne-e-osso, em todo o esplendor de uma jovem mulher audaz, vivaz, perspicaz, prova viva da exuberância do lema iluminista: sapere aude – ousa saber. Como Nietzsche não sentiria, diante dela, inúmeras afinidades que a tornavam uma mente irmã, uma provável discípula, uma desejável esposa? Ele, Nietzsche, encontrou muitas similaridades na postura existencial dele e de Lou Salomé: ambos preferiam pensar livre ao invés de enterrar-se vivo no túmulo dos dogmas rígidos, das convicções imutáveis e das fés congelantes. Como diz Peters, “Nietzssche e Lou estavam ambos em busca – e daí o segredo de sua afinidade – de uma nova fé, que afirmasse o poder e a glória da vida, sem exigir a mortificação da carne.” (PETERS, 1974, p. 81)
O historiador George Minois, que devotou mais de 700 páginas à A História do Ateísmo (Ed. Unesp), relembra em seu livro uma carta de Fritz Nietzsche à sua irmã Elisabeth onde ele diz: “Se queres a paz da alma e a felicidade, então crê; se queres ser um discípulo da verdade, então busca.” E Minois comenta: “A primeira posição é a mais confortável. Mas quando se perde a fé, não se pode mais voltar atrás.” (MINOIS, 2014, p. 626)
Em livro recente, Marcos de Oliveira Silva abordou com maestria o tema da Autópsia do Sagrado – Religião, Ateísmo e Contemporaneidade em Nietzsche(2012), onde o autor reconhece muitas semelhanças entre a crítica nietzschiana da religião e outro importante pensador alemão contemporâneo, Ludwig Feuerbach, prenunciador do “a religião é ópio do povo” de Karl Marx.
Feuerbach “acreditava que o fenômeno religioso era basicamente um meio fantasístico de compensação; assim, diferente do pretenso altruísmo da religião, o filósofo explica que o verdadeiro teor das ideias religiosas é sempre de fundo o egoísmo, ou de outra forma, o utilitarismo é a base central da ideação religiosa. A ideia de uma benévola providência é uma importante arma contra a angústia, essa crença gera uma sensação de sentido para as coisas. As injustiças e dificuldades sentidas no mundo terreno seriam hipoteticamente reparadas e superadas eternamente no ‘reino de Deus’. Este desejo de conferir à existência um sentido absoluto pode ser percebido pela frase do senso comum que afirma que ‘Deus tarda, mas não falha’. Porém, a lógica do ateísmo de Feuerbach ensina que ‘além de sempre tardar, Deus sempre falha’. Isso foi dito da seguinte maneira pelo filósofo:
Ludwig Feuerbach (1804-1872)
“O além chega sempre tarde com suas curas; ele cura o mal depois que ele já passou, só com, ou após a morte… O amor que o além criou, que consola o sofredor, é o amor que cura o doente depois que ele faleceu, que dá água ao sedento que já morreu de sede, que dá alimento ao faminto depois que ele já morreu de fome…Deixemos pois os mortos e só nos ocupemos com os vivos! Se não acreditarmos mais numa vida melhor mas quisermos, não isoladamente, e sim com a união de forças, criaremos uma vida melhor, combateremos pelo menos as injustiças e os males crassos, gritantes, revoltantes, pelos quais a humanidade tanto sofre.” (FEUERBACH, 1989, pp. 236-237)
De acordo com as Preleções sobre a essência da religião, segundo o “viés ateísta proposto por Feuerbach, a difusão sistemática das variadas promessas religiosas desempenha estrategicamente um papel muito importante na perpetuação da miséria de um povo…. é um conjunto de falsas promessas… apontam para uma solução a partir de uma intervenção sobrenatural, acreditam assim que não o homem mas sim as ‘mãos divinas’ mudarão o rumo do nosso sofrido mundo. Criticamente, Feuerbach vê esta doce esperança como uma forma alienante de abafar nossas reais responsabilidades terrenas, um obstáculo ideológico ao avanço de nosso ímpeto revolucionário que pede mudanças efetivas. Assim sendo, acreditando em uma grandiosa revolução vinda do céu, reforçamos a nossa covardia diária que nos impede de enfrentar de forma concreta aqueles que nos oprimem… Esperando usufruir a bela paisagem lúdica de um paraíso pós-morte, para o filósofo, deixamos de construir os alicerces necessários para uma sociedade mais justa.” (OLIVEIRA, 2012, p. 123)
2. A MORTE DE DEUS: DE TENDÊNCIA HISTÓRICA A METAMORFOSE SUBJETIVA
Lou Salomé soube enxergar também o quanto havia de narcisismo infantil no apego do sujeito à crença em um Deus-Pai. Auto-psicanalisando-se, descobriu na sua própria infância um “Deus que é o melhor aliado do narcisismo da garotinha”, o “grande instituidor de presentes”, mas também aquela instância superior que a pequena Lou invoca quando sente-se injustamente punida pelos pais. Ou seja, quando ela apanha por ter sido considerada pelas autoridades familiares como desobediente ou travessa, apela para o Bom Deus como uma espécie de Juiz Justiceiro que mora nas nuvens: “eu era, com frequência, uma criança ‘má’, e por isso tive que travar doloroso contato com uma varinha de bétula, coisa que nunca deixei de denunciar ostensivamente ao Bom Deus.” (p. 16)
Na literatura de Lou, podemos encontrar uma narrativa ficcional de 1922 chamada A hora sem Deus, onde mais uma vez entra em cena a noção infantil de um Deus como Grande Vigia, Olho Que Tudo Vê, Guardião do Rebanho dos Homens: “Ele que vê o que está escondido, com Seus olhos onipresentes, para os quais a coberta da cama não era um obstáculo”, escreve Lou. Ela percebe que este Deus era como uma espécie de brinquedo da menina, manipulado em sua imaginação como o boneco de um juiz, “aliando-se com a criança perante todos os adultos com suas noções e interesses estranhos e suas paixões pela pedagogia.” Para Astor, “Deus constitui, assim, a instância de uma relação primordial consigo mesma, e nem um pouco uma experiência da alteridade. Deus é momento de uma dialética; é aquele que deve morrer, aquele que deve ser superado no movimento da maturação, de uma afirmação de si que é conquistada de maneira autônoma.” (p. 17)
Ou seja, Lou Salomé parece defender que a maturidade humana só chega quando sabemos matar dentro de nós – o único lugar onde ele jamais viveu – o Deus de nossa infância, sepultando esse narcisismo espectral e delirante de modo a conquistarmos para nós A Hora Sem Deus, momento de superação, de auto-transfiguração, onde essa “relação fantasiosa um pouco frágil chegou ao fim”. (…) A morte de Deus, longe de autorizar o imoralismo, fundará rigorosamente a submissão incondicional a um princípio de realidade.” (p. 17)
Utilizando-se de terminologia Freudiana – afinal de contas, Lou Salomé também terá significativa contribuição à história da Psicanálise como movimento científico internacional no âmbito da medicina das mentes e se tornará talvez a primeira mulher a atuar na profissão de psicanalista, apoiada pelo próprio Freud – Lou mostra as difíceis batalhas do sujeito para superar a ilusão religiosa nascida do princípio de prazer e do desejo de consolo, rumo a uma consciência cada vez mais desperta ao real e lúcida na efetividade.
Astor percebe muito bem que “o motivo, em modo menor, é quase nietzschiano, e percebemos em sua magistral obra sobre o filósofo, Friedrich Nietzsche em suas obras (1894), que Lou Andreas-Salomé reconheceu o instinto profundo que preside esta conscientização da morte de Deus: para ela, “os motivos que incitam a maior parte dos indivíduos a se emancipar da religião são quase sempre de ordem intelectual, e essa emancipação não se efetua sem dolorosas lutas”. De modo que, como comenta Astor, “o problema vital da infância não é, para Lou, a perda do Deus pessoal, que no fundo é apenas a queda de uma fruta madura demais. É do lado de cá que acontece a desaparição primordial, ao mesmo tempo em que a ascensão ao real.”
A desaparição, a dissolução, a superação da crença em Deus no universo subjetivo do indivíduo, as metamorfoses que isto implica, as tarefas novas que daí decorrem, implicam que o processo da apostasia, do tornar-se ateu, do lançar-se aos mares abertos da descrença e de aventura intelectual, é vivido praticamente como uma espécie de segundo nascimento. O parágrafo inicial da autobiografia de Lou Salomé, Minha Vida, com admirável radicalidade, narra o nascimento humano:
“Nossa primeira experiência, coisa notável, é a de um desaparecimento. Momentos antes, éramos um todo indivisível, todo Ser era inseparável de nós; e eis que fomos lançados ao nascimento, nos tornamos um pequeno fragmento desse Ser e precisamos cuidar, desde então, para não sofrer outras amputações e para nos afirmarmos em relação ao mundo exterior que se ergue a nossa frente numa amplidão crescente, e no qual, deixando nossa absoluta plenitude, caímos como num vazio – que em primeiro lugar nos despojou.” (LOU SALOMÉ, Minha vida.)
Segundo Astor, “Lou tomou de Schopenhauer a ideia de que o nascimento é uma queda no mundo das aparências, segundo um princípio de individuação que limita o ser singular e aliena sua compreensão do grande Todo: ‘No mais profundo de si mesmo, o nosso ser rebela-se em absoluto contra todos os limites. Os limites físicos são-nos tão insuportáveis quanto os limites do que nos é psiquicamente possível: não fazem verdadeiramente parte de nós. Circunscrevem-nos mais estreitamente do que desejaríamos.’ Ao dizer isso, ela não clama o inconveniente de ter nascido, mas antes afirma, com o Nietzsche de O Nascimento da Tragédia, a força plástica e individuante do apolíneo, a reconquista artística da onipotência dionisíaca, que é poder de vida. Ela não cessará de repetir, até o fim de sua vida, a seguinte alegre afirmação:
“A vida humana, ah!
A vida sobretudo – é poesia.
Inconscientes, nós a vivemos, dia a dia,
Passo a passo – mas em sua intangível
Plenitude ela vive e nos traduz em poesia.”
LOU ANDREAS-SALOMÉ
Astor atribui tais idéias à uma profunda assimilação do “amor fati” de Nietzsche, esse “amor pelo destino e essa sabedoria que só podem ser adquiridos ao preço de um esforço heróico”, que Lou caracterizará como uma identificação plenamente afirmativa e celebratória com a totalidade da vida. Lou celebra “o encanto supremo que confere à vida seu caráter efêmero demais” e sugere que “precisamos nos sentir inexoravelmente determinados, mas por uma força com a qual nos identificamos, uma força que nós mesmos nos tornamos.” (Astor, 21)
3. ALÉM DA CRENÇA E SEUS DOGMAS, A MATURAÇÃO DE UMA VIDA DEVOTADA AO CONHECIMENTO
Outro elo que une Lou e Nietzsche está na devoção com que ambos dedicaram-se ao conhecimento após terem rompido vínculos com a fé. Ambos são apóstatas que se desviaram dos caminhos prescritos pela família: se Nietzsche, filho de pastor protestante que torna-se um luminar do ateísmo e que nunca se reconcilia com a beatice de sua mãe e sua irmã, por seu lado Lou Salomé desde a adolescência manifesta também ímpetos rebeldes e contestadores em relação à religião:
“A morte de Deus marca para Lou o acesso a um rigor intelectual que logo se manifestará em seu caráter estudioso. Inúmeros textos comprovam, em Lou, o laço de causalidade entre a perda de Deus e a sede de conhecimento. O artigo Criação de Deus analisará o desenvolvimento intelectual não apenas como compensação do lugar vazio deixado por Deus, mas como a conquista de um autonomia e recentramento de si. Aos 17 anos, Lou assiste às aulas de catecismo preparatório para a confirmação, etapa essencial da vida protestante russa… As aulas são ministradas pelo pastor Hermann Dalton (1833-1913), que manifesta um conservadorismo agressivo, que lhe valerá muitos inimigos, entre os quais David Strauss e Ernest Renan. Lou não gosta do pastor, que corresponde o sentimento; Dalton se informa junto aos Salomé sobre o espírito rebelde da jovem, desde o dia em que, ao ensinar que não existe lugar onde não se possa imaginar a presença de Deus, Liola lhe responde em tom de provocação: ‘Existe sim, o Inferno!”
A ‘liberdade interior’ conquistada com a morte de Deus, o fortalecimento das forças intelectuais percebidas como vitais, de repente se viram confrontados com uma ortodoxia rígida e desprovida de vida, um saber que se esgotava numa prescrição sem alternativas. Se a religião da infância havia sido uma experiência do maravilhoso, sua justificação friamente teológica varria para longe os últimos resquícios de nostalgia, e permitia aderir alegremente ao espírito novo: ‘deixei em definitivo o mundo dos crentes e me separei abertamente da igreja.'” (ASTOR , pg. 25)
Lou Salomé, abandonando a crença de sua infância, embarca na aventura do conhecimento: troca São Petersburgo por Zurique e, na mesma Suíça onde Nietzsche desenvolveu por 10 anos (1869-1879) seus trabalhos como professor na Universidade de Bâle (Basiléia), ela irá prosseguir seus estudos incansáveis, que farão dela uma das intelectuais mais completas de seu tempo, com expressão na filosofia, na psicologia, na literatura. Quando Lou e Nietzsche se conhecerem em 1882, por intermédio de Paul Rée e Malwida Meysenbug, encontrarão muitos temas de conversa, mas um em especial terá destaque: a morte de Deus e suas consequências para a vida do sujeito.
Lou Salomé enquanto jovem estudante em Zurique, Suíça, após emigrar de sua Rússia natal em aventura de busca de conhecimento
O espírito livre, como Nietzsche explora em Humano Demasiado Humano, é alguém que precisou emancipar-se da servil obediência a dogmas inculcados e preconceitos recebidos, inclusive e sobretudo as noções religiosas com que somos inundados desde a primeira infância. Em seu livro sobre Nietzsche, dividido em três grandes partes, Lou dedica a segunda parte às metamorfoses de Nietzsche, utilizando como epígrafe o aforismo #573 de Aurora: “a serpente que não pode mudar de pele perece. O mesmo se dá com os espíritos que são impedidos de mudar de opinião; eles cessam de ser espíritos.” As muitas metamorfoses de Nietzsche, segundo Lou, são inauguradas por sua “ruptura com a fé cristã, ponto de partida para todas as suas transformações ulteriores”; ela destaca que, ainda que “os motivos que incitam a maior parte dos indivíduos a se afastar da religião sejam frequentemente de ordem intelectual, esta emancipação não se efetua sem lutas dolorosas” (p. 77).
Um dos maiores méritos da obra de Lou consiste em pintar um retrato complexo e nuançado da personalidade de Nietzsche, que ela considera um sujeito definitivamente marcado por suas difíceis relações com o abandono da fé. Um dos grandes temas que atravessaria toda a obra Nietzschiana é o modo de realizar a emancipação interior que conduz o apóstata a metamorfosear-se: de servil e obediente beato, temente aos deuses, apegado às sacras ilusões, ele cresce e matura-se rumo a um grau sempre expandido de ceticismo, de desconfiança, de suspeita, de capacidade de enxergar o mundo por múltiplas perspectivas.
O pensamento de Nietzsche é anti-dogmático por excelência. Estabelecer-se na crença de que a verdade já está descoberta e é possuída, cessando assim de questionar as respostas dadas, desistindo de inquirir se as perguntas não estavam mal colocadas ou eram absurdas, procurar o descanso do pensamento na cômoda cama das convicções imutáveis: eis o que assassina o livre-pensamento e faz do filósofo um dogmático papagaio de certezas imutáveis. Segundo o retrato que Lou-Andreas Salomé pinta de seu metamórfico e desassossegado amigo, o filósofo tinha uma personalidade radicalmente anti-dogmática:
“A mudança de opinião, a obrigação de se transformar, encontram-se tão profundamente ancorados no coração da filosofia nietzschiana e são eminentemente característicos de seus métodos de investigação. (…) Sua estranha necessidade de metamorfose, no domínio do conhecimento filosófico, provinha do desejo insaciável de renovar sem cessar suas emoções intelectuais. É por isso que a clareza perfeita não era, a seus olhos, senão um sintoma de saciedade e extenuação. (…) Para Nietzsche, uma solução encontrada não era jamais um fim, mas ao contrário o sinal de uma mudança de perspectiva que o obrigava a contemplar o problema sob um ângulo novo, a fim de lhe encontrar uma nova solução. (…) Nietzsche não admitia que um problema, qualquer que ele fosse, comportasse uma solução definitiva.” (ANDREAS-SALOMÉ, L. Nietzsche À Travers Ses Ouvres. Pgs. 49 e 84.)
Tradução nossa para o trecho: “Le changement d’opinion, l’obligation de se transformer se trouvent ainsi profondément ancrés au coeur de la philosophie nietzschéenne, et sont éminemment caractéristiques de ses méthodes d’investigation. (…) Son étrange besoin de métamorphose, dans le domaine de la connaissance philosophique, provenait du désir insatiable de renouveler sans cesse ses émotions intellectuelles. C’est pourquoi la clarté parfaite n’était, à ses yeux, qu’un symptôme de satiété et d’exténuation. (…) Pour Nietzsche, une solution trouvée n’était jamais une fin, mais au contraire le signal d’un changement de point de vue qui l’obligeait à envisager le problème sous un angle nouveau, afin de lui apporter une solution nouvelle. (…) Nietzsche n’admettait pas qu’un problème quel qu’il fût comportât une solution définitive.”
4. NIETZSCHE & LOU: ENCANTAMENTO, ESPERANÇA E DESILUSÃO
Tentar explorar o vínculo entre Nietzsche e Lou leva-nos a um labirinto de representações, de perspectivas, de boatos e fofocas, em que por vezes é difícil separar o que é fato do que é ficção. No cinema, por exemplo, o filme de Liliana Cavani, lançado em 1977, propiciou uma narrativa da relação em que Nietzsche é descrito como um sujeito lascivo, impetuoso, mostrado em arroubos passionais por Lou que chegam, em certas cenas, a beirar a agressão sexual (lembrem, por exemplo, da cena em que Fritz, de maneira forçada e sem consentimento, tenta tocar as partes íntimas de Lou). O filme também retrata Nietzsche contando a Lou, em um daqueles passeios idílicos que faziam pela Natureza, sobre seu passado erótico: relembra o dia em que visitou um bordel, conta os detalhes picantes de sua transa, e depois revela ainda que foi nesta ocasião que contraiu a sífilis. Fact or fiction?
Impossível bater o martelo e julgar em definitivo se o filósofo de fato vivenciou o episódio do puteiro e ali pegou uma DST, ou se isso não passa de intriga da oposição. Tendo mais a esta última opção, pois vários estudos biográficos revelam que a doença de Nietzsche tinha raízes hereditárias e genéticas, já que o seu pai também havia sofrido com sintomas semelhantes e havia tido uma morte precoce. Muitos biógrafos vinculam as enxaquecas e problemas de visão de Nietzsche com uma condição derivada “do sangue”, relatam que o pequeno Fritz, além de perder o pai na primeira infância, sempre temeu que morreria mais cedo do que o comum dos mortais, como ocorrera com seu pai. Além disso, biógrafos relatam que Nietzsche, enfermeiro voluntário durante a Guerra Franco-Prussiana de 1870, teria sido ferido em campo de batalha e que seu estado de saúde lastimável, daí em então, decorre das sequelas deste episódio bélico.
O filme da Liliana, ao apostar no retrato de um Nietzsche tarado e ao dar expressão audiovisual à suposta escapada de Nietzsche no bordel, parece referendar boatos e fofocas que muito provavelmente foram espalhados pelos detratores do filósofo, interessados em queimar seu filme e fazer a posteridade acreditar que aquele que matou Deus acabou chafurdando na lama dos prazeres carnais perversos e pagando o preço por isso. Na história da filosofia, temos muitos casos de campanhas de calúnia e difamação semelhantes, como aquela movida primeiro pelos platônicos e depois pelos primeiros cristãos contra a memória de Epicuro: de sábio frugal em convivência bem-aventurada com os amigos no Jardim da Sabedoria, Epicuro foi caluniado como um beberrão, um lascivo, entregue a orgias e banquetes nababescos, a ponto de vomitar os excessos de comida e bebida, só para continuar a orgia depois do gorfo. Nietzsche no puteiro, Epicuro na orgia: duas imagens que, suspeito, são intrigas falaciosas dos adversários destes filósofos.
Vejamos, por exemplo, o que diz uma das biografias escritas sobre o filósofo, a de Rüdiger Safranski, sobre as relações entre Nietzsche e Lou que o filme de Liliana descreve com ênfase excessiva no aspecto erótico. Dificilmente existiu entre Nietzsche e Lou uma relação amorosa propriamente carnal, sensorial, com beijos, lambidas, penetrações – o contato físico entre os dois, ao que tudo indica, foi mínimo; o intercâmbio intelectual, os papos-cabeça, é que foram, por um breve período, bastante intenso. Nem mesmo podemos ter certeza se rolou um beijinho na boca ou não – em Minha Vida, Lou diz que não se lembra… Nada nos relatos biográficos sobre Nietzsche nos permite pensar no filósofo como alguém que tivesse uma vida sexual ativa; muito pelo contrário, ele foi um grande solitário e celibatário, morreu sem filhos e não se conhecem affairs românticos para além do caso com Lou.
É seguro dizer que Nietzsche era um sujeito que não tinha muito traquejo no xaveco, que não tinha grande experiência na arte de cortejar uma mulher, alguém nas antípodas do Don Juan; seus pedidos de casamento dirigidos a Lou são estranhíssimos e hoje nos parecem claramente fadados ao fracasso, primeiro pois ele é muito afobado e propõe casório poucos dias depois do primeiro encontro, sem propiciar um tempo maior de convívio e conhecimento mútuo, mas além disso, ao invés de fazer a proposta pessoalmente, pede a Paul Rée que faça por ele, o que é bastante absurdo, considerando que Rée, também encantando por Lou, era parte interessada e rival direto no posto de possível marido da fascinante russa.
Além disso, Nietzsche tinha visões bastante estranhas sobre o casamento, talvez tingidas de uma certa misoginia, de uma certa visão patriarcal sobre a posição da mulher na sociedade: “quer uma companheira que cuide de sua vida doméstica, como a irmã fez por muito tempo, seja sua secretária e talvez até, diferentemente da irmã, seja uma parceira intelectual de conversa”, escreve o biógrafo Safranski. Além disso, revela que sua vontade de casar-se não é lá tão intensa e que ele só concordaria com isso caso pudesse, desde o início, colocar um prazo de validade no casamento: só poderia aguentar um matrimônio de, no máximo, 2 anos. Para minorar ainda mais as chances do casório dar certo, há a diferença de idade: quando se conhecem, Lou é uma jovem mulher de 20 e poucos anos, Nietzsche já passou dos 35 e encontra-se aposentado por invalidez de seu posto como professor na Basiléia.
Não havia modo de Lou Salomé, mulher de espírito independente, defensora convicta de sua autonomia, em ruptura com todos os dogmas a respeito da posição da mulher na sociedade, que por muito tempo rejeitou o matrimônio tradicional, pudesse sentir-se atraída pelo modelo de esposa doméstica-secretária que Nietzsche trazia em si. Não ia dar liga. Em Biografia de uma Tragédia, Safranski pesquisou a fundo o vínculo Nietzsche e Lou e descobriu fortes indícios de que aquilo que o filósofo procurava de fato em Lou era uma discípula e herdeira. Em uma carta a Malwida, em 13 de Julho de 1882, manifesta o desejo de ter nela uma discípula dizendo: ‘se minha vida não for muita longa, minha herdeira e continuadora do meu pensamento’. Em uma carta endereçada a Lou, em 27 de junho de 1882, Nietzsche diz explicitamente: “Desejei muito poder ser seu mestre. Em última instância, para dizer a verdade toda: agora procuro pessoas que possam ser meus herdeiros; trago comigo algumas coisas que não se podem ler em meus livros – e para isso procuro a terra mais bela e fecunda.” (Safranski, p. 231)
A imagem de Lou como “terra bela e fecunda” onde Nietzsche pudesse depositar suas sementes talvez possa ser lida por um psicanalista como símbolo de uma libido arrebatada que faz referências cifradas à uma fecundação mais carnal do que intelectual. Mas nada na relação dos dois sugere de modo explícito que Nietzsche desejasse uma mulher com quem ter filhos: para o filósofo, os únicos filhos eram seus pensamentos e livros, e em sua solidão extremada ele buscava alguém que pudesse dar sequência às suas doutrinas, ser depositária e continuadora de seu legado, tendo encontrado em Lou e todo seu precoce brilhantismo intelectual a candidata ideal. A esperança que Nietzsche nutre não parece ser propriamente erótica, mas envolve a necessidade Nietzsche de, como fará seu herói Zaratustra em um livro que está prestes a começar a ser escrito, compartilhar o mel que a abelha laboriosa acumulou e que agora está transbordando de seus limites.
Ora, Lou Salomé, mesmo em tão tenra idade, não é uma moça de se contentar em orbitar ao redor dos homens, ela é muito mais um sol que brilha com luz própria. Prestamos um desserviço à vida e à obra de Lou Salomé quando a descrevemos como uma mulher que se encantou com grandes homens – Nietzsche, Rilke, Freud – e os orbitou, quando na verdade o processo de orbitação, ao menos no caso de Nietzsche e Rilke, é muito mais intenso no pólo dos homens, que chegam a evocar a imagem das mariposas da canção de Adoniran Barbosa, Lou Salomé servindo como a “lâmpida” que os põe fascinados e girando ao seu redor. Hoje é fácil perceber que Lou, com toda a sua independência de espírito, com todo o ímpeto de livre-pensadora que a animava, jamais seria apenas uma secretária e uma obediente discípula do professor Nietzsche. O que não significa que ela não tenha sim aprendido um bocado com o filósofo, o que ela revela em minúcias nas quase 300 páginas que lhe dedica na obra de 1984.
Lou Salomé e Nietzsche nunca foram propriamente um casal. O retrato minucioso do caráter psicológico de Nietzsche que Lou nos forneceu, e que constitui um dos méritos imorredouros de seu livro, fornece-nos as chaves para compreender o porquê deste fracasso. Havia em Nietzsche, diz Lou, muita solidão e muito sofrimento, uma personalidade arredia ao contato humano, um jeito-de-ser recluso e anti-social. Lou descreve suas primeiras impressões de Nietzsche destacando a estranheza de seu olhar, que parecia voltado para dentro e não para fora, como se observasse seu labirinto interior muito mais do que os fenômenos sensíveis. “Em alguma profundeza oculta de nossa natureza, escreve Lou, estamos inteiramente distanciados um do outro. Na sua natureza, como numa velha fortaleza, Nietzsche tem muitos calabouços escuros e porões escondidos que não são percebidos num encontro superficial, mas que podem conter o mais pessoal dele.” (Safranski, 233)
Certamente não são apenas alguns traços de personalidade de Nietzsche que geram repulsa em Lou e fazem-na se afastar do filósofo – após as duas recusas do pedido de casamento, Lou se mudará para Berlim, onde dividirá o lar com Paul Rée, enquanto Fritz, re-entregue à solidão, talvez mais cruel do que nunca pelo sopro cálido de amor possível que vivenciou, embarca na embriaguez lírica que dará à luz a primeira parte de Assim Falou Zaratustra. Para compreender a ruptura entre Lou e Nietzsche, uma peça-chave é a irmã do filósofo, Elizabeth Forster Nietzsche, uma notória antisemita, casada com um sujeito que fundou uma colônia de arianos no Paraguai. Elizabeth sempre esteve em pé de guerra contra Lou Salomé e por décadas moveu uma campanha de difamação contra ela. Considerava Lou como uma espécie de femme fatale que punha em risco seu pobre irmãozinho Nietzsche.
Hoje sabemos que Elizabeth é a responsável principal pela perversão deliberada da obra não publicada do filósofo: tendo seus próprios interesses e filiações ideológicas em vista, ela editou os escritos nietzschianos que este não deu aval para publicação e lançou postumamente o problemático livro Vontade de Potência, tentando vender a ideia de que Nietzsche era um precursor da ideologia nazista. Em 1933, no lançamento dos Arquivos Nietzsche, Elizabeth fez uma premiére que contou com ninguém menos do que o chanceler Adolf Hitler.
Tudo indica que Elizabeth, apegada à sua beatice e à doutrinas pangermânicas racistas, perverteu a obra do irmão e prestou assim um desserviço à sua memória, tornando-o na avaliação apressada de alguns uma espécie de precursor do pangermanismo antisemita, racista e genocida, uma visão que foi adotada inclusive por intelectuais de importância na esquerda marxista (penso no Lukács de O Assalto à Razão). Elizabeth, que por muito tempo propagou a noção de que Lou Salomé era uma serpente venenosa e fez todos os esforços para convencer o irmão disso, é uma espécie de sabotadora da relação. Tempos depois, rompendo relações com a irmã e com a mãe, Nietzsche dirá: “Confesso que minha objeção mais profunda ao Eterno Retorno, meu pensamento propriamente abismal, é sempre minha mãe e minha irmã.” (Astor, p. 88) Ele não suportaria viver infinitas vezes o suplício das relações familiares tal qual conheceu.
O melhor antídoto contra esta visão deturpada do filósofo é o estudo de suas posturas e convicções: Nietzsche estava muito longe de ser um patriota, um nacionalista, não tem nenhum apego sentimental pela Alemanha, jamais subscreveria a qualquer Deustchland Uber Allez, aliás viveu uma existência nômade, peregrina, vivendo na Suíça, na França, na Itália, em um espírito de cosmopolitismo que evoca o exemplo de Diógenes de Sínope, o inventor do conceito e do modo-de-vida cosmopolita. Além disso, Nietzsche abominava o antisemitismo, como atestado por inúmeros escritos e cartas, e talvez esteja aí uma das razões para sua ruptura com Wagner. Em seu magistral estudo O Bufão dos Deuses, a professora Maria Cristina Franco Ferraz produziu uma obra perfeita para esclarecer a situação de Nietzsche em sua época e desfazer todos os maus-entendidos, iluminando também a relação do filósofo com Lou e Rée.
A ruptura de Lou com Nietzsche, causada também pela impossibilidade de uma convivência civilizada entre Lou e Elizabeth, será uma profunda ferida para o filósofo. Ele havia alimentado sublimes esperanças de que tinha encontrado enfim a discípula perfeita. Sua amarga decepção e seu sentimento de abandono, quando Lou seguir seu caminho sem ele, lançarão o filósofo em um estado de espírito lastimável, doloroso, atormentado. Diz Safranski:
Safranski
“Ele lhe revelou sua existência espiritual como a ninguém antes disso. Sentia que havia entre eles um entendimento profundo e único. Ela tocara o centro de seus talentos e intenções. Ele se sentia quase inteiramente compreendido por ela: ‘Algumas grandes perspectivas do horizonte espiritual e ético são minha mais poderosa fonte de vida, e sinto-me tão contente porque exatamente nesse chão nossa amizade tem suas raízes e esperanças’ (18 de Junho de 1882).
(…) Que ela o tenha compreendido tão bem e depois prosseguisse seu caminho com sua incontrolável curiosidade pelas pessoas, em vez de permanecer sob o fascínio dele, que o tivesse largado de novo, como a um mero estágio de sua formação, deixando-o para trás – isso é uma ideia insuportável para Nietzsche. Ele não mostrou a soberana serenidade de um Zaratustra, que estimulava seus discípulos que o deixassem depois de o terem encontrado. Exatamente isso, que Lou se libertasse dele seguindo seus caminhos, foi o que o feriu profundamente. Sentiu-se usado, desperdiçado. Uma discípula lhe dá a entender que o compreende, e depois vai procurar outros mestres. Nietzsche sofreu isso como uma ofensa inaudita. Agora, no inverno de 82/83, ele se sente lançado de volta a si mesmo como nunca antes. Em dezembro de 82, escreve a Overbeck: Agora estou inteiramente só diante da minha tarefa. Preciso de um baluarte contra o mais insuportável de tudo.” (SAFRANSKI, p. 235)
Neste contexto emocional, Nietzsche inicia a escritura de Assim Falou Zaratustra, uma das obras-primas da filosofia e da literatura nos últimos séculos, um livro que nasce sob o impacto do contato e da ruptura com Lou Salomé. Em Zaratustra, Nietzsche projeta muitas de suas próprias lutas e angústias, sua busca por ser compreendido, sua peregrinação em busca de espíritos livres que possam compreendê-lo. As noções de “fidelidade à terra”, de “sagrado sim” à vida, eram temas constantes de conversa com Lou Salomé e não é absurdo supor que ela seja uma das musas inspiradoras da noção de Übermensch. Em uma de suas cartas ao pastor Gillot, Lou diz:
“Não posso viver obedecendo a modelos, nem jamais poderia representar, para quem quer que seja, um modelo. Mas é inteiramente certo que construirei minha vida segundo aquilo que sou, aconteça o que acontecer. Fazendo isso, não defendo nenhum princípio, mas sim alguma coisa bem mais maravilhosa, alguma coisa que está em nós, que arde no fogo da vida, que exulta e quer brotar… Quero permanecer sempre em estado de transição.” (Astor, p. 63)
Lou Salomé permanece uma peça-chave para a compreensão do quebra-cabeça nietzschiano. É a responsável por um dos livros mais brilhantes sobre o filósofo, Nietzsche Através De Suas Obras, publicado ao fim do século 19, em 1894, quando Nietzsche ainda vivia, embora em estado de semi-paralisia cerebral e já tendo encerrado sua vida criativa. Muitos dos trechos da obra foram lidos por Lou para Nietzsche e aprovados pelo próprio. Trata-se de uma obra tremendamente reveladora, que honra toda a complexidade do pensamento do filósofo, além de oferecer uma pintura psicológica complexa e nuançada de sua personalidade, de seu caráter, de seu jeito-de-ser. Lou lança uma luz sobre
“o sentido profundo de sua obra, de seus sofrimentos e de sua autobeatificação. Toda sua evolução resulta, em certa medida, do fato de muito cedo ele ter perdido a fé; ela tem sua origem na emoção causada pela morte de Deus, emoção inaudita cujos últimos rugidos repercutem pela última obra, a que Nietzsche redigiu no limiar da loucura, a 4a parte do Zaratustra. A possibilidade de encontrar um sucedâneo para o deus morto através das formas mais diversas da divinização de si: esta é a história de seu espírito, de sua obra, de sua doença. É a história da sequela do instinto religioso no pensador, instinto que continua muito poderoso, mesmo depois da queda do deus ao qual ele se dirigia.” (LOU SALOMÉ, apud Astor, p. 93)
O problema crucial da vida e da obra de Nietzsche, sustenta Salomé, é a superação da crença em Deus e do universo de valores conectado à fé. A morte de Deus, vivida como aventura existencial demandando muito heroísmo da parte do espírito livre transvalorador, envolve épicas batalhas contra o niilismo, o desânimo, a apatia, mas envolve também o perigo no qual Nietzsche soçobrou: o da auto-beatificação. Após o colapso da instância de valor transcendente, aquele que não quer soçobrar no niilismo precisa encontrar novos valores. Nietzsche mostra o quanto a maturação intelectual e a aventura da filosofia dependem da emancipação humana em relação às quimeras religiosas, mas seu destino também nos alerta sobre os perigos do individualismo excessivo, da postura aristocrática, do pathos da distância que pode atingir extremos deveras patológicos.
Para Lou Salomé, Nietzsche – e posteriormente Rilke – permanecerão como existências humanas singulares, irrepetíveis, que mostram a capacidade rara de utilizar todo o sofrimento da vida como combustível para o ímpeto criador. Em outro poema de Lou que Nietzsche adorava, “À Dor”, ela faz um hino ao espírito capaz de não naufragar com suas dores: “o combate engrandece os maiores” e o “sofrimento é o alicerce para a grandeza de espírito” (Astor, p. 95). Aí está a raiz da profunda empatia e amor que Nietzsche pôde sentir por Lou Salomé: ela expressava algo que sua obra também visa expressar, ou seja, que o sofrimento não é um argumento contra a vida, que deve ser acolhido também através daquele sagrado sim, fundamento da visão trágico-dionisíaca de mundo. Trata-se de um esforço heróico para amar a vida com tudo o que ela inclui de doloroso, de problemático, de insolúvel, de contraditório. Após a morte de Deus, sabedoria é aprender a amar a vida como ela é, sem exclusão de seus aspectos aflitivos e intragáveis.
“Esta paixão pelo sim é sem dúvida o ponto comum mais marcante entre Lou e Nietzsche, que será fundamental o suficiente para perdurar para além da incompreensão e da decepção. É a constância dessa afinidade que permite a Nietzsche, em Ecce Homo, celebrar a grandeza de sua antiga amiga; é ela também que permite a Lou, 10 anos após a ruptura entre eles, escrever o primeiro estudo sistemático sobre a filosofia nietzschiana… Esses dois indivíduos sempre atribuíram mais importância à vida em sua totalidade do que às pessoas em particular… cada indivíduo nunca passa de uma ‘parcela de destino’, e é por isso que os fracassos pessoais sempre são considerados, no fim das contas, num gesto mais amplo de gratidão para com a vida como um todo.” (Astor, p. 97)
A gratidão pela vida necessariamente inclui não só a aceitação resignada do sofrimento, mas uma espécie de acolhimento entusiástico, que não se confunde com o masoquismo, mas é sabedoria trágica que reconhece que a dor não é um argumento contra a existência, muito pelo contrário: na dor podemos amadurecer e nos fortalecer, na dor podemos criar e transvalorar. Em suma: a dor vale a pena ser vivida pois “engrandece os maiores” e é “o alicerce da grandeza de espírito”, como Lou Salomé expressa muito bem em seu poema:
À Dor
Quem pode fugir-te, quando o agarraste,
Se pousas sobre ele teu sombrio olhar?
Não fugirei se me pegares,
– Nunca acreditarei que apenas destruas.
Eu sei, deves atravessar cada vida
E nada permanece intocado por ti sobre a terra,
A vida sem ti – seria bela!
E no entanto – vales ser vivido.
Certo, não és um fantasma da noite,
Vens lembrar ao espírito a sua força,
É o combate que engrandece os maiores.
– O combate pelo objetivo, por impraticáveis caminhos.
E se só podes me dar em troca da felicidade e do prazer
Uma única coisa, ó Dor: a verdadeira grandeza,
Então vem, e lutemos, peito contra peito,
Então vem, haja morte ou vida.
Então mergulha no fundo do coração,
E vasculha no mais íntimo da vida,
Leva o sonho da ilusão e da liberdade,
Leva o que não vale um esforço infinito.
Não continuas a última vitória do homem,
Mesmo que ele ofereça seu peito desnudo a teus golpes,
Mesmo que ele se desfaça na morte
– És o alicerce para a grandeza de espírito.
Em carta a seu amigo Peter Gast, Nietzsche dirá: “O poema ‘À Dor’ não é meu. Ele faz parte das coisas que têm um poder absoluto sobre mim; nunca consegui lê-lo sem derramar algumas lágrimas: ele ecoa como uma voz que nunca deixei de aguardar desde minha infância.” Os ecos deste poema aparecem em frases célebres de Nietzsche e de seu Zaratustra, como “o que não me mata me fortalece” e nas celebrações que faz do artista que sofre em suas dores de parto e que, de seu caos interior, dá à luz uma estrela bailarina.
Em Lou Salomé expressa-se uma sabedoria que comoveu profundamente a Nietzsche, que pôde encontrar inúmeras afinidades entre sua própria visão de mundo, sua afirmação da existência através do amor fati dionisíaco do espírito libertado, como fica claro no seguinte trecho que Lou escreve em Nietzsche Através de Suas Obras (1894):
“Apanhados de maneira inextricável na rede da vida, acorrentados sem esperança a seu círculo fatal, precisamos aprender a dizer ‘sim’ a todas as formas que assume, para podermos suportá-la: somente a alegria e o vigor com os quais proclamamos esse sim nos reconciliam com a vida, porque nos identificam com ela. Sentimo-nos, então, um elemento criador de seu ser; melhor: tornamo-nos seu próprio ser, com toda sua superabundância de plenitude e forças. O amor sem restrições pela vida, essa é a lei moral única e sagrada do novo legislador.” (LOU SALOMÉ, apud Astor, p. 183)
SOBRE O AUTOR – Eduardo Carli de Moraes atua como professor de filosofia do Instituto Federal de Goiás (IFG); tem mestrado em Ética e Filosofia Política pela UFG – Universidade Federal de Goiás, além graduações em filosofia pela USP – Universidade de São Paulo e comunicação social pela UNESP – Universidade Estadual Paulista. Este texto serviu de base para comunicação que apresentada no II Colóquio Internacional Nietzsche no Cerrado, ocorrido na UFG , entre 04 e 06 de Setembro de 2017 (programação abaixo).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Nietzsche À Travers Ses Ouevres. Paris: Grasset, 1992.
———————————-. Minha Vida. São Paulo: Brasiliense, 1985.
ASTOR, Dorian. Lou Andreas-Salomé. Porto Alegre: L&PM, 2015.
FERRAZ, Maria Cristina Franco. O Bufão dos Deuses. Relume Dumará.
FEUERBACH, Ludwig. Preleções sobre a essência da religião. Campinas, SP: Papirus, 1989.
MINOIS, George. A História do Ateísmo. São Paulo, Unesp, 2014.
NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano. Companhia das Letras de Bolso, 2005.
————————. Aurora.
————————. Assim Falava Zaratustra.
————————. O Nascimento da Tragédia.
————————. Ecce Homo. ———————–. A Gaia Ciência. ———————–. O Viajante e sua Sombra.
OLIVEIRA, Marcos Silva. Autópsia do Sagrado. Salto, SP: Schoba, 2012.
SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche – Biografia de uma Tragédia. Trad. Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2011.
REFERÊNCIAS FÍLMICAS
Além do Bem e do Mal, de Liliana Cavani (1977) Quando Nietzsche Chorou, da obra de Yalom Human, All Too Human: Nietzsche, Sartre, Heidegger, uma minisérie da BBC
Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse
inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte. Pois o que é o Belo
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo Anjo é terrível.
E eu contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, que nos poderia
valer? Nem Anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina, que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgasta-nos a face – a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que se amam?
Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos – talvez os pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.
Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob uma janela aberta,
uma viola d’amore se abandonava. Tudo isto era missão.
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre
distraído, à espera, como se tudo
anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,
se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm
dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém, canta às amantes;
ainda não é bastante imortal sua celebrada ternura.
Tu quase as invejas – essas abandonadas
que te pareceram tão mais ardentes que as
apaziguadas. Retoma indefinidamente o inesgotável
louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda
mesma foi um pretexto para ser – nascimento supremo.
Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio
esgotado, como se as forças lhe faltassem
para realizar duas vezes a mesma obra.
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem
qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou
como ela? Frutificarão afinal esses longínquos
sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se
do objeto amado e superá-lo, frementes?
Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo
mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detêm.
Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas
os santos ouviam, quando o imenso chamado
os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, e nada percebiam,
tão absortos ouviam. Não que possas suportar
a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,
a incessante mensagem que gera o silêncio.
Ergue-se agora, para que ouças, o rumor
dos jovens mortos. Onde quer que fôsses,
nas igrejas de Roma e Nápoles, não ouvias a voz
de seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,
sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa…
O que pede essa voz? A ansiada libertação
da aparência de injustiça que às vezes perturba
a agilidade pura de suas almas.
É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
às rosas e a outras coisas singularmente promissoras
não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano;
o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,
não mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome
como se abandona um brinquedo partido.
Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho,
ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,
desligado. E o estar-morto é penoso
e quantas tentativas até encontrar em seu seio
um vestígio de eternidade. – Os vivos cometem
o grande erro de distinguir demasiado
bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem
se caminham entre vivos ou mortos.
Através das duas esferas, todas as idades a corrente
eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.
Os mortos precoces não precisam de nós, eles
que se desabituam do terrestre, docemente,
como de suave seio maternal. Mas nós,
ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes
só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira
música para lamentar Linos violentou a rigidez da
matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem,
quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
em vibrações – que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.
Rainer Maria Rilke
P.S. – “Contam que Rilke, depois dos primeiros versos que o vento lhe ditou nas altas penedias de Duíno, viveu doze anos com aquele germe, em viagens, em mudanças, em desperdícios, em guerras, até o momento de realizar, em quatro dias, como quem morre, as suas elegias perfeitas. Não será sempre assim? Não será a própria vida uma longa e desarrumada atividade dos bastidores para uma fugaz apoteose?” In: GUSTAVO CORÇÃO, Lições de Abismo.
Rilke, 1906. Foto: George Bernard Shaw.
SIGA VIAGEM:
Correspondência Rilke e Lou von Salomé – Audiobook
Compartilhando seus saberes e fazeres, festas e rezas, mitos e ritos, alguns Guarani-Mbyá, vindos de Santa Catarina, marcaram presença nesta X Aldeia Multiétnica. Destacaram-se as presenças do pajé Alcindo Moreira (Werá Tupã), que tem 107 anos de idade, além de sua esposa. Rosa Mariane Potydja, que também já ultrapassou um século de vida, além do filho deles, Geraldo Moreira (Karai Okenda).
Pajé Alcindo Moreira, 107 anos, compartilha saberes e vivências na X Aldeia Multiétnica. Foto: Pedro Henriques.
Somados, Alcindo e Rosa já possuem mais de dois séculos de experiência vivida e servem como emblemas de uma cultura que valoriza e celebra o saber dos xeramoi, os avôs-conhecedores, verdadeiras bibliotecas vivas das tekoás (aldeias ou comunidades). Estes anciãos são respeitados por serem os detentores de uma sabedoria enraizada nos antepassados, que amadurece vida afora, como o fruto de uma árvore cultivada com esmero. São os avós que transmitem, pela tradição oral, saberes e técnicas que atravessam as gerações e são capazes, ainda hoje, de instruir e curar (como alguns conviventes deste XVI ECTCV puderam vivenciar na própria pele ao serem medicados pelos chás-do-pajé).
Em uma roda-de-prosa que contou com a presença de pai e filho, Alcindo e Geraldo, o fotógrafo gaúcho Danilo Christidis partilhou conosco um pouco do seu percurso de sete anos de convivência com os Guarani-Mbyá, no Rio Grande do Sul, que gerou um livro de fotografias inovador: Os Guarani Mbyá,publicado em Porto Alegre, 2015, pela Ed. Wences, que Danilo julga ser o primeiro, no âmbito da fotografia, a ter sido composto em co-autoria com um fotógrafo indígena, Vherá Poty (“Relâmpago Florido”). Saiba mais na matéria de Nonada.
Danilo relembra alguns momentos deste percurso: “Em 2008, uma família Mbya foi desalojada violentamente em Eldorado do Sul (RS). Recebi no meu e-mail um vídeo com um pequeno registro documental da retirada violenta desta família, e em seguida entrei em contato com o Santiago, um dos membros da família, pois tinha vontade de, por meio da fotografia, buscar estar junto com eles e formar algum tipo de parceria. Embarquei numa série de viagens com o Santiago, além de alguns antropólogos da UFRS, nas quais as lideranças indígenas decidiram pressionar o Ministério Público para que este processasse o Estado por causa da violência daquele processo de desalojamento. Os Mbyá acabaram ganhando a causa e o Estado teve que indenizar a família”.
Esta primeira vivência de Danilo junto aos Guarani-Mbyá propiciou seu encontro com Vherá Poty, uma jovem liderança que se tornaria seu parceiro para uma insólita aventura fotográfica. Danilo relembra que a princípio serviu como professor de fotografia, ensinando técnicas e truques para o Guarani.
Mas “o interessante é que os papéis se inverteram muito rapidamente: eu deixei de ser o professor e me tornei muito mais o aluno dele”, rememora Danilo. “Eu queria aprender como desconstruir o meu olhar, que é de um não-indígena (o que eles chamam de um juruá, um “boca-cabeluda”). Assim, pouco a pouco busquei entender de que forma poderia aparecer, na fotografia, um modo-de-vida. Foram sete anos convivendo para que fosse possível realizarmos este livro”.
Após esta jornada de convivência, Danilo tirou a conclusão de que “existe uma tremenda diversidade de povos originários e cada um possui uma cosmovisão própria”. No caso dos Guarani-Mbyá, o modo de conceber o universo passa pela divinização dos astros, em especial o Sol (Ñanderu Ñamandu), e tanto as danças rituais quanto o idioma estão sintonizados à esta cosmologia.
Um exemplo, explica Danilo, é a expressão em guarani que costumamos traduzir por “bom dia!”, e que na verdade é uma saudação à divindade solar que significa: “mais uma vez o Sol nos desperta”. Já a palavra tekoá, traduzida como “aldeia”, expressa uma relação da comunidade com o território, entendido como “o lugar onde pudemos ser o que somos”.
Uma das expressões da cultura Guarani-Mbyá é o xondaro, uma dança ritual onde manifesta-se também a cosmologia deste povo: através do xandaro, aqueles que dançam buscam entrar em contato com as entidades celestes conhecidas como nhanderu kuery – como o Sol e a Lua, astros que são considerados como irmãos. É interessante notar que, segundo a mitologia dos Guarani-Mbyá, “nas esferas celestes osnhanderu kuery estão dançando, cantando e fumando; na terra, os Guarani fazem como eles, em suas casas de reza (opy) e pátios”. [1]
Ou seja, quando os Guarani-Mbyá dançam, não estão apenas brincando, obedecendo aos pendores lúdicos, divertindo-se ou passando o tempo. Quando eles dançam, estão imitando os deuses. Esta religiosidade, politeísta e atenta aos fluxos e movimentos cósmicos, parece conceber também os deuses celestes como diferentes entre si, o que gera uma consequência incrível: dança-se para imitar os deuses que dançam, mas já que cada um dos deuses não dança a mesma dança, aqui na terra, concluem os Mbyá, “ninguém dança igual”.
Essas e outras portas de acesso à ancestral cultura guarani puderam ser transpostas pelos conviventes da Aldeia Multiétnica – que talvez nunca mais olhem para o Sol da mesma maneira depois de terem aprendido que, para os Mbyá, trata-se de uma divindade que, a cada manhã, desperta todos os seres e que nunca, por preguiça ou desleixo, falta ao encontro. Na aurora se pode ter uma fé absoluta: o sol não falha jamais em (re)nascer. E os astros, dançando em suas órbitas, fluindo pelo espaço, parecem pedir dos humanos uma mímesis ou imitação de sua dança.
Para abrir outros horizontes que convidem o leitor a conhecer mais sobre os Guarani-Mbyá, sua cosmologia, seus costumes, seu idioma, suas sabedorias, suas técnicas, na sequência compartilhamos as palavras de Vherá Poty, que ilustram o começo do livro fotográfico que ele co-criou na companhia de Danilo Christidis:
“Assim como as flores que atraem os pássaros e os insetos, possibilitando a formação de frutos e sementes que germinarão novas plantas, as belas palavras dos meus avós encantam meu pensamento: cores harmoniosas, aromas agradáveis e saboroso néctar.
No chão batido dos pátios ou no interior de nossas moradas, nos sentamos ao redor do fogo que nunca se apaga – há sepre alguém alentando as chamas inspiradoras com sopros e pequenos galhos -, e realçados pelas labaredas ouvimos, junto com o cocoricar dos galos, o guinchar dos bugios, o crepitar dos gravetos… as falas inspiradas dos anciãos sobre seus conhecimentos, lembranças, experiências.
Para nós, os que partilham a existência terrena, a transmissão de conhecimentos tem lugar privilegiado nos aconselhamentos dos velhos, inspirados pelos deuses, pois Eles se enfeitam e enfeitam o mundo. Suas falas são moderadas, agradáveis, plenas de cuidado, pronunciadas para fazer brotar bons e belos efeitos, voltadas para o bem-estar daqueles com quem se vive junto.
Vivemos baseados nos princípios da generosidade e da reciprocidade, que chamamos de mborayu. Viver na generosidade, compartilhando o excedente, é viver com alegria e beleza. Alegrar-se não é divertir-se, é estar tranquilo e saudável, com disposição para algum afazer e para o convívio com aqueles que estão por perto. Um mundo sem parentes é impensável. O simples, o moderado é belo, porã, e divino. Negar o excesso é entendido como um valor prescrito pelos deuses. O que é bonito assim o é porque se assemelha àquilo que é divino ou porque é mesmo divino.
Meu nome é Vherá Poty, Relâmpago Florido, sou Guarani-Mbyá. Os velhos falam, eu escuto.”[2]
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] Artigo de Joana Cabral de Oliveira e Lucas Keese dos Santos, no livro Políticas Culturais e Povos Indígenas, ed. Unesp – Cultura Acadêmica, pg. 119.
[2] Livro fotográfico Os Guarani-Mbyá, de Danilo Christidis e Vherá Ponty. Porto Alegre, 2015, Ed. Wences.
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CONFIRA ALGUMAS FOTOS DO LIVRO DE VHERÁ POTY E DANILO CHRISTIDIS:
“Há 16 anos, em toda segunda quinzena do mês de julho, o Brasil se encontra na Chapada dos Veadeiros. Um Brasil que gostamos de chamar de profundo. Profundo geograficamente e em sua sabedoria. A vila de São Jorge, já tão abençoada com sua comunidade local, forte e batalhadora, recebe representantes de diversos povos como o seu. Durante 15 dias, os olhos do mundo se voltam aos interiores, às roças, às aldeias indígenas, aos remanescentes quilombolas, aos pequenos produtores, artesãos, raizeiros, rezadeiras, parteiras, batuqueiros, aos artistas do povo. Aqui, fazemos música, dançamos, rezamos, debatemos, denunciamos, comemos, bebemos, compartilhamos, nos emocionamos – nos entregamos à celebração de um grande encontro de saberes e fazeres. No Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, nos reconhecemos como brasileiros, compreendendo o quão complexa é essa definição.
Darcy Ribeiro afirmava que “o povo que não conheça ou queira ignorar suas raízes culturais corre o risco de não avaliar corretamente sua realidade”. Em 2016, estamos em um momento propício para reflexão, diante de um governo que não compreende o lugar da cultura no projeto nacional. A extinção de políticas voltadas às mulheres, ao movimento agrário e aos direitos humanos é um retrocesso. A possibilidade da indicação de membros das bancadas ruralista e evangélica ao comando da Funai, assustadora. Diante deste cenário, a 16ª edição do Encontro de Culturas chega com uma boa notícia: nós não esmorecemos. Este ano, mais do que nunca, nos colocamos como um evento de resistência. Continuamos na luta pela construção de um Brasil verdadeiro.
Desde o início, o Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros incentivou grandes trocas. Para nos garantir como um evento transformador, aprendemos a lidar com as tecnologias sociais dos grupos tradicionais que recebemos e com eles construir diferentes espaços de conhecimento e formulação de estratégias que compreendam suas necessidades, demandas e dinâmicas, a fim de que, ao final, eles de fato se beneficiem. Foi assim que os povos tradicionais e indígenas tomaram para si o Encontro de Culturas como uma agenda coletiva de seus calendários e imaginário, mesmo com as dificuldades financeiras que muitas vezes ameaçam sua participação e a continuação do evento.
É por eles que continuamos. E por todos aqueles que de alguma forma se deixaram transformar pelos encontros que viveram em nosso grande Encontro. Também pelos tantos outros que virão. Nosso nome é pronto, como diz Seu Otávio, grande parceiro Kalunga. Quando dizemos que vamos, nós vamos mesmo. Coisa de gente da roça, pra quem palavra e confiança são as coisas mais importantes que se pode conquistar. Guiados pela fé, que não costuma faiá, preparem o coração. O XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros vai começar.”
Confira tudo o que vai rolar no XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, de 15 a 30 de julho
A primeira etapa do Encontro começa com a Aldeia Multiétnica, de 15 a 22 de julho, quando receberemos cerca de nove etnias indígenas de diversas regiões do Brasil para uma semana de intercâmbio cultural. Entre elas, estão Fulni-ô, Kayapó, Krahô, povos do Alto Xingu, Guarani Mbya, Dessana, Xavante. Convidados como Denilson Baniwa, da Rádio Yandê, Rodrigo Siqueira, diretor deÍndio Cidadão, representantes do poder público, fotógrafos, cineastas e comunicadores vão compor rodas de prosa e oficinas ligadas ao tema do evento comemorativo deste ano: “10 anos de Aldeia Multiétnica: Comunicação, Saberes Tradicionais e Novas Linguagens”. Pautas importantes como saúde, educação escolar, afirmação da identidade indígena, conservação de sementes tradicionais e crioulas, segurança alimentar e sabedoria dos ciclos femininos também serão abordadas, como é prezado em todas as edições do evento. Ainda dá tempo de se inscrever pelo site www.aldeiamultietnica.com.br e garantir uma vaga.
Na Aldeia Multiétnica, respeitamos a dinâmica indígena, que é naturalmente mais livre. Por isso, a programação nunca é fechada: pode mudar a qualquer momento, conforme as decisões das lideranças. No dia 22 de julho, como manda a tradição, ao final da vivência na Aldeia os indígenas se direcionam à Vila de São Jorge e passam o “comando” da festa aos remanescentes quilombolas da Comunidade Kalunga e aos povos e comunidades tradicionais convidados. Até o dia 30, a vila será tomada por atividades, como shows, apresentações dos grupos de cultura tradicional, oficinas, rodas de prosa, intervenções artísticas e espetáculos teatrais.
Este ano, pela primeira vez, o Encontro de Culturas recebe o I Encontro de Raizeiros e Pajés na Chapada dos Veadeiros, que acontecerá de 20 a 22 de julho, na Aldeia Multiétnica, e o Encontro de Lideranças Negras, que será realizado de 23 a 25 de julho em São Jorge. AFeira de Experiências Sustentáveis do Cerrado, montada pelo terceiro ano consecutivo com o patrocínio do Sebrae, é um dos destaques desta edição e contará com 14 estandes, que terão como foco a economia criativa do Nordeste Goiano.
A programação cultural contará com a participação das cinco comunidades precursoras do evento, representantes da região da Chapada dos Veadeiros: a Caçada da Rainha de Colinas do Sul, a Comunidade do Sítio Histórico Kalunga, o Congo de Niquelândia e a Folia de Crixás.
Além destes grupos, a 16ª edição terá atrações selecionadas mediante edital lançado neste site. Foram 177 propostas, enviadas das cinco regiões do país, das quais a curadoria selecionou 24 para a composição da programação artística e de parte das oficinas em 2016. Já está confirmada a participação de artistas como Mariana Aydar, Mestrinho, grupo Berimbrown, Gabriel Levy, Caixeiras do Divino da Casa Fanti Ashanti e o grupo mexicanoDanza Del Venado. Esta edição também contará com o Dia da Lavadeira, realizado em 26 de julho, uma releitura da tradicional Festa da Lavadeira, permeada pelas cores do maracatu e do samba de coco, marcantes na cultura pernambucana.
Também teremos três mostras de cinema ao ar livre: o Cineclube Brasileirando (15 a 30/07), oCinesolar (29 e 30/07) e o Projeto Cineclube na Praça (25 a 28/07), promovido pela UEG (Universidade Estadual de Goiás).
O Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros é um festival vivo, portanto a programação está sujeita a modificações. Sugerimos que não se atente a isso: entregue-se à celebração e deixe-se guiar pela energia que vibra pelas culturas tradicionais e pela Chapada dos Veadeiros.
“Há 16 anos, o Encontro de Culturas Tradicionais é realizado na Vila de São Jorge, na Chapada dos Veadeiros, com atividades gratuitas a todos. Um grande trabalho coletivo que reúne expressões culturais tradicionais de todo o Brasil. Este ano, pedimos a colaboração de todos para realizar nossa XVI edição. Escolhemos a cultura quilombola de nossos parceiros do Sítio Histórico Kalunga, o maior remanescente quilombola do Brasil, para chegar até vocês.
As recompensas para cada doação vêm diretamente de lá. Candeias, caixas de folia, tapetes feitos por nossa rainha Dona Dainda, buracas e uma viagem incrível, em agosto, até o Vão de Almas, quando acontece o Império do Divino Espírito Santo, uma das celebrações mais importantes desse povo e das mais bonitas de nosso País.
É muito fácil contribuir:
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Pronto! Colaborando, você contribui com a valorização da cultura tradicional brasileira e recebe em casa produtos únicos que expressam a riqueza da cultura quilombola.
Temos um mês para atingir nossa meta! Contamos com você para chegar ao valor que precisamos. A doação pode não fazer diferença no seu bolso, mas no nosso será fundamental para a realização de mais um encontro.
Compartilhe com todos os seus amigos! Convide a todos para este evento e nos ajude a divulgar a campanha.”
“Gautama Siddharta, o Buddha histórico que pregou nos séculos VI e V a.C., era um reformador monástico que, aceitando o contexto da civilização indiana, permaneceu nele inserido. Jamais negou o panteão hindu nem rompeu com o ideal tradicional indiano de libertação através da iluminação (moksa, nirvana). Sua obra específica não consistiu numa refutação, mas numa reformulação; baseou-se em sua profunda vivência pessoal dos atemporais preceitos indianos que instruem sobre a libertação dos laços de maya.
(…) Como todos os santos importantes da Índia, Gautama foi venerado, mesmo enquanto viveu, como veículo humano da Verdade Absoluta. Depois de morto, sua memória foi vestida com as roupagens exemplares do mito. Quando a seita budista expandiu-se… o grande fundador tornou-se cada vez mais um símbolo digno de veneração – representativo do poder redentor da iluminação latente em todo o ser enredado pela ilusão.
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Quando o Bem-Aventurado, na última vigília da Noite do Conhecimento, compreendeu o mistério da originação dependente, os dez mil mundos ribombaram ao alcançar ele a onisciência. Por sete dias permaneceu em postura de meditação sob a árvore Bo (ou Bodhi, a “Árvore da Iluminação”), às margens do rio Nairanjana, absorvido na iluminada bem-aventurança.
Refletiu, com a compreensão que viera de adquirir, sobre a servidão de toda a existência individualizada; sobre o poder fatal da ignorância inata que subjuga com seu sortilégio todos os seres vivos; sobre a irracional sede de vida que se segue e que impregna tudo; sobre o círculo infinito de nascimento, sofrimento, declínio, morte e renascimento.
Transcorridos sete dias, ele se ergueu, caminhou um pouco e deteve-se junto a uma grande figueira, sob a qual retomou sua postura de meditante; assim esteve por mais sete dias, mergulhado na bem-aventurança da iluminação. Depois ergueu-se de novo e alcançou outra árvore – a terceira.
Sentando-se outra vez, reverenciou por novos sete dias o estado de excelsa calma. Essa terceira árvore recebeu o nome de “Árvore de Mucalinda, o Rei-Serpente”. Mucalinda, uma serpente prodigiosa, vivia numa cavidade do chão, entre as raízes. Percebeu, assim que Buddha mergulhou em sua bem-aventurança, que uma grande nuvem de tempestade começava a adensar-se, embora não estivessem na estação chuvosa. Saiu no mesmo instante de sua morada escura e envolveu sete vezes, nas espirais de seu corpo, o corpo santo do Iluminado; sob o diâmetro do gigantesco capelo dilatado abrigou, como sob um guarda-chuva, a cabeça sagrada.
Por sete dias choveu e soprou vento frio, mas Buddha permaneceu em meditação. No sétimo, dispersou-se a tempestade extemporânea. Mucalinda despiu-se de suas espirais, transformando-se num jovem de nobre aparência e, levando à testa as mãos unidas, inclinou-se para adorar o salvador do mundo.
A lenda e as imagens de Mucalinda-Buddha representam uma perfeita reconciliação de princípios antagônicos. A serpente, simbolizando a força vital que dá origem a nascimento e renascimento, e o salvador, aquele que vence a cega ânsia de vida, que rompe os laços do nascimento e aponta o caminho da imperecível transcendência, desvendam aqui, em harmoniosa união, uma visão para além de todas as dualidades do pensamento.
Onde quer que encontremos uma sucessão de monumentos budistas que denote uma continuidade razoável, e que se refira aos séculos imediatamente anteriores à nossa era – aqueles que sobreviveram aos rigores do clima indiano e às vicissitudes históricas -, verificamos que as representações dos espíritos ofídicos estão associadas a inúmeros outros protetores divinos da fertilidade, prosperidade e vitalidade terrestre.”
ZIMMER, Heinrich. Mitos e Símbolos Na Arte e Civilização da Índia. Ed. Palas Athena, São Paulo, 1989. Pg. 60 a 62.
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e na compreensão desta práxis. [Karl Marx, 1845]
Combatendo a distorção e divulgação de notícias e conceitos falsos; Ocupando as redes sociais e denunciando moralistas e interesseiros de ocasião; Dialogando e formando amigos e conhecidos seduzidos por soluções autoritárias; Colaborando com ações e propostas conscientizadoras sobre as liberdades civis; Frequentando e defendendo os espaços plurais de produção, difusão e compartilhamento de saberes, conhecimentos e artes. RESISTA!