Da angústia solitária à revolta solidária: sobre a filosofia de Albert Camus || A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.”
ALBERT CAMUS em “Núpcias” [1]

CAPÍTULO 1: A Indesejada das Gentes

Confinados na implacável finitude da vida, nós, os mortais, temos acesso a poucas certezas inabaláveis, dignas do estatuto de verdades absolutas. A mais irrecusável das certezas, para cada um e todos, é a de que todos nós um dia vamos morrer – como diz o provérbio: morte certa, hora incerta.

Por ser aquilo que nos é comum, não importa em que latitude e longitude vivamos, nossa finitude nos une. No entanto, sermos finitos não é simplesmente algo aceito e acolhido como um fato bruto, mas sim algo que é “vestido” pela consciência humana com as mais variadas roupas, embalado nas vestes de crenças multiformes. O único bicho que sabe que vai morrer é também o animal simbólico, faminto por sentido. A vivência do perceber- se mortal é de extrema diversidade conforme as crenças (ou ausência destas) que a pessoa nutra (ou que tenha destroçado em si).

Além disso, é variável o grau de realização da morte [2], ou seja, o sujeito considera como real tal condição num gradiente que vai da negação de quem finge que a morte nunca virá, à obsessão mórbida de quem pensa-se como “cadáver adiado” (Fernando Pessoa) [3] a todo momento de todos os dias. As dinâmicas psíquicas do recalque / repressão desta consciência de nossa radical limitação espaço-temporal, socialmente consolidadas em ideologias destinadas ao negacionismo da finitude, são tema do clássico A Negação da Morte (The Denial of Death) de Ernest Becker [4].  

O fato de sermos mortais, ao mesmo tempo que nos une na mesma condição que nos é comum, também nos separa radicalmente: assim como “ninguém vive por mim” (cantou lindamente Sérgio Sampaio) [5], também podemos dizer a qualquer um: ninguém vai morrer no teu lugar, a tua própria morte é algo que você vai ter que encarar, cedo ou tarde, querendo ou não. Cada um encara o processo de morrer num estado onde a solidão se manifesta de modo mais extremo do que em outras vivências humanas. Pode ser que o poeta chileno Nicanor Parra tenha razão ao propor que “a morte é um hábito coletivo” [6], mas cada sujeito a vivencia de maneira singular. E arrasta para o túmulo e seu eterno silêncio o segredo incomunicável do que se passou por dentro naqueles últimos momentos vitais antes do fatal ponto-final.

Pedra irremovível no caminho do desejo de imortalidade que muitas vezes os humanos nutrem, a morte existe sobretudo como horizonte. Está presente por sua iminência. O que nos condena à angústia como parte integrante da condição humana. Costuma-se dizer que somos os únicos animais no planeta Terra que sabem que vão morrer, mas talvez fosse mais preciso dizer que o sentimos mais que sabemos. A angústia é este afeto em nós que atesta a nossa finitude.

Na história da filosofia, a reflexão sobre o futuro estado de esqueleto de cada um de nós já foi alvo de muitas reflexões: a sabedoria Epicurista pretendia curar o medo da morte e dos deuses, causadores de intranquilidades da alma que impedem a sábia ataraxia, com uma argumentação que a Carta a Meneceu (Sobre a Felicidade) sintetiza assim: “Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações.” [7] Quase dois milênios depois, Michel de Montaigne, em um de seus mais célebres ensaios, exploraria a noção de que “filosofar é aprender a morrer” [8].

É preciso aprender que, querendo ou não, a morte é nosso quinhão e que dar sentido a uma vida que acaba é nossa perpétua tarefa. A sensação de absurdo que às vezes se espraia pela existência tem a ver com o fato de que a foice às vezes pode arrasar com um vivente em momento inoportuno, em hora precoce, quando ele ou ela ainda estava cheio de sonhos, planos e forças.

Por isso, raros são aqueles que enfrentam a vida sem medo algum: a possibilidade da morte, sobretudo injusta, súbita, dolorida, tira-nos o sossego. Talvez nunca tenha nascido e completado sua trajetória finita entre os vivos nenhum animal humano que possa dizer, do berço ao túmulo: “atravessei o tempo sem nunca temer a morte”. Para o poeta Manuel Bandeira, a morte é “a indesejada das gentes”, a “iniludível” (aquela que não se pode burlar ou enganar) [9]:

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.

Pintura de Arnold Boecklin


CAPÍTULO 2: A CLARIVIDÊNCIA, IMPRESCINDÍVEL VIRTUDE CAMUSIANA 

Para Albert Camus (1913 – 1960), não há escapatória: “a angústia é o ambiente perpétuo do homem lúcido” – e a questão das questões, como o príncipe Hamlet sabia, consiste em escolher entre o sim à vida (ainda que angustiada) ou o não à ela (o caminho do suicídio) [10]. Quem vê claro, nesta vida, não escapa de sentir o fardo de afetos angustiantes. O que importa é que a angústia não nos paralise, que possa inclusive servir à nossa ação e ao nosso Combat – nome do jornal com o qual Camus colaborou, crucial na cobertura de eventos históricos como a Resistência à ocupação nazista da França, a Guerra de Independência da Argélia e o Maio de 1968.

Neste livro (Folio, 2013, 784 pgs), estão reunidos 165 artigos publicados por Camus no jornal Combat, onde ele atuou como editor chefe entre agosto de 1944 e junho de 1947. Saiba mais.

Publicado em 1947 pela Editora Gallimard, o romance “A Peste” expressa a atitude existencialista Camusiana diante dos flagelos que parecem querer soterrar a humanidade sob os escombros de um sentido arruinado. Diante da irrupção do absurdo coletivo que é a peste, esta máquina mortífera que ceifa vidas de animais humanos como se estes fossem moscas, o que propõe o artista-filósofo franco-argelino?

Para começo de conversa, o absurdo, para Camus, é um ponto de partida e não de chegada. Não se deve ficar estagnado diante do absurdo, como se ele fosse uma barreira intraponível que deveria nos fazer desistir de qualquer ação, abandonando-nos à passividade. A percepção do absurdo deve conduzir à revolta solidária dos humanos em luta contra os males de seu destino. Se, de fato, a revolta e a solidariedade são valores basilares do ethos camusiano, é preciso destacar ainda o posição de destaque que a virtude da clarividência ocupa no universo temático de Camus.

Isto que a língua francesa chama de clairvoyance tem um sentido próximo ao de lucidez. A lúcida clarividência está fortemente presente em A Peste, como se Camus quisesse ensinar que é preciso ver claro em meio ao horror se não queremos aumentá-lo ou colaborar com ele. Perder a lucidez, deixar ir pelo ralo a clarividência, em nada ajuda a frear a expansão das epidemias, nem auxilia a vencer as infestações do fascismo. O médico Bernard Rieux, narrador do romance, trabalha arduamente em meio à proliferação da doença, ainda que sinta seu cotidiano de combatente anti-peste como um trabalho de Sísifo, repleto de “intermináveis derrotas”.

É preciso compreender que Bernard Rieux é uma espécie de Sísifo em tempos de flagelo coletivo, numa época em que há a irrupção do absurdo em escala massiva. O rochedo que ele tenta arrastar montanha acima é a saúde de seus pacientes. Muitos de seus esforços médicos são em vão: a peste vence frequentemente e o paciente morre. Mas a batalha perdida não finda a guerra. Novos infectados não param de chegar aos hospitais, como novos rochedos a tentar empurrar montanha acima rumo à saúde sempre precária.

Rieux jamais desiste da luta, por mais que seja muitas vezes derrotado em seu intento de curar os adoentados ou de diminuir o sofrimento dos agonizantes. Rieux, apesar do tom afetivo que o domina ser o de um pessimismo de homem ateu, não cai nunca no derrotismo ou na resignação imóvel. Rieux é um trabalhador: não fica de braços cruzados diante dos males concretos que afligem os corpos de seus concidadãos. Não espera ou pede nenhum auxílio divino ou sobrenatural. Por isso, apesar de tantas derrotas diante da peste mortífera, o Doutor Rieux não se torna nunca um derrotado no sentido que dá a esta palavra o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, para quem “os únicos derrotados são os que baixam a cabeça, que se resignam com a derrota.  A vida é uma luta permanente, com avanços e retrocessos”. [11]

Imaginem se Mujica, em algum momento de angústia extrema, durante o período de 12 anos em que esteve confinado nos cárceres da Ditadura Militar uruguaia, tivesse desistido da luta. Se tivesse gasto até a última fibra de sua coragem e resiliência de tupamaro, se tivesse utilizado a saída do suicídio para escapar dos horrores de estar entre os vivos em tais condições horríficas, aí sim teria sido um derrotado – e não o futuro presidente do Uruguai e um ícone das esquerdas latinoamericanas. Por isso, no poster do filme Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner, que retrata as vivências de Mujica e outros dois prisioneiros, destaca-se a frase: “los únicos derrotados son los que bajan los brazos”. [12]

História semelhante se poderia contar sobre Nelson Mandela, Oscar Wilde, Antonio Gramsci ou Luiz Inácio Lula da Silva: na prisão, eles não abaixaram a cabeça, não se renderam à opressão deixando a resiliência cair estilhaçada ao solo, seguiram determinados em sua luta, clarividentes e revoltados em face de absurdos insultantes. Atravessando a noite que parece interminável. Nunca aderindo à preguiça dos passivos ou à inação dos resignados.


CAPÍTULO 3: A LITERATURA DAS ENCRUZILHADAS

Vários debates filosóficos atravessam o romance de Camus: A Peste é um romance repleto de difíceis encruzilhadas em que os personagens tentam escolher entra as alternativas que o destino lhes impõe. O jornalista Rambert, por exemplo, está separado da mulher que ama, preso na Oran empesteada, de onde as autoridades não permitem que ninguém entre ou saia. Tomando medidas para pagar por uma fuga, Rambert entra em negociações com contrabandistas, mas os acordos não avançam muito bem. Retido na cidade em quarentena, Rambert decide-se a trabalhar junto com o Dr. Rieux enquanto aguarda ocasião mais oportuna de escapar dali para se re-encontrar com sua amada.

Depois de muito refletir, quando enfim se apresenta a ocasião da fuga, Rambert prefere ficar ao invés de partir. Explica que “se partisse sentiria vergonha”. Ao que Rieux responde com firmeza que isto é uma “estupidez” e que “não há vergonha em preferir a felicidade”. Ou seja, em meio à desgraça toda, os personagens debatem sobre o hedonismo enquanto doutrina ética, a noção de que uma prazeirosa felicidade é o fim último (télos) da existência humana.

Rambert, nesta sua encruzilhada ética, sopesa as alternativas: fugir em direção à mulher de quem sente saudades é sua tentação mais forte, sua vontade quase irreprimível, pois é este o caminho que lhe aponta sua ânsia de felicidade, sua fome relacional, seu ímpeto de gozo afetivo, sexual, de estima carnal. Porém, o outro caminho que se desenha na encruzilhada é o de ficar na cidade para trabalhar, junto com os outros, em prol de uma melhoria da condição de todos. Rambert prefere ficar, argumentando, contra Rieux e seu hedonismo, que pode sim ser motivo de vergonha “querer ser feliz sozinho” (être heureux tout seul) [13].

Em contexto de flagelo coletivo, Rambert acaba por concluir que não tem direito à fuga na direção de sua felicidade individual. Terceira voz neste diálogo, Tarrou percebe bem que a natureza da escolha na qual Rambert se debate envolve um desejo de empatia para com os que sofrem durante a peste. Porém, esta empatia pode mergulhar o sujeito numa tal maré de compaixão que ameaça destruir completamente sua possibilidade de vivenciar afetos alegres e vivificantes. Para Tarrou, se Rambert “quisesse partilhar da infelicidade dos homens, não haveria jamais tempo para a felicidade. Era preciso escolher.”

Rambert, apesar do sofrimento da separação, que às vezes o conduz a gritar a plenos pulmões (op cit, item 13, p. 185) em montes desertos da cidade, acaba por decidir-se que não quer suportar a vergonha de fugir tentando ser feliz alhures, argumentando que “essa história nos concerne a todos”. Sua atitude tem pontos de contato com Sócrates tal como descrito no diálogo platônico Crítono filósofo se recusa a fugir da prisão de Atenas onde está condenado a morrer pela cicuta, argumentando que ser vítima de uma injusta é preferível a ser injusto violando as leis da pólis.

O Dr. Rieux, de maneira similar ao jornalista Rambert, está separado de sua esposa, com quem se comunica por cartas e telegramas, mas nunca lhe ocorre a tentação de escapar: ele chega a trabalhar 20 horas por dias nos meses de auge da peste, como heróico médico que vê sua fadiga e exaustão crescerem até os extremos, sem nunca desistir de seus deveres ou “amarelar” diante do fardo de sua responsabilidade.


CAPÍTULO 4: CAMUS E NIETZSCHE: UM DIÁLOGO FECUNDO

Ganhador do Nobel de Literatura de 1957, Camus devotou muitos esforços a um diálogo fecundo e crítico com a obra de Nietzsche (1844-1900): “o filósofo alemão agiu como um álcool forte sobre Camus”, defende Michel Onfray [14].

No Brasil, um livro brilhante de Marcelo Alves, pesquisador graduado em Filosofia e Mestre em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), explora com maestria o tema: Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche (um livro que nasce de sua tese de mestrado disponível na íntegra) [15].

Unidos na “fidelidade à terra”, como dizia Zaratustra, Nietzsche e Camus estão sintonizados no interesse que compartilham pelo amor fati, o amor ao destino. O ethos do espírito livre consiste em amar a vida  exatamente como ela é, sem exclusão de tudo que existe nela de contraditório, problemático, horrendo e assustador. Camus fala assim das “núpcias” do homem com a natureza:

“Aprendo que não existe felicidade sobre-humana, nem eternidade fora da curva dos dias. Esses bens irrisórios e essenciais, essas verdades relativas são as únicas que me comovem. (…) Não encontro sentido na felicidade dos anjos. Só sei que este céu durará mais do que eu. E o que chamaria de eternidade, senão o que continuará após minha morte?

A imortalidade da alma, é verdade, preocupa a muitos bons espíritos. Mas isso porque eles recusam, antes de lhe esgotar a seiva, a única verdade que lhes é oferecida: o corpo. Pois o corpo não lhes coloca problemas ou, ao menos, eles conhecem a única solução que ele propõe: é uma verdade que deve apodrecer e que por isso se reveste de uma amargura e de uma nobreza que eles não ousam encarar de frente.” (CAMUS) [16]

Alves comenta:

“O corpo é a medida do homem lúcido diante da sua condição. Amar a natureza é reconhecê-la, antes de tudo, enquanto limite e possibilidade da vida humana. Amor trágico esse, na medida em que se ama o que por fim nos aniquila. Muitos homens, no entanto, preferem recusar essa sabedoria trágica e transformar o seu medo da morte na esperança de outra vida… Mas custa caro desprezar a verdade do corpo, ser infiel à terra, deixar-se iludir por uma esperança, isto custa o preço da própria vida, ‘porque se há um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por uma outra vida e se esquivar da implacável grandeza desta’, como escreve Camus. (…) Fidelidade à terra é justamente o que Zaratustra não cessa de pedir encarecidamente a seus discípulos, alertando-os ao mesmo tempo sobre a ‘enfermidade’ característica dos ‘desprezadores do corpo’, dos ‘transmundanos’ e dos ‘pregadores da morte’.” (M. ALVES) [17]

Esta valorização do corpo, da vida encarnada, das verdades relativas, da sensorialidade palpável, nada tem a ver com uma idealização do corpo que apagasse tudo que há nele de problemático e trágico: Camus chama o corpo de “uma verdade que apodrece” e não cessa de refletir sobre a revolta humana diante da morte, ou seja, da finitude deste corpo matável e adoecível. Camus quer manter-se fiel à Terra e à virtude da lucidez, o que exige vivenciar nossa condição corpórea em tudo que ela comporta de delícia e de tragédia: é com o corpo que se pode entrar no êxtase das núpcias dionisíacas com a natureza, mas é com o corpo que se pode também sofrer os horrores da angústia e as indizíveis dores da agonia.

“Para Camus ser fiel à terra inclui ser fiel aos homens de carne e osso que conosco compartilham, aqui e agora, a experiência de viver. (…) A solidariedade assim praticada é uma chance ao possível, uma chance àquilo que só através dos homens em luta comum contra sua condição pode vir à existência: a liberdade, a justiça, a felicidade e o amor.” (ALVES, op cit., p. 90-91) [18]

Ao analisar “A Peste”, Marcelo Alves destaca que Camus está ali “trabalhando literariamente as críticas formuladas nas Cartas sobre o nazismo” (em especial a Carta a Um Amigo Alemão), de modo que “é preciso tomar o mal como o símbolo maior do romance: o mal que o nazismo produziu e o mal a que o homem está condenado a sofrer por sua própria condição. Trata-se do mal no sentido trágico, do mal que se expressa através do sofrimento físico e moral daquele que vive sob o peso inexorável da mortalidade. É nesse sentido que Camus pode afirmar que a peste é a mais concreta das forças.” (op cit, p. 97) [19]

Escrevendo sobre o tema, o autor português Hélder Ribeiro aponta outras similaridades e sintonias entre Camus e Nietzsche:

“A origem da ética de Albert Camus está na monstruosidade que consiste em sacrificar os corpos às ideias. Encontramos talvez aqui o segredo do laço que une as concepções de Camus e de Nietzsche. Se Nietzsche empreende uma genealogia da moral cristã, para compreender como esta veio a produzir a negação da própria vida, e isto no contexto da sociedade burguesa do século XIX, Camus empreende uma genealogia da moral política do século XX, para compreender como esta veio a produzir a negação hitlerista e estalinista da vida.

Como na Genealogia da Moral, Camus pensa que a cultura e a moral do Ocidente chegaram a um envenenamento inexorável da vida e trata-se de tirar a máscara. (…) Que deve Camus a Nietzsche? Mais do que afirmações, o clima do seu pensamento, e acima de tudo a recusa global da ficção platônico-cristã dos dois mundos. Não há Além que repare a decepção multiforme de cá-de-baixo e que nos conduza ao Uno. Quando Camus suspira pela unidade, não a refere à ideia platônica que supõe o ultrapassar das aparências. As aparências são a única verdade. O Uno deve descobrir-se na própria dispersão do sensível e a tentação mística só pode ser naturalista.

“Todo o meu reino é deste mundo”, escreve Camus. É a fórmula mais flagrante desta convicção. O corolário é a exaltação do corpo e das verdades que o corpo pode tocar. A verdade do corpo ultrapassa a verdade do espírito. Ora, o mais alto poder do corpo é a arte, que opera uma transmutação do sensível sem o recusar.

O niilismo de Nietzsche, procedendo de uma experiência extrema do desespero, quebrando todos os ídolos do progresso com o mesmo cuidado com que recusava a sombra de Deus, chega, no entanto, a um consentimento radioso, dionisíaco, ao Todo do ser real do mundo, na sua totalidade e em cada realidade particular. O consentimento que dorme na revolta de Camus e lhe dá um sentido, esse “amor fati” que no sim à vida inclui a própria morte, de modo que chega a chamá-la de “morte feliz”, provém em parte de Nietzsche…”. (RIBEIRO, H.) [20]


CAPÍTULO 5: RELEVÂNCIA DE CAMUS NA ATUALIDADE PANDÊMICA

Diante da pandemia de covid-2019 que assola o mundo em 2020, “A Peste” teve uma notável re-ascensão e tornou-se um dos livros mais procurados na Europa, como relata a reportagem da BBC Brasil [21]. Seu status de best-seller na conjuntura deste evento traumático do séc. 21 é prova inconteste não só da atualidade da literatura Camusiana, mas também do brilhantismo com que seu autor sobre tratar dos flagelos da doença somados aos horrores da política. Pois se sabe que a obra nasce sob a influência da Ocupação Nazifascista de Paris, onde Camus escrevia no jornal libertário Combat e participava da Resistência contra a extrema-direita alemã.

O paralelo com o Brasil de 2020 é extremamente possível: a “peste” da covid-19 já é uma lástima terrível por si só, mas a ela se soma o fato de estarmos sob o desgoverno neofascista da seita obscurantista do Bolsonarismo. O chefe da seita, durante toda a pandemia, foi criminosamente irresponsável, acarretando milhares de infecções e mortes ao negar a gravidade do problema, boicotar medidas de isolamento e dar preferência a CNPJs e não a CPFs – ou seja, preferindo agradar empresários, banqueiros e rentistas, aderindo ao “matar ou deixar morrer” no que diz respeito aos trabalhadores empobrecidos pela crise. Além disso, o ocupante do Palácio da Planalto notabilizou-se globalmente por ser o líder do negacionismo do coronavírus, desdenhando de uma doença que em Maio de 2020 já havia ceifado mais de 300.000 vidas, mas que segundo Seu Jair não passa de um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta” e que não deve fazer parar as rodas da economia.

No romance de Camus, o fenômeno do negacionismo da peste, típico do Bolsonarismo na atualidade, também dá as caras. Alves escreve: “A primeira dificuldade dos homens diante da peste é a de reconhecer a sua existência. Por todos os meios procuram negá-la. Muitas vezes simplesmente dando-lhes as costas, outras encarando-a como uma abstração. Primeiro, a administração pública hesita em tomar as providências para não alarmar a população…. Depois, mesmo diante dos sintomas, muitos recusam-se a admiti-la: ‘Mas certamente isso não é contagioso.’, diz um personagem. Por fim, mesmo após o reconhecimento oficial do flagelo e do isolamento importo à cidade, os habitantes ainda resistem a aceitar o fato…” (ALVES, M. p. 98) [22]

A seita necrofílica dos Bolsonaristas tornou-se mundialmente famigerada justamente por este tipo de funesta e macabra irresponsabilidade das ações negacionistas.  Ao seguirem como ovelhas obedientes os ditames do Grande Líder, muitos cidadãos Bolsominions acabaram sabotando medidas de contenção, aglomerando-se para manifestações golpistas, fazendo coro à pregação de Jair de que algumas milhares de mortes eram preferíveis à diminuição dos lucros empresariais. Tudo isso tornou Bolsonaro uma figura internacionalmente repudiada como um dos piores presidentes do mundo em seu trato com a peste, tendo sido denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais.

Neste contexto, a leitura de Camus torna-se ainda mais relevante ao grifar sempre a importância crucial de transcendermos a angústia solitária e isolada, rumo à solidariedade na revolta:

“A vitória sobre a peste só acontece quando o homem reconhece que se trata de uma tragédia coletiva e, no lugar do isolamento individual, faz da sua cumplicidade trágica com os outros homens um só grito de revolta e lucidamente dá início à sua tarefa de Sísifo: ‘colocar tanta ordem quanto possa em uma condição que não a possui’. É verdade que nesse caso a vitória é sempre provisória, jamais definitiva, mas é a única vitória possível e desejável para aqueles que procuram nada negar nem excluir: nem a condição humana, nem a dor do homem. O médico Rieux, personagem e narrador do romance, encarnará o homem camusiano que vive entre o sim e o não: aquele que não se esquiva da condição humana, mas não se resigna às suas misérias; aquele que aceita o peso da existência, aceita rolar a sua pedra, que é o espelho opaco da sua virtude, mas se recusa a aumentar o mal, tanto através da ação quanto da omissão.” (ALVES, M., op cit, p. 101) [23]

O Dr. Bernard Rieux, encarnação da lucidez e da solidariedade, age em A Peste com um ethos de Zaratustriana fidelidade à terra e a seus viventes. Mesmo que na época em que o romance se passa a cidade argelina de Orã esteja empestada, mergulhada nos flagelos da doença e do sofrimento, Rieux permanece aferrado a este princípio: “O essencial era impedir o maior número possível de mortes e de separações definitivas. E o único meio para isto era combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas consequente.” (CAMUS, A Peste, I, 1327) [24]

Na verdade, Bernard Rieux não é um Übbermensch super-heróico, mas um médico de carne-e-osso, sujeito à fadiga e ao desespero, mas que decide suportar o peso de sua lucidez e agir incansavelmente com base na sua ética da solidariedade, da empatia e da revolta contra a peste. Esta peste é tanto doença em si quanto, de maneira metafórica, a política fascista, aquilo que chamaríamos hoje, a partir de conceito proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, de necropolítica [25].


CAPÍTULO 6: A AGONIA DE UMA CRIANÇA DIANTE DE UM MÉDICO E UM PADRE

No enredo, o médico Rieux também aparece como o antípoda do padre Paneloux. Onde o cristianismo prega oração e resignação, o médico ateu defende a ação coletiva solidária e obstinada contra o mal. Alves comenta: “Rieux combate ídolos, contesta abstrações, não a marteladas, mas através de sua obstinação em cuidar dos corpos… O médico é aquele que sabe dos limites da condição humana, mas não se submete a eles; sabe que não salvará tudo ou a todos, mas decide agir segundo as suas forças para salvar o que pode ser salvo: alguns corpos, por algum tempo.” (Alves, p. 106) [26]

No destino do Padre Paneloux, Camus nos fornece um memorável memento do que significa o desprezo pela Ciência em tempos de peste. Em meio à Orã transtornada pela epidemia, o padre Paneloux fazia sermões pregando que o flagelo era uma punição divina pelos pecados de alguns de seus concidadãos. Daí saltava para a idéia de que a vontade divina utilizava-se da peste como seu instrumento. E daí foi só um passo até que passasse à noção de que seria heresia ir contra a vontade de Deus: a atitude de um autêntico cristão consistiria na aceitação plena dos decretos do Céu.

No capítulo 3 da parte IV, uma cena-chave de A Peste se desenrola: uma criança gravemente enferma será cobaia para um teste de uma vacina (sérum), uma das esperanças de conter a epidemia. O sofrimento horrendo desta criança dá ensejo para que os personagens reflitam a fundo sobre a condição humana, os males do mundo e as injustiças de que nossa situação existencial está repleta. A tentativa de curar a criança não é bem sucedida e após uma longa agonia, extremamente sofrida, o menino morre. Ao redor do leito, Dr. Rieux, padre Paneloux, Tarrou realizam um debate crucial nesta situação excruciante.

O que está em questão, em última análise, é a dor infligida aos inocentes, em todo seu escândalo. A agonia de uma criança parece causar o desmoronamento da argumentação teológica exposta no primeiro sermão do Padre Paneloux (cap. 3, parte II), segundo o qual a infelicidade (malheur) seria sempre merecida, pois toda peste é punição contra pecadores, um purgativo enviado por Deus (p. 91). Caso aceitássemos o argumento do padre, Orã seria similar a Sodoma e Gomorra e “a peste teria origem divina e caráter punitivo” (p. 95). Daí decorre que o padre recomende a seus concidadãos que se ajoelhem, se arrependem e orem aos céus por misericórdia. Com fé, Deus os ouvirá e salvará. Seu discurso traz o dedo em riste, acusatório, lançando sobre os pecadores a culpa pelo flagelo vivido pela cidade. Assim, inventa-se um sentido como antídoto para o absurdo num procedimento que Slavoj Zizek chama de “the temptation of meaning” [27].

Esta cena d’A Peste em que a agonia da criança é sentida diferencialmente pelo médico e pelo padre está entre as obras-primas da dramaturgia Camusiana e aí também se jogam os lances decisivos para a apreciação plena do que pensa o autor sobre a fé. O sofrimento horrendo de uma criança que agoniza põe em crise o discurso do padre Paneloux, sua noção de que os afligidos pela peste eram pecadores: para manter tal ideologia, seria preciso dizer que a criança era culpada, ou mesmo que nasceu com a culpa provinda do princípio dos tempos, ou seja, do Pecado Original de Adão e Eva. É assim que a fé judaico-cristã pretende nos convencer que é merecido o sofrimento na infância?

O Dr. Rieux opõe-se a esta ideologia religiosa que culpabiliza para que possa manter a fé, ainda que num Deus abjeto e que se sirva da agonia infantil como um de seus perversos instrumentos de vingança contra os pecadores. O Dr. Rieux é muito mais ateu e a vivência da peste só aprofunda seu ateísmo. O suplício e a agonia de uma criança lhe parecem um escândalo injustificável, uma absurdidade que estilhaça a possibilidade de crer em Deus.  Porta-voz do ateísmo Camusiano, o Dr. Rieux se recusa em amar uma criação onde crianças são torturadas, ou seja, recusa a própria noção de um Criador que pudesse ter aceito, como parte do mundo criado, a agonia injusta de pequenas pessoas que vieram ao mundo recentemente e que acabam por ser expulsas dele em meio a um absurdo sofrer.

Na história da filosofia contemporânea, o filósofo Marcel Conche inspirou-se em argumentos muito próximos aos Camusianos para formular suas provas da inexistência de Deus com que abre sua obra Orientação Filosófica. [28]

O ateísmo, em Camus, parece ser a decorrência necessária da lucidez daqueles que não escamoteiam o absurdo da existência e que, através da revolta, alçam-se do “eu sou” ao “nós somos”: superando o racionalismo idealista de René Descartes e seu cogito (“penso, logo existo”), Albert Camus propôs o cogito existencialista-ateu, digno de virar bandeira de todos nós que nos solidarizamos na revolta contra os males de que o mundo terrestre está repleto: “eu me revolto, logo somos”.

Ao adoecer, o padre Paneloux recusa-se terminantemente a chamar um médico – ainda que soubesse que o Doutor Rieux estaria a postos, prestativo, para atendê-lo, sem poupar esforços para salvá-lo. Para o padre Paneloux, há uma contradição insolúvel entre a fé e a ciência: para manter-se crente, ele precisa recusar a medicina. No extremo do delírio desta fé auto-destrutiva, prefere fechar as portas ao socorro que poderia lhe vir dos terráqueos, permanecendo aberto apenas ao socorro que lhe viria do divino. Agarra-se ao crucifixo, recusando hospitais e remédios.

A desastrosa escolha de Paneloux o conduz a uma agonia horrorosa, sem analgésicos nem morfina, em que ele decide imolar a saúde num altar imaginário onde pensava estar encontrando a salvação. Encontrou apenas a morte absurda dos que desdenham daquilo que o ser humano pôde inventar, neste mundo, em prol do auxílio mútuo e da solidariedade concreta.

No livro de George Minois sobre A História do Ateísmo, Camus aparece como um artista-pensador que jamais recomenda que percamos tempo de vida com a ânsia de ascensão a um Paraíso transcendente, prometido aos “eleitos”, aos que tenham sido dóceis e obedientes nesta vida. Camus convoca para que trabalhemos juntos neste mundo para torná-lo menos opressivo e mais amável, o que exige que possamos assumir nossas responsabilidades. Não aquela responsabilidade de “servir a um ser imortal”, mas sim a de livrar-se desta subserviência para assim “assumir todas as consequências de uma dolorosa independência”. (MINOIS: p. 671) [29]

Como diz Marcelo Alves, na obra A Peste está ilustrado que “o pessimismo de Camus, longe de ser resignado ou valorar negativamente a vida, pretende, através da revolta diante da peste, culminar num lúcido sim à vida.” (ALVES, M. Pg 98) [30] De modo que a lucidez é uma das virtudes que Camus celebra entre as supremas. Não a lucidez derrotista, resignada ou solitária, mas a lucidez clarividente, a capacidade de enxergar com clareza, inclusive e sobretudo os males concretos que nos afligem e aos quais só a solidariedade das revoltas pode fazer frente.


 

CAPÍTULO 7: A CONCRETUDE EM CARNE-E-OSSO DE NOSSA CONDIÇÃO

A tarefa de ver claro torna-se mais difícil diante dos flagelos da peste, da pandemia, da guerra, pois enxergá-los em toda sua horrífica realidade é perturbador para a psiquê humana, que vê-se em apuros para “digerir” tais experiências. Preferimos então recusar a concretude dos sofrimentos das pessoas de carne-e-osso para olhar o problema através do prisma de pálidas abstrações e estatísticas. Pode-se ler em livros de História que umas 30 pestes que o mundo conheceu fizeram cerca de 100 milhões de mortos, mas quem nunca viu nem conheceu sequer um desses vivos transformados em cadáveres pode se ver tentado a deixar-se esse número torna-se uma fumaça na imaginação, sem carne e sem sangue.

Por isso a literatura é tão crucial e imprescindível: ao ler uma obra como A Morte de Ivan Ilítch, de Tolstói, podemos ter acesso a uma morte concreta e individualiza, que nos comove pelo que tem tanto de idiossincrática quanto de expressiva da condição humana geral. A Peste de Camus também funciona maravilhosamente como um dispositivo literário de concretização, um livro destinado a nos ensinar como os seres humanos de carne-e-osso lidam com o flagelo pestífero. A certo ponto, o Doutor Rieux relembra da peste de Constantinopla, que em seu pico fazia 10.000 vítimas fatais por dia, e pede que imaginemos o público de 5 grandes cinemas sendo assassinado na saída do filme (pg. 42).

Dar concretude às estatísticas, fornecer carnalidade aos números, fazer-nos sentir visceralmente aquilo que se esconde por trás de relatórios burocráticos ou meditações abstratas, é uma das funções essenciais da literatura. Rieux está impedido por seu ofício de médico de “abstrair” em meio à peste pois é obrigado a lidar com a concretude de doentes e mortos, de tosses e catarros, de agonias e cadáveres. Sua lucidez é trágica! E a única salvação que concebe é a união solidária de pessoas que trabalham juntas contra o flagelo. Pois isolar-se, fechar-se na mônada e no monólogo, não é nenhuma solução contra o absurdo. Separação e isolamento nunca serão panacéias.

O ator William Hurt, que interpreta o médico Rieux na adaptação cinematográfica do romance de Camus realizada por L. Puenzo em 1992

Rieux recusa a resignação, a prece, a passividade. Tampouco deseja fazer pose de herói. Sua humildade lúcida está em saber que não salvará todo mundo, apenas alguns corpos por algum tempo. Este médico sabe que suas vitórias são sempre provisórias mas que esta não é uma razão para cessar de lutar. Trata-se sempre de adiar a morte para mais tarde, pois restabelecer a saúde de alguém jamais significa livrá-lo da incontornável finitude.

– Já que a ordem do mundo é regrada pela morte, talvez convenha a Deus que não se creia nele e que se lute com todas as forças contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se esconde. (ALVES, op cit, p. 106) [31]

Este ateísmo Camusiano, que se manifesta em Rieux, tem a ver com uma crítica que o autor de O Homem Revoltado faz ao processo de sacrifício de pessoas concretas em nome de um ideal, um valor absoluto, uma abstração descarnada. Até mesmo Marx e Nietzsche são denunciados por Camus por terem instituído uma espécie nova de idealismo em que a sociedade sem classes do futuro comunismo ou os espíritos livres e Übermensch do porvir serviriam como ideais laicizados. Assim, substituem a noção religiosa de outra vida, acessível pela morte, por uma outra vida a ser construída e concretizada mais tarde – trocam o além pelo mais tarde. Chamo isto de uma oposição entre uma transcendência vertical (as pessoas que crêem numa ascensão ao céu, após a vida terrena) e a transcendência horizontal (as pessoas que crêem numa transfiguração desta vida terrena nos amanhãs cantantes de um futuro que está no horizonte). 

Se o entendo bem, Camus propõe uma imersão na imanência em que possamos celebrar as núpcias com a vida e a natureza, nas quais devemos amorosamente nadar como peixes deleitando-se na imensidão do mar. É óbvio que este mar está repleto de tubarões, que há predação e peste, sofrimento e finitude, injustiça e opressão, mas também extremas belezas e deleites, uma grandeza implacável que devemos aceitar e abraçar com toda lucidez e clarividência que pudermos. Viver é mergulhar no absurdo mas não deixar-se afogar aí. Este banho de absurdo só pode ser redimido pela cumplicidade revoltado dos solidários, dos justos, dos que trabalham juntos em prol de uma realidade menos absurda. A medicina, para Rieux, é um trabalho de Sísifo ateu – e é preciso imaginá-lo feliz, empurrando pedregulhos montanha acima, no aprendizado perene com todos os esforços e tombos.

Em O Mito de Sísifo, Camus escreveu: “Se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos contra sua vontade. Se ele não existe, tudo depende de nós.” [32] A fé em Deus desempodera o ser humano, coloca-nos na dependência de uma vontade alheia e de uma autoridade transcendente, condenando-nos à “minoridade” tutelada de uma criança que não ousa fazer uso pleno da força de sua razão [33]. Já o ateísmo nos liberta para as difíceis tarefas da responsabilidade, da solidariedade, das construções coletivas de sentido que façam frente aos absurdos que sempre ameaçam nos submergir.

Confinados na finitude de uma vida que fatalmente terminará, condenados à angústia que é o ambiente perene do ser humano lúcido, temos somente esta vida, este mundo, este espaço, este tempo, para celebrar nossas fenecíveis núpcias com o real. Quem não se revolta contra as injustiças e opressões que impedem estas núpcias, quem não se solidariza diante dos males que nos afligem em comum, este é um semi-vivo ou um zumbi, sempre necessitado de ser despertado pelas amargas mas salutares verdades que a arte e a filosofia podem conceder.

Sem além nem deus, espíritos livres Camusianos plenamente fiéis à terra, sejamos Sísifos felizes! Estejamos aqui-e-agora solidários, lúcidos, clarividentes e reunidos na revolta. Somando forças, alentos, beijos, amplexos, vozes e obras que permitem nossas núpcias com a vida, a natureza e os outros. Sem nunca esquecer que a angústia solitária precisa ser transcendida por uma revolta solidária que seja o emblema em ação de nossa “insurreição humana” – aquela que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, “em suas formas elevadas e trágicas não é nem pode ser senão um longo protesto contra a morte, uma acusação veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.” [34]

Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro [www.acasadevidro.com]
Goiânia, Maio de 2020

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REFERÊNCIAS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS, CINEMATOGRÁFICAS E FONOGRÁFICAS

[1] CAMUS, Albert. Núpcias  / O Verão. Editora Círculo do Livro, 1985.

[2] THE FLAMING LIPS. Ao usar a expressão “grau de realização da mortalidade”, penso sobretudo nos versos de uma canção da banda estadunidense de rock alternativo The Flaming Lips, chamada “Do You Realize?” (também interpretada por Sharon Von Etten), presente no álbum Yoshimi Battles The Pink Robots, em que o ouvinte é interpelado pela questão: “você realmente percebe que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?” The Fearless Freaks é um excelente documentário sobre a trajetória da banda.

“Do you realize that everyone you know someday will die?
And instead of saying all of your goodbyes, let them know
You realize that life goes fast
It’s hard to make the good things last
You realize the sun doesn’t go down
It’s just an illusion caused by the world spinning round…”

[3] PESSOA, Fernando. Mensagem. O trecho completo diz: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. A mesma expressão aparece nas Odes de Ricardo Reis:

NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas feitas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A quem um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

— Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), in “Odes”.

[4] BECKER, Ernest. A Negação da Morte (The Denial Of Death). Vencedor do prêmio Pulitzer, o livro também inspira o documentário The Flight From Death (2005), que compartilhamos na íntegra a seguir:



[5] SAMPAIO, Sérgio. Canção “Ninguém Vive Por Mim”. Em: Tem Que Acontecer. Saiba mais neste artigo em A Casa de Vidro.
[6] PARRA, Nicanor. O poeta chileno que viveu 103 anos (1914 – 2018), irmão da lendária cantora, compositora e folclorista Violeta Parra, escreveu muitas profundas reflexões sobre a morte.
[7] EPICURO. Carta Sobre a Felicidade (a Meneceu). Sobre o tema, acesse em A Razão Inadequada o artigo Epicuro e a Morte da Morte.
[8] MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Capítulo XX. Em: Os Pensadores, Abril Cultural.
[9] BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. Publicado originalmente em 1930.
[10] CAMUS, AlbertO Mito de Sísifo. Ed Record, 2004.
[11] MUJICA, José. Em: Rede Brasil Atual.
[12] BRECHNER, Alvaro. La Noche de 12 Años (2018), filme uruguaio que retrata ações do militantes Tupamaros, que lutavam contra a ditadura militar, e suas vivências na cadeia.
[13] CAMUS, ALa Peste. Folio: 1999, Pg. 191.
[14] ONFRAY, Michel. A Ordem Libertária – A Vida Filosófica de Albert Camus. Flammarion, 595 págs. Citado a partir de artigo na Revista Cult.
[15] ALVES, MarceloCamus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche. Florianópolis, 2001, Ed. Letras Contemporâneas.
[16] CAMUS. Essais, Paris: Gallirmard, 1993, 75 – 80.
[17] [18] [19] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[20] RIBEIRO, Hélder. Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Pg. 89-90.
[21] BBC News Brasil. ‘A Peste’, de Albert Camus, vira best-seller em meio à pandemia de coronavírus.
[22] [23] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[24] CAMUS, A. La Peste. Op cit.
[25] MBEMBE, AchilleNecropolítica. Saiba mais em A Casa de Vidro.
[26] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[27] SLAVOJ ZIZEK fala em “the temptation of meaning” ao responder as questões de Astra Taylor, realizadora do filme documental Examined Life: “Meaning allows us to create fantasies which defend ourselves from the awful truth that we’re bags of meat who can never escape death. That is, the turn towards subjectivity is itself a defense mechanism against the fact that the universe doesn’t care. God, whether He be loving or vengeful, is a way of turning this utter indifference into a fantasy of mattering.”

[28] CONCHE, Marcel. Orientação Filosófica. Ed. Martins Fontes. Coleção Mesmo Que O Céu Não Exista.
[29] MINOIS, George. História do Ateísmo. Ed. Unesp, pg. 671.
[30] [31] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[32] CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Citado em: MINOIS, op cit, idem item 29.
[33] A conclusão atéia não condiz com as apostas kantianas na necessidade de Deus como “apêndice” da razão prática, mas aqui penso no auxílio salutar que o ateísmo concede ao sapere aude tal como descrito por Immanuel Kant em seu texto sobre o Iluminismo / Esclarecimento.
[34] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Capítulo: “Niilismo e História”. Ed. Record, 2003, p. 125.

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Um combate contra o Absurdo | Albert Camus (documentário completo e legendado)

MAIS VIVOS DO QUE NUNCA: Apesar dos esforços da Idiocracia, da Cruzada por um Brasil Medieval dos Bolsominions e da seita “Escola Sem Partido”, Paulo Freire e a Pedagogia do Oprimido resistem

Um dos maiores intelectuais latino-americanos do século 20, o criador da Pedagogia do Oprimido e Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire (1941 – 1997) poderia dizer, na esteira de Isaac Newton: “se eu vi mais longe foi por estar sobre os ombros de gigantes“. O que poucos sabem é que o educador pernambucano subiu nos ombros de gigantes do pensamento africano e de-colonial como Franz Fanon, Amílcar Cabral e Albert Memmi.

Estes mestres da libertação contra as opressões coloniais, que tanto inspiraram a práxis Freireana, têm obras cruciais que o leitor brasileiro tem cada vez mais oportunidade de conhecer a fundo através de importantes livros publicados por aqui: a exemplo de Pele Negra, Máscaras Brancas (FANON, Ed. UFBA), Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo (VILLEN, Ed. Expressão Popular)Retrato do Colonizador precedido de Retrato do Colonizado (MEMMI, Ed. Paz e Terra).

Nascido na Tunísia em 1920, Albert Memmi compartilha com seu xará argelino, o Albert Camus, outros elementos além do enraizamento em um país do Norte da África banhado pelo Mediterrâneo. Memmi e Camus também compartilham uma versatilidade de escrita notável: ambos aventuraram-se tanto na literatura (A Estátua de Sal é o romance mais conhecido de Memmi, e sabe-se que Camus venceu o Prêmio Nobel de Literatura por vasta obra em que se destacam O Estrangeiro e A Peste) quanto em escritos ensaísticos sobre ética, filosofia, política, relações internacionais, guerra e paz, dentre outros temas candentes.

Além disso, ao irromperem no cenário literário francês do século 20, figuras como Camus e Memmi trouxeram para o epicentro da discussão pública as questões candentes do imperialismo e do colonialismo, enxergados por um viés crítico que explicitava as proveniências africanas de ambos (um, da Argélia, outro da Tunísia), com forte presença também da escola-de-pensamento (e de vida) que viria a ser conhecida como Existencialismo.

Cá no Brasil e atravessando seus muitos exílios, Paulo Freire tomou aprofundado contato com os existencialistas, tendo sido também impactado enormemente pela figura grandiosa, no cenário intelectual do século, de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Freire compartilha com todos estes autores um interesse pelo estudo e pela decifração das relações sociais de opressão imperial, um estudo todo atravessado pela ética freireana, comprometida com a nossa libertação coletiva das garras da Opressão.

O ensinamento central de Freire é que a opressão desumaniza tanto os oprimidos quanto os opressores. A opressão é péssima para ambos. Os opressores, ao impedirem e sabotarem os ímpetos de transformação social liderados pelos oprimidos em seu processo de partejar uma realidade menos desumana, agem contra seus próprios melhores interesses: a conservação da opressão, na verdade, não interessa nem mesmo aos opressores pois os desumaniza e os enche de uma culpa dificilmente lavável.

“A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas sim resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser-menos. (…) O ser-menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.” – PAULO FREIRE, Pedagogia do Oprimido

“Se a colonização destrói o colonizado, ela apodrece o colonizador”, escreve Memmi (p. 22). Neste livro impressionante em que pinta retratos de colonizados e colonizadores, subdividindo cada grupo em certos subtipos, Memmi explorou o tema da opressão colonial de maneira muito próxima àquela que marcará a visada Freireana. Ambos enxergam a realidade socialmente construída do Sistema Colonial como “organização da injustiça”, e Memmi nos pede que imaginemos alguém recém-desembarcado em Túnis sob domínio do Império Francês:

“Acontece de o recém-desembarcado, estupefato desde seus primeiros contatos com os pequenos aspectos da colonização, a multidão de mendigos, as crianças que circulam quase nuas, o tracoma etc., pouco à vontade diante de tão evidente organização da injustiça, revoltado pelo cinismo de seus próprios compatriotas (‘não preste atenção na miséria! Você vai ver, a gente se acostuma rápido!’), logo pensar em ir embora.” (MEMMI: RJ, 2007, p. 56)

Caso decida ficar, este hipotético sujeito, nascido na metrópole e transplantado para a colônia, poderá sentir a tentação perigosa do humanitarismo. Sentindo piedade pelos oprimidos, sofrendo com a miséria dos miseráveis, permitindo que seu coração bata em sintonia com os corações que sangram na sarjeta e só comem as migalhas caídas da mesa dos ricos, este sujeito pode sentir-se atraído, em sua revolta, pela revolução dos oprimidos. Porém, como ironiza Memmi:

“O romantismo humanitário é considerado na colônia como uma doença grave, o pior dos perigos: não é nem mais nem menos que a passagem para o campo do inimigo. Se ele se obstinar, aprenderá que embarca para um inconfessável conflito com os seus, o qual permanecerá para sempre aberto, jamais cessará, a não ser com sua derrota ou seu retorno ao redil do colonizador. Muitos se surpreendem com a violência dos colonizadores contra o compatriota que põem em perigo a colonização.” (op cit, p. 57)

Freire aprendeu muito, na escola de Memmi, Fanon e Amílcar Cabral, a realizar uma leitura psico-social da realidade marcada pela opressão onidesumanizante: para ele, a realidade psicológica dos sujeitos designados pelos termos oprimido e opressor é bem mais complexa do que sonha nosso ingênuo simplismo. O oprimido pode hospedar dentro de si uma espécie de versão íntima do opressor. Já o opressor, em alguns casos (infelizmente raros), pode deixar-se comover pelo destino dos oprimidos e decidir-se a cometer o suicídio de classe que Amílcar Cabral tematizou e que figuras como Friedrich Engels e Fidel Castro cometeram na prática.

Ora, para que possa dar o salto essencial de auto-superação de sua condição oprimida, é preciso que o sujeito vença a consciência ingênua através de um esforço da consciência crítica que vai desvelando esta realidade psíquica complexa: o oprimido que hospeda dentro de si os valores, os modos de pensar, os jeitos de viver, as maneiras de enxergar o mundo, as formas de fruir de seu tempo livre, as epistemes e tábuas de valores pegas de empréstimo do cabedal do opressor. Donde a necessidade suprema de uma educação comprometida com a descolonização de corações e mentes. Mas isto não é tudo: a Pedagogia do Oprimido, ao contrário do que pensam muitos, não foi concebida para educar somente os oprimidos.

Paulo Freire estava no mundo também para educar os opressores, para ensiná-los sobre a desumanização de si mesmos em que caem, abismo sem fundo, ao apegarem-se a seus privilégios injustos e às suas usurpadas posições de poder opressivo. Esta fusão entre marxismo e cristianismo que Paulo Freire busca efetivar enxerga em seu horizonte utópico – síntese entre denúncia e anúncio – o advento de um Reino onde a fraternidade seja de fato um valor vivido e encarnado, e não apenas ídolo distante ao qual se presta apenas serviço labial. Fraternos seríamos caso não mais estivéssemos em uma sociedade cindida entre a elite opressora e as massas oprimidas. Por isso é do interesse de toda a Humanidade a proposta da Pedagogia do Oprimido: a opressão nos desumaniza a todos.

Na atitude de figuras como Memmi, Freire, Amílcar, Gramsci, dentre outros, temos claramente um engajamento existencial em prol da transformação radical de uma realidade social marcada pela injustiça organizada – e sabemos muito bem que o fascismo é uma das expressões máximas desta organização do injusto, desta “banalidade do mal” que torna a injustiça cotidiana como o pão com manteiga: “O que é o fascismo senão um regime de opressão em proveito de alguns?”, pergunta-se Memmi, lembrando-nos que “toda nação colonial carrega assim, em seu seio, os germes da tentação fascista”:

“Toda a máquina administrativa e política da colônia não tem outra finalidade senão a opressão em proveito de alguns. As relações humanas ali provêm de uma exploração tão intensa quanto possível, fundam-se na desigualdade e no desprezo e são garantidas pelo autoritarismo policial. Não há qualquer dúvida, para quem o viveu, de que o colonialismo é uma variação do fascismo…” (MEMMI, op cit, p. 100)

Hitler e Mussolini não tiraram suas práticas “do nada”: puderam se inspirar no apartheid que o Império Britânico instalou na África do Sul. Escrevendo em 1957, quando muitas das nações da África atual ainda não tinham conquistado plena independência, Memmi fala sobre “esse rosto totalitário, assumido em suas colônias por regimes muitas vezes democráticos”, que prossegue de tanta atualidade: muitas metrópoles pretensamente humanitárias, que se auto-decretam o cume e auge da evolução histórica do ser humano, como a França do Iluminismo, mostram sua face fascista no trato com suas colônias.

Tanto é assim que os Jacobinos Negros da Revolução no Haiti tiveram que realizar uma insurreição armada em prol de sua independência, e que os argelinos se envolveram numa longa e custosa Guerra de Independência contra o Império francês já no pós-2a Guerra Mundial (cuja crônica cinematográfica incomparável está em A Batalha de Argel, obra-prima do italiano Gillo Pontecorvo).

Os EUA, que vestem diante do mundo a máscara de Democracia Liberal que guia o mundo nos caminhos do Capitalismo Com Face Humana, manifestam um rosto fascista-totalitário nas ações imperialistas que realizam nas partes do mundo que desejam reduzir a colônias: foi assim na Guerra do Vietnã (que espalhou-se para o Camboja), foi assim nos inúmeros regimes ditatoriais que patrocinou e apoiou na América Latina e Central (com golpes militares apoiados por Tio Sam na Guatemala em 1954, no Brasil em 1964 e no Chile em 1973, para ficar só em três episódios históricos paradigmáticos), está sendo assim na atual Guerra Contra o Terror (e contra o Estado Islâmico) turbinada por xenofobia islamofóbica e petrodollars.

Paulo Freire o sentiu na pele: se, no começo dos anos 1960, revolucionava a educação nacional, comandava um programa de alfabetização que renovou todas as noções e práticas sobre o tema, logo depois do coup d’état manu militari acabou sendo preso e posteriormente exilado. Pôde assim perceber bem o quanto a ditadura militar, uma espécie de Estado fantoche servindo aos interesses do imperialismo norte-americano, investia pesado na manutenção das bases materiais da opressão capitalista continuada. O que diria se estivesse vivo diante das evidências de que, em 2019, o Brasil volta à posição ajoelhada diante do Tio Sam?

O pseudo-patriota Bolsonaro, aquele que presta continência para a Star Spangled Banner, tem atuado com total subserviência diante do establishment estadunidense, o que se manifesta não só pela escolha de Olavo de Carvalho como grande “guru do governo” (teleguiado desde o QG em Richmond, Virginia) mas também pelas já explicitadas analogias entre a mentalidade racista-supremacista de Jair e a da Ku Klux Klan. Poderíamos dizer que aquele que idolatra Ustra e Pinochet hoje não encontra nada melhor a fazer senão pagar-pau pra Olavo, David Duke e Donald Trump. Diante de tal catástrofe – um “projeto de Hitler tropical”, como diz Mário Magalhães em sua biografia de 2018 -, obviamente a Educação se insurgiu.

TRÊS LEVANTES EM 30 DIAS DE RE(X)ISTÊNCIA

TSUNAMI DA BALBÚRDIA – Uma trilogia documental produzida por A Casa de Vidro nas manifestações cívicas de 15 de Maio, 30 de Maio e 14 de Junho em Goiânia.

ASSISTA AOS TRÊS CURTAS:

DOC #1: Tsunami da Balbúrdia


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DOC #2: Somos Gotas Nesse Mar de Revolta


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DOC #3: É Greve porque é Grave


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As Jornadas de Maio de 2019, que busquei retratar nos três documentários sobre o #TsunamiDaEducação, foram motivadas pela percepção, a meu ver muito acertada, de que Bolsonaro é inimigo da Educação, agente da Barbárie e da Imbecilização. E como foi comovente ver que Paulo Freire saiu dos livros e ganhou as ruas: suas frases berravam nos cartazes, as capas de suas obras foram reproduzidas em escudos de papelão, sua memória foi reavivada pelos manifestantes. Não eram protestos apenas contra os cortes anunciados pelo MEC: 30% das verbas discricionárias, um montante de aprox. R$ 5.700.000.000 e que o Ministro Weintraub teve a pachorra de comparar a 3 chocolatinhos e meio.

Eram protestos contra uma visão cretina e brucutu da Educação, típica do Bolsonarismo, pois esta tirania neofascista deseja o fim da educação comprometida com o desenvolvimento da consciência crítica. O que os Bolsonaristas desejam é o fim de uma escola que possa ensinar-nos o engajamento em prol da transformação do mundo na direção de menos-opressão, ou seja, na direção de um coletivo ser-mais.

 Os Bolsonaristas querem a morte da utopia e o triunfo do conformismo: deveríamos nos resignar à velha educação que coloniza as mentes. O velho esquema da “injustiça organizada”, em que se racha a educação entre uma área VIP para a elite (universidades “de ponta”, só pra ricos!) e uma vasta área de educação precarizada e apêndice-do-mercado para os pobres, a quem se oferece somente uma formação meramente técnica e a quem destina-se a integrar as vastas fileiras do proletariado em sua nova versão, o Precariado: em tempos de “uberização” dos trampos, vemos a proliferação de um ideal capitalista neofascista: os proletários pós-CLT, pós-Aposentadoria, pós-SUS, pós-Direitos, na era da Idiocracia de Direita.

Neste cenário distópico, Paulo Freire volta a ser nosso precioso aliado. E estou entre aqueles que deseja caminhar acompanhado por este peregrino da utopia que, diante das opressões multiformes que maculam o estar-sendo do mundo, via na educação crítica e libertadora o caminho principal para o partejar de um outro mundo possível, “outra realidade menos morta”, onde estivessem abolida esta triste ordem onde reina “tanta mentira, tanta força bruta”.

PARTE 2: A LIBERDADE É NOSSA RESPONSABILIDADE

Os Zapatistas de Chiapas – lá onde “o povo manda e o governo obedece” – tem um belo ensinamento: “A liberdade é como a manhã: alguns a esperam dormindo, porém alguns acordam e caminham na noite para alcançá-la.” Esta reflexão, atribuída ao Subcomandante Marcos (hoje conhecido pelo codinome Galeano), está bem em sintonia com os ensinamentos de Paulo Freire e seus mestres, dentre eles Albert Memmi: para eles, a liberdade não é uma doação ou uma graça, que nos seria simplesmente concedida, mas é fruto de nossa luta coletiva. Mais que isso: a liberdade é nossa responsabilidade.



Evocar o exemplo do Zapatismo na atualidade mexicana, ou do Movimento Sem-Terra no Brasil, é essencial para esta reflexão sobre liberdade e responsabilidade. Tanto os Zapatistas quanto o MST são compostos por pessoas que desejam ser os sujeitos e não os objetos da História, ou seja, são os que atravessam a madrugada despertos tentando conquistar a manhã ao invés de esperá-la dormindo. Sabem da verdade vivida que Freire enunciou quando disse que “ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão”, um dos pensamentos onde melhor se sintetiza o marxismo cristão deste pensador.

Se a educação é tão essencial à transformação social profunda é pois não basta revolucionar as condições econômicas e políticas caso se deixe intocado todo o âmbito do psíquico dos sujeitos: o que é necessário não é apenas romper com um sistema de produção baseado na espoliação injusta dos frutos do trabalho de proletários e camponeses, mas também ajudar os injustiçados a saírem do lodaçal da consciência ingênua, mistificada, fatalista. Não tenho o conhecimento empírico nem fiz a pesquisa de campo necessária para afirmar que o ideal pedagógico Freireano está em ação nas escuelitas dos zapatistas em seus caracoles, mas parece-me que há muitas convergências de utopia e de práxis estabelecendo uma espécie de ponte entre o educador pernambucano e os revolucionários de Chiapas.

Nas escuelitas zapatistas, ou dentro do MST, a Pedagogia do Oprimido que se coloca em prática tem muito a ver com esta ação ética e política de suprema importância: os sujeitos assumindo a responsabilidade pela liberdade. Em algumas das mais belas páginas que escreveu, Albert Memmi fala sobre os oprimidos em uma situação de opressão colonial (os “colonizados”), em contraste com “os cidadãos dos países livres” (ou seja, os sujeitos que vivem na metrópole):

“A mais grave carência sofrida pelo colonizado é a de ser colocado fora da história e fora da cidade. A colonização lhe suprime qualquer possibilidade de participação livre tanto na guerra quanto na paz, de decisão que contribua para o destino do mundo ou para o seu, de responsabilidade histórica e social.

É claro que acontece de os cidadãos dos países livres, tomados de desânimo, concluírem que nada têm a ver com as questões da nação, que sua ação é irrisória, que sua voz não tem alcance, que as eleições são manipuladas. A imprensa e o rádio estão nas mãos de alguns; eles não podem impedir a guerra nem exigir a paz; nem sequer obter dos eleitos por eles respeitados que, uma vez empossados, confirmem a razão pela qual foram enviados ao Parlamento…

Mas logo reconhecem que têm o direito de interferir; o poder potencial, se não eficaz: que estão sendo enganados ou estão cansados, mas não são escravos. São homens livres, momentaneamente vencidos pela astúcia ou entorpecidos pela demagogia. E às vezes, excedidos, ficam subitamente enraivecidos, quebram suas correntes de barbante e perturbam os pequenos cálculos dos políticos. A memória popular guarda uma orgulhosa lembrança dessas periódicas e justas tempestades!

Considerando bem, eles deveriam antes de tudo se culpar por não se revoltarem mais frequentemente; são responsáveis, afinal, por sua própria liberdade, e se, por cansaço ou fraqueza, ou ceticismo, não a usam, merecem punição.

Mas o colonizado não se sente nem responsável nem culpado nem cético; simplesmente fica fora do jogo. De nenhuma maneira é sujeito da história; é claro que sofre o peso dela, com frequência mais cruelmente do que os outros, mas sempre como objeto. Acabou perdendo o hábito de toda participação ativa na história e nem sequer a reivindica mais. Por menos que dure a colonização, perde até mesmo a lembrança da sua liberdade; esquece o quanto ela custa ou não ousa mais pagar o seu preço.

Senão, como explicar que uma guarnição de alguns poucos homens possa sustentar um posto de montanha? Que um punhado de colonizadores frequentemente arrogantes possa viver no meio de uma multidão de colonizados? Os próprios colonizadores se espantam, e é por isso que acusam o colonizado de covardia.” (MEMMI, op cit, p. 133 – 134).

Albert Memmi, filósofo e escritor tunisiano.

Ora, se os oprimidos-colonizados acabam por aderir, ao menos parcialmente, à ideologia da classe dominante, ou seja, dos opressores-colonizadores, então torna-se óbvio que a tarefa revolucionária também consiste em ejetar de dentro dos oprimidos esta inculcada mistificação que serve aos dominadores.

mistificação é o instrumento da opressão: “a ideologia de uma classe dirigente, como se sabe, se faz adotar em larga escala pelas classes dirigidas” (p. 125), como lembra Memmi. A imagem-do-colonizado que o colonialista impõe a seus dominados muitas vezes encontra eco nos próprios dominados, que muitas vezes toleram o racismo e a presunção de superioridade que se manifesta em tudo que o colonialista diz e faz.

A marca do colonizador é sua arrogância, seu apego à noção de sua própria superioridade aos nativos pelo mero fato de ser proveniente da poderosa metrópole. E a marca da ideologia mistificadora que o colonizador propaga consiste, em última análise, na generalização ilegítima que subjaz ao racismo: todos os colonizadores seriam preguiçosos, ladrões em potencial, incapazes de liberdade e condenados à tutela, já que pertencem às raças inferiores etc. Memmi frisa:

“É notável que o racismo faça parte de todos os colonialismos, sob todas as latitudes. Não é uma coincidência: o racismo resume e simboliza a relação fundamental que une colonialista e colonizado. (…) Conjunto de comportamentos, de reflexos aprendidos, exercidos desde a mais tenra infância, fixado, valorizado pela educação, o racismo colonial é tão espontaneamente incorporado aos gestos, às palavras, mesmo as mais banais, que parece constituir uma das estruturas mais sólidas da personalidade colonialista… Ora, a análise da atitude racista revela 3 elementos importantes:

1 – Descobrir e pôr em evidências as diferenças entre colonizador e colonizado;
2 – Valorizar essas diferenças em benefício do colonizador e em detrimento do colonizado;
3 – Levar essas diferenças ao absoluto afirmando que são definitivas e agindo para que passem a sê-lo…

Longe de buscar o que poderia atenuar seu desenraizamento, aproximá-lo do colonizado e contribuir para a fundação de uma cidade comum, o colonialista, ao contrário, se apóia em tudo o que o separa dele. E nessas diferenças, sempre infamantes para o colonizado e gloriosas para si, encontra a justificação de sua recusa… É preciso impedir que se tape o fosso.” (MEMMI, p. 108)

A ideologia do colonialista, marcada pelo racismo, pela presunção de superioridade, pelo rebaixamento e desumanização do outro, por ação dos aparatos de transmissão ideológica (como a escola, a imprensa, a igreja etc.) acaba por dominar em parte os corações e mentes dos colonizados. Daí a importância crucial de uma educação descolonizadora, que ensine os sujeitos a se empoderarem como sujeitos históricos em pé de igualdade com aqueles que, no topo de pirâmides sociais e de dentro de palácios governamentais ou mercadológicos, pretendem rebaixá-los, oprimi-los, escravizá-los.

No século 16, o jovem Étienne de la Boétie, o amigo de Michel de Montaigne, em seu livro Sobre a Servidão Voluntária, já se perguntava pelo segredo do predomínio dos tiranos diante de uma massa tão mais numerosa do que ele e sua corte de aliados. Mas só o número não basta: os oprimidos são numericamente superiores, mas boa parte deles está “nas garras” das mistificações produzidas pela ideologia dominante – patriarcal, teocrática, bancária etc.

Por isso, além de combaterem com penitenciárias e massacres, com exílios e expurgos, todos aqueles movimentos sociais organizados através dos quais os oprimidos buscam partejar um mundo melhor para todos, os opressores /  colonialista / dominadores preferem reinar sempre exibindo o espetáculo da força brutal com a qual podem esmagar qualquer revolta que ouse se manifestar. Portanto, não é justo que acusem os oprimidos de covardes, que digam dos dirigidos / dominados que não tem apreço pela liberdade nem coragem para defender seu direito a ela. Memmi, escrevendo em 1957, quando os aparatos de repressão ainda não eram tão hightech quanto hoje, lembra das violências destravadas pelos opressores contra qualquer levante que conteste o status quo: caso sintam-se ameaçadas, as classes dominantes e dirigentes rapidamente convocam auxílio:

“Todos os recursos da técnica, telefone, telegrama, avião colocariam à sua disposição, em alguns minutos, terríveis meios de defesa e destruição. Para um colonizador morto, centenas, milhares de colonizados foram ou serão exterminados. A experiência foi renovada – talvez provocada – um número suficiente de vezes para ter convencido o colonizado da inevitável e terrível sanção. Tudo foi feito para apagar nele a coragem de morrer e de enfrentar a visão do sangue.

Torna-se muito claro que, se se trata de fato de uma carência, nascida de uma situação e da vontade do colonizador, está limitada a apenas isso. Não há como associá-la a alguma impotência congênita em assumir a história. A própria dificuldade do condicionamento negativo, a obstinada severidade das leis já o demonstram… É por isso que a experiência da última guerra foi tão decisiva. Ela não apenas, como se disse, ensinou imprudentemente aos colonizados a técnica da guerrilha. Lembrou-lhes, sugeriu-lhes a possibilidade de um comportamento agressivo e livre.

Os governos europeus que, depois dessa guerra, proibiram a projeção, nas salas de cinema coloniais, de filmes como A Batalha dos Trilhos (La Bataille du Rail, de René Clement, 1945)tinham razão, de seu ponto de vista. Os westerns americanos, os filmes de gângster, os anúncios de propaganda de guerra já mostravam, objetaram-lhes, a maneira de usar um revólver ou uma metralhadora. Mas a significação dos filme de resistência é completamente diferente: alguns oprimidos, muito pouco ou nada armados, ousavam atacar seus opressores.” (MEMMI, p. 135)

Nenhuma revolução possível, pois, sem educação libertadora, e esta é necessariamente anti-racista e deve seguir ensinamentos delineados por pensadoras magistrais como Audre Lorde, Angela Davis e Bell Hooks. A leitura de Freire, Fanon, Memmi, dentre outros, conduz ao aprendizado de que os oprimidos, em sua luta coletiva por libertação, precisam conquistar os meios para vencer também dentro de si a presença do opressor. Este “tirano interior”, que Freud chamou de “super-ego” e que consistiria numa espécie de interiorização da autoridade externa, precisa ser derrubado tanto quanto os tiranos exteriores. “O colonizado hesita, de fato, antes de retomar seu destino em suas próprias mãos”, escreve Memmi (p. 136).

É função do educador comprometido com a superação das sociedades-de-opressão fornecer todo seu suor e toda as sinapses de seu cérebro, toda a arte de suas mãos e pernas, todo o sangue de suas sístoles e diástoles, para o partejar comum de um mundo onde possamos ser-mais, não mais cindidos entre exploradores e espoliados, mas sim camaradas humanizando-se no vitalício aprendizado da existência conjunta que se põe, como horizonte comum, a manhã da liberdade, da fraternidade, da justiça.

Esta liberdade jamais se fará caso aguardemos dormindo pela chegada da manhã. Temos que caminhar juntos na madrugada sabendo que a liberdade, sem as ações daqueles que a amam, não é nada senão um fantasma ineficaz ou ideal inútil evocado em poemas que ninguém lê. A liberdade necessita que a encarnemos, o que é missão para aqueles que estão acordados, mesmo nas madrugadas de breu mais intenso. Despertos para a sua passageira presença na Terra como sujeitos de uma História que os transcende, sabemos que a liberdade não é só o mais precioso dos bens a ser desejado. Sabemos que seu advento e sua consumação é nossa responsabilidade.

Eduardo Carli de Moraes 
19 de Junho de 2019

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VÍDEOS: “EI PROFESSOR, VOCÊ É DOUTRINADOR?”, palestra com as professoras da UFG Dra. Agustina Rosa Echeverría e Dra. Maria Margarida Machado, em evento realizado no anfiteatro da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás no dia 7 de junho de 2019.

1a parte, Dra. Echeverría:

2a parte, Dra. Machado:

Filmagem: A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com)

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“No dia seguinte ninguém morreu” – José Saramago sonda a tragicomédia da existência em “As Intermitências da Morte” (2005)

Nunca houve, desde que há mundo, um único dia que tenha transcorrido sem mortes. Não há registro ou notícia, desde que há vidas nesta esfera que rodopia ao redor do sol, de um giro completo do planeta ao redor de seu próprio eixo em que não tivessem se entremesclado no Theatrum Mundi os primeiros gritos dos recém-nascidos com os últimos suspiros dos agonizantes (como já nos ensinava a poesia epicurista de Lucrécio).

Se na realidade nunca houve época em que a morte tivesse entrado em férias, na literatura pode-se fantasiar livremente sobre o inaudito, o inédito, o nunca-dantes-nos-anais-da-história: como aquela formidável época em que a gente parou de morrer. A crônica imaginária destes sucessos extraordinários foi realizada em As Intermitências da Morteromance publicado em 2005 por José Saramago e que assim se inicia:

“No dia seguinte ninguém morreu. O fato, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme… não havia notícia nos 40 volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenômeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas 24 horas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.” (SARAMAGO – Cia das Letras, 2005, p. 11)

Na trajetória do escritor, este livro é da fase tardia, escrito após a consagração mundial de Saramago em 1998, quando o hoje defunto autor português foi laureado com o Nobel de Literatura, aquele prêmio que concede a tão poucos e seletos mortais a aura de sua glória, auréola de fama que promete a seu detentor que sua obra irá seguir ecoando, enganando a bocarra gigantesca da obscuridade do túmulo que engoliu quem esta obra pariu.

Neste livro, como de praxe, o Saramago é o cronista sagaz de nosso absurdo individual e coletivo. É o autor capaz de enxergar com profunda ironia, tingida de melancolia, todas as nossas adversidades, todas as nossas idiotices, todas as nossas incompletudes. É também o crítico mordaz das religiões instituídas, das máphias políticas, das velharias autoritárias, agindo como um iluminista tardio que age contra todos os obscurantismos que insistem em medievalizar a terra.

Saramago atua, através de sua caudalosa escrita, como um pedagogo sábio que quer nos ensinar a travessia que vai da cegueira à lucidez. Pela via régia do ateísmo, busca a emancipação do pensamento e da sensibilidade, libertos das cataratas de mentiras que nos vendam os olhos. O pior cego é o que não quer ver, o que pôs vendas em seus próprios olhos, em atitude análoga à daquele que está perecendo em uma cela de prisão sem perceber que a chave está por dentro.

Explorado em outras de suas obras, como Ensaio Sobre a Cegueira, o tema da cegueira – não literal, mas sim moral, existencial, relacional – parece estar correlacionado, na obra saramaguiana, com a condição mortal. Como se fôssemos demasiado covardes, a maioria de nós e a maior parte do tempo, para estar with eyes wide open diante de nossa condição.

Preferimos a semi-obscuridade – a falta de lucidez – de nossas fés e ideologias, que tanto contribuem para que vivamos com eyes wide shut (nome, aliás, do notável filme de despedida de Stanley Kubrick). Cegos de propósito, pois nunca suficientemente corajosos para encarar, no espelho, a caveira que nos olha de volta por detrás da pele da face. Crânio escondido por detrás da cara que é o retrato de nosso futuro incontornável.

O único animal que sabe que vai morrer inventa, através da história, os ópios e morfinas espirituais que mediquem sua angústia da finitude. A música do Morphine expressa isto à perfeição em Cure for Pain, uma das mais belas canções do finado Mark Sandman: “someday there’ll be a cure for pain, that’s the day I’ll throw my drugs away”.

Saramago sabe que as religiões instituídas, aí incluída a católica apostólica romana, sempre insistiram no tema da “morte como porta única para o paraíso celeste, onde, dizia-se, nunca ninguém entrou estando vivo, e os pregadores, no seu afã consolador, não duvidavam em recorrer a todos os métodos da mais alta retórica e a todos os truques da mais baixa catequese para convencerem os aterrados fregueses de que, no fim de contas, se podiam considerar mais afortunados que os seus ancestres, uma vez que a morte lhes havia concedido tempo suficiente para prepararem as almas com vista à ascensão do éden” (p. 133). A extinção da morte é um perigo para a sobrevivência das religiões instituídas, estas profanas criações humanas destinadas a pôr em circulação os ópios fantasiosos que acalmam os terrores e angústias do bicho que sabe que vai morrer.

Há muito tempo estou convencido – e nisto a leitura de Saramago muito contribuiu – de que as religiões e as mitologias são incompreensíveis em um horizonte onde não coloquemos, no cerne, a mortalidade humana e o nosso protesto contra ela. Diante da morte invencível, os seres humanos erguem suas catedrais e suas preces; imaginam-se triunfantes em um além-túmulo que o poeta Tennyson chamará de local do Segundo Nascimento; Idolatram a figura de um crucificado que supostamente voltou à vida depois de três dias morto. Só inventamos deuses pois morremos – e é porque morremos que “se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo.”

Pintura de Andrea Mantegna – “Lamentação de Cristo”

Mortais humanos apegam-se com esperanças fervorosas ao sonho de ressurreição, e olhando, seja de frente ou de soslaio, seus destinos de criatura temporárias, abraçando ou recusando esta ciência fatal, os seres que somos recusam-se a ir ladeira abaixo, no processo que conduz pra baixo da terra, em silêncio e resignação. Para lembrar o célebre estribilho poético: We not go quietly into that good night… We rage, rage against the dying of the light! (Dylan Thomas)

Como disse Albert Camus, “o ser humano é a única criatura que se recusa a ser o que é.” E a danada da morte tem tudo a ver com isso. Ela é, para os viventes, aquilo que Manuel Bandeira chamou de “a indesejada das gentes” – e os suicidas sempre foram minoria da humanidade, pois os que buscam com ânsia uma morte que lhes dê fim aos tormentos e angústias sempre foram menos numerosos do que aqueles que foram impelidos à sobrevivência resiliente até que o tempo os matasse com seus instrumentos do costume, como as doenças e as violências bélicas. Ainda assim, o suicídio e a eutanásia são fenômenos que nos obrigam a refletir sobre o direito de morrer, quando a vida não é mais sentida como digna de ser vivida, um tema abordado com muita sensibilidade e pungência por filmes como Mar Adentro de Amenábar ou Amor de Haneke.

Saramago, no espaço livre de seu livro, suspende as leis natural que estão por aí desde que o mundo é mundo. Mago plenipotente no espaço de seu romance, ele conta uma história fantasiosa: na alvorada de um ano novo, todos os 10 milhões de habitantes de um certo país subitamente descobrem que a morte saiu de férias. Por tempo indeterminado. Sem aviso prévio, abandonou o posto e desistiu de seu fatal ofício, há tantos milênios incansavelmente exercido.

Não se sabe os motivos de sua greve, e ninguém explicou se o fenômeno é uma casual e efêmera transformação da ordem cósmica, que logo re-entrará nos eixos costumeiros, ou se as regras da vida e da morte foram alteradas para sempre neste pequeno rincão da terra. A princípio, é o fervor patriótico e todos comemoram o privilégio. Logo depois, percebem que a morte sair de férias irá acarretar um imenso transtorno – tanto é assim que os fluxos migratórios irão se acentuar, com inúmeros nômades-peregrinos querendo chegar a outro país onde ainda se tem a possibilidade de morrer.

Tudo se transtorna com as férias que a morte resolveu tirar: os hospitais ficam repletos de doentes terminais, os asilos de velhos sofrem com o excesso dos agonizantes estão à espera de seu ocaso, os escritórios das companhias de seguros e os bancos onde elas depositam seus capitais entram em crise…

Os impactos na economia são tremendos – e não apenas no pequeno nicho que são as empresas funerárias, que fornecem aos que sobrevivem os necessários auxílios para o despojo daquelas partes do ex-vivo tão brutalmente chamados por alguns de “restos mortais”, aquilo que, abandonado pela chama da vida, apodrece logo com exalações de odores pútridos e que por isso corremos a afastar de nossas fuças e vistas.

A teledramaturgia, nos últimos anos, foi responsável pela criação de uma obra-prima das séries dramáticas com A Sete Palmos (Six Feet Under), da HBO, cujas 5 temporadas expuseram em minúcias as vidas da família Fisher e seus agregados afetivos enquanto tocam avante a difícil empreitada de gerir uma funerária.

Saramago também se interessa por todas as indústrias que lucram com a morte, mas é mais como um crítico ácido que ele atua, nunca como alguém que não enxergue a problemática complexa que envolve hospitais, asilos, funerárias e os elos que os conectam aos poderes políticos e eclesiásticos. As altas cúpulas do clero e as altíssimas autoridades do reino são alvo da pena mordaz de Saramago, que em inúmeros livros despeja sua ironia sobre o fenômeno da vinculação teologia-política (Memorial do Convento, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Caim etc.).

Em As Intermitências da Morte, o romance revela tudo o que ocorre no curto período em que a morte cessa de desempenhar suas funções.

“A igreja”, por exemplo: “saiu à arena do debate montada no cavalo-de-batalha do costume, isto é, os desígnios de deus são o que sempre foram, inescrutáveis, o que, em termos correntes e algo manchados de impiedade verbal, significa que não nos é permitido espreitar pela frincha da porta do céu para ver o que se passa lá dentro.

Dizia também a igreja que a suspensão temporária e mais ou menos duradoura de causas e efeitos naturais não era propriamente uma novidade, bastaria recordar os infinitos milagres que deus havia permitido se fizessem nos últimos 20 séculos, a única diferença do que se passa agora está na amplitude do prodígio, pois que o que antes tocava de preferência o indivíduo, pela graça da sua fé pessoal, foi substituído por uma atenção global, não personalizada, um país inteiro por assim dizer possuidor do elixir da imortalidade, e não somente os crentes, que como é lógico esperam ser em especial distinguidos, mas também os ateus, os agnósticos, os heréticos, os relapsos, os incréus de toda a espécie, os afeiçoados a outras religiões, os bons, os maus e os piores, os virtuosos e os maphiosos, os verdugos e as vítimas, os polícias e os ladrões, os assassinos e os doadores de sangue, os loucos e os sãos de juízo, todos, todos sem exceção, eram ao mesmo tempo as testemunhas e os beneficiários do mais alto prodígio alguma vez observado na história dos milagres…” (p. 75)

Descrente em milagres como bom ateu, Saramago brinca de imaginar as consequências que tomariam o mundo caso este milagre ocorresse e a “Velha da Capa Preta” parasse de trabalhar. O desemprego dos coveiros seria a menor de nossas encrencas. A editora Companhia das Letras sintetizou bem os charmes e graças do romance:

De repente, num certo país fabuloso, as pessoas simplesmente param de morrer. E o que no início provoca um verdadeiro clamor patriótico logo se revela um grave problema.

Idosos e doentes agonizam em seus leitos sem poder “passar desta para melhor”. Os empresários do serviço funerário se vêem “brutalmente desprovidos da sua matéria-prima”. Hospitais e asilos geriátricos enfrentam uma superlotação crônica, que não pára de aumentar. O negócio das companhias de seguros entra em crise. O primeiro-ministro não sabe o que fazer, enquanto o cardeal se desconsola, porque “sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja”.

Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à mortalidade comum de todos os cidadãos. Mas, na sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar os afazeres de sempre. Então, o que vai ser da nação já habituada ao caos da vida eterna?

LEIA OUTRO TRECHO

Vale lembrar que, na arte brasileira, há também um magnum opus que se equipara a Saramago na capacidade de expressar de maneira criativa e expressiva o enrosco humano com a mortalidade: estou falando da música de Siba, depois regravada por Juçara Marçal em seu álbum Encarnado, “A Velha da Capa Preta”:

A morte anda no mundo
Vestindo a mortalha escura
Procurando a criatura
Que espera a condenação
Quando ela encontra um cristão
Sem vontade de morrer
Ele implora pra viver
Mas ela ordena que não
Quando o corpo cai no chão
Se abre a terra e lhe come
Como uma boca com fome
Mordendo a massa de um pão

A morte anda no mundo
Espalhando ansiedade
Angústia, medo e saudade
Sem propaganda ou esparro
Sua goela tem pigarro
Sua voz é muito rouca
Sua simpatia é pouca
E seu semblante é bizarro
A vida é corno um cigarro
Que o tempo amassa e machuca
E morte fuma a bituca
E apaga a brasa no barro

A morte anda no mundo
Na forma de um esqueleto
Montando um cavalo preto
Pulando cerca e cancela
Bota a cara na janela
Entra sem ter permisão
Fazendo a subtração
Dos nomes da lista dela
Com a risada amarela
É uma atriz enxerida
Com presença garantida
No fim de toda novela

Disse a morte para a foice:
Passei a vida matando
Mas já estou me abusando
Desse emprego de matar
Porque já pude notar
Que em todo lugar que eu vou
O povo já se matou
Antes mesmo d’eu chegar
Quero me aposentar
Pra gozar tranqüilidade
Deixando a humanidade
Matando no meu lugar

A personificação da morte não é novidade na história da arte – de Van Gogh (pintura acima) a Bergman (em um filme como O Sétimo Selo), artistas de várias vertentes já representaram a dita cuja de muitas maneiras, como um esqueleto que fuma um cigarro ou como uma jogadora de xadrez que oferece ao rival a oportunidade de adiar sua estadia entre os vivos, desde que consiga não tomar um xeque-mate.

No caso de Saramago, ele se deleita em imaginar as enrascadas em que a morte responsável por matar os humanos entraria caso mudasse seus métodos imemoriais. A morte, quando sai dos trilhos, acaba por descarrilhar todo o trem da vida. Primeiro, ela escolhe as férias, mas depois decide retornar à labuta, mas com outra estratégia: mandará pelo correio uma carta de cor violeta, avisando aos que estão na iminência de morrer que lhes resta apenas uma semana de vida…

Poética, a morte pensa em enviar, ao invés de cartas, borboletas – em especial a espécie acherontia atroposdotada pela natureza de um visual curiosamente fúnebre. São maneiras irônicas de Saramago nos sugerir, com muita graça, que a morte sempre fez parte da vida e que ainda bem que é assim. Esta funcionária exemplar causaria o caos caso falhasse no desempenho de suas funções. Hospitais engarrafados de tantos doentes, asilos às dúzias tendo que ser construídos às pressas, empresas de enterros indo à falência, e religiões instituídas caindo no colapso – tudo isso como resultado da temporária intermitência da morte em seu ofício.

Se a vida fosse impossível de perder, que valor teria? Não temos apreço senão por aquilo que é a um só tempo precioso e destrutível. Sabemos e sentimos que tudo de bom que vivemos é efêmero e temporário, e André Gide ensinava que quem não pensa suficientemente na morte não consegue dar o devido peso e urgência à vida: “Um pensamento insuficientemente constante sobre a morte”, escrevia Gide, “nunca deu valor suficiente ao mais ínfimo instante de vida.”

Nas páginas de Saramago, é como se a morte aparecesse como a necessária força de renovação das coisas. Sem morte, tudo estagnaria e o mundo viraria um amontoado de velharias. O fluxo cósmico perderia sua fluidez. As velharias se amontoariam, sufocando o novo. Só através da morte é que a vida pode inovar. No balé infindável de Eros e Tânatos, o palco do mundo vê a emergência sem fim de novas formas. Metamorfoses advindas interminavelmente da dialética inextirpável da vida e da morte.

Pintura de Michael Wolgemut, “A Dança dos Esqueletos”

Em seus momentos mais filosóficos, As Intermitências da Morte nos faz refletir sobre os diversos modos de findar a existência, de acordo com o organismo vivo que chega a seu ocaso, como no capítulo 6, em que um peixinho de aquário, alçando-se por sobre as águas, pergunta (perdendo seu pobre fôlego):

“Já pensaste se a morte será a mesma para todos os seres vivos, sejam eles animais, incluindo o ser humano, ou vegetais, incluindo a erva rasteira que se pisa e a sequoia giganteum com os seus 100 metros de altura, será a mesma a morte que mata um homem que sabe que vai morrer, e um cavalo que nunca o saberá. E tornou a perguntar, Em que momento morreu o bicho-da-seda depois de se ter fechado no casulo e posto a tranca à porta, como foi possível ter nascido a vida de uma da morte da outra, a vida da borboleta da morte da lagarta, e serem o mesmo diferentemente, ou não morreu o bicho-da-seda porque está na borboleta… Disse o espírito que paira sobre as águas do aquário, o bicho-da-seda não morreu, dentro do casulo não ficou nenhum cadáver depois de a borboleta ter saído, tu o disseste, um nasceu da morte do outro, Chama-se metamorfose, toda a gente sabe do que se trata, disse condescendente o aprendiz de filósofo….” (p. 72)

Morte e vida dançam o rock da metamorfose no fluido palco do universo, mas cada organismo tem seu modo de experenciar o seu próprio processo de dissolução: se é verdade que o homo sapiens é o único animal consciente de sua própria mortalidade, ainda que ele tanto se esforce para recalcar e reprimir esta ciência (através de métodos psicológicos brilhantemente iluminados por Ernest Becker em A Negação da Morte, belíssimo livro laureado com o Pulitzer), não se pode negar que outros animais dotados de sistema nervoso central e altamente sensíveis aos estímulos ambientais também batalhem com todas as forças de seu âmago contra quem quer lhes impor a morte. Ser um animal é estar animado pelo duro desejo de durar.

Um pomar não nos dá a mesma impressão de resiliência, de perseverança na existência, de manifestação concreta do conatus conceituado na filosofia de Spinoza, o que torna bastante cômicos e risíveis os argumentos de certos carnívoros que, diante da argumentação de vegetarianos em prol da libertação animal, argumentam que as cenouras e os alfaces gostam tão pouco de terem suas vidas abreviadas quanto os porcos e bois abatidos nas milhares de factory farms desde nosso mundo.

Neste debate, Jacques Derrida foi ao cerne do problema ao dizer que a questão crucial a se colocar, diante da vida de um outrem não-humano, é esta: “esta criatura pode sofrer?” E só um mentecapto seria capaz de avaliar, no termômetro da sofrência, que um porco ou uma galinha sofrem menos que uma maçã ou um brocólis com a interrupção de sua existência para fins alimentícios humanos. O apego à vida é evidente maior quanto mais ampla é a consciência que o animal possui de sua condição existencial – e, como Peter Singer argumenta, é um escândalo global chocante o quanto nossas economias ainda estão baseadas no morticínio ultra-disseminado de criaturas que sofrem imensamente com o processo mortífero que os humanos lhes impõem, ao invés de adotarmos uma cultura culinária mais sábia pois atenta aos interesses de seres sencientes semelhantes a nós mesmos.

Passando ao largo dessas questões, o romance de Saramago prefere focar nas reações humanas diante da aproximação da data fatal nas novas condições impostas pela Dona Morte, que no âmbito do romance resolveu inovar em seus métodos. O affair quase romântico da morte com um violoncelista serve como emblema saramaguiano para os poderes transformadores da arte: sob o impacto da aproximação da morte, o músico toca seu Bach, seu Chopin, seu Beethoven, com tal feeling e potência expressiva que tudo transfigura a seu redor.

Saramago imagina então que a morte, encantada com a musicalidade deste mortal que ela não consegue se decidir a matar, escolhe fazer o que nunca antes fizera – é só lembrar que ela não teve piedades, em sua ação pretérita, de gênios musicais colhidos tão cedo do jardim da vida como Schubert, Mozart ou Janis. A morte depõe suas armas diante da música, adia suas tarefas, deixa para depois o único mandamento que segue – “matarás!” Enfeitiçada pela música que fazem os vivos, a morte que nunca dorme decide-se a deixar a foice encostada e vai tirar uma soneca – afinal suas pálpebras pesam após tanto tempo de ação em completa insônia. “E no dia seguinte ninguém morreu…”

“O que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naquela música uma transposição rítmica e melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma cousa ainda tivesse ficado por dizer… (p. 171)

É nossa sina de seres temporários que nunca possamos abandonar o palco depois de tudo termos dito. Resta sempre muito por dizer, e o resto é silêncio. Na literatura de Saramago, este incontornável da condição humana recebe um tratamento literário que é tonificante, não só pela liberação lúdica que nos fornece, aliviando a gravidade com que costumamos tratar do assunto e polvilhando tudo com um espírito de jocosa ironia, mas também pela intensificação de nossa consciência do quão tragicômico é este clarão entre dois nadas que cada um de nós chama de vida.

A morte saramaguiana tem muita graça e lendo este romance pude me divertir a imaginá-la como um funcionária exemplar, que desde a alvorada da vida exerceu suas funções de maneira impecável, mas que enfim decide reclamar seus direitos trabalhistas e reclamar do patrão (deus ou o universo, segundo o gosto do freguês…), já que ela já labuta há milênios, sem férias nem direito a greve, matando 24 horas por dia, inclusive em feriados religiosos e nos horários mais impróprios da madrugada.

A morte é parte inextricável e incontornável da vida de que cada um de nós não detêm a posse mas somente o fugaz usufruto. E a sabedoria epicurista sempre ensinou que não há carpe diem sem memento mori. Saramago, acredito, assinaria embaixo caso a morte tivesse lhe deixado mãos para escrever. Também assinaria embaixo, provavelmente, de duas idéias filosóficas que muito aprecio: a primeira, de Montaigne, que dizia que “filosofia é aprender a morrer”, e a segunda, de André Comte-Sponville, que ensina que “é preciso pensar a morte para amar melhor a vida – em todo caso, para amá-la como ela é: frágil e passageira.”

O pensamento de Saramago, tão filiado a um certo ímpeto de lucidez iluminista que batalha contra o obscurantismo e o fanatismo, busca conduzir-nos a esta sábia apreciação de nossa existência mortal que é tão rara e preciosa. Escrevendo logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001, Saramago soube conectar com profundidade os fatores inextricáveis mortalidade religiosidade ao escrever “O Factor Deus”, excelente provocação filosófica-política que é recomendável como posfácio às Intermitências da Morte:

“De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta dos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas sem excepção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que isto seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel.

Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os taliban, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente os textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conluio pactuado entre Religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos, o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gémeas de Nova Iorque e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela acção dos homens, cobriram e teimam em cobrir de torpor e sangue as páginas da História.

Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “factor Deus”, esse está presente na vida como se efectivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o “factor Deus” o que se exibe nas nota de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos e não a outra…) a benção divina. E foi o “factor Deus” em que o deus islâmico se transformou que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o “factor Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem, acabou por fazer do homem uma besta.

Ao leitor crente (de qualquer crença…) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiram, não peço que passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento se não puder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do “factor Deus”. Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.” – SARAMAGO / O FACTOR DEUS

Por Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, Julho de 2018

 

“O Medo à Liberdade & A Servidão Voluntária” ● Sobre o pensamento de Étienne De La Boétie ● Café filosófico com Leandro Karnal ● #Livros #Filosofia #História #MichelDeMontaigne

Discurso sobre a servidão voluntária

Autor:
 Étienne de la Boétie (1530 – 1563)
Prefácio: Leandro Karnal
Tradutora: Evelyn Tesche

“Bem-vindo à aventura fascinante de enfrentar o fantasma da liberdade. O livro diante de você dialoga com este sonho e é um marco no pensamento ocidental. Aproveite e reflita. Para Étienne, só existe uma prisão possível: aquela que você mesmo construiu e cuja porta, por estranho deleite, você fechou. Saiba sempre que toda servidão é voluntária. Sua liberdade é sua, e você pode entregá-la a qualquer um que desejar. Os tiranos agradecem.” – LEANDRO KARNAL, em prefácio para esta edição

Sinopse: Marco do pensamento humanista, este pequeno tratado foi escrito em 1549, quando Étienne de la Boétie contava apenas 18 anos. O texto defende que é possível resistir à opressão de forma pacífica no momento em que o povo decide não mais se sujeitar à tirania. O autor antecipa em séculos fundamentos teóricos que estarão presentes em, por exemplo, Desobediência civil, de Henry David Thoreau, na luta de Gandhi pela independência da Índia, no movimento antissegregação de Luther King nos Estados Unidos e também nas manifestações populares contra ditaduras ao redor do mundo. A presente edição traz, ainda, introdução do editor Paul Bonnefon, um dos desbravadores da obra de La Boétie e responsável pela edição francesa de 1922, que serviu de base para esta tradução. Além disso, o prefácio, escrito pelo historiador e professor da Unicamp Leandro Karnal, situa o tratado em seu contexto de origem e ao mesmo tempo em relação ao momento político atual. Leitura obrigatória para os dias de hoje, em que todo cuidado é pouco e todo esclarecimento histórico se faz fundamental.

Sobre o autor: Étienne de la Boétie (1530-1563), filósofo francês, teve grande parte dos seus escritos divulgada postumamente a partir dos manuscritos deixados ao amigo Michel de Montaigne. O teor humanista e libertário de seus escritos o coloca entre os precursores das ideias anarquistas. Sua obra mais conhecida é o Discurso sobre a servidão voluntária em que o autor questiona a inclinação dos povos a se deixar dominar por tiranos e afirma que o caminho para a liberdade é a rebelião voluntária e pacífica contra a tirania.

Sobre a tradutora: Evelyn Tesche é bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua na tradução de obras francesas, principalmente nas áreas de Filosofia, de Literatura e de Ciências Humanas.

Sobre o autor do prefácio: Leandro Karnal é historiador, doutor em História social pela USP e professor na UNICAMP.  É convidado de programas como o Jornal da Cultura e Café Filosófico. Escreveu em autoria ou co-autoria mais de dez livros, alguns dos quais estão entre os mais vendidos do Brasil, como “Verdades e Mentiras” ; “Felicidade ou Morte”; “Pecar e Perdoar”; “Detração – breve ensaio sobre o maldizer”; “História dos Estados Unidos “ e “Conversas com um jovem professor”. É membro do conselho editorial de muitas revistas científicas do país. É colunista fixo do jornal Estadão e tem participações semanais nas rádios e canais de TV do grupo Bandeirantes. Seus vídeos e frases circulam pela internet com grande popularidade.

Editora EdiPro

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GUIAS NA ARTE DE BEM VIVER – Montaigne, Epicuro e a questão do Carpe Diem

VIVER MELHOR: se a filosofia não nos ajudasse em nada nessa arte, já teria sido extinta. Se sobrevive há mais de 26 séculos, com uma resiliência que não seria concebível para algo irrelevante para a existência humana, é pois há quem encontre na filosofia uma VITAL SERVENTIA. Pois que boa vida, que felicidade humana, que plenitude emocional ou serenidade anímica seria possível sem sabedoria? E que frase existe de mais anti-filosófica, de mais estúpida e inaceitável, do que “ignorance is bliss”?

Será que o filósofo não é aquele que está nas antípodas de qualquer discurso de apologia à ignorância como via sacra para a beatitude (como ocorre inclusive em escrituras ditas “sagradas”)? Que vida valeria a pena ser vivida sem ação refletida e convívio norteado por sábios princípios? E como amar uma filosofia que fosse apenas uma teorização infrutífera, que fosse mero papaguear de conceitos abstratos, que fosse pensamento desplugado da ação?

Só uma filosofia que é frutífera em felicidade e em incremento de sabedoria, só uma filosofia que proporciona melhoria da nossa capacidade de bem viver (o que inclui, é claro, o con-viver!), faz jus àquilo que tantos filósofos viam como suas metas existenciais – propor uma maneira de viver, o que inclui aprender a morrer. A finitude obriga todo buscador de sabedoria ao aprendizado de sua própria efemeridade, de sua fugacidade, descritível como similar a de uma vela na brisa em meio às ventanias cósmicas.

Na viagem do tempo, a longo prazo, dizem-nos os cientistas, acabam por se apagar até mesmo as estrelas. Mortais são até as coisas que julgávamos as mais indestrutíveis de todas – ainda que a incandescência cósmica geral dê seu jeito de sobreviver a cada morte – de bichos, das gentes, de sóis. Que a filosofia tenha existencial serventia é o mínimo que dela se exige. Os filósofos, no processo de buscar sabedoria – eles são os “The Seekers” de que fala a canção explosiva do The Who! – devem ser como árvores de rica seiva que fazem jorrar com exuberância os frutos que devem alimentar esta arte suprema que é o bem viver.

Em seu delicioso livro Como Viver, a Sarah Bakewell foi brilhante em mostrar o quanto “Montaigne costumava demonstrar desdém pelos filósofos acadêmicos, sendo avesso a seu pedantismo e a suas abstrações. Mas evidenciava perene fascínio por outra tradição filosófica, a das grandes escolas pragmáticas que exploravam questões como a maneira de enfrentar a morte de um amigo, desenvolver a coragem, agir com correção em situações moralmente delicadas ou aproveitar o melhor possível a vida. (…) Os três sistemas de pensamento mais conhecidos dessa tendência eram o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo: as filosofias conhecidas como helenísticas, por terem sua origem na era em que o pensamento e a cultura gregos se espraiaram até Roma e outras regiões mediterrâneas, a partir do 3º século a.C.” (BAKEWELL: p. 120)

O alvo, meta ou télos da filosofia – e seu próprio nome já diz muito: amor (Philia) à sabedoria (sophia) – foi visto como intensamente prático ou pragmático nestas escolas helenísticas. Além do epicurismo, do estoicismo e do ceticismo, mencionados por Bakewell, podemos também elencar o cinismo como uma importante vertente de uma filosofia da práxis, nada interessada em debates teóricos ociosos, toda voltada para atitudes existenciais e comportamentos provocativos e didáticos (o que aproxima Diógenes de Sínope do Oriente, por exemplo da figura do mestre-zen budista…). Trata-se, para o filósofo cínico, de levar ao extremo um ethos contra-hegemônico onde tem primazia a noção de parresia, traduzida por Foucault como “a coragem da verdade”.

“Todas essas escolas tinham o mesmo objetivo: alcançar um modo de vida conhecido na língua grega como eudaimonia, termo que costuma ser traduzido como ‘felicidade’, ‘alegria’ ou ‘desabrochar humano’. Isto queria dizer viver bem em todos os sentidos: desenvolver-se, desfrutar a vida, ser uma boa pessoa. Elas também consideravam que o melhor caminho para a eudaimonia era a ataraxia, que poderia ser traduzida como ‘imperturbabilidade’ ou ‘estar livre de ansiedade’. Ataraxia significa equilíbrio: a arte de manter o prumo, sem exultar quando as coisas vão bem nem mergulhar no desespero quando vão mal. Alcançar esse estado é exercer controle sobre as emoções, para não ser golpeado e arrastado por elas como um osso disputado por uma matilha de cães.” (BAKEWELL, p. 120)

A filosofia, em sua busca pela felicidade, soube distinguir entre o efêmero e o duradouro. Um êxtase fugaz não configura eudaimonia, somente um bem-estar com a vida que seja resiliente, seguro e sólido – na medida do possível neste mundo de mutações e liquidez – merece a qualificação de eudaimonia. Donde a importância da ataraxia, esta serenidade alegre e constante daquele nem exulta, nem se deprime – e que André Comte-Sponville costuma descrever com a expressão “prazer em repouso”.

Se a serenidade da ataraxia é essencial à felicidade da eudaimonia é pois qualquer sábio não pode ser descrito como alguém que fica oscilando na gangorra dos prazeres e das dores, incapaz de gozar de qualquer duradoura satisfação. A felicidade filosófica que se anseia está nas antípodas daquele estado-de-espírito inquieto, ansioso, insatisfeitíssimo com tudo, retratado em belas pedradas do rock’n’roll como “Satisfaction” dos Rolling Stones ou “Unsatisfied” dos Replacements. Em contraste, o Tim Maia ofereceu uma boa expressão, cheia de soul, da ataraxia eudemônica quando propôs o estado anímico bem-aventurado do “numa relax, numa tranquila, numa boa”.

“Foi sobre a questão de como alcançar essa tranquilidade que os filósofos começaram a discordar. Cada um deles tinha uma concepção diferente, por exemplo, do quanto deveríamos ceder ao mundo real. A comunidade epicurista original, fundada por Epicuro no século IV a.C., pregava o afastamento da família, para que os seguidores vivessem como membros de um culto num ‘jardim’ particular. Os céticos preferiam continuar mergulhados no alvoroço da vida comum, mas assumindo uma atitude mental radicalmente diferente. Os estoicos se posicionavam mais ou menos entre as duas opiniões. Os estoicos e os epicuristas também compartilhavam boa parte de suas respectivas teorias. Consideravam que a capacidade de desfrutar a vida pode ser comprometida por duas grandes fraquezas: falta de controle das emoções e tendência a dar muito pouca atenção ao presente. ” (BAKEWELL, p. 121)

Um filósofo como Pierre Hadot, que esforçou-se por realizar obras sobre A Filosofia Como Maneira de Viver, também frisa com frequência “o sentimento da importância do instante, incessantemente expresso por estoicos e epicuristas (é o verdadeiro sentido do carpe diem do epicurista Horácio), mas também por modernos como Montaigne e Goethe. Só o presente é nossa felicidade; a essa riqueza do instante está ligada o que Pierre Hadot denomina ‘a pura felicidade de existir’, maravilhamento, mas também, entre os modernos, angústia e até temor diante do enigma da existência.” (CALLIER, Jeannie, apud HADOT, 2016, p. 12)

No caso de Hadot, a importância de imersão no instante, de mergulho pleno no presente, está conectada à experiência mística, àquilo que Romain Rolland chamou de “sentimento oceânico”. Hadot diz que “ao falar de sentimento oceânico, Rolland quis expressar um matiz muito particular, a impressão de ser uma onda num oceano sem limites, de ser uma parte de uma realidade misteriosa e infinita. Michel Hulin, em seu livro admirável intitulado La Mystique Sauvage [A Mística Selvagem], caracteriza essa experiência pelo ‘sentimento de estar presente aqui e agora no meio de um mundo, ele próprio, intensamente existente’, e fala também de um ‘sentimento de copertencimento essencial entre mim mesmo e o universo ambiente’. É capital, aqui, a impressão de imersão, de dilatação do eu num Outro ao qual o eu não é estranho, visto que é parte dele.” (HADOT, p. 23)

Hadot, grande estudioso da filosofia antiga, sabe que há uma ampla literatura que se dedica à descrição do sábio, tal como ele deveria ser – “na Antiguidade, a figura do sábio era uma norma, um ideal transcendente”. Sobre esta visão das características do sábio, na escola epicurista podemos colher muitos frutos saborosos da árvore de Lucrécio: em seu poema Da Natureza das Coisas, ele “faz o elogio de Epicuro, que os discípulos consideravam um sábio, descrevendo a realidade do filósofo ideal. Quais são, então, as qualidades que Lucrécio admirava nele? A primeira é seu amor aos seres humanos. Quando ele ensinou sua doutrina, quis socorrer o gênero humano, assolado pelo terror da superstição e pelas tormentas da paixão. Um segundo traço característico de sua sabedoria é a ousadia de sua visão cósmica: pelo espírito, diz Lucrécio, ele foi além das barreiras inflamadas que limitam o universo e percorreu o Todo imenso. Um terceiro traço, enfim: ele é livre, destemido, desfruta de uma paz interior análoga à dos deuses, dos quais se pode dizer precisamente, segundo sua doutrina, que a alma deles não é agitada por nenhuma perturbação.” (HADOT, p. 149)

Este ideal ético da imperturbabilidade – não deixar o ânimo ser arrastado para os extremos da exultação ou da depressão, como um barco à vela em meio a mares de tempestade – manifesta-se de maneiras diferentes nas escolas filosóficas, de modo que o estoicismo parece propugnar muito mais uma vida da ascese apática, uma apologia da apatheia, enquanto o epicurismo dito “hedonista” não irá pregar um não à paixão, mas sim uma hierarquização dos desejos e prazeres. Hadot é preciso ao dizer que “a maneira de viver dos epicuristas consistia principalmente em certa ascese dos desejos, destinada a manter a mais perfeita tranquilidade da alma. Era preciso limitar os próprios desejos para ser feliz. Os epicuristas faziam uma distinção – esse ponto é bem conhecido – entre os desejos naturais e necessários (beber, comer, dormir), os desejos naturais e não necessários (o desejo sexual) e os desejos não naturais e não necessários (desejos de glória, de riqueza). Excluíam, ao menos em princípio, a ação política. Mantinham-se, tanto quanto possível, afastados dos assuntos da cidade… No fim das contas, os epicuristas buscam desfrutar da simples alegria de existir.” (p. 129)

A calúnia difamatória de que foram vítimas os epicuristas fabricava a imagem, falsa e enganadora, de que no Jardim de Epicuro vigiam os piores excessos, que ali perseguia-se o prazer com um furor satânico, que ali não paravam as orgias sexuais monstruosas, as bebedeiras e comedeiras resultando em vômito e indigestão – enfim, a imagem de um puteiro de licenciosidade completa, uma anarco-área para a Vontade refestelar-se a seu bel-prazer, algo que prenunciaria o Marquês de Sade e suas narrativas repletas de atrocidades perpetradas por indivíduos que dizem sim à sua vontade individual, em desdém total pelo outro. Nada mais distante do autêntico epicurismo, da verdadeira comuna alternativa fundada por Epicuro na cidade de Atenas e que atravessaria os séculos como espaço de convivência, centro cultural e foco de irradiação de uma sabedoria de potencial disseminação universal. Epicuro vivia de maneira sóbria e frugal, devotado às amizades, em busca da serenidade de ânimo, esforçado pesquisador do Grande Livro da Natureza que teria gerado a escrita de um tratado de física em 30 volumes (todos hoje perdidos).

carpe diem que o poeta romano Horácio propõe e que tornou-se emblema epicurista, citado em tatuagens e camisetas, em canções e filmes, não tinha muito em comum com um certo imediatismo consumista hoje tão em voga. O ethos hegemônico do consumidor imediatista em nossas sociedades de consumo – o tipo de figura que pode até levar consigo no peito o lema you only live once, mas que busca suprir seu ímpeto hedonista somente através da compra de mercadorias e do consumo de itens geradores de prestígio e status – está nas antípodas do ethos epicurista, no qual “aproveitar o dia” tinha a ver com a busca pela sabedoria por meio do convívio entre amigos que amam a verdade. A verdade não se consome, não se vende, não se compra, é o alvo da busca do sábio e, segundo Epicuro, a compreensão da natureza das coisas tem efeito terapêutico e liberador. Colher o dia também significa aproveitá-lo ao máximo para expandir o conhecimento sobre a natureza, a realidade – um carpe diem que aproxima-se ao sentido em que Mary Wollstonecraft utiliza o conceito de exertion, uma espécie de esforço bem-aventurado na direção do auto-aprimoramento.

Epicuro, grande guia na arte do bem viver, é igualmente um mestre na arte análoga do bem morrer. Muito se cita a frase de Platão segundo a qual “a filosofia é um exercício da morte”. Montaigne se apropria de uma ancestral tradição quando, em um de seus mais magistrais Ensaios, propõe que filosofar é “aprender a morrer”. Ora, o platonismo e o epicurismo, neste ponto, são radicalmente antagônicos, irreconciliáveis, propõe duas sabedorias diferentes. Para Platão – ou melhor, para o Sócrates que fala no Fédon diante da iminência da morte pela cicuta – sabedoria consiste em separar a alma do corpo, desprender o elemento imaterial e imortal de sua gaiola somática perecível. O dualismo socrático-platônico exige a fé na alma imortal e na capacidade desta de se alçar a um domínio transcendente, um outro mundo sobrenatural. Para Epicuro, tais crenças não passam de nefastas superstições. Lucrécio celebra em Epicuro justamente o audaz pensador subversivo que denuncia as falácias religiosas, libertando assim a humanidade de dois males terríveis: o temor da morte e o temor aos deuses.

Como Hadot lembra, esta constante reflexão sobre a morte, a finitude, a vida que finda, é algo que congrega muitas escolas filosóficas. Os estóicos, por exemplo, “também falaram muito no exercício da morte, dentro de uma perspectiva de um exercício de preparação para as dificuldades da vida. Os estoicos sempre diziam que é preciso pensar que a morte é iminente; mas era menos para se preparar para a morte e mais para descobrir a seriedade da vida. Marco Aurélio dizia, por exemplo, na qualidade de estóico: é preciso realizar cada ação como se fosse a última, ou ainda: é preciso viver cada dia como se fosse o último. Trata-se de se conscientizar de que o momento que ainda está sendo vivido tem um valor infinito, de que, como a morte talvez o interrompa, trata-se de viver de maneira extremamente intensa enquanto a morte não chegou.

Segundo Sêneca, Epicuro dizia ‘pensa na morte’, mas também não era em absoluto como uma preparação para a morte, mas, ao contrário, exatamente como entre os estóicos, para aguçar a consciência do valor do instante presente. É o famoso carpe diem de Horácio: colhe hoje, sem pensar no amanhã. Além disso, pensar na morte, pela perspectiva epicurista, visava a fazer compreender em profundidade a ausência de qualquer relação entre a morte e o ser vivo que somos: ‘a morte não é nada para nós’. Não existe passagem alguma do ser ao nada. A morte não é um acontecimento da vida, dirá Wittgenstein. Para os epicuristas, havia também a idéia, comum aos estóicos, de que é preciso viver cada dia como se houvéssemos concluído nossa vida. (…) Existem aí dois aspectos: por essa perspectiva o dia foi vivido em toda a sua intensidade, mas ao mesmo tempo, quando vier o dia de amanhã, este será considerado uma oportunidade inesperada. ” (HADOT: p. 135)

Tudo isso conduz à noção de que o carpe diem provêm de uma conscientização do valor da existência que não é separável de uma tomada de consciência em relação à finitude. É preciso saber que se vai morrer para que se possa colher o dia, ou seja, aproveitá-lo como se fosse nossa última oportunidade entre os vivos sobre a face da Terra. Poucas canções expressam melhor este processo de “realização” ou de conscientização do que a bela e melancólica balada do The Flaming Lips, “Do You Realize?”, que começa por perguntar ao ouvinte: “você se dá conta de que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?”

Hadot lembra inclusive que “a antecipação ou adiantamento da morte representa, em Heidegger, uma condição da existência autêntica. A consciência da finitude deve levar o homem a assumir a existência como ela é.” (p. 136) Logo, aqueles que vivem em estado psíquico de Negação da Morte, para lembrar do magistral estudo de Ernest Becker premiado com o Pulitzer, estão afogados na inautenticidade, incapazes por isso de vivenciar a vida mortal em sua plenitude. Só o mortal que se sabe mortal seria, portanto, capaz de sabedoria – já que é inconcebível um sábio que esteja tão profundamente iludido sobre a condição humana que se imagine indestrutível como se conta nos mitos que são os olímpicos comedores de néctar e ambrosia.

Sabemos que Lucrécio tinha vários exercícios espirituais destinados a curar a angústia da finitude, o mais famoso deles sendo a proposta de que, das duas uma: se você amava a vida, pode deixá-la como um conviva saciado que deixa um banquete satisfeito, na certeza de que a morte não deixará ninguém vivo para sentir saudade do que foi perdido; se você não amava viver, então por que reclamar por se ver privado de algo que você não sentia como um bem? A sabedoria epicurista também ensinava que todo bem e todo mal são dependentes da sensibilidade, e que a morte é o fim da sensibilidade, portanto não implica nada de bom ou mau. Enquanto estamos vivos, a morte não é; quando a morte for, já não estaremos mais vivos para “experenciá-la”. Nenhum sujeito vivencia a morte como um mal, o mal está na angústia que provêm de sua antecipação e em especial de sua não-aceitação.

Um problema digno de debate, no âmbito do epicurismo, consiste em pensar para além da morte-de-si: a morte-do-outro, em especial o outro que amamos, é sim uma vivência para aquele que lhe sobrevive. As amizades entre Montaigne e La Boétie, de um lado, e entre Epicuro e Metrodoro, de outro, fornecem um rico manancial de reflexões sobre como lidar com este outro que morre e que deixa ao vivente o vazio angustioso e dolorido do luto. Sobre este tema, já escrevi em outra ocasião este artigo sobre a Amizade como Ideal Ético e Cívico em Epicuro e Montaigne.

No caso de Montaigne, um pensador extremamente eclético, que produz uma miscelânea com as sabedorias epicurista, estóica e cética (dentre outras), podemos seguramente afirmar que ele é um principais responsáveis pela re-ativação do pensamento de Epicuro e Lucrécio na época da Renascença. Stephen Greenblatt, em A Virada, já contou de maneira insuperável toda a história inacreditável envolvendo o destino do poema lucreciano De Rerum Natura – Da Natureza das Coisas, que só não se perdeu por um triz. Renascendo em plena Renascença, esta obra-prima da filosofia epicurista escrita com ímpar maestria pelo poeta Lucrécio terá significativo impacto no parto da chamada Modernidade – como atestam figuras como Petrarca e Erasmo, mas sobretudo Montaigne, que recheia os Ensaios com copiosas citações de Lucrécio e que possuía um volume do De Rerum Natura extensamente grifado e anotado.

A relação entre a ética existencial dita hedonista, expressa no carpe diem horaciano, e a atenção à nossa finitude, que também os cristãos praticavam com seus memento mori, conduz à noção de que a sabedoria nunca esteve desvinculada de uma percepção de que nós, sendo mortais, temos a necessidade urgente de aproveitar a vida ao máximo enquanto ela dura, já que o amanhã nunca é garantido e o túmulo é o ponto final na sentença do viver que a todos nós está prometido – e que é sempre, pelas leis férreas do universo, cumprido.

Em um livro recente (que ainda não tive a oportunidade de ler na íntegra), Carpe Diem Regained – The Vanishing Art of Seizing the Day, Roman Krznaric propõe a atualização deste debate ao fazer a crítica de uma certa apropriação indébita do conceito de carpe diem que foi realizada na atualidade pela sociedade capitalista de consumo. Para Krznaric, o carpe diem foi “sequestrado” (hijacked) por uma ideologia tóxica que propõe que “colher o dia” significa, na ignorância voluntária das verdades amargas sobre nossa condição mortal, refestelar-se no imediatismo das compras no shopping center ou no entretenimento fornecido pelas mídias de massas estupidificantes e corroídas por dentro pelos cupins do capEtalismo marqueteiro. Daí a importância de recuperarmos, na história da filosofia, o autêntico sentido do carpe diem epicurista – consciência da finitude, foco na preciosidade do presente, desejo de que a vida seja uma árvore frutífera a ser cultivada em um jardim de amigos unidos pela busca comum pela sabedoria.

É interessante notar que o termo carpe diem é profundamente poético: evoca a figura do cultivo, da agricultura, dos processos realizados no solo para que este faça a semente desabrochar em flores e frutos, e depois coliga isto com a figura do dia. “Cultivar o dia” é um tipo de expressão que só poderia ter nascido da mente visionária de um poeta como Horácio, todo imbuído com a sabedoria epicurista tão fortemente presente na Roma de seu tempo. O dia, se é “cultivável”, talvez seja pois é um Jardim onde podemos, juntos, coligar esforços para plantar frutíferas sementes. Há uma belíssima canção do Wilco que explora senda poética semelhante e nos convida a “ficar do lado das sementes”:

Neste sentido, parece-me inconcebível que Horácio pudesse forjar esta pérola sem todo o contexto cultural envolvendo a fundação da comunidade epicurista em Atenas. É significativo, por exemplo, que Epicuro não era um ateniense, mas sim natural da ilha de Samos (a mesma terra natal de Pitágoras), de modo que era uma espécie de “estrangeiro” em Atenas – e até onde sei isso acarretava necessariamente que ele não teria direitos políticos ali. Repete-se muito que Epicuro era a-político, mas tendo a ver a questão por outro prisma: como forasteiro, desprovido de direitos cívicos, Epicuro decide fundar uma espécie de “Sociedade Alternativa” (Raul Seixas pensava no Jardim, talvez, ao compor sua canção? Ou muito mais nas comunas beatniks e hippies?).

No Jardim, a hospitalidade com a alteridade em sua diversidade era muito mais intensa do que na Academia platônica, espaço de elite, forjada desde sua entrada com a lógica excludente da segregação (“quem não souber de geometria, não entra aqui!”). O Jardim epicurista acolhia a diversidade humana, abria-se ao cosmopolitismo inicialmente proposto por Diógenes, o Cão (arauto da ética cínica).

Ao contrário do que alguns imaginam ao ouvir a palavra Jardim, não se tratava ali de ficar à toa, de pernas pro ar, só na sombra e água fresca. Muito menos se tratava de um ambiente de festa rave, regado aos equivalentes da época para o êcstasy e os beats do trance. O Jardim era uma comunidade filosófica unisex – as mulheres também eram bem-vindas – onde sabedoria e amizade eram vistos como unidas por um cordão umbilical que não se poderia romper senão com o risco de um atentado letal contra a própria essência da filosofia.

Colher o dia, nesse sentido, consistia em viver cada um dos dias com a máxima devoção ao esforço conjunto de compreensão da verdade e de coligação de esforços para a melhor realização possível da arte das artes – o bem-viver, ou aquilo que os franceses chamam tão lindamente de savoir-vivre. eudaimonia grega tinha um sentido também conectado ao cultivo, à jardinagem: era o estado daquele ser humano que está em processo de florescimento.

Carpe diem, logo, é uma afirmação de que, por finitas que sejam nossas vidas, é possível cultivar em comum cada dia no sentido de nele plantar e colher frutos e flores que tornem nossa estadia entre os vivos algo de deleitoso, extraordinário, irrepetível, sublime, a ponto de conseguirmos, como aconselhava Lucrécio, chegar às beiras do túmulo com a serenidade de ânimo e a felicidade interior daquele que deixa seu quinhão no espaço-tempo como um “conviva saciado” que contribuiu com o cultivo do comum jardim da amigável sabedoria.


 

LEITURA SUGERIDA:

“It is one of the oldest pieces of life advice in Western history: carpe diem, seize the day. First uttered by the Roman poet Horace over two thousand years ago, it has become our cultural inheritance, reflected in mottos from ‘live as if you might die tomorrow’ to ‘be in the moment’, from the iconic advertising slogan ‘Just do it’ to the Twitter hashtag #yolo (‘you only live once’).

Why is the call to seize the day so compelling to us? Because it promises a remedy for that instinctive – but often fleeting – awareness so many of us have that life is short and our time is running out. It asks us to live with greater passion, consciousness and intention, so we don’t reach the end of our days and look back on life with regret, viewing it as a series of paths not taken.

But here’s the problem: the spirit of carpe diem has been hijacked and we have barely noticed. It’s been hijacked by consumer culture, which has transformed seizing the day into impulsive shopping sprees and the instant hit of one-click online buying. It’s also been hijacked by 24/7 digital entertainment that is replacing lived experience with vicarious second-hand pleasures and an era of proxy living. And now it’s being hijacked by the mindfulness movement, which reduces seizing the day simply to living in the here and now.

This book is about how we can take on the cultural hijackers and reclaim the power of carpe diem. It explores five very different ways humankind has discovered over the centuries to seize the day, which we urgently need to revive. These include the art of grasping windows of opportunity, hedonistic experimenting, immersing ourselves in the present, becoming more spontaneous in daily life, and the forgotten realm of carpe diem politics.

It tells the stories of great carpe diem adventurers, from Oscar Wilde to Maya Angelou, and delves into everything from medieval carnival to the neuroscience of procrastination. At the same time, it looks at whether we can overdose on seizing the day, and how it may be used and abused.

This book is the first ever cultural biography of carpe diem. But it goes further, with a call to arms: the time has come to seize back seize the day, and recover it for the art of living and social change.” – UNBOUND


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BIBLIOGRAFIA

BAKEWELL, Sarah.  Como Viver – Uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta. Objetiva, 2012.

HADOT, Pierre. A Filosofia Como Maneira de Viver. É Realizações, 2016.

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Pessoal, neste último Domingo, 12 de Novembro, participei com muita satisfação do Café Filosófico com Will Goya, 94ª edição, no Bolshoi Pub, em Goiânia, em que conversamos livremente sobre a sabedoria epicurista. Confiram aí o vídeo completo deste bate-papo sobre os prazeres, a felicidade, os deuses, a morte, o carpe diem, o tetrapharmakon, a filosofia como terapêutica psicosomática, dentre outros temas conexos:

(OBS – Infelizmente os slides que projetei no telão não estão com boa visibilidade na filmagem. Vou disponibilizar em breve toda a apresentação em PDF para quem se interessar.)

Eduardo Carli de Moraes – Goiânia, Novembro de 2017

“Amizade e Estética da Existência Em Foucault” – Um livro de Francisco Ortega [Saiba mais @ A Casa de Vidro]

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Gilles Deleuze um dia escreveu, sobre a questão da amizade, que ela “é interior à filosofia” e “não se pode saber o que é a filosofia sem viver essa questão obscura, e sem respondê-la, mesmo se for difícil.”

Michel Foucault, que das dificuldades nunca se esquivou, tinha uma “pretensão dupla”, segundo Jurandir Freire Costa: “primeiro, definir a filosofia como estilo de vida e não como posse da habilidade argumentativa com vistas à descoberta da “verdade”; segundo, rediscutir a noção de ética, desvinculando-a dos tradicionais problemas morais. (…) A amizade seria o meio, digamos, institucional de atingir essa meta.” (FREIRE COSTA: p. 11)

A filosofia, que carrega em seu seio verbal a philia (amizade) somada à sophia (sabedoria), falharia em sua missão histórica, fracassaria no auxílio que pode prestar à empreitada humana no planeta, caso pensasse desvinculada com qualquer preocupação com a amizade e a sabedoria. Pois recusar a amizade e a sabedoria, para concentrar-se somente numa empreitada lógica ou epistemológica solitária, em busca de uma “verdade objetiva”, implicaria numa decisão que é quase um atentado contra a ética, isto é, contra o inescapável caráter inter-subjetivo e relacional de nossas existências-em-teia.

Como Francisco Ortega busca mostrar em seu livro, há algo que vincula diretamente, na filosofia de Foucault, a noção de “estética da existência”, conexa às noções de Nietzsche sobre a vida como obra-de-arte e auto-poiésis. Michel Onfray, sobre isto, insistirá na noção de escultura-de-si, enfatizandoo valor norteador da amizade (amitié em francês, philia em grego). Tratar a própria existência como uma obra-de-arte em aberto, em perene construção através dos processos intermináveis de nossos relacionamentos, não implica jamais qualquer ética do solipsismo, do sujeito isolado que molda a argila de si mesmo sem relações significativas com nenhum outro.

Em Foucault, a estética da existência é essencialmente inter-subjetiva e o valor que norteia essa aventura relacional perene deve ser a amizade. Em Albert Camus, em outros termos mas num espírito muito semelhante, a jornada do absurdo à revolta é também um ascensão do nonsense à solidariedade humana, à união do “revolto-me, logo somos”.

Em Foucault, pulsa, nas palavras de Jurandir Freire Costa, uma vontade de “recuperar o poder subversivo da amizade” (p. 12), o que é mais necessário que tudo em nossa era do narcisismo, do competitivismo, do individualismo exacerbado e do consumismo solipsista.

A amizade como virtude cívica – que já vivia na utopia encarnada no Jardim de Epicuro, em que os convivas buscavam que seu convívio fosse baseado em doce amizade, ataraxia (serenidade) e sinceridade – também dá as caras no pensamento de Foucault.  “As reflexões de Foucault sobre a amizade localizam nela um elemento transgressivo”, afirma Ortega, e isto devido à “alternativa que ela representa a formas de relacionamento prescritas e institucionalizadas.” (p. 157)

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No livro de Francisco Ortega, a amizade é descrita como “uma forma de subjetivação coletiva” e uma “forma de vida” que permite “a criação  de espaços intermediários capazes de fomentar tanto necessidades individuais quanto objetivos coletivos. Ela é um convite, um apelo à experimentação  de novas formas de vida e de comunidade. Reabilitá-la representa introduzir movimento e fantasia nas rígidas relações sociais, estabelecer uma tentativa de pensar e repensar nas formas de relacionamento existentes em nossa sociedade que são poucas e simplificadas. A amizade representa algo inquietante e perigoso que possui um caráter inesperado e intenso.” (ORTEGA: p. 26)

A amizade, se adquire tal relevância na ética e na estética da existência de Foucault, talvez seja um pouco pela presença inspiradora, nas Letras francesas, de uma “amizade filosófica” que fica rondando, com sua sombra imensa de paradigma incontornável, nas figuras de Montaigne e La Boétie.

Francisco Ortega prefere focar, porém, numa relação bem menos explorada e reconhecida: a de Michel Foucault com o pensamento de Pierre Hadot.

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Em seu livro Exercícios espirituais e filosofia antiga, Hadot busca responder o que a filosofia é de fato e

“ressalta uma concepção de filosofia oposta à moderna, porém suscetível de ser atualizada: a filosofia como exercício espiritual, como forma e estilo de existência. (…) Os exercícios espirituais são a expressão de um esforço que não aspira a transmitir informação sobre teorias abstratas, mas antes a formar as almas dos alunos. Não se trata de uma construção teórica, mas de um exercício de formação de si, da paideia que ensina a viver em harmonia com a razão. (…) O exercício espiritual não é somente de natureza ética, mas sobretudo ontológica; por meio dele alcança-se a transformação total da forma de pensar e de ser, a metamorfose do eu, a superação da própria individualidade e de seus limites. Por meio destes exercícios o eu transcende a subjetividade individual e escrava das paixões, alcançando a perspectiva cósmica e universal da mãe natureza.” (p. 53)

Foucault, nos três volumes de A História Da Sexualidade, vai interessar-se intensamente pelos exercícios espirituais através dos quais os sujeitos dão forma e estilo às suas próprias existências. A influência de Hadot manifesta-se numa tentativa de “reabilitar o conceito antigo de askesis (o qual vai ser identificado com o exercício espiritual), ou, como Nietzsche afirma, ‘renaturalizar a askesis’. O conceito cristão e moderno de ascese como abstinência ou restrição opõe-se diametralmente à noção antiga de askesis”, afirma Ortega (p. 54).

A contundente e devastadora crítica nietzschiana do ideal ascético – isto é, de uma ascese judaico-cristã baseada na auto-mortificação, na repressão do corpo, na supressão dos prazeres sensíveis e dos relacionamentos intercorpóreos gozosos – não implica de modo alguma a recusa de qualquer esforço de trabalho sobre si (askesis). Renaturalizar a askesis (expressão que Ortega atribui a Nietzsche, porém sem citar a fonte, que desconheço…) talvez seja uma boa descrição de todo o projeto da transvaloração dos valores – Dioniso contra Jesus.

Uma das teses centrais do livro de Ortega está em afirmar que “uma concepção da filosofia como arte de vida e práxis estilística”, essencial tanto em Foucault quanto em Nietzsche, implica que a filosofia seja em essência “ascese, ou seja, um exercício de si no pensamento” que “corresponde à sua atividade de autotransformação.” (p. 57) Em seu texto Le souci de la verité (A preocupação com a verdade), Foucault afirmará que a filosofia é indissociável de um estilo de vida baseado na “elaboração de si através de si, uma apaixonada transformação, uma modificação lenta e difícil mediante o cuidado contínuo da verdade.” (p. 59)

Transformar a própria vida em obra-de-arte, dar estilo à existência, não é empreendimento meramente estético mas implica também um compromisso ético, no qual os valores da philia (amizade) e da parrhesía (sinceridade ou liberdade de expressão) são essenciais. Em um de seus últimos cursos no College de France, Foucault focará justamente naquilo que chamará A Coragem da Verdade, algo que também é quintessencial a qualquer amizade digna deste nome: amigos são aqueles que têm a audácia de serem autênticos e honestos em sua relação, sem hipocrisias ou adulações. Se a filosofia como estilo de vida e prática da sabedoria em meio a amigos é para Foucault algo de interminável, impossível de concluir, isto não a faz menos importante, nem a transforma em trabalho de Sísifo.

Como André Comte-Sponville mostrará em suas obras – em especial O Mito de Ícaro e no último capítulo de Pequeno Tratado Das Grandes Virtudes – há um componente ascensional na práxis filosófica, mas de uma ascensão que não concebe descanso possível na tranquilidade estática de nenhum paraíso, de nenhum topo de montanha onde paramos de subir, de modo que Ícaro segue batendo suas asas na direção do Sol até que a energia vital esmoreça. Não há êxtase estático, mas só um esforço extático de auto-superação que só pode ir triunfando através das relações que nos possibilitam atualizar nossa potência para o amor, a amizade, a colaboração (tudo aquilo que, em linguajar spinozano, expande nosso conatus, ampliando nosso poder de existir e agir).

“A ascese – e com isto voltamos ao ponto de partida: a relação Foucault-Hadot – aspira a uma determinada forma de existência que felizmente nunca se atinge. Felizmente o almejado fim não é atingível; se fosse alcançado, terminaria a tarefa do trabalho sobre si. Esta forma de existência inalcançável corresponde ao Übermensch nietzschiano, o qual não representa uma forma concreta (salvando-se assim de interpretações fascistóides), mas uma tarefa de constante auto-superação: o si como trabalho ininterrupto, como infinitas metamorfoses.” (p. 63)

Através de uma filosofia que Esther Díaz caracteriza como ontologia histórica – “ontologia, porque se ocupa dos entes, da realidade, do que ocorre; histórica, porque pensa a partir dos acontecimentos, de dados empíricos, de documentos…” -, Foucault estudou as “práticas de si” que, desde a Antiguidade até o mundo contemporâneo, desfilaram pelo palco da História. Encontrou assim um de seus principais temas, o da estética da existência: “aqui temos o que tentei reconstruir”, diz em Le souci de la vérité, “a formação e o desenvolvimento de uma prática de si cujo objetivo é constituir-se a si  como o artífice da beleza da própria vida” (p. 69).

Como elucida Ortega, “trata-se de uma atitude, um ethos, que visa a individualizar as ações e dotá-las de uma beleza e um esplendor únicos. Através da estilização dessa atitude, o indivíduo dota sua vida de uma forma digna de longa lembrança. Este esforço de estilização do comportamento, o desejo de dar esplendor e beleza à existência, para que possa servir de exemplo que não acabe com a morte mas permaneça na lembrança, corresponde a uma noção de existência na qual existir significa ser célebre (cf. Vernant, L’individu, la mort, l’amour, p. 83-84).

Como morto conhecido, cuja lembrança é elogiada, obtém-se uma maior presença na pólis que como vivo. A morte alcança com isso uma dimensão estética e ética, vai ser idealizada e, como consequência, neutralizada. Como Hannah Arendt aponta, a pólis grega constitui ‘o espaço público para conceder imortalidade aos mortais’.” (p. 75)

Trabalhos infinitos, a sabedoria e a amizade (a sophia e a philia) constituem o compromisso irrecusável de todo aquele que deseja levar uma vida filosófica – que, desde a antiguidade greco-latina está vinculada ao convívio e ao diálogo no espaço público, e não a um isolamento solipsista de um anacoreta semi-autista que buscaria a quimera do “ser sábio sozinho”. Sabedoria aprende-se e ensina-se, e a amizade é também uma espécie de espaço adequado e conveniente para a transmissão de saberes e técnicas, para a expressão de afetos e pensamentos, que conduzem a vida a um grau mais alto de sapiência. “A tarefa do dizer verdadeiro é um trabalho infinito: deve ser respeitado em sua complexidade, é uma obrigação na qual nenhum governo pode economizar”, diz Foucault (p. 121).

Se as análises de Foucault localizam na amizade um “elemento transgressivo”, é pois os amigos autênticos inventam novas formas de relacionamento que diferem das prescritas pela tradição e pelos códigos morais. A amizade “não é vista como uma forma de relação e de comunicação além das relações de poder; representa antes um jogo agonístico e estratégico, que consiste em agir com a mínima quantidade de domínio. Falar de amizade é falar de multiplicidade, intensidade, experimentação, desterritorialização.” (p. 157) Para Ortega, as concepções foucaultianas sobre o tema da amizade são melhor compreendidas quando postas no contexto histórico de vivências deste pensador com movimentos como a revolução de costumes vinculada ao Maio de 1968 francês e, posteriormente, a emergência do movimento gay em San Francisco ou Nova York:

“Segundo Foucault, vivemos em um mundo onde as instituições sociais têm contribuído para limitar o número possível de relacionamentos. A razão desta restrição reside no fato de que uma sociedade que permitisse o crescimento das relações possíveis seria mais difícil de administrar e de controlar. A luta homossexual deve (nisto consiste seu poder transgressivo ampliável a outros tipos de conflitos sociais: movimentos anti-racistas, ou feministas etc.) aspirar à criação de um novo direito relacional, que permita todo tipo possível de relações, em vez de impedi-las ou bloqueá-las. (…) A amizade representa uma possibilidade de constituir a comunidade e a sociedade no nível individual de um tipo de relação livre e não institucionalizada. O projeto foucaultiano de uma ética da amizade no contexto de uma possível atualização da estética da existência permite transcender o marco da auto-elaboração individual para se colocar numa dimensão coletiva.” (ORTEGA, p. 171)

Em um mundo cada vez mais marcado pela interconexão digital dos sujeitos através das redes cibernéticas, pensadores como Bauman e Ulrich Beck mostraram preocupação com um esvaziamento da amizade na era em que muitos gabam-se de ter 5.000 amigos no Facebook. Contaríamos nos dedos das mãos aqueles que são amigos autênticos, daqueles que nos acompanhariam ao hospital e nos visitariam na UTI? Apesar dos teus 15.000 seguidores no Twitter, caberiam dentro de um micro-ônibus aqueles que se interessariam de fato por ter contigo um convívio fecundo e prolongado, norteado pela sinceridade e pela busca comum pela sabedoria?

Se o século XX foi the century of the self, para lembrar o título de uma série televisiva magistral, talvez devêssemos recuperar um dos motes de 68 – “o que queremos é que as idéias voltem a ser perigosas” – e aplicá-la a nossas relações tão colonizadas por normatizações impostas por Estados e Mercados. O que queremos de fato é que as amizades voltem a ser perigosas.

por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Março de 2017

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LEIA TAMBÉM:

Montaigne em ilustração de Pablo Casadas [Compartilhar]

Montaigne em ilustração de Pablo Casadas

 A AMIZADE COMO IDEAL ÉTICO E CÍVICO EM MONTAIGNE & EPICURO
Leia em A Casa de Vidro: http://bit.ly/2lFincn.

#RETROSPECTIVA_2015: 25 TEXTOS QUE ESCREVI EM 2015 @ A CASA DE VIDRO.COM

Retrospectiva 2015
Retrospectiva 2015 @ [acasadevidro.com]:
http://acasadevidro.com/2015/annual-report/

“O Museu do Louvre, em Paris, é visitado todos os anos por 8.5 milhões de pessoas. Este blog foi visitado cerca de 460.000 vezes em 2015. Se fosse o Louvre, eram precisos 20 dias para todas essas pessoas o visitarem. O dia com mais tráfego foi o 7 de abril, com 6.887 visitas. Em 2015 foram publicados 281 novos artigos, aumentando o arquivo total para 740 artigos.” – Relatório WordPress

Aproveitando que o Marco de Translação coletivo vai se aproximando (completa-se mais um ciclo do planeta-mariposa em torno da “lâmpida” do Sol!), relembro por aqui alguns dos principais textos de punho próprio, escritos e publicados neste ano de 2015 d.C. Este espaço serve, sobretudo, como um incentivo, uma motivação ou uma desculpa para que eu prossiga praticando o vício de escrever. A Casa de Vidro agradece a todos os leitores que ano afora “muvucaram” este cyberspot (e também nossa página no Facebook). Segundo o relatório da WordPress, o blog teve neste ano quase meio milhão de views e foram publicados 281 novos posts (o que talvez explique esta danada desta dor-no-pulso que está me judiando: este blogueiro quase infatigável agora periga estar com L.E.R!).

Ficarei offline por uns tempos, em merecidas férias após um ano laborioso, descanso a ser degustado, na adorável companhia da Srta. Toassa,  em meio à Natureza exuberante da Chapada dos Veadeiros, onde espero refletir muito sobre estes 12 meses de incríveis vivências, aprendizados, convívios. Retorno em 2016 com mais blogagens, começando por alguns escritos, com sabor de Memórias, em que tento comunicar um pouco das complexas sensações e reflexões que tem acompanhado a minha prática como professor de filosofia no Instituto Federal de Goiás (IFG). Também estão sendo trabalhados por aqui em meu “rascunhódromo” alguns artigos inéditos – sobre a filosofia de Nietzsche, sobre o “perspectivismo ameríndio” no pensamento de Viveiros de Castro, sobre a Dialética da Colonização de Alfredo Bosi… – que logo mais pintam por aqui. Novos contribuidores e projetos também estão surgindo para somar forças à esta empreitada. Sigam antenados! Por enquanto, fiquem aí com 25 escritos que me parecem alguns dos mais significativos que postei em 2015. Evoé! E um dionisíaco reveillon a todos os mortais!

Eduardo Carli de Moraes

25 TEXTOS DE 2015

  1. APRENDAMOS ENSINANDO-NOS – Um retrato de Paulo Freire, o andarilho da utopia
  2. NINA SIMONE: REBELDE COM CAUSA
  3. QUARTETO VITAL: Em “Vida”, Paulo Leminski (1944-1989) traça retratos de Cruz e Souza, Bashô, Jesus & Trótski
  4. BARRIL DE PÓLVORA: O Brasil segundo Guilherme Boulos
  5. PROMETEU DESACORRENTADO – A responsabilidade pelos viventes vindouros na filosofia de Hans Jonas (1903 – 1993)
  6. A ESSÊNCIA DO BLUES
  7. “DESVENDO O MUNDO” – UM DOCUMENTÁRIO SOBRE O IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL “A EDUCAÇÃO MEDICALIZADA” (SALVADOR/BA, 01 a 04 de SETEMBRO)
  8. A TEORIA CRÍTICA DIANTE DAS CALAMIDADES TRIUNFAIS
  9. SOCIALISMO OU BARBÁRIE! – O conceito de sociedade autônoma segundo o filósofo Cornelius Castoriadis
  10. NIETZSCHE & TOLSTÓI: Vidas em paralelo  no livro do filósofo existencialista russo Léon Chestov [1866-1938]
  11. CONVOQUE SEU BUDA, O CLIMA TÁ TENSO!
  12. O SHOW DA VIDA (THE TRUMAN SHOW), um filme de Peter Weir
  13. INFINDAS MANEIRAS DE FINDAR – O que desvela Fernanda Torres em seu romance de estréia, “Fim” (Companhia das Letras, 2013)
  14. POR UMA ARTE DE INTERVENÇÃO CONTRA A OPRESSÃO – Reflexões pós “O Estopim” (Brasil, 2014, 80 min), documentário de Rodrigo Mac Niven
  15. PARA QUE O FASCISMO NÃO SE REPITA! – Por uma educação devotada à auto-reflexão crítica [Notas sobre “Educação Após Auschwitz” de Theodor Adorno]
  16. QUE PAÍS É ESSE? SOLIDARIEDADE SOCIAL OU PRÁTICAS DO APARTHEID?
  17. A MORTE COMO ESCOLA: Eliane Brum visita os limites da condição mortal
  18. O AMOR PELA PHILIA – A AMIZADE COMO IDEAL ÉTICO E CÍVICO EM MONTAIGNE & EPICURO
  19. VÍTIMAS DA SUPERSTIÇÃO: Reflexões de Spinoza no Tratado Teológico Político
  20. A MORTE DO GLAMOUR NA RUA DO CREPÚSCULO – Explorações sobre o clássico filme de Billy Wilder, “Sunset Boulevard – Crepúsculo dos Deuses” (1950)
  21. UMA VIAGEM COM MAIS NÁUFRAGOS DO QUE NAVEGANTES
  22. CAPITALISMO – UMA HISTÓRIA DE ASSOMBRAÇÃO” – Saiba mais sobre o mais recente livro de ensaios de Arundathi Roy
  23. PUXANDO O FREIO DE EMERGÊNCIA: Reflexão na companhia de “Crédito à Morte”, de Anselm Jappe (Ed. Hedra, 2013)
  24. NO ANIVERSÁRIO DE 144 ANOS DA COMUNA DE PARIS (1871), CONHEÇA A VERSÃO DE MARX & ENGELS SOBRE ESTE EVENTO HISTÓRICO
  25. “A CAÇA”, DE THOMAS VINTERBERG – Um filme que atinge a grandeza de Bergman e dialoga com Kafka e Ibsen

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LITERATURA FUNDAMENTAL – SÉRIE DE PROGRAMAS DA TV UNIVESP (30 MIN. CADA) – Baudelaire, Camus, Conrad, Dostoiévski, Homero, Montaigne, Platão, Sartre, T.S. Eliot etc.

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Uma seleção de alguns problemas da série Literatura Fundamental da UNIVESP, na íntegra:

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“O BANQUETE”, de Platão
por ADRIANO RIBEIRO MACHADO

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“A REPÚBLICA”, de Platão
por ROBERTO BOLZANI

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“AS METAMORFOSES” de OVÍDIO (43 a.C.)
por ALEXANDRE HASEGAWA

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“O CORAÇÃO DAS TREVAS”, de Joseph Conrad
por MARCOS CÉSAR SOARES

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“A TERRA DESOLADA”, de T.S. Eliot
por VIVIANA BOSI

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“OS CAMINHOS DA LIBERDADE” (Trilogia), de Jean Paul Sartre
por FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

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“OS ENSAIOS”, de Michel de Montaigne
por SÉRGIO XAVIER GOMES ARAÚJO

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“ILÍADA”, de Homero
por ANDRÉ MALTA

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“ODISSÉIA”, de Homero
por ANDRÉ MALTA

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“AS FLORES DO MAL”, de Baudelaire
por ÁLVARO FALEIRO

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“CRIME E CASTIGO”, de Dostoiévski
por ELENA VÁSSINA

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“O ESTRANGEIRO”, de Albert Camus
por CLÁUDIA AMIGO PINO

Reflexões sobre a Sabedoria e a Felicidade – por Alain (Émile-Auguste Chartier, 1858-1951)

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Alexandre e Bucéfalo (Detalhe de mosaico romano encontrado em Pompeia. Museu Arqueológico Nacional, Nápoles, Itália)


I. BUCÉFALO E SUA SOMBRA

“Quando Bucéfalo, cavalo ilustre, foi apresentado ao jovem Alexandre, nenhum cavaleiro conseguia se manter sobre o lombo deste animal formidável. Sobre isto um homem vulgar dizia: “Este é um cavalo malvado.” Alexandre, no entanto, procurou o X da questão, e logo encontrou, observando que Bucéfalo estava terrivelmente apavorado diante de sua própria sombra. Como o seu medo fazia agitar-se a sombra, o pavor não acabava mais. Alexandre então dirigiu o nariz de Bucéfalo em direção ao Sol, e então, nesta posição, pôde tranquilizar e domar o animal. Assim, o aluno de Aristóteles já sabia que nós não temos nenhuma potência sobre as paixões enquanto não conhecemos suas causas reais.”  ALAIN, Propos Sur Le BonheurGallimard, 1928. Pg. 9.

AlainEvocando a imagem de Alexandre e Bucéfalo, Alain (1868-1951) inicia seu livro de reflexões sobre a felicidade, Propos Sur Le Bonheur, publicado em 1928. O pavor de Bucéfalo diante de sua sombra é lido por Alain como um símbolo do descontrole e da inquietude que as paixões exercem sobre suas vítimas. Alexandre, por sua vez, aparece nesta parábola como representante da inteligência, da racionalidade, capaz de serenizar os arroubos irracionais e controlar a selvageria do temor e da intranquilidade.

Eis algo que deve soar bem familiar àqueles acostumados a flanar pela história da filosofia, onde é recorrente a ideia de que a Razão deve agir como um cavaleiro que doma o corcel selvagem da Emoção. Enquanto formos semelhantes a Bucéfalo, ou seja, aterrorizados por fenômenos que não compreendemos, que nos assustam justamente pois somos ignorantes de suas verdadeiras causas, estaremos bem longe da serenidade e daquilo que em francês é conhecido pelo bela expressão la joie de vivre.

O que também me parece notável, e que eu gostaria de explorar mais a fundo na sequência, é que o “caso Bucéfalo” nos permite refletir sobre o medo distinguindo entre suas manifestações legítimas e aquilo que eu chamaria de um medo-sem-fundamento.

Para evocar um exemplo que está na crista-da-onda, marcando presença nas mídias: se você é um habitante de Gaza, em Julho de 2014, tem amplas razões para temer por sua vida e por sua integridade física, mesmo que você não tenha conexão alguma com o Hamas ou com qualquer organização islâmica militante, já que existem provas empíricas aos milhares de que a ofensiva militar de Israel tem matado e ferido os palestinos sem grandes esforços de distinção entre civis e militares. Em Gaza, o medo é um afeto plenamente legítimo, justificado pela presença de perigos reais, e a ausência deste afeto em tais circunstâncias é que pareceria bizarra, incompreensível e anormal.

Bucéfalo, ao contrário, oferece-nos um exemplo de um medo desproporcional ao perigo real: a sombra, afinal, não tem o mínimo potencial de destruição. Se o cavalo se debate em pavores, é pois se equivoca em seu juízo eqüino e enxerga uma ameaça onde não há nenhuma. Dando um passo além, poderíamos inclusive dizer que Bucéfalo ilustra um comportamento supersticioso, que tem suas similaridades com o pavor sentido, em épocas mais remotas, por aqueles que presenciavam um eclipse ou um terremoto: incapazes de compreender as causas dos fenômenos físicos, perdiam o sono em temores e taquicardias, imaginando que os deuses estavam furiosos.

Bucefalo

II. O IMAGINÁRIO COMO INIMIGO

Com esta distinção entre medos legítimos e medos injustificados em mente, fica mais fácil compreender algumas das principais teses de Alain – como esta: “o imaginário é nosso inimigo” (XV, Sur La Mort, pg 45). Os poderes de imaginação da mente humana nem sempre agem em nosso favor: não é incomum que a pessoa saudável imagine doenças possíveis e assim contamine sua saúde com males imaginados, meramente possíveis, que provavelmente não vão se materializar.

Mesmo que esteja em um estado físico ótimo, sem dores corporais ou sinais de desagregação orgânica, a pessoa pode sofrer com as ansiedades, as insônias e os pavores decorrentes de uma imaginação demasiado pessimista. Em seus comentários psicológicos, Alain destaca com frequência o quanto a imaginação “compõe horrores”  (p. 39), em especial quando se lança ao futuro e representa os próximos estágios do percurso existencial – que tem a morte, necessariamente, por horizonte.

Diante das superstições humanas que levam ao temporal desnorteante da esperança e do temor, Lucrécio já pintava o retrato do sábio como aquele que, em terra firme, observa em serenidade os navegantes em mar revolto. Se Lucrécio, em seu poema-filosófico Da Natureza, visa como um de seus objetivos supremos o de libertar os humanos das superstições, utilizando para isto a doutrina de seu mestre Epicuro, é pois as superstições são consideradas como doenças do imaginário que desviam-nos do caminho da sabedoria. “A superstição consiste sempre, sem dúvida, em explicar efeitos reais por causas sobrenaturais”, escreve Alain (XVIII, Prières, pg. 53).

Hortus Deliciarum

Ilustração medieval do Inferno no manuscrito Hortus deliciarum, de Herrad of Landsberg (aprox. 1180) – via Wikipedia

 Àqueles que não dormem à noite, ou que se supliciam durante o dia, pois temem estarem sendo reprovados por um deus vingador, que os observa furibundo sentado em sua nuvem, o sábio apenas recomenda a dissipação da ilusão como melhor remédio. Assim como Bucéfalo não tem razão para temer sua própria sombra, não há razão para temer o Inferno ou qualquer outra punição do além-túmulo. Não há sabedoria ou felicidade possível sem que antes nos livremos de fantasias, compostas por imaginações humanas e escritas por mãos humanas em livros ditos “sagrados”, que tendem a disseminar temores sem fundamento e terrores sem realidade.

O X da questão, para Alain, é que tanto o cavalo Bucéfalo quanto o devoto que teme a fúria de Jeová, os  relâmpagos de Zeus ou o inferno criado por Deus-Pai para queimar os ímpios, sofrem de verdade com seus males imaginários. Para recuperar o exemplo citado acima: a pessoa saudável que age como o personagem de Moliére, O Doente Imaginário, acaba sofrendo de fato com seus temores, ansiedades e inquietudes. Pois bem se sabe que não é só fisicamente, “na carne”, que sofre o homem; um sofrimento não é menos sofrido por ser “psicológico”, por estar “na mente”.

 Ao invés de ser vítima de seus afetos, arrastado pelas circunstâncias a cóleras e pavores, transtornado constantemente  em seus humores por tudo o que lhe ocorre, o sábio tem o bom senso de temperar os arroubos passionais e serenizar seus temporais internos ao compreender – “clara e distintamente”, como recomendam Sócrates, Descartes ou Spinoza – as causas reais daquilo que é sentido.

Como dirá André Comte-Sponville, fiel discípulo de Alain, compreender a causa de uma tristeza já é um começo de alegria. “Les malheurs sont rendus légers par la connaissance des causes”, escreve Alain (X, Argan, p. 30), ou seja, os infortúnios e desgraças são suavizados e tornam-se mais leves através do conhecimento de suas causas. Algo que se assemelha ao motto spinozista que recomenda: “não desprezar, não lamentar, não odiar, mas compreender”. No divã do psicanalista, por exemplo, o melancólico tem a chance de se libertar de sua condição de prisioneiro da paixões tristes quando começa a compreender os porquês dos afetos, das paixões, dos sonhos, que o acossam e o afligem. Compreender, contudo, não é tudo. Falta o essencial, que é o agir.

III. O PERIGO DA RAZÃO EXTREMISTA

Não faltaram na História os que explicaram o Mal a partir da Ignorância – para ficarmos só entre os gregos, duas figuras de considerável impacto na posteridade, Sócrates e Epiteto, sustentaram que o saber racional, em especial o conhecimento daquilo que nos move, a compreensão das causas de nossos sentimentos, é o “caminho do bem”. Donde o “conhece-te a ti mesmo!”, mais célebre dos mottos socráticos, inscrito no Templo à Apolo em Delfos ao lado de outra “dica” existencial apolínea: “nada em demasia”. Um dos valores cardinais da civilização grega era justamente a sophrosyne – traduzível por temperança, moderação ou auto-controle.

O difícil, porém – e ninguém disse que a sabedoria é fácil! – é saber dosar o quanto de “controle racional” sobre as paixões deve ser exercido. Aristóteles sustentava que a virtude está em encontrar o ponto ótimo entre dois excessos: por exemplo, a virtude da coragem encontra-se entre os dois extremos, o de sua carência (a covardia) e seu excesso (a temeridade).

Também a racionalidade nos oferece um risco duplo: por um lado, um excesso vicioso, o desregramento passional, que leva, por exemplo, um homem a enforcar sua esposa em um arroubo de ciúme injustificado, como faz Otelo contra Desdêmona na obra de Shakespeare (com o auxílio cruel do invejoso Iago, desejoso de envenenar o deleite do casal). Por outro lado, outro excesso vicioso, o racionalismo ultra-controlador, que pode levar alguém a dotar-se de um caráter rígido, autoritário, severo em demasia, descrito muito bem pela gíria da língua inglesa control freak.

9780140443295Na história da filosofia, um dos mais importantes legados do pensamento de Nietzsche é justamente ter colocado em questão a predominância, na filosofia ocidental, de um racionalismo hiperbólico que se manifesta com frequência como moralismo castrador, repressor, autoritário. A crítica que Nietzsche empreende contra o do Ideal Ascético, tão presente no seio da ética judaico-cristã,  visa justamente questionar os efeitos de doutrinas que querem lidar com as paixões com a tática do extermínio, como faria um dentista que, diante das cáries de seu paciente, só soubesse receitar a extração dos dentes.

Contra Sócrates, encarnação do “homem teórico” que transforma a Razão em ídolo, Nietzsche nos põe em guarda contra aqueles que querem transformar a razão em panacéia e que pensam servir a este novo deus quando praticam, contra si e contra os outros, a repressão sexual, a supressão dos prazeres sensórios, a caça às “bruxas” e aos “hereges” etc.

Em seu Propos Sur Le Bonheur, Alain decerto reflete do interior de uma tradição filosófica ancestral, que atravessa os séculos, mas consegue nos dizer algo de novo, ou melhor, algo de peculiarmente seu. Quando recorda as razões que o levaram a abandonar o catolicismo, remete-nos a uma vivência que experimentou aos seus 10 anos de idade: visitar uma “capela mortuária onde os mortos permaneciam por uma semana, para edificação dos viventes. Estas imagens lúgubres  e este odor cadavérico perseguiram-me por muito tempo. Todo meu ser se revoltava e eu me livrava da religião deles como de uma doença.” (LXXIII, Bonne humeur, 10 Octobre 1909) Alain manifesta uma repulsa visceral contra a morbidez tão frequente em certos cultos religiosos Tanatocêntricos, que pregam o quietismo e a resignação.

Alain, ao contrário, busca sua sabedoria em outras fontes: em Spinoza, por exemplo, que considera um “mâitre de joie” (pg. 57), um mestre do júbilo. A ênfase que a filosofia spinozista devota à afetividade humana – a Ética sendo em larga medida um tratado psicológico que procura explicar os complexos mecanismos causais dos sentimentos humanos – é amplamente abraçada por Alain. A crítica da esperança e do temor, compreendidos como “irmãos gêmeos”, é algo que Alain também assume como um legado spinozista digno de permanecer vivo – e que Comte-Sponville posteriormente expandirá e detalhará como um dos temas-chave de sua obra (em especial no Tratado do Desespero e da Beatitude). 

O remédio contra a “síndrome de Bucéfalo”, isto é, com a tristeza de padecer com paixões que não controlamos nem compreendemos, está não só na compreensão mas também na ação. Trata-se de viver no esforço de agir ao invés de padecer; entender ao invés de ignorar; enfrentar os perigos reais ao invés de temer, na impotência e no tremor, perigos imaginários.

A felicidade, pois, não é algo que a gente receba como um presente, ou que devamos esperar sentados com a bunda confortavelmente instalada nos sofás da inação esperançosa. A felicidade está em agir para construi-la. E não há situação mais infeliz do que aquela do devoto que, em lágrimas, de joelhos, implora por ajuda do alto.

Uma longa tradição filosófica, que inclui Epicuro, Lucrécio, Spinoza, Alain, Comte-Sponville, une-se em coro para cantar: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.” A felicidade nunca vem de graça; é preciso conquistá-la. E há boas razões para crer que jamais alguém a conquista em solidão, ao contrário do que pregam ascetas e anacoretas.

Chris McCandless, vulgo Alex Supertramp, precisou buscar o isolamento extremo, nas geleiras do Alaska, para descobrir, em Into the Wild: “happiness is only real when shared”. Os filósofos assinariam embaixo, e Alain entre eles: o amor e a amizade são elementos sine qua non na construção de qualquer felicidade, que é sempre trans-individual, conectada com a presença de uma teia de relações humanas em que a convivência aumenta a potência de existir (e, logo, a alegria) daqueles que interagem.

Into the Wild

IV. EPÍLOGO: A FELICIDADE É POESIA 

A sabedoria, como aponta a etimologia,  é a meta suprema do filósofo, aquele que nutre philia (amor ou amizade) pela sophia (sabedoria). Ler Alain é uma experiência filosófica seminal pois equivale a encontrar alguém motivado por um engajamento existencial na busca pela vida sábia (e, logo, feliz). Este grande educador e escritor francês, autor de cerca de 5.000 propos (termo francês traduzível por reflexões em português, ou por remarks em inglês), teve sua obra celebrada por um de seus alunos, André Maurois, como digna de figurar em todas as bibliotecas ao lado dos Ensaios de Michel de Montaigne (1533-1592). Não é elogio pequeno.

A carreira de Alain como professor de filosofia foi longa e fecunda, tendo influenciado o pensamento de alunos que viriam a marcar época, caso de Georges Canguillem (1904-1995), Simone Weil (1909-1943) e André Comte-Sponville (1952 – ). Pouco conhecido no Brasil, onde existem poucos de seus livros traduzidos, Alain não é um filósofo de sistema, mas muito mais um pensador-artista, um filósofo-literato, cujos textos tem o sabor de pequenas obras-de-arte verbais, que instigam a refletir e ensinam os caminhos que o autor descobriu para um autêntica arte de viver e de gozar.

Sem dúvida, Alain pende mais para uma sabedoria apolínea, baseada na temperança e na primazia da razão, do que para uma sabedoria trágica ou dionisíaca (como Nietzsche, p. ex., procurou pensar). De certo modo, é como se Alain quisesse agir sobre seu leitor de modo similar ao que Alexandre fez com Bucéfalo: suas reflexões parecem animadas pelo ímpeto de ajudar o leitor a curar-se das paixões tristes, dos afetos mortificantes, das confusões mentais caóticas. O caminho da serenidade passa pela compreensão das causas reais de nossos sentimentos, sustenta Alain, o que significa que grande parte dos males afetivos de que padecemos tem relação com uma imaginação desregrada que é preciso “domar”.

Para que nos libertemos da impotência triste a que nos entrega o fatalismo, e da ansiedade apavorada a que nos condena um imaginário desregrado, Alain recomenda um remédio simples: compreensão e ação. A felicidade, logo, é como a poesia: é preciso criá-la, construí-la, escrevê-la, com um arranjo próprio e inimitável de palavras, ao invés de esperar por ela, rezar por ela, sonhar com ela. O ser humano gosta bem mais dos prazeres que ele conquista do que daqueles que lhe vem de graça: o alpinista, ainda que sofra e pene para atingir o topo da montanha, goza muito mais intensamente com a paisagem solar que observa quando atinge o pico, tendo ali chegado através de seu esforço e de sua ação, do que aquele que “um trem elétrico conduziu ao célebre cume e que não pode encontrar ali o mesmo Sol” (XLIV, pg. 116).

Filósofo que ama o bom humor e a alegria, Alain sabe ser duro contra “aquela feroz religião que nos ensinou que a tristeza é grande e bela, e que o sábio deve unicamente pensar na morte, enquanto cava seu próprio túmulo. (…) Resta-nos, após termos descartado as mentiras dos padres, abraçar a vida nobremente e não atormentarmos a nós mesmos e uns aos outros com declamações trágicas” (LXXIII, Bonne Humeur, pg. 184). 

Ao invés de exagerar a tragicidade da existência, Alain recomenda que não transformemos pequenas pedras em montanhas, nem perigos imaginários em razões para inquietudes de Bucéfalo.

Ao invés de acusar amargamente o mundo e os outros pela infelicidade própria, convêm muito mais perceber que cada um de nós é seu pior inimigo quando padece com seus juízos falsos, seus temores vãos, seus conformismos preguiçosos.

O primeiro passo para a sabedoria está em despertar para o fato de que nossas relações com o futuro não devem ser norteadas pela imaginação ou pela esperança, mas sim pela ação, que constrói um futuro ao invés de padecer com um futuro que tomba sobre nós ou nos atropela. A felicidade é poesia: trata-se de sacudir a impotência, despertar nossas forças criativas e criá-la – como se escreve um poema, como se compõe uma sinfonia, como se nutre uma amizade, como se constrói um amor.

Henri Matisse, "La Joie de Vivre" (1906)

“Tout bonheur est poésie essentiellement, et poésie veut dire action; l’on n’aime guère un bonheur qui vous tombe; on veut l’avoir fait.” – ALAIN (1858-1951), Propos Sur Le Bonheur (XLII, “Agir”, pg. 111. 3 Avril 1911). Pintura de Henri Matisse, “La Joie de Vivre”, 1906.

Eduardo Carli de Moraes
Toronto, Julho de 2014.

:: A Mosca Irritante ::

SÓCRATES: A MOSCA IRRITANTE

por Eduardo Carli de Moraes


Há poucas figuras mais emblemáticas nos mais de 2.500 anos de história da filosofia. Ele marcou época de modo tão radical que fez com que todos os pensadores antes dele, relegados a uma espécie de “pré-história do pensamento”, recebessem a alcunha de “pré-socráticos”. A Razão jamais foi a mesma depois que ele viveu. E poucas vezes na história dos “amigos da sabedoria” uma existência foi interrompida de modo tão dramático quanto a de Sócrates, condenado à morte pela mesma Atenas onde viveu todos os seus 70 anos de vida. Por que foi a figura socrática tão crucial na aurora da Filosofia? Por que seus métodos, atitudes e reflexões causaram tanto impacto e influenciaram tantos séculos do porvir? E o que explica que ele tenha despertado reações tão violentas por parte de seus concidadãos a ponto de ter sido obrigado a beber a cicuta?

Sócrates, como Jesus Cristo ou Buda, não legou à posteridade textos de sua autoria. Preferia o diálogo à escrita, o pensar em grupo à reflexão solitária. Por isso Sócrates será sempre uma figura cuja “faceta histórica” aparece envolta nas nebulosidades características daquilo que está afundado num passado remoto. A pergunta “quem foi o Sócrates real?” não é passível de ser respondida com certeza: o que temos são discípulos, detratores, testemunhos, pegadas, indícios, relíquias. O que possuímos são como que diferentes reflexos fornecidos por diversos espelhos. As três principais fontes da Antiguidade que chegaram até nós são o retrato satírico e iconoclástico de Aristófanes em As Nuvens, a visão idealizada e elegíaca de Xenofonte em seu Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates e os numerosos diálogos de Platão que o trazem como protagonista.

A Apologia é um texto clássico no qual Platão narra o discurso de defesa proferido por Sócrates frente ao tribunal de Atenas. Ali este era réu dos crimes de corromper a juventude e crer em outros deuses que não os “oficiais” da pólis. O texto é uma espécie de “manifesto” no qual o filósofo justifica e defende, frente a seus concidadãos, a atitude de incessante questionamento que caracterizou sua existência.

De modo semelhante ao que conta-se de Diógenes Laércio, que saía pelas ruas da cidades, em plena luz do dia, procurando um “homem honesto” com uma lanterna, Sócrates também vaga pela democrática Atenas realizando uma cotidiana e rigorosa “investigação” sobre a solidez dos saberes e a qualidade dos princípios morais daqueles com quem depara. E não respeita jamais nenhum argumento de autoridade nem deixa-se convencer pelo encanto de uma boa reputação.

A Lanterna de Diógenes


Conta-se que Sócrates viveu na penúria, preferindo uma vida frugal e recusando-se a receber dinheiro por seus “ensinamentos”. Era frequentemente visto a zanzar por Atenas como um vagabundo loquaz, de uma feiúra mitológica, sempre meio desleixado e extravagante. Uma excêntrica figura, em claro descompasso com a cidade, mas que ao invés de se afundar no ermitério, permaneceu sempre na ágora e passeando pelas ruas e praças públicas como uma espécie de inteligentíssimo mendigo provocador. Foi contemporâneo da “era de ouro” ateniense, quando se firma a democracia: nasce em 470 a.C. e vai a julgamento em 399 a.C., morrendo poucos meses depois de sua condenação à pena capital.

Sócrates, em seus chamados “diálogos de juventude” (rubrica que se aplica a textos como “Eutífron”, “Íon”, “Alcebíades”,  “Hípias Maior” e “Hípias Menor”, dentre outros), aparece como encarnação de um procedimento filosófico que procura sempre conduzir seu interlocutor a uma aporia (do grego “aporos”, sem poros, sem saídas).  Trata-se de “encurralar” seu adversário, empurrá-lo para um labirinto, fazê-lo afirmar o contrário do que antes sustentava.  Através do diálogo e do debate, Sócrates põe-se a averiguar se as opiniões e convicções dos homens notáveis de Atenas se sustentam e possuem um fundamento sólido, ou se desmancham-se e revelam suas contradições ou insuficiências, escancaradas pelo filósofo.

O que o filósofo deseja é produzir em seu interlocutor a consciência de sua ignorância. Quer desmascarar os pseudo-sábios que pretendem possuir saberes que de fato não têm, desqualificando e zombando dos “convencidos”. É como ele fosse um auto-eleito “vigia” da pólis, quase uma espécie de super-herói da Grécia Antiga, que dedica-se com ardor à obra higiência de limpar Atenas da escória intelectual e moral que suja suas ruas.

Em contraste com os chamados sofistas, considerados como “professores mercenários” de retórica e eloquência que ensinavam a arte da persuasão tendo em vista o interesse pessoal, Sócrates não aceitava salário por seus “ensinamentos” e se abstinha da vida política para poder dedicar-se inteiramente à filosofia. Assim o fazia para seguir a injunção do deus Apolo, que quando consultado sobre quem era o homem mais sábio de Atenas, no famoso episódio do Oráculo de Delfos, havia respondido, segundo a Apologia platônica, que não havia ninguém mais sábio que Sócrates.

A princípio cético em relação à afirmação oracular, já que tinha uma convicção íntima de não ser sábio, Sócrates passa a dialogar com seus concidadãos e contemporâneos na tentativa de encontrar um homem mais sábio do que ele, o que refutaria o dito do deus. Os interlocutores que escolhe são frequentemente homens que possuem reputação de conhecedores e peritos na cidade: aqueles que são considerados, aos olhos da pólis, como detentores de saber são esmiuçados pela inspeção socrática. Interrogando e investigando em minúcias as pessoas com quem dialoga, e sempre munido de um ferino olhar crítico, Sócrates descobre frequentemente, ao conversar com homens das classes mais respeitadas da cidade (políticos, poetas, artesãos, técnicos…), que aqueles que passavam por sábios frequentemente não possuíam o saber suficiente para fazer jus à sua reputação, enquanto que ele, Sócrates, por estar ciente de sua própria ignorância, estaria mais próximo da sabedoria do que aqueles que se agarravam a suas opiniões e convicções frequentemente paradoxais ou insustentáveis. Donde o famoso “sei que nada sei”:

“…é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não supor que saiba o que não sei.” 1

O filósofo, pois, quer rasgar as máscaras de presunçoso saber dos rostos daqueles que pretendem deter a chave para os grandes segredos de várias áreas da existência humana, inclusive a arte e a poesia (no “Íon”) e a religião (“Eutífron”). E põe-se por vezes a expôr ao ridículo homens que ocupam posições elevadas na hierarquia de poder, mas cujo pretenso “conhecimento”, que os abonaria e justificaria em seus privilégios, não tem nenhuma base sólida e desmorona ao ataque de uma dúzia de argutas perguntas e “provocações”.

Se Sócrates interroga e refuta para mostrar a seus interlocutores que eles não sabem o que julgam saber, ou seja, para “desmascarar” os “pseudo-sabidos”, não surpreende que ele, a cada vez que faz isso, ganhe um novo inimigo. Se ele é tão “antipático” para muitos de seus concidadãos, que sentem-se lesados por ele como se tivessem sido vítimas de algum crime, talvez seja porque ele atenta contra a auto-estima daqueles com quem conversa, provando-os da inanidade de suas certezas e dogmas.

“Ao apresentar sua defesa perante o tribunal ateniense”, escreve Eduardo Giannetti, “Sócrates questiona a aceitação passiva dos costumes, crenças e tradições socialmente estabelecidos, afirmando que ‘a vida irrefletida não vale a pena ser vivida’. A missão da filosofia moral socrática, conforme o relato de Platão na Apologia, é servir como uma espécie de ‘mosca irritante’ que mantém os cidadãos sob constante e cerrada inquirição e impede o ‘cavalo lasso’ do Estado de dormitar ao longo do caminho.”2

Neste sentido pode-se enxergar em Sócrates uma figura que procurou despertar aqueles com quem convivia de um “sono dogmático” ou de uma crença cega nos valores, saberes e princípios herdados da sociedade. É o que Marilena Chauí parece indicar no seguinte trecho de sua obra Convite à Filosofia, destinada a um público leigo, em que faz Sócrates ser uma figura que se contrapõe ao que hoje conhecemos, em tempos pós-marxistas, como “ideologia da classe dominante”:

“Sabemos que os poderosos têm medo do pensamento, pois o poder é mais forte se ninguém pensar, se todo mundo aceitar as coisas como elas são, ou melhor, como nos dizem e nos fazem acreditar que são. Para os poderosos de Atenas, Sócrates tornara-se um perigo, pois fazia a juventude pensar.”3

Podemos conjeturar, pois, que se Sócrates adquire reputação de ser um “corruptor da juventude”, é porque ele “descondiciona” os jovens acostumados a obedecer e planta neles a “semente má” do questionamento das autoridades, expondo tudo o que há de ridículo e de pomposo nas poses de sabidos que assumem muitos dos velhos que se acham no direito de guiar e moldar os mais novos. Sua lição é de insubmissão. E um jovem insubmisso, para aqueles acostumados a conduzir dóceis ovelhinhas, é um ser “corrompido”! “Morte a Sócrates!”, poderia dizer um de seus carrascos, “pois ele retira de nós a aura de saber que faz o nosso poder!”

INSPECÇÃO E MORALISMO

Esta “inquirição” de que fala Gianetti passa não somente pelos “saberes racionais” de que os pretensos sábios se pretendem portadores, mas é também (e sobretudo) uma “inquirição moral”. Neste quesito, o filósofo que sustentava que só sabia que nada sabia não era tão humilde e garantia ter um “coração” éticamente perfeito. Em sua defesa, Sócrates tenta convencer a assembléia de que sempre foi um homem irreprochavelmente justo e idôneo: “eu que, negligenciando o de que cuida toda gente – riquezas, negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na política, (…) [preferi] me entregar à procura de cada um de vós em particular a fim de proporcionar-lhes o que declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu que de si próprio para vir a ser quanto melhor e mais sensato”. 4

No retrato altamente elegíaco e idealizado que Xenofonte pinta do filósofo no Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates também aparece com muita nitidez esta “jactância” quanto à superioridade moral em relação a seus concidadãos que é marca da postura socrática.

“Conhecem homem menos escravo dos apetites do corpo que eu? Mais livre que eu, que não aceito de ninguém presentes nem salário? Quem poderão, em boa-fé, considerar mais justo (…) e que pessoa razoável não me chamaria de sábio? (…) E a prova de que meu labor não foi estéril, não a vêem no fato de que muitos de meus concidadãos que amam a virtude, bem como muitos estrangeiros, dão preferência a mim acima de todos os outros homens?” (5)

É uma constante em sua defesa, pois, que Sócrates tente persuadir os presentes de que sua relação com Atenas é a de um “benfeitor público”, uma “dádiva dos céus”. Quando narra o episódio do Oráculo de Delfos, crucial na determinação de seu “destino” filosófico, Sócrates frisa que seu “serviço à cidade” não passa de um obedecimento a “vozes superiores” (“faço-o por determinação divina”, sustenta [op cit., pg. 30]).

Este “messianismo” é o que permite que ele sugira que sua própria condenação à morte seria um golpe que a pólis infligiria sobre si mesma, e inclusive vaticinando que um futuro castigo os alcançaria — “e será, por Zeus, muito mais duro que a pena capital que me impusestes” (op cit, p. 36): “Neste momento, Atenienses, longe de atuar na minha defesa, como poderiam crer, atuo na vossa, evitando que, com a minha condenação, cometais uma falta para com a dádiva que recebestes do deus. Se me matardes, não vos será fácil achar outro igual…” (op cit, pg. 27).

Curiosa figura, que pretende-se a encarnação da modéstia (sei que nada sei…), mas que ao mesmo tempo garante que é um homem preciosíssimo, puro ouro!


MAIÊUTICA: O PARTEIRO DE IDÉIAS

Mas seria despropositado pensar que os diálogos ditos “refutativos”, em que Sócrates conduz seu interlocutor a uma aporia, são de natureza inteiramente “negativa”, isto é, intentam somente destruir as falsas certezas e pretensos saberes de que se julgam possuidores os que são reputados como sábios em Atenas. Não se trata, para Sócrates, de uma destruição “gratuita”, por assim dizer, que só se preocupasse em reduzir a pó as opiniões insustentáveis dos outros, abandonando o “campo de batalha” cheio de destroços e cacos do que antes constituía, não um saber (episteme), mas uma mera opinião (doxa).

Vale ressaltar que Sócrates, numa célebre passagem do Teeteto 6, “compara-se, em seu papel de parteiro das almas, à sua mãe parteira”, como destaca Jean Pierre Vernant:

“Do mesmo modo que a mâia liberta as mulheres que sofrem do parto, Sócrates liberta os jovens das verdades que conservam em si, sem poder trazê-las à luz. Mas sua arte vai mais longe que a das parteiras comuns: cabe-lhe a incumbência de ‘pôr a prova’ o rebento engendrado, a fim de discernir se se trata de um falso semblante enganador ou de um produto de boa estirpe e autêntico.”7

Portanto, o procedimento de Sócrates, se por vezes se assemelha a uma “investigação” ou “inspecção” que visa checar opiniões e supostos saberes que uma certa pessoa julga possuir, passando-os pelo crivo de seu insistente questionamento e crítica, também se assemelha, em certos diálogos, a uma arte de auxiliar seu interlocutor a “parir” idéias e conceitos que este seria incapaz de “dar à luz” sem o auxílio do filósofo. Mas estes “rebentos intelectuais”, assim que são paridos, também precisam ser inspeccionados, como Sócrates bem aponta a Teeteto no seguinte trecho:

“Parece que tivemos muito trabalho para trazê-lo à luz, qualquer que seja o seu valor. Mas, terminado o parto, é preciso que celebremos as Anfidromias (8) do recém-nascido e, sem dúvida, fazer o nosso raciocínio correr em círculo, a fim de examinarmos se se trata, sem que o saibamos, de um produto indigno de ser alimentado, e sim vento e falsidade. Ou então pensarias, porque ele é teu, que é preciso de toda maneira criá-lo e não expô-lo? Suportarás, ao contrário, que se faça a crítica dele aos teus olhos, sem que te aborreças no caso em que teu primeiro rebento te for tirado?” (9)

Por isto é questionável o dito de Cícero, que afirmou que Sócrates criou uma “dialética puramente negativa, que se abstém de pronunciar qualquer julgamento positivo” (10). A partir do exposto acima, fica claro que é no mínimo simplista pensar nos diálogos aporéticos como dotados de uma qualidade totalmente “negativa”, ou seja, como que exercícios de demolição de presunções ao saber, sem nenhuma “construtividade positiva” envolvida no processo. Não é exato dizer que Sócrates procura levar seus interlocutores à confusão e ao desnorteio, abandonando-os com os estilhaços do que acreditavam ser um saber confiável mas mostrou-se, frente à argumentação inquiridora do filósofo, como insustentável.

É possível, pois, interpretar os diálogos aporéticos como dotados de uma certa “positividade” subjacente ao processo socrático: é como se ele destruisse para poder melhor construir.

“Antes de tudo, cumpre desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos e opiniões. É este o momento da ironia, isto é, da crítica. (…) A instrução não deve consistir na imposição extrínseca de uma doutrina ao discente, mas o mestre deve tirá-la da mente do discípulo, pela razão imanente e constitutiva do espírito humano, a qual é um valor universal. É a famosa maiêutica de Sócrates, que declara auxiliar os partos do espírito, como sua mãe auxiliava os partos do corpo.” (11)

IRONIA SOCRÁTICA

Outra característica comumente vinculada a Sócrates é a ironia (em grego, eironeia). “A ironia socrática é o modo como Sócrates se subestima em relação aos adversários com quem discute” (12). Nas palavras de Cícero, uma recorrente atitude do filósofo era “se diminuir e elevar aqueles que desejava refutar; assim, dizendo o contrário do que pensava, empregava de bom grado a simulação que os gregos denominam ironia (Acad., IV, 5, 15)”.

Em sua interpretação das razões que levaram Atenas à condenar o filósofo, I. F. Stone frisa que seus procedimentos irônicos contribuíram muito para a antipatia gerada contra ele. Stone procura mostrar que há “um toque de crueldade para com seus interlocutores” na persona socrática (que, não à toa, teve discípulos que depois criariam a escola dos cínicos, tal como Antístenes):

“O que havia de mais humilhante – e irritante – no método socrático de investigação era o fato de que, ao mesmo tempo que era demonstrada a realidade da ignorância dos outros, estes eram levados a pensar que a suposta ignorância de Sócrates era puro fingimento e ostentação. (…) Seus interlocutores sentiam que, por trás da ‘ironia’, da máscara de falsa modéstia, Sócrates na verdade estava rindo deles. É essa a crueldade que se esconde nas entrelinhas do relato platônico, com todo o seu fino humor aristocrático; e o efeito dessa politesse é torná-la ainda mais terrível.” (13)

A ironia socrática, como a descreve Stone, aparece como uma espécie de “arma” utilizada pelo filósofo visando “fazer com que todos os notáveis da cidade parecessem tolos e ignorantes”, de modo que a ação de Sócrates na arena pública era um fator de “aviltamento dos mais respeitados líderes da cidade”. (14)

Convêm, porém, nuançar um pouco esta imagem de Sócrates como um “gracejador”, um “tirador de sarro” ou um “proto-cínico”, que conduziria a uma concepção do filósofo como um cômico provocador e nada mais — o que seria um empobrecimento de sua figura. Lembremos, por exemplo, que no Livro V da República Sócrates manifesta-se contrário aos “gracejadores”, sustentando que

“É insensato aquele que julga ridícula outra coisa que não seja o mal (…) e que tenta excitar o riso tomando para objeto de suas zombarias outro espetáculo que não seja a loucura e a perversidade”. (15)


EUTÍFRON

Um bom exemplo do procedimento refutativo socrático encontra-se no Eutífron, diálogo em que Sócrates dialoga com um sacerdote que se encaminha para o tribunal para acusar seu próprio pai pelo homicídio de um empregado. Este texto platônico já flagra Sócrates na fase final de sua vida, quando ele já havia sido “indiciado” por Meleto e preparava-se para ir a julgamento; tanto que se lermos na sequência o Eutífron, a Apologia, o Críton e o Fédon, notamos que estes quatro diálogos constituem um pormenorizado relato “romanceado” da “via-crúcis” socrática, por assim dizer, incluindo seu julgamento, sua fala no tribunal e sua condenação à morte (Apologia), sua temporada na prisão e a frustrada tentativa de seus amigos de persuadi-lo a fugir (Críton), e enfim a cena em que Sócrates bebe a cicuta depois de “edificar” seus discípulos quanto à questão da imortalidade da alma (Fédon).

Destes quatro diálogos, o Eutífron possui a peculiaridade de ser o mais incisivamente refutativo, já que o filósofo conduz seu interlocutor não só a um estado de confusão, mas a uma “evasão”: o questionado prefere fugir da conversa a prosseguir arguindo com Sócrates.

Como de praxe, Sócrates dialoga com um interlocutor que é reputado sábio ou que tem a orgulhosa presunção de sê-lo. “Afirmas que conheces mais do qualquer outra pessoa a respeito de matérias atinentes aos deuses”, diz a Eutífron um Sócrates que soa irônico e provocativo (16). Eutífron, que possui plena convicção de que sabe distinguir o Bem do Mal, o pio do ímpio, o sagrado do profano, verá que o diálogo com o filósofo o conduz ao desnorteio, quando antes de seu caminho se cruzar com o de Sócrates parecia não ter dúvida alguma de estar agindo de modo idôneo e moralmente irreprochável ao acusar seu próprio pai de homicídio.

“Se não tivesses um claro conhecimento do religioso e do irreligioso”, diz-lhe Sócrates, “decerto não terias ousado processar teu velho pai por homicídio em defesa de um servo. Terias temido o risco de incorrer na ira dos deuses no receio de uma conduta incorreta e te sentirias envergonhado diante dos homens.” (17)

A situação que os dois discutem representa uma espécie de dilema moral para um filho, confrontado com seu dever cívico de denunciar um crime e sua fidelidade ao próprio pai. Eutífron, dando primazia à um certo senso de “dever” moral sobre a lealdade sanguínea, dirige-se ao tribunal para prestar queixa contra o próprio pai, que havia lançado um de seus servos numa vala, depois que este havia matado um homem numa briga. O servo, sem água ou comida, acabou falecendo.

No decorrer do debate, Sócrates solicita de seu interlocutor que lhe dê uma noção geral de “piedade”, e não somente exemplos de ações pias ou ímpias: “eu não lhe havia pedido que me ensinasse uma ou duas das muitas ações pias, e sim a feição (êidos) mesma pela qual tudo que é piedoso é piedoso” (18).

Eutífron, a princípio, sustenta a tese de que tudo aquilo que é agradável aos deuses é piedoso, e que, pelo contrário, comete uma impiedade todo aquele que age de um modo que desagrada aos deuses. O que Sócrates lhe mostra é que este argumento, que até teria chances de se sustentar num contexto monoteísta, mostra-se frágil e contraditório no universo religioso grego dominado pelo politeísmo, em que concebia-se que os deuses podiam muito bem discordar e brigar entre si.

“Não seria de se surpreender”, argumenta Sócrates, “se ao punires teu pai como estás fazendo estivesses realizando uma ação cara a Zeus, mas odiosa a Cronos e Urano, e cara a Hefaístos, mas odiosa a Hera”. (19) Eutífron admite que Sócrates tem razão e vê esfacelar-se, portanto, a definição que havia fornecido de “ato piedoso”. Ambos partem em busca de um conceito melhor de “piedade”, que possuísse a universalidade sempre requerida por Sócrates para uma definição satisfatória.

Os dois se enredam em debates sobre o que representaria aquilo que agrada ou desagrada a todos os deuses, sem exceção, e que poderia servir como definição do ato piedoso perfeito. Inspeccionam a natureza do “comércio” entre homens e deuses, em que sacrifícios, oferendas e preces humanas são dedicadas aàs divindades. Afinal, Sócrates vê seu interlocutor praticar uma “fuga” do debate, provavelmente por sentir-se incapaz de fornecer ao filósofo respostas que o satisfizessem: “Indo embora me deixas abatido e órfão da grande esperança que nutria de aprender de ti o que é o religioso e o que não é, podendo livrar-me da ação pública movida por Meleto mostrando-lhe que obtive sabedoria acerca de assuntos divinos de Eutífron, não sendo mais vítima da ignorância que me leva a ser descuidado e inovador em relação a essas coisas…”.(20)

A antipatia e o ódio que Sócrates despertou em muitos de seus contemporâneos, e que se explica em parte por sua ironia, seu abstencionismo político, sua tendência a “destronar” homens reputados como sábios, talvez se explique também por uma certa postura anti-democrática que um comentador moderno como I. F. Stone diagnosticou no filósofo. Sabe-se que, como exposto na República de Platão, a “cidade ideal” seria gerida por um filósofo-rei; ou seja, a democracia ateniense como existia na era de Sócrates deveria ser substituída por uma espécie de “aristocracia do saber”, por assim dizer, em que não faltam certos elementos do que hoje chamamos de totalitarismo. Sabe-se ainda que alguns dos discípulos de Sócrates, tal como Alcebíades e Cármides, não foram muito benquistos pelos democratas atenienses por suas ações políticas.

Em seu comentário crítico sobre o Eutífron, Stone procura apontar esta problemática posição política de Sócrates, que neste caso parece manifestar uma certa “indiferença” em relação ao criado que o pai de Eutífron acabou matando com sua severa punição.

“Nem uma única vez Sócrates manifesta sentimento algum de piedade em relação ao pobre trabalhador sem terra. Seus direitos jamais são mencionados. Teria sido uma atitude ‘piedosa’ deixá-lo exposto ao frio e à fome, enquanto o proprietário resolvia, sem nenhuma pressa, o que fazer com ele? (…) Sem dúvida, é terrível um filho levar o pai a julgamento. Mas, segundo os critérios atenienses e gregos, o pai não podia inocentar-se em relação à morte do trabalhador sem ter sido julgado. (…) Se ninguém maisia levar aquele proprietário à cerimônia de purgação que representava o julgamento, então não seria dever de seus filho assumir essa tarefa dolorosa?” (21)

I. F. Stone diagnostica na postura socrática no Eutífron um certo “preconceito de classe” tácito que seria “reflexo do desprezo que Sócrates sentia pela democracia”, tese que o livro O Julgamento de Sócrates insiste em frisar através de vasta documentação histórica. Segundo Stone, Sócrates teria tratado o homem que o pai de Eutífron matou como um “mero criado”, indigno de compaixão, jamais em momento algum do diálogo reconhecendo que um crime sério havia sido cometido, e que seria uma injustiça a impunidade de um poderoso num caso em que a punição havia caído sobre o “despossuído” com tamanha força (e de um modo fora da legalidade).

“Eutífron é ridicularizado no diálogo, sendo encarado como uma espécie de fanático supersticioso, mas sua atitude é mais humana que a de Sócrates”, sustenta Stone. “Evidentemente, Eutífron julgava que o que estava em questão era um dever que transcendia as obrigações filiais e diferenças de status e classe. Sócrates deixa de lado esse aspecto da questão. A idéia de que todos são iguais diante da lei, ou de justiça social, jamais é discutida no diálogo. (…) A indiferença manifestada por Sócrates em relação ao empregado teria parecido a seus concidadãos semelhante à indiferença com que ele havia encarado a situação dos thetes em 411 e 404 a.C. (…) [Sócrates] não se exilara durante nenhum dos períodos da ditadura, nem participara da restauração do regime democrático. Sócrates não manifestava nenhum interesse pelos direitos dos pobres, nem pela justiça social. A atitude de Eutífron é que era democrática.” (22)


A BARCA FATAL


“Para o mesmo lugar somos todos tangidos e a sorte,
que mais cedo ou mais tarde há de vir,
e há de na barca pôr-nos para o eterno exílio,
já na urna se agita.”

(HORÁCIO) (23)

Outra característica essencial de Sócrates, que se manifesta na Apologia platônica e em diálogos como o Críton e o Fédon, é a idéia de que a virtude deve prevalecer sobre o temor da morte. Aquilo que o homem considera ser o justo e o virtuoso deve ser sustentado até frente ao último abismo, até mesmo sob a mais letal ameaça.

O julgamento de Sócrates, que este enfrenta já no outono de seus anos, mostra-nos um velho filósofo que demonstra muita ousadia quando ameaçado com uma punição que faria tremer em suas bases a maior parte dos homens. E assim se explica: “À morte não ligo mais importância que a um figo podre, mas a não cometer nenhuma injustiça ou impiedade, a isso sim dou o máximo valor” (24).

Lembremos que Sócrates recusa-se a adotar métodos sentimentalóides, como súplicas entre lágrimas e dramas lamurientos, na tentativa de “amolecer o coração” de seus juízes e conquistar sua absolvição. O filósofo está convicto de não ter culpa alguma e não irá fazer uma falsa confissão com o intuito de retirar seu pescoço do gládio — ou sua língua da cicuta. Sócrates já está próximo da morte quando é julgado, e sabe disso; mas não se esgoela, se descabela ou se descontrola frente a esta perspectiva tão acabrunhante para a maioria de nós. Sua postura frente à Grande Foice que nos ceifa a todos é mais de serenidade e resignação que de angústia e apreensão.

É só trazer à mente a cena em que Críton, visitando seu mestre na prisão de Atenas, após este ser condenado à morte, admira Sócrates enquanto este dorme, depois comunicando o quanto ficou maravilhado com a “placidez” do sono e com a “brandura” com que o filósofo suporta sua “desgraça”. E admira que Sócrates aja sem dar mostras de dilaceramentos e transtornos de angústia estando numa situação que deixaria quase todos homens em estado de “aflição”. (25)

No discurso frente aos juízes, segundo a Apologia, Sócrates não tem a pretensão de saber com certeza o que a morte é: supor deter um conhecimento como tal, aliás, seria ser infiel ao seu princípio “sei que nada sei”. Mas ele imagina que a morte só possa significar uma de duas coisas, e que ambas lhe aparecem como perspectivas “agradáveis”.

“Morrer é uma destas duas coisas: ou o morto é igual a nada, e não sente nenhuma sensação de coisa nenhuma; ou então, como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte! (…) Se, de outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes? Se, chegando ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar os verdadeiros juízes (…), não valeria a pena a viagem? Quanto não daria qualquer de vós para estar na companhia de Orfeu, Museu, Hesíodo e Homero? Por mim, estou pronto a morrer muitas vezes, se isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento maravilhoso…” (26)

Isto se assemelha a uma argumentação semelhante, mas de cunho epicurista, referendada por Lucrécio em seu clássico De Rerum Natura, obra na qual o poeta latino, discípulo de Epicuro, procura contribuir, entre outras coisas, para livrar a humanidade das superstições e do medo da morte. Lucrécio decerto não imagina a possibilidade de uma “transmigração” da alma, o que não se coadunaria com seu materialismo, mas também procura persuadir o seu leitor de que a idéia da morte não deve afligi-lo. Montaigne cita e comenta o trecho nos seguintes termos:

“Se soubestes usar a vida e gozá-la quanto pudestes, ide-vos e vos declareis satisfeitos; ‘por que não sair do banquete da vida como um conviva saciado?’ (Lucrécio) Se não a soubestes usar, se ela vos foi inútil, que vos importa perdê-la? E se ela continuasse em que a empregaríeis? ‘Para que prolongar os dias de que não se saberá tirar melhor proveito do que no passado?’ (idem)” (27)

Decerto que a hipótese socrática sobre a morte, que concebe a possibilidade de uma continuação da vida no Hades e que mantêm viva a esperança de uma imortalidade da alma (que um diálogo como o Fédon se propõe a provar), soa mais otimista que esta de Lucrécio (que talvez possa ser considerado muito mais como um precursor de Schopenhauer). Mas o paralelo serve para frisar o quanto a filosofia, desde os seus primórdios gregos, e já na persona de Sócrates, teve como uma de suas tarefas esta: a de exorcizar o terror frente à morte que apavora tantos seres humanos através da história. Tanto que Montaigne pôde dizer que “filosofar é aprender a morrer”.

“Não se tenha por difícil escapar à morte, porque muito mais difícil é escapar à maldade: ela corre mais ligeira que a morte” (Apologia, op cit, pg. 36). Com estas palavras, Sócrates destaca uma vez mais que sua preocupação é muito mais a “sanidade moral da alma”, por assim dizer, do que uma instintitiva e horrorizada recusa da morte. “Para o homem nenhum bem supera o discorrer cada dia sobre a virtude” (op cit, 34), aponta, de certo modo apontando a si mesmo como alguém que, através de seus incômodos questionamentos, contribui para uma espécie de “evolução moral” da comunidade.

“Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude…” (op cit. 27), destaca Sócrates, garantindo aos atenienses que “enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixará de filosofar” e “há de repreendê-los por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos” (op cit., 26).

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REFERÊNCIAS:

1 PLATÃO. Apologia de Sócrates. Ed. Cultrix, 5a edição. Tradução direto do grego de Jaime Bruna. Pg. 17.
2 GIANETTI, Eduardo. Vícios Privados, Benefícios Públicos? A ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, 7a ed, pg. 28.
3 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Editora Ática, 5a edição. Pag.38.
4 PLATÃO. Apologia. Op cit. Pg. 33.
5 XENOFONTE, Apologia, 16-17 (Loeb 4:651).
6 PLATÃO. Teeteto. 150 bc.
7 VERNANT, Jean-Pierre. Mito & pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian. Ed. Paz e Terra. 2 a edição. Pgs. 233-234.
8 O rito das Anfidromias, como explica Vernant, é uma espécie de equivalente grego do cerimonial cristão do batizado: “festa familiar celebrada, conforme o caso, no quinto, no sétimo ou no décimo dia a partir do nascimento, a cerimônia coincide por vezes com a imposição do nome à criança; mas a sua função própria é consagrar o reconhecimento oficial do récem-nascido por seu pai.” (op cit, pg. 229).
9 PLATÃO. Teeteto, 160c-161a.
10 CÍCERO. Sobre a Natureza dos Deuses, 1.5.11 (Loeb 19:15).
11  PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1974. 10a edição. pg. 112.
12 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia.Trad. Alfredo Bosi. Editora Martins Fontes. Ed. 674.
13 STONE, I. F. O Julgamento de Sócrates. Trad Paulo Henriques Britto. Ed Companhia de Bolso, 1a ed. Pg. 108.
14 STONE, I. F. Op cit, pg. 109.
15 PLATÃO. A República. Livro V. Ed. Abril Cultural, pg. 153.
16 PLATÃO. Eutífron. 13e.
17 Op cit. 14 d-e.
18 Op cit. 6e.
19 Op cit. 8e.
20 PLATÃO, Eutífron. 16a.
21 STONE, I. F. Op cit. Pg 180-181.
22 STONE, I. F. Op cit. Pg 184-185.
23 HORÁCIO. Odes. Primeiro Livro, 25-30. Consultado em: http://lingualatina.pro.br/pdfs/horacio.pdf.
24 PLATÃO, Apologia, op cit, pg. 29.
25 PLATÃO, Críton. Pg. 119.
26 PLATÃO. Apologia de Sócrates, Op cit, pg. 37-38.
27 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, Livro I, capítulo 20. São Paulo: Abril Cultural. Coleção Os Pensadores, 1972, pg. 53.

“Do mesmo modo que a mâia liberta as mulheres que sofrem do parto, Sócrates liberta os jovens das verdades que conservam em si, sem poder trazê-las à luz. Mas sua arte vai mais longe que a das parteiras comuns: cabe-lhe a incumbência de ‘pôr a prova’ o rebento engendrado, a fim de discernir se se trata de um falso semblante enganador ou de um produto de boa estirpe e autêntico.”