Da angústia solitária à revolta solidária: sobre a filosofia de Albert Camus || A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.”
ALBERT CAMUS em “Núpcias” [1]

CAPÍTULO 1: A Indesejada das Gentes

Confinados na implacável finitude da vida, nós, os mortais, temos acesso a poucas certezas inabaláveis, dignas do estatuto de verdades absolutas. A mais irrecusável das certezas, para cada um e todos, é a de que todos nós um dia vamos morrer – como diz o provérbio: morte certa, hora incerta.

Por ser aquilo que nos é comum, não importa em que latitude e longitude vivamos, nossa finitude nos une. No entanto, sermos finitos não é simplesmente algo aceito e acolhido como um fato bruto, mas sim algo que é “vestido” pela consciência humana com as mais variadas roupas, embalado nas vestes de crenças multiformes. O único bicho que sabe que vai morrer é também o animal simbólico, faminto por sentido. A vivência do perceber- se mortal é de extrema diversidade conforme as crenças (ou ausência destas) que a pessoa nutra (ou que tenha destroçado em si).

Além disso, é variável o grau de realização da morte [2], ou seja, o sujeito considera como real tal condição num gradiente que vai da negação de quem finge que a morte nunca virá, à obsessão mórbida de quem pensa-se como “cadáver adiado” (Fernando Pessoa) [3] a todo momento de todos os dias. As dinâmicas psíquicas do recalque / repressão desta consciência de nossa radical limitação espaço-temporal, socialmente consolidadas em ideologias destinadas ao negacionismo da finitude, são tema do clássico A Negação da Morte (The Denial of Death) de Ernest Becker [4].  

O fato de sermos mortais, ao mesmo tempo que nos une na mesma condição que nos é comum, também nos separa radicalmente: assim como “ninguém vive por mim” (cantou lindamente Sérgio Sampaio) [5], também podemos dizer a qualquer um: ninguém vai morrer no teu lugar, a tua própria morte é algo que você vai ter que encarar, cedo ou tarde, querendo ou não. Cada um encara o processo de morrer num estado onde a solidão se manifesta de modo mais extremo do que em outras vivências humanas. Pode ser que o poeta chileno Nicanor Parra tenha razão ao propor que “a morte é um hábito coletivo” [6], mas cada sujeito a vivencia de maneira singular. E arrasta para o túmulo e seu eterno silêncio o segredo incomunicável do que se passou por dentro naqueles últimos momentos vitais antes do fatal ponto-final.

Pedra irremovível no caminho do desejo de imortalidade que muitas vezes os humanos nutrem, a morte existe sobretudo como horizonte. Está presente por sua iminência. O que nos condena à angústia como parte integrante da condição humana. Costuma-se dizer que somos os únicos animais no planeta Terra que sabem que vão morrer, mas talvez fosse mais preciso dizer que o sentimos mais que sabemos. A angústia é este afeto em nós que atesta a nossa finitude.

Na história da filosofia, a reflexão sobre o futuro estado de esqueleto de cada um de nós já foi alvo de muitas reflexões: a sabedoria Epicurista pretendia curar o medo da morte e dos deuses, causadores de intranquilidades da alma que impedem a sábia ataraxia, com uma argumentação que a Carta a Meneceu (Sobre a Felicidade) sintetiza assim: “Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações.” [7] Quase dois milênios depois, Michel de Montaigne, em um de seus mais célebres ensaios, exploraria a noção de que “filosofar é aprender a morrer” [8].

É preciso aprender que, querendo ou não, a morte é nosso quinhão e que dar sentido a uma vida que acaba é nossa perpétua tarefa. A sensação de absurdo que às vezes se espraia pela existência tem a ver com o fato de que a foice às vezes pode arrasar com um vivente em momento inoportuno, em hora precoce, quando ele ou ela ainda estava cheio de sonhos, planos e forças.

Por isso, raros são aqueles que enfrentam a vida sem medo algum: a possibilidade da morte, sobretudo injusta, súbita, dolorida, tira-nos o sossego. Talvez nunca tenha nascido e completado sua trajetória finita entre os vivos nenhum animal humano que possa dizer, do berço ao túmulo: “atravessei o tempo sem nunca temer a morte”. Para o poeta Manuel Bandeira, a morte é “a indesejada das gentes”, a “iniludível” (aquela que não se pode burlar ou enganar) [9]:

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.

Pintura de Arnold Boecklin


CAPÍTULO 2: A CLARIVIDÊNCIA, IMPRESCINDÍVEL VIRTUDE CAMUSIANA 

Para Albert Camus (1913 – 1960), não há escapatória: “a angústia é o ambiente perpétuo do homem lúcido” – e a questão das questões, como o príncipe Hamlet sabia, consiste em escolher entre o sim à vida (ainda que angustiada) ou o não à ela (o caminho do suicídio) [10]. Quem vê claro, nesta vida, não escapa de sentir o fardo de afetos angustiantes. O que importa é que a angústia não nos paralise, que possa inclusive servir à nossa ação e ao nosso Combat – nome do jornal com o qual Camus colaborou, crucial na cobertura de eventos históricos como a Resistência à ocupação nazista da França, a Guerra de Independência da Argélia e o Maio de 1968.

Neste livro (Folio, 2013, 784 pgs), estão reunidos 165 artigos publicados por Camus no jornal Combat, onde ele atuou como editor chefe entre agosto de 1944 e junho de 1947. Saiba mais.

Publicado em 1947 pela Editora Gallimard, o romance “A Peste” expressa a atitude existencialista Camusiana diante dos flagelos que parecem querer soterrar a humanidade sob os escombros de um sentido arruinado. Diante da irrupção do absurdo coletivo que é a peste, esta máquina mortífera que ceifa vidas de animais humanos como se estes fossem moscas, o que propõe o artista-filósofo franco-argelino?

Para começo de conversa, o absurdo, para Camus, é um ponto de partida e não de chegada. Não se deve ficar estagnado diante do absurdo, como se ele fosse uma barreira intraponível que deveria nos fazer desistir de qualquer ação, abandonando-nos à passividade. A percepção do absurdo deve conduzir à revolta solidária dos humanos em luta contra os males de seu destino. Se, de fato, a revolta e a solidariedade são valores basilares do ethos camusiano, é preciso destacar ainda o posição de destaque que a virtude da clarividência ocupa no universo temático de Camus.

Isto que a língua francesa chama de clairvoyance tem um sentido próximo ao de lucidez. A lúcida clarividência está fortemente presente em A Peste, como se Camus quisesse ensinar que é preciso ver claro em meio ao horror se não queremos aumentá-lo ou colaborar com ele. Perder a lucidez, deixar ir pelo ralo a clarividência, em nada ajuda a frear a expansão das epidemias, nem auxilia a vencer as infestações do fascismo. O médico Bernard Rieux, narrador do romance, trabalha arduamente em meio à proliferação da doença, ainda que sinta seu cotidiano de combatente anti-peste como um trabalho de Sísifo, repleto de “intermináveis derrotas”.

É preciso compreender que Bernard Rieux é uma espécie de Sísifo em tempos de flagelo coletivo, numa época em que há a irrupção do absurdo em escala massiva. O rochedo que ele tenta arrastar montanha acima é a saúde de seus pacientes. Muitos de seus esforços médicos são em vão: a peste vence frequentemente e o paciente morre. Mas a batalha perdida não finda a guerra. Novos infectados não param de chegar aos hospitais, como novos rochedos a tentar empurrar montanha acima rumo à saúde sempre precária.

Rieux jamais desiste da luta, por mais que seja muitas vezes derrotado em seu intento de curar os adoentados ou de diminuir o sofrimento dos agonizantes. Rieux, apesar do tom afetivo que o domina ser o de um pessimismo de homem ateu, não cai nunca no derrotismo ou na resignação imóvel. Rieux é um trabalhador: não fica de braços cruzados diante dos males concretos que afligem os corpos de seus concidadãos. Não espera ou pede nenhum auxílio divino ou sobrenatural. Por isso, apesar de tantas derrotas diante da peste mortífera, o Doutor Rieux não se torna nunca um derrotado no sentido que dá a esta palavra o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, para quem “os únicos derrotados são os que baixam a cabeça, que se resignam com a derrota.  A vida é uma luta permanente, com avanços e retrocessos”. [11]

Imaginem se Mujica, em algum momento de angústia extrema, durante o período de 12 anos em que esteve confinado nos cárceres da Ditadura Militar uruguaia, tivesse desistido da luta. Se tivesse gasto até a última fibra de sua coragem e resiliência de tupamaro, se tivesse utilizado a saída do suicídio para escapar dos horrores de estar entre os vivos em tais condições horríficas, aí sim teria sido um derrotado – e não o futuro presidente do Uruguai e um ícone das esquerdas latinoamericanas. Por isso, no poster do filme Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner, que retrata as vivências de Mujica e outros dois prisioneiros, destaca-se a frase: “los únicos derrotados son los que bajan los brazos”. [12]

História semelhante se poderia contar sobre Nelson Mandela, Oscar Wilde, Antonio Gramsci ou Luiz Inácio Lula da Silva: na prisão, eles não abaixaram a cabeça, não se renderam à opressão deixando a resiliência cair estilhaçada ao solo, seguiram determinados em sua luta, clarividentes e revoltados em face de absurdos insultantes. Atravessando a noite que parece interminável. Nunca aderindo à preguiça dos passivos ou à inação dos resignados.


CAPÍTULO 3: A LITERATURA DAS ENCRUZILHADAS

Vários debates filosóficos atravessam o romance de Camus: A Peste é um romance repleto de difíceis encruzilhadas em que os personagens tentam escolher entra as alternativas que o destino lhes impõe. O jornalista Rambert, por exemplo, está separado da mulher que ama, preso na Oran empesteada, de onde as autoridades não permitem que ninguém entre ou saia. Tomando medidas para pagar por uma fuga, Rambert entra em negociações com contrabandistas, mas os acordos não avançam muito bem. Retido na cidade em quarentena, Rambert decide-se a trabalhar junto com o Dr. Rieux enquanto aguarda ocasião mais oportuna de escapar dali para se re-encontrar com sua amada.

Depois de muito refletir, quando enfim se apresenta a ocasião da fuga, Rambert prefere ficar ao invés de partir. Explica que “se partisse sentiria vergonha”. Ao que Rieux responde com firmeza que isto é uma “estupidez” e que “não há vergonha em preferir a felicidade”. Ou seja, em meio à desgraça toda, os personagens debatem sobre o hedonismo enquanto doutrina ética, a noção de que uma prazeirosa felicidade é o fim último (télos) da existência humana.

Rambert, nesta sua encruzilhada ética, sopesa as alternativas: fugir em direção à mulher de quem sente saudades é sua tentação mais forte, sua vontade quase irreprimível, pois é este o caminho que lhe aponta sua ânsia de felicidade, sua fome relacional, seu ímpeto de gozo afetivo, sexual, de estima carnal. Porém, o outro caminho que se desenha na encruzilhada é o de ficar na cidade para trabalhar, junto com os outros, em prol de uma melhoria da condição de todos. Rambert prefere ficar, argumentando, contra Rieux e seu hedonismo, que pode sim ser motivo de vergonha “querer ser feliz sozinho” (être heureux tout seul) [13].

Em contexto de flagelo coletivo, Rambert acaba por concluir que não tem direito à fuga na direção de sua felicidade individual. Terceira voz neste diálogo, Tarrou percebe bem que a natureza da escolha na qual Rambert se debate envolve um desejo de empatia para com os que sofrem durante a peste. Porém, esta empatia pode mergulhar o sujeito numa tal maré de compaixão que ameaça destruir completamente sua possibilidade de vivenciar afetos alegres e vivificantes. Para Tarrou, se Rambert “quisesse partilhar da infelicidade dos homens, não haveria jamais tempo para a felicidade. Era preciso escolher.”

Rambert, apesar do sofrimento da separação, que às vezes o conduz a gritar a plenos pulmões (op cit, item 13, p. 185) em montes desertos da cidade, acaba por decidir-se que não quer suportar a vergonha de fugir tentando ser feliz alhures, argumentando que “essa história nos concerne a todos”. Sua atitude tem pontos de contato com Sócrates tal como descrito no diálogo platônico Crítono filósofo se recusa a fugir da prisão de Atenas onde está condenado a morrer pela cicuta, argumentando que ser vítima de uma injusta é preferível a ser injusto violando as leis da pólis.

O Dr. Rieux, de maneira similar ao jornalista Rambert, está separado de sua esposa, com quem se comunica por cartas e telegramas, mas nunca lhe ocorre a tentação de escapar: ele chega a trabalhar 20 horas por dias nos meses de auge da peste, como heróico médico que vê sua fadiga e exaustão crescerem até os extremos, sem nunca desistir de seus deveres ou “amarelar” diante do fardo de sua responsabilidade.


CAPÍTULO 4: CAMUS E NIETZSCHE: UM DIÁLOGO FECUNDO

Ganhador do Nobel de Literatura de 1957, Camus devotou muitos esforços a um diálogo fecundo e crítico com a obra de Nietzsche (1844-1900): “o filósofo alemão agiu como um álcool forte sobre Camus”, defende Michel Onfray [14].

No Brasil, um livro brilhante de Marcelo Alves, pesquisador graduado em Filosofia e Mestre em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), explora com maestria o tema: Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche (um livro que nasce de sua tese de mestrado disponível na íntegra) [15].

Unidos na “fidelidade à terra”, como dizia Zaratustra, Nietzsche e Camus estão sintonizados no interesse que compartilham pelo amor fati, o amor ao destino. O ethos do espírito livre consiste em amar a vida  exatamente como ela é, sem exclusão de tudo que existe nela de contraditório, problemático, horrendo e assustador. Camus fala assim das “núpcias” do homem com a natureza:

“Aprendo que não existe felicidade sobre-humana, nem eternidade fora da curva dos dias. Esses bens irrisórios e essenciais, essas verdades relativas são as únicas que me comovem. (…) Não encontro sentido na felicidade dos anjos. Só sei que este céu durará mais do que eu. E o que chamaria de eternidade, senão o que continuará após minha morte?

A imortalidade da alma, é verdade, preocupa a muitos bons espíritos. Mas isso porque eles recusam, antes de lhe esgotar a seiva, a única verdade que lhes é oferecida: o corpo. Pois o corpo não lhes coloca problemas ou, ao menos, eles conhecem a única solução que ele propõe: é uma verdade que deve apodrecer e que por isso se reveste de uma amargura e de uma nobreza que eles não ousam encarar de frente.” (CAMUS) [16]

Alves comenta:

“O corpo é a medida do homem lúcido diante da sua condição. Amar a natureza é reconhecê-la, antes de tudo, enquanto limite e possibilidade da vida humana. Amor trágico esse, na medida em que se ama o que por fim nos aniquila. Muitos homens, no entanto, preferem recusar essa sabedoria trágica e transformar o seu medo da morte na esperança de outra vida… Mas custa caro desprezar a verdade do corpo, ser infiel à terra, deixar-se iludir por uma esperança, isto custa o preço da própria vida, ‘porque se há um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por uma outra vida e se esquivar da implacável grandeza desta’, como escreve Camus. (…) Fidelidade à terra é justamente o que Zaratustra não cessa de pedir encarecidamente a seus discípulos, alertando-os ao mesmo tempo sobre a ‘enfermidade’ característica dos ‘desprezadores do corpo’, dos ‘transmundanos’ e dos ‘pregadores da morte’.” (M. ALVES) [17]

Esta valorização do corpo, da vida encarnada, das verdades relativas, da sensorialidade palpável, nada tem a ver com uma idealização do corpo que apagasse tudo que há nele de problemático e trágico: Camus chama o corpo de “uma verdade que apodrece” e não cessa de refletir sobre a revolta humana diante da morte, ou seja, da finitude deste corpo matável e adoecível. Camus quer manter-se fiel à Terra e à virtude da lucidez, o que exige vivenciar nossa condição corpórea em tudo que ela comporta de delícia e de tragédia: é com o corpo que se pode entrar no êxtase das núpcias dionisíacas com a natureza, mas é com o corpo que se pode também sofrer os horrores da angústia e as indizíveis dores da agonia.

“Para Camus ser fiel à terra inclui ser fiel aos homens de carne e osso que conosco compartilham, aqui e agora, a experiência de viver. (…) A solidariedade assim praticada é uma chance ao possível, uma chance àquilo que só através dos homens em luta comum contra sua condição pode vir à existência: a liberdade, a justiça, a felicidade e o amor.” (ALVES, op cit., p. 90-91) [18]

Ao analisar “A Peste”, Marcelo Alves destaca que Camus está ali “trabalhando literariamente as críticas formuladas nas Cartas sobre o nazismo” (em especial a Carta a Um Amigo Alemão), de modo que “é preciso tomar o mal como o símbolo maior do romance: o mal que o nazismo produziu e o mal a que o homem está condenado a sofrer por sua própria condição. Trata-se do mal no sentido trágico, do mal que se expressa através do sofrimento físico e moral daquele que vive sob o peso inexorável da mortalidade. É nesse sentido que Camus pode afirmar que a peste é a mais concreta das forças.” (op cit, p. 97) [19]

Escrevendo sobre o tema, o autor português Hélder Ribeiro aponta outras similaridades e sintonias entre Camus e Nietzsche:

“A origem da ética de Albert Camus está na monstruosidade que consiste em sacrificar os corpos às ideias. Encontramos talvez aqui o segredo do laço que une as concepções de Camus e de Nietzsche. Se Nietzsche empreende uma genealogia da moral cristã, para compreender como esta veio a produzir a negação da própria vida, e isto no contexto da sociedade burguesa do século XIX, Camus empreende uma genealogia da moral política do século XX, para compreender como esta veio a produzir a negação hitlerista e estalinista da vida.

Como na Genealogia da Moral, Camus pensa que a cultura e a moral do Ocidente chegaram a um envenenamento inexorável da vida e trata-se de tirar a máscara. (…) Que deve Camus a Nietzsche? Mais do que afirmações, o clima do seu pensamento, e acima de tudo a recusa global da ficção platônico-cristã dos dois mundos. Não há Além que repare a decepção multiforme de cá-de-baixo e que nos conduza ao Uno. Quando Camus suspira pela unidade, não a refere à ideia platônica que supõe o ultrapassar das aparências. As aparências são a única verdade. O Uno deve descobrir-se na própria dispersão do sensível e a tentação mística só pode ser naturalista.

“Todo o meu reino é deste mundo”, escreve Camus. É a fórmula mais flagrante desta convicção. O corolário é a exaltação do corpo e das verdades que o corpo pode tocar. A verdade do corpo ultrapassa a verdade do espírito. Ora, o mais alto poder do corpo é a arte, que opera uma transmutação do sensível sem o recusar.

O niilismo de Nietzsche, procedendo de uma experiência extrema do desespero, quebrando todos os ídolos do progresso com o mesmo cuidado com que recusava a sombra de Deus, chega, no entanto, a um consentimento radioso, dionisíaco, ao Todo do ser real do mundo, na sua totalidade e em cada realidade particular. O consentimento que dorme na revolta de Camus e lhe dá um sentido, esse “amor fati” que no sim à vida inclui a própria morte, de modo que chega a chamá-la de “morte feliz”, provém em parte de Nietzsche…”. (RIBEIRO, H.) [20]


CAPÍTULO 5: RELEVÂNCIA DE CAMUS NA ATUALIDADE PANDÊMICA

Diante da pandemia de covid-2019 que assola o mundo em 2020, “A Peste” teve uma notável re-ascensão e tornou-se um dos livros mais procurados na Europa, como relata a reportagem da BBC Brasil [21]. Seu status de best-seller na conjuntura deste evento traumático do séc. 21 é prova inconteste não só da atualidade da literatura Camusiana, mas também do brilhantismo com que seu autor sobre tratar dos flagelos da doença somados aos horrores da política. Pois se sabe que a obra nasce sob a influência da Ocupação Nazifascista de Paris, onde Camus escrevia no jornal libertário Combat e participava da Resistência contra a extrema-direita alemã.

O paralelo com o Brasil de 2020 é extremamente possível: a “peste” da covid-19 já é uma lástima terrível por si só, mas a ela se soma o fato de estarmos sob o desgoverno neofascista da seita obscurantista do Bolsonarismo. O chefe da seita, durante toda a pandemia, foi criminosamente irresponsável, acarretando milhares de infecções e mortes ao negar a gravidade do problema, boicotar medidas de isolamento e dar preferência a CNPJs e não a CPFs – ou seja, preferindo agradar empresários, banqueiros e rentistas, aderindo ao “matar ou deixar morrer” no que diz respeito aos trabalhadores empobrecidos pela crise. Além disso, o ocupante do Palácio da Planalto notabilizou-se globalmente por ser o líder do negacionismo do coronavírus, desdenhando de uma doença que em Maio de 2020 já havia ceifado mais de 300.000 vidas, mas que segundo Seu Jair não passa de um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta” e que não deve fazer parar as rodas da economia.

No romance de Camus, o fenômeno do negacionismo da peste, típico do Bolsonarismo na atualidade, também dá as caras. Alves escreve: “A primeira dificuldade dos homens diante da peste é a de reconhecer a sua existência. Por todos os meios procuram negá-la. Muitas vezes simplesmente dando-lhes as costas, outras encarando-a como uma abstração. Primeiro, a administração pública hesita em tomar as providências para não alarmar a população…. Depois, mesmo diante dos sintomas, muitos recusam-se a admiti-la: ‘Mas certamente isso não é contagioso.’, diz um personagem. Por fim, mesmo após o reconhecimento oficial do flagelo e do isolamento importo à cidade, os habitantes ainda resistem a aceitar o fato…” (ALVES, M. p. 98) [22]

A seita necrofílica dos Bolsonaristas tornou-se mundialmente famigerada justamente por este tipo de funesta e macabra irresponsabilidade das ações negacionistas.  Ao seguirem como ovelhas obedientes os ditames do Grande Líder, muitos cidadãos Bolsominions acabaram sabotando medidas de contenção, aglomerando-se para manifestações golpistas, fazendo coro à pregação de Jair de que algumas milhares de mortes eram preferíveis à diminuição dos lucros empresariais. Tudo isso tornou Bolsonaro uma figura internacionalmente repudiada como um dos piores presidentes do mundo em seu trato com a peste, tendo sido denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais.

Neste contexto, a leitura de Camus torna-se ainda mais relevante ao grifar sempre a importância crucial de transcendermos a angústia solitária e isolada, rumo à solidariedade na revolta:

“A vitória sobre a peste só acontece quando o homem reconhece que se trata de uma tragédia coletiva e, no lugar do isolamento individual, faz da sua cumplicidade trágica com os outros homens um só grito de revolta e lucidamente dá início à sua tarefa de Sísifo: ‘colocar tanta ordem quanto possa em uma condição que não a possui’. É verdade que nesse caso a vitória é sempre provisória, jamais definitiva, mas é a única vitória possível e desejável para aqueles que procuram nada negar nem excluir: nem a condição humana, nem a dor do homem. O médico Rieux, personagem e narrador do romance, encarnará o homem camusiano que vive entre o sim e o não: aquele que não se esquiva da condição humana, mas não se resigna às suas misérias; aquele que aceita o peso da existência, aceita rolar a sua pedra, que é o espelho opaco da sua virtude, mas se recusa a aumentar o mal, tanto através da ação quanto da omissão.” (ALVES, M., op cit, p. 101) [23]

O Dr. Bernard Rieux, encarnação da lucidez e da solidariedade, age em A Peste com um ethos de Zaratustriana fidelidade à terra e a seus viventes. Mesmo que na época em que o romance se passa a cidade argelina de Orã esteja empestada, mergulhada nos flagelos da doença e do sofrimento, Rieux permanece aferrado a este princípio: “O essencial era impedir o maior número possível de mortes e de separações definitivas. E o único meio para isto era combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas consequente.” (CAMUS, A Peste, I, 1327) [24]

Na verdade, Bernard Rieux não é um Übbermensch super-heróico, mas um médico de carne-e-osso, sujeito à fadiga e ao desespero, mas que decide suportar o peso de sua lucidez e agir incansavelmente com base na sua ética da solidariedade, da empatia e da revolta contra a peste. Esta peste é tanto doença em si quanto, de maneira metafórica, a política fascista, aquilo que chamaríamos hoje, a partir de conceito proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, de necropolítica [25].


CAPÍTULO 6: A AGONIA DE UMA CRIANÇA DIANTE DE UM MÉDICO E UM PADRE

No enredo, o médico Rieux também aparece como o antípoda do padre Paneloux. Onde o cristianismo prega oração e resignação, o médico ateu defende a ação coletiva solidária e obstinada contra o mal. Alves comenta: “Rieux combate ídolos, contesta abstrações, não a marteladas, mas através de sua obstinação em cuidar dos corpos… O médico é aquele que sabe dos limites da condição humana, mas não se submete a eles; sabe que não salvará tudo ou a todos, mas decide agir segundo as suas forças para salvar o que pode ser salvo: alguns corpos, por algum tempo.” (Alves, p. 106) [26]

No destino do Padre Paneloux, Camus nos fornece um memorável memento do que significa o desprezo pela Ciência em tempos de peste. Em meio à Orã transtornada pela epidemia, o padre Paneloux fazia sermões pregando que o flagelo era uma punição divina pelos pecados de alguns de seus concidadãos. Daí saltava para a idéia de que a vontade divina utilizava-se da peste como seu instrumento. E daí foi só um passo até que passasse à noção de que seria heresia ir contra a vontade de Deus: a atitude de um autêntico cristão consistiria na aceitação plena dos decretos do Céu.

No capítulo 3 da parte IV, uma cena-chave de A Peste se desenrola: uma criança gravemente enferma será cobaia para um teste de uma vacina (sérum), uma das esperanças de conter a epidemia. O sofrimento horrendo desta criança dá ensejo para que os personagens reflitam a fundo sobre a condição humana, os males do mundo e as injustiças de que nossa situação existencial está repleta. A tentativa de curar a criança não é bem sucedida e após uma longa agonia, extremamente sofrida, o menino morre. Ao redor do leito, Dr. Rieux, padre Paneloux, Tarrou realizam um debate crucial nesta situação excruciante.

O que está em questão, em última análise, é a dor infligida aos inocentes, em todo seu escândalo. A agonia de uma criança parece causar o desmoronamento da argumentação teológica exposta no primeiro sermão do Padre Paneloux (cap. 3, parte II), segundo o qual a infelicidade (malheur) seria sempre merecida, pois toda peste é punição contra pecadores, um purgativo enviado por Deus (p. 91). Caso aceitássemos o argumento do padre, Orã seria similar a Sodoma e Gomorra e “a peste teria origem divina e caráter punitivo” (p. 95). Daí decorre que o padre recomende a seus concidadãos que se ajoelhem, se arrependem e orem aos céus por misericórdia. Com fé, Deus os ouvirá e salvará. Seu discurso traz o dedo em riste, acusatório, lançando sobre os pecadores a culpa pelo flagelo vivido pela cidade. Assim, inventa-se um sentido como antídoto para o absurdo num procedimento que Slavoj Zizek chama de “the temptation of meaning” [27].

Esta cena d’A Peste em que a agonia da criança é sentida diferencialmente pelo médico e pelo padre está entre as obras-primas da dramaturgia Camusiana e aí também se jogam os lances decisivos para a apreciação plena do que pensa o autor sobre a fé. O sofrimento horrendo de uma criança que agoniza põe em crise o discurso do padre Paneloux, sua noção de que os afligidos pela peste eram pecadores: para manter tal ideologia, seria preciso dizer que a criança era culpada, ou mesmo que nasceu com a culpa provinda do princípio dos tempos, ou seja, do Pecado Original de Adão e Eva. É assim que a fé judaico-cristã pretende nos convencer que é merecido o sofrimento na infância?

O Dr. Rieux opõe-se a esta ideologia religiosa que culpabiliza para que possa manter a fé, ainda que num Deus abjeto e que se sirva da agonia infantil como um de seus perversos instrumentos de vingança contra os pecadores. O Dr. Rieux é muito mais ateu e a vivência da peste só aprofunda seu ateísmo. O suplício e a agonia de uma criança lhe parecem um escândalo injustificável, uma absurdidade que estilhaça a possibilidade de crer em Deus.  Porta-voz do ateísmo Camusiano, o Dr. Rieux se recusa em amar uma criação onde crianças são torturadas, ou seja, recusa a própria noção de um Criador que pudesse ter aceito, como parte do mundo criado, a agonia injusta de pequenas pessoas que vieram ao mundo recentemente e que acabam por ser expulsas dele em meio a um absurdo sofrer.

Na história da filosofia contemporânea, o filósofo Marcel Conche inspirou-se em argumentos muito próximos aos Camusianos para formular suas provas da inexistência de Deus com que abre sua obra Orientação Filosófica. [28]

O ateísmo, em Camus, parece ser a decorrência necessária da lucidez daqueles que não escamoteiam o absurdo da existência e que, através da revolta, alçam-se do “eu sou” ao “nós somos”: superando o racionalismo idealista de René Descartes e seu cogito (“penso, logo existo”), Albert Camus propôs o cogito existencialista-ateu, digno de virar bandeira de todos nós que nos solidarizamos na revolta contra os males de que o mundo terrestre está repleto: “eu me revolto, logo somos”.

Ao adoecer, o padre Paneloux recusa-se terminantemente a chamar um médico – ainda que soubesse que o Doutor Rieux estaria a postos, prestativo, para atendê-lo, sem poupar esforços para salvá-lo. Para o padre Paneloux, há uma contradição insolúvel entre a fé e a ciência: para manter-se crente, ele precisa recusar a medicina. No extremo do delírio desta fé auto-destrutiva, prefere fechar as portas ao socorro que poderia lhe vir dos terráqueos, permanecendo aberto apenas ao socorro que lhe viria do divino. Agarra-se ao crucifixo, recusando hospitais e remédios.

A desastrosa escolha de Paneloux o conduz a uma agonia horrorosa, sem analgésicos nem morfina, em que ele decide imolar a saúde num altar imaginário onde pensava estar encontrando a salvação. Encontrou apenas a morte absurda dos que desdenham daquilo que o ser humano pôde inventar, neste mundo, em prol do auxílio mútuo e da solidariedade concreta.

No livro de George Minois sobre A História do Ateísmo, Camus aparece como um artista-pensador que jamais recomenda que percamos tempo de vida com a ânsia de ascensão a um Paraíso transcendente, prometido aos “eleitos”, aos que tenham sido dóceis e obedientes nesta vida. Camus convoca para que trabalhemos juntos neste mundo para torná-lo menos opressivo e mais amável, o que exige que possamos assumir nossas responsabilidades. Não aquela responsabilidade de “servir a um ser imortal”, mas sim a de livrar-se desta subserviência para assim “assumir todas as consequências de uma dolorosa independência”. (MINOIS: p. 671) [29]

Como diz Marcelo Alves, na obra A Peste está ilustrado que “o pessimismo de Camus, longe de ser resignado ou valorar negativamente a vida, pretende, através da revolta diante da peste, culminar num lúcido sim à vida.” (ALVES, M. Pg 98) [30] De modo que a lucidez é uma das virtudes que Camus celebra entre as supremas. Não a lucidez derrotista, resignada ou solitária, mas a lucidez clarividente, a capacidade de enxergar com clareza, inclusive e sobretudo os males concretos que nos afligem e aos quais só a solidariedade das revoltas pode fazer frente.


 

CAPÍTULO 7: A CONCRETUDE EM CARNE-E-OSSO DE NOSSA CONDIÇÃO

A tarefa de ver claro torna-se mais difícil diante dos flagelos da peste, da pandemia, da guerra, pois enxergá-los em toda sua horrífica realidade é perturbador para a psiquê humana, que vê-se em apuros para “digerir” tais experiências. Preferimos então recusar a concretude dos sofrimentos das pessoas de carne-e-osso para olhar o problema através do prisma de pálidas abstrações e estatísticas. Pode-se ler em livros de História que umas 30 pestes que o mundo conheceu fizeram cerca de 100 milhões de mortos, mas quem nunca viu nem conheceu sequer um desses vivos transformados em cadáveres pode se ver tentado a deixar-se esse número torna-se uma fumaça na imaginação, sem carne e sem sangue.

Por isso a literatura é tão crucial e imprescindível: ao ler uma obra como A Morte de Ivan Ilítch, de Tolstói, podemos ter acesso a uma morte concreta e individualiza, que nos comove pelo que tem tanto de idiossincrática quanto de expressiva da condição humana geral. A Peste de Camus também funciona maravilhosamente como um dispositivo literário de concretização, um livro destinado a nos ensinar como os seres humanos de carne-e-osso lidam com o flagelo pestífero. A certo ponto, o Doutor Rieux relembra da peste de Constantinopla, que em seu pico fazia 10.000 vítimas fatais por dia, e pede que imaginemos o público de 5 grandes cinemas sendo assassinado na saída do filme (pg. 42).

Dar concretude às estatísticas, fornecer carnalidade aos números, fazer-nos sentir visceralmente aquilo que se esconde por trás de relatórios burocráticos ou meditações abstratas, é uma das funções essenciais da literatura. Rieux está impedido por seu ofício de médico de “abstrair” em meio à peste pois é obrigado a lidar com a concretude de doentes e mortos, de tosses e catarros, de agonias e cadáveres. Sua lucidez é trágica! E a única salvação que concebe é a união solidária de pessoas que trabalham juntas contra o flagelo. Pois isolar-se, fechar-se na mônada e no monólogo, não é nenhuma solução contra o absurdo. Separação e isolamento nunca serão panacéias.

O ator William Hurt, que interpreta o médico Rieux na adaptação cinematográfica do romance de Camus realizada por L. Puenzo em 1992

Rieux recusa a resignação, a prece, a passividade. Tampouco deseja fazer pose de herói. Sua humildade lúcida está em saber que não salvará todo mundo, apenas alguns corpos por algum tempo. Este médico sabe que suas vitórias são sempre provisórias mas que esta não é uma razão para cessar de lutar. Trata-se sempre de adiar a morte para mais tarde, pois restabelecer a saúde de alguém jamais significa livrá-lo da incontornável finitude.

– Já que a ordem do mundo é regrada pela morte, talvez convenha a Deus que não se creia nele e que se lute com todas as forças contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se esconde. (ALVES, op cit, p. 106) [31]

Este ateísmo Camusiano, que se manifesta em Rieux, tem a ver com uma crítica que o autor de O Homem Revoltado faz ao processo de sacrifício de pessoas concretas em nome de um ideal, um valor absoluto, uma abstração descarnada. Até mesmo Marx e Nietzsche são denunciados por Camus por terem instituído uma espécie nova de idealismo em que a sociedade sem classes do futuro comunismo ou os espíritos livres e Übermensch do porvir serviriam como ideais laicizados. Assim, substituem a noção religiosa de outra vida, acessível pela morte, por uma outra vida a ser construída e concretizada mais tarde – trocam o além pelo mais tarde. Chamo isto de uma oposição entre uma transcendência vertical (as pessoas que crêem numa ascensão ao céu, após a vida terrena) e a transcendência horizontal (as pessoas que crêem numa transfiguração desta vida terrena nos amanhãs cantantes de um futuro que está no horizonte). 

Se o entendo bem, Camus propõe uma imersão na imanência em que possamos celebrar as núpcias com a vida e a natureza, nas quais devemos amorosamente nadar como peixes deleitando-se na imensidão do mar. É óbvio que este mar está repleto de tubarões, que há predação e peste, sofrimento e finitude, injustiça e opressão, mas também extremas belezas e deleites, uma grandeza implacável que devemos aceitar e abraçar com toda lucidez e clarividência que pudermos. Viver é mergulhar no absurdo mas não deixar-se afogar aí. Este banho de absurdo só pode ser redimido pela cumplicidade revoltado dos solidários, dos justos, dos que trabalham juntos em prol de uma realidade menos absurda. A medicina, para Rieux, é um trabalho de Sísifo ateu – e é preciso imaginá-lo feliz, empurrando pedregulhos montanha acima, no aprendizado perene com todos os esforços e tombos.

Em O Mito de Sísifo, Camus escreveu: “Se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos contra sua vontade. Se ele não existe, tudo depende de nós.” [32] A fé em Deus desempodera o ser humano, coloca-nos na dependência de uma vontade alheia e de uma autoridade transcendente, condenando-nos à “minoridade” tutelada de uma criança que não ousa fazer uso pleno da força de sua razão [33]. Já o ateísmo nos liberta para as difíceis tarefas da responsabilidade, da solidariedade, das construções coletivas de sentido que façam frente aos absurdos que sempre ameaçam nos submergir.

Confinados na finitude de uma vida que fatalmente terminará, condenados à angústia que é o ambiente perene do ser humano lúcido, temos somente esta vida, este mundo, este espaço, este tempo, para celebrar nossas fenecíveis núpcias com o real. Quem não se revolta contra as injustiças e opressões que impedem estas núpcias, quem não se solidariza diante dos males que nos afligem em comum, este é um semi-vivo ou um zumbi, sempre necessitado de ser despertado pelas amargas mas salutares verdades que a arte e a filosofia podem conceder.

Sem além nem deus, espíritos livres Camusianos plenamente fiéis à terra, sejamos Sísifos felizes! Estejamos aqui-e-agora solidários, lúcidos, clarividentes e reunidos na revolta. Somando forças, alentos, beijos, amplexos, vozes e obras que permitem nossas núpcias com a vida, a natureza e os outros. Sem nunca esquecer que a angústia solitária precisa ser transcendida por uma revolta solidária que seja o emblema em ação de nossa “insurreição humana” – aquela que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, “em suas formas elevadas e trágicas não é nem pode ser senão um longo protesto contra a morte, uma acusação veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.” [34]

Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro [www.acasadevidro.com]
Goiânia, Maio de 2020

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REFERÊNCIAS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS, CINEMATOGRÁFICAS E FONOGRÁFICAS

[1] CAMUS, Albert. Núpcias  / O Verão. Editora Círculo do Livro, 1985.

[2] THE FLAMING LIPS. Ao usar a expressão “grau de realização da mortalidade”, penso sobretudo nos versos de uma canção da banda estadunidense de rock alternativo The Flaming Lips, chamada “Do You Realize?” (também interpretada por Sharon Von Etten), presente no álbum Yoshimi Battles The Pink Robots, em que o ouvinte é interpelado pela questão: “você realmente percebe que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?” The Fearless Freaks é um excelente documentário sobre a trajetória da banda.

“Do you realize that everyone you know someday will die?
And instead of saying all of your goodbyes, let them know
You realize that life goes fast
It’s hard to make the good things last
You realize the sun doesn’t go down
It’s just an illusion caused by the world spinning round…”

[3] PESSOA, Fernando. Mensagem. O trecho completo diz: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. A mesma expressão aparece nas Odes de Ricardo Reis:

NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas feitas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A quem um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

— Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), in “Odes”.

[4] BECKER, Ernest. A Negação da Morte (The Denial Of Death). Vencedor do prêmio Pulitzer, o livro também inspira o documentário The Flight From Death (2005), que compartilhamos na íntegra a seguir:



[5] SAMPAIO, Sérgio. Canção “Ninguém Vive Por Mim”. Em: Tem Que Acontecer. Saiba mais neste artigo em A Casa de Vidro.
[6] PARRA, Nicanor. O poeta chileno que viveu 103 anos (1914 – 2018), irmão da lendária cantora, compositora e folclorista Violeta Parra, escreveu muitas profundas reflexões sobre a morte.
[7] EPICURO. Carta Sobre a Felicidade (a Meneceu). Sobre o tema, acesse em A Razão Inadequada o artigo Epicuro e a Morte da Morte.
[8] MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Capítulo XX. Em: Os Pensadores, Abril Cultural.
[9] BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. Publicado originalmente em 1930.
[10] CAMUS, AlbertO Mito de Sísifo. Ed Record, 2004.
[11] MUJICA, José. Em: Rede Brasil Atual.
[12] BRECHNER, Alvaro. La Noche de 12 Años (2018), filme uruguaio que retrata ações do militantes Tupamaros, que lutavam contra a ditadura militar, e suas vivências na cadeia.
[13] CAMUS, ALa Peste. Folio: 1999, Pg. 191.
[14] ONFRAY, Michel. A Ordem Libertária – A Vida Filosófica de Albert Camus. Flammarion, 595 págs. Citado a partir de artigo na Revista Cult.
[15] ALVES, MarceloCamus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche. Florianópolis, 2001, Ed. Letras Contemporâneas.
[16] CAMUS. Essais, Paris: Gallirmard, 1993, 75 – 80.
[17] [18] [19] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[20] RIBEIRO, Hélder. Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Pg. 89-90.
[21] BBC News Brasil. ‘A Peste’, de Albert Camus, vira best-seller em meio à pandemia de coronavírus.
[22] [23] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[24] CAMUS, A. La Peste. Op cit.
[25] MBEMBE, AchilleNecropolítica. Saiba mais em A Casa de Vidro.
[26] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[27] SLAVOJ ZIZEK fala em “the temptation of meaning” ao responder as questões de Astra Taylor, realizadora do filme documental Examined Life: “Meaning allows us to create fantasies which defend ourselves from the awful truth that we’re bags of meat who can never escape death. That is, the turn towards subjectivity is itself a defense mechanism against the fact that the universe doesn’t care. God, whether He be loving or vengeful, is a way of turning this utter indifference into a fantasy of mattering.”

[28] CONCHE, Marcel. Orientação Filosófica. Ed. Martins Fontes. Coleção Mesmo Que O Céu Não Exista.
[29] MINOIS, George. História do Ateísmo. Ed. Unesp, pg. 671.
[30] [31] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[32] CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Citado em: MINOIS, op cit, idem item 29.
[33] A conclusão atéia não condiz com as apostas kantianas na necessidade de Deus como “apêndice” da razão prática, mas aqui penso no auxílio salutar que o ateísmo concede ao sapere aude tal como descrito por Immanuel Kant em seu texto sobre o Iluminismo / Esclarecimento.
[34] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Capítulo: “Niilismo e História”. Ed. Record, 2003, p. 125.

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Um combate contra o Absurdo | Albert Camus (documentário completo e legendado)

A construção social da subhumanidade: Judith Butler e a distribuição diferencial da vulnerabilidade e do luto || A Casa de Vidro

“Os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros”, escreve com alta carga de ironia George Orwell em A Revolução dos Bichos (Animal Farm). Era um modo lúdico e sagaz do escritor inglês denunciar o abismo entre a enunciação de um ideal, a igualdade, e o mundo como ele é, onde a desigualdade reina.

Na fábula orwelliana, a tirania dos porcos faz uso do recurso ideológico de anunciar, ao menos da boca pra fora, que os “animais são todos iguais”, para na sequência cortar as asas das pretensões dos animais subalternos: “não se assanhem, oprimidos! respeitem a nova ordem!”, dizem os porcos, que se transformaram em nova elite após a Revolução-na-Granja-do-Mr-Jones.

O substrato histórico que inspira Orwell – os descaminhos da Revolução Russa de 1917 quando, após a morte de Lênin em 1924, cai sob o domínio do stalinismo – não impede que a obra aspire a dizer algo universal: revoluções vem e vão, mas o igualitarismo radical permanece travado em sua concretização.

Como o próprio fenômeno Napoleão – nome que Orwell escolhe dar o porco-rei de sua fábula – demonstra na história da Revolução Francesa: do estandarte tricolor que anunciava Fraternidade, Liberdade e Igualdade em 1789, anos depois o que vigia era um Império, envolvido em altas rixas bélicas fora de suas fronteiras, estruturado de maneira hierárquica e personalista tal qual no Antigo Regime supostamente derrubado.

A frase cômica (pois absurda) “mas uns são mais iguais que outros”, item bizarro da ideologia da nova elite porca, que massacra as pretensões de galinhas, cachorros, ratos e outros bichos de pretenderem gozar dos mesmíssimos direitos gozados pela elite suína. É a frase que explicita a tirania disfarçada sobre um linguajar pseudo-democrático. É um item que desvela o absurdo ideológico na base da farsa: um “novo mundo” que promete o igualitarismo mas fracassa em entregá-lo.

“It is for your sake that we drink that milk and eat those apples. Do you know what would happen if we pigs failed in our duty? Jones would come back!” GEORGE ORWELL, Animal Farm. SAIBA MAIS NO SITE DA BBC.UK

Transpondo o problema da fábula literária orwelliana para o campo da filosofia contemporânea, encontramos no pensamento de Judith Butler uma análise magistral da gênese, da reprodução e da conservação das desigualdades e injustiças sociais.

Ela mostra de que modo ocorre a construção social da subhumanidade, a criação artificial de noções ideológicas que fabricam, nos discursos e nas práticas, uma certa parcela da humanidade como se fosse menos que outra.

Uma parcela da humanidade é estigmatizada como menos do que humana por uma outra parcela da humanidade – e neste processo nossas vidas, que teríamos a tentação de dizer que são igualmente precárias pois somos todos mortais, são tratadas diferencialmente em face desta morte que nos une mas nos separa: algumas vidas são construídas como valiosas (e suas perdas são sentidas como catástrofe a ser pranteada), outras vidas são tidas como matáveis (como se “esmaga um inseto no chão”, para lembrar um verso inesquecível de “Let Down” do Radiohead) e indignas de luto.

Em Vida Precáriaescrito sob o impacto dos atentados do 11 de Setembro de 2001 nos EUA e da “Guerra Contra O Terror” que os sucedeu, a filósofa interroga: “a questão que me preocupa, à luz da violência global recente, é: quem conta como humano? Quais vidas contam como vidas? E, finalmente, o que concede a uma vida ser passível de luto?” (BUTLER: 2019, p. 40)

Butler quer saber: por que não deveríamos chorar a perda de um gay de São Francisco que morreu de AIDS tanto quanto a morte de um grande empresário que se acidentou fatalmente em seu jatinho privê? Por que permitimos que certos grupos sociais sejam tratados como menos humanos que outros, e transformados assim em vidas mais precárias e desprotegidas, mais sujeitas à violência e ao descaso com seus corpos?

“Mulheres e minorias, incluindo minorias sexuais, são, como comunidade, sujeitas à violência, expostas à sua possibilidade, se não à sua concretização. Isso significa que somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade social de nossos corpos (…) socialmente constituídos, apegados a outros, correndo o risco de perder tais ligações, expostos a outros, correndo o risco de violência por causa da tal exposição.” (JUDITH BUTLER, op cit, p. 40)

Na filosofia de Butler, somos todos “corpos socialmente constituídos”, condenados o apego e à interdependência, ameaçados com a perda de vínculos, correndo o risco da violência – somos sempre corpos políticos, permeados por afetos e vínculos, constitutivamente vulneráveis. Esta vulnerabilidade comum que poderia nos unir, servindo como o universal concreto que propicia nossa solidariedade (somos todos vulneráveis e precários, portanto “ninguém solta a mão de ninguém”), na prática acaba pervertido através disto que estou chamando aqui de construção social da subhumanidade. Que é a construção de razões, justificativas, ideologias e instituições que permitem tratar certos outros como matáveis, extermináveis – no limite, construir o outro como subhumano, como barata (para relembrar Mukasonga e sua pungente narração literária sobre os genocídios em Ruanda).

Por que a humanidade não cessa de dividir-se em richas fratricidas? Poderíamos responder, com Butler: a guerra não pára pois a humanidade ainda não existe, ainda não se consumou. Ela ainda está cindida entre aqueles que, em sua arrogância e húbris, querem reduzir a alteridade e transformar todo o domínio multicolorido da Outridade (para usar o neologismo cunhado pelo Nobel de Literatura mexicano Octavio Paz) em algo que esteja à altura-de-anão da perspectiva binária.

O colorido dos outros, a polifonia de nossas vozes, o “arco-íris terrestre” que supera em cores o celeste (Eduardo Galeno), acaba mutilado e forçado a entrar numa representação de um pebê empobrecido e monofônico no viés daqueles que constrõe alguns outros como sub-humanos. Para que possam fazê-lo, estes altericidas precisam estar acometidos de algo semelhante àquela “cegueira branca” de que José Saramago foi o genial romancista, e que Fernando Meirelles soube levar o cinema com maestria.

A construção social da subhumanidade, conexa às violências bélicas, aos genocídios, aos massacres de fúria étnica, aos pogroms e chacinas entre seitas, está conexa à cegueira de quem vê o mundo distorcido pelo prisma defeituoso que só enxerga branco e preto, oito ou oitenta, nós vs eles…

Em um dos filmes mais significativos para a história da filosofia contemporânea, Examined Life (Vida Examinada), de Astra Taylor, Judith Butler passeia na companhia de Sunaura Taylor em San Francisco. O papo delas é ocasião para levar filosofia pras ruas e realizar um debate sobre as segregações, que se manifestam concretamente nos territórios urbanos, onde o próprio direito à cidade não é estendido igualitariamente a todos: a pessoa na cadeira-de-rodas, por exemplo, tem vários problemas de acessibilidade que não são apenas questões técnicas e logísticas, mas que tem a ver com um acesso impedido à humanidade plena. 

Butler aproveita este diálogo para destacar que as pessoas ditas “normais”, que não tem nenhuma “deficiência” corpórea visível, podem chegar a ter a ilusão de uma radical auto-suficiência. Isto é falso pois a existência humana só se constitui na relacionalidade – e nossa própria formação psíquica inicial depende radicalmente da teia de relações de nossa primeira infância: “somos, desde o início, mesmo antes da própria individualização, e em virtude de exigências físicas, entregues a um conjunto de outros primários: essa concepção significa que somos vulneráveis àqueles que somos jovens demais para conhecer e julgar e, portanto, vulneráveis à violência; mas vulneráveis também a um outro tipo de contato, um que inclui a erradicação do nosso ser, de um lado, e o apoio físico para nossas vidas, de outro.” (Butler, 2019, op cit, p. 51).

Desde o Iluminismo do séc. XVIII, e das revoluções díspares que ele trouxe em seu bojo (pensemos na França em oposição ao Haiti, contrastando os relatos de Michelet e de C.R.L. James), sabemos que revoluções pautadas por um desejo de construção de direitos universais muitas vezes recaem no erro de, uma vez dotadas de poder, construírem a subhumanidade e a matabilidade de uma parcela da humanidade, violando sua própria pretensão de estender os direitos a todos. Os jacobinos franceses chegaram ao absurdo supremo: decretaram os direitos universais, e excluíram deles dois terços da humanidade, ou seja, as mulheres e as populações sob o domínio colonial do Império Francês.

Quem ousou denunciar estes absurdos, como Olympe de Gouges, perdeu a cabeça nas guilhotinas do Terror revolucionário jacobino. Além de regicidas, os jacobinos, sob a tirania de Robespierre, também cortaram cabeças de feministas e de artistas que denunciavam a construção social da subhumanidade, por exemplo, da população do Haiti – lá onde triunfaria uma outra estirpe de revolução, propulsionada por Toussaint L’Ouverture  e os “jacobinos negros”.

A obra tão preciosa de Judith Butler está aí para nos ensinar caminhos para a desconstrução criativa daquilo que nos mantem atados a sociedades violentas e brutalmente desiguais. Para isso, a filósofo politiza a questão do luto, em sintonia com o conceito feminista de que “o pessoal é político”. Para ela, o luto – o pesar pela perda de um certo vínculo com algum outro – é sempre o índice do quanto somos animais sociais, zoon politikon:

“Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos isola em uma situação solitária e é, nesse sentido, despolitizante. Acredito, no entanto, que o luto fornece um senso de comunidade política de ordem complexa, primeiramente ao trazer à tona os laços relacionais que têm implicações para teorizar a dependência fundamental e a responsabilidade ética. (…) A paixão, o luto e a raiva nos arrancam de nós mesmos, nos prendem a outros, nos transportam, nos desfazem, nos envolvem, irreversível, se não fatalmente, em vidas que não são as nossas.” (p. 45)

O luto é um lócus onde podemos ler a construção social da subhumanidade: todos os animais humanos são mortais, mas alguns quando morrem não merecem ser chorados. Assim reza a cartilha do luto na boca daqueles que se arrogam o direito de construir parcelas da humanidade como sub, inferiores, matáveis.

Judith Butler nos faz questionar por que somos ensinados a não chorar quando ouvimos falar de palestinos sendo massacrados sob as bombas do estado de Israel sob domínio sionista, mas choramos copiosamente quando a mídia, via Fox News ou Rede Globo, nos pinta o comovente retrato de um soldado do Exército dos EUA que perdeu a vida nos campos-de-batalha do Iraque, supostamente defendendo “a democracia e a liberdade”. Por que ouvir sobre um massacre perpetrado por policiais contra pessoas encarceradas não desperta a mesma comoção pública de luto coletivo quanto o suicídio de um popstar ou astro de Hollywood?

O célebre silogismo que marca a história da filosofia, com sua lógica aparentemente irrefutável – todos os homens são mortais, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal -, na verdade esconde algo que a reflexão ética e o escrutínio crítico da nossa vida coletiva é capaz de desnudar: todos morremos, sim, mas alguns morrem e isto é um catástrofe que muitos irão chorar, enquanto outros morrem e quase todo mundo dá de ombros e, sem sentir muita coisa, nem piedade nem indignação, deixa que sejam enterrados sem que mereçam a esmola de uma lágrima ou de um pensamento enternecido e dilacerado pelo luto.

É verdade que uma mortalidade comum nos une, mas a vulnerabilidade que nos é constitutiva não passa através do “prisma” social sem distorções: algumas vidas são construídas como mais vulneráveis, mais expostas à violência, mais precárias. Importa muito, ou seja, é de uma pertinência urgente, que possamos perceber “as formas radicalmente injustas que a vulnerabilidade física é distribuída globalmente”, como escreve Butler, cuja ética, inspirando-se em Lévinas mas também no “farol moral” de Arundhati Roy, envolve necessariamente a postura de quem atenta para a dor do outro, sensível ao que ele padece, levando em consideração seu rosto, ainda que emudecido pela morte ou ainda vivo mas nas contorções de uma vida sufocante ou de uma morte indigna: através da “consideração da vulnerabilidade dos outros”, ensina Judith, “poderíamos avaliar criticamente e nos opor às condições em que certas vidas são mais vulneráveis do que outras e, assim, certas vidas humanas provocam mais luto do que outras.”

Gaza, July 2014Gaza, Julho de 2014

Escrevi, em 2014, um texto em inglês para o blog Awestruck Wanderer que tentava refletir filosoficamente sobre a dificuldade de “apertar as mãos com a dor dos outros”. O moralista La Rochefoucauld fornece o mote ao dizer que “nem sempre temos a força necessária para suportar os males dos outros”. De fato, não há caminho fácil para a solidariedade, nem exercício indolor da virtude crucial da empatia. É preciso abraçar a aventura da abertura que é descobrir, em todo a glória e em todo o horror, a vulnerabilidade de cada um de nós. Corpo mortal, finito, transitório, ameaçado de morte durante toda sua vida, sou um corpo social cuja vulnerabilidade o congrega a todos os outros corpos sociais, mas  é preciso também perceber os abismos que nos separam devido às injustiças na distribuição das vulnerabilidades. Butler, assim, torna-se nossa aliada imprescindível no processo de desnudamento e superação dos estratagemas sócio-políticos envolvidos na construção da subhumanidade e da matabilidade alheia.

Escrevendo nos EUA pós-11 de Setembro, Butler diz, sobre os obituários da grande imprensa:

“nunca escutamos os nomes dos milhares de palestinos que morreram pelas mãos dos militares israelenses apoiados pelos EUA, ou o número indiscriminado de crianças e adultos afegãos. Eles têm nomes e rostos, histórias pessoais, famílias, passatempos favoritos, lemas pelos quais vivem? (…) Se 200.000 iraquianos foram mortos durante a Guerra do Golfo e seu rescaldo, teríamos nós uma imagem, um enquadramento para qualquer uma dessas vidas, individual ou coletivamente? Haveria uma história que podemos encontrar na mídia sobre essas mortes? Haveria nomes ligados a essas crianças?… Não existem obituários para as vítimas da guerra que os Estados Unidos infligem… o obituário funciona como o instrumento pelo qual a injustiça é publicamente distribuída. (…) As vidas queer que desapareceram no 11 de Setembro não foram publicamente acolhidas na identidade nacional construída nas páginas dos obituários… Mas isso não deveria ser surpresa quando pensamos quão poucas mortes causadas pela AIDS foram passíveis de luto público, e como, por exemplo, o grande número de mortes ocorrendo agora na África não é também evidenciado ou suscetível ao luto na mídia.” (pg. 53-54-56)

A reflexão crítica de Butler, em Vida Precária, nos leva a questionar sobre porquê choramos tão pouco diante dos destinos daqueles que estão detidos sem julgamento em Guantánamo, ou que estão num campo de concentração a céu aberto em Gaza, ou estão amontoados em campos de refugiados ou presídios super-lotados. O livro inclui uma contundente defesa do direito ao dissenso e à liberdade de expressão: Butler diz que não devemos calar nossas críticas contra o imperialismo dos EUA ou contra o sionismo de Israel devido ao temor de sermos taxados como “aliados do terrorismo islâmico” ou “anti-semitas”. A desqualificação do discurso crítico e da denúncia das violações de direitos humanos básicos se dá com frequência, no contexto atual, através da falsificação do dissenso como se fosse traição, quando na verdade é a mais alta responsabilidade do intelectual público estar ao lado dos que foram injustamente detidos e torturados em Abu Ghraib, dos que não tem o “direito a ter direitos” nos territórios palestinos ocupados pelo exército sionista, dos que são chacinados pela polícia ou pelo descaso estatal nas favelas, nos guetos, nos bantustões…

Enxergar a humanidade neles, abraçar sua dor, criticar a desumanização que lhes é imposta, não significa apenas se revoltar contra aquilo que Renato Russo cantava (“a humanidade é desumana…”), é dedicar-se à refazenda de nossa própria humanidade. A humanização é sem fim ainda que a humanidade um dia finde. Para que os humanos possam ser de fato “corpos em aliança”, unidos na vulnerabilidade, juntos no “nós” da revolta contra a desumanização (“eu me revolto, logo somos”, ensinava Camus), é preciso primeiro corroer através da crítica e da ação política tudo aquilo que constrói a subhumanidade alheia, convidando a matar e não chorar – o mais desumano dos atos e que, paradoxalmente, muitas vezes é praticado justamente por aqueles que de modo mais arrogantes se auto-proclamam como os porta-vozes do humano.

Arte de Luciana Siebert

Conceição Evaristo tem uma frase famosa: “eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.” Aí se expressa uma união que nasce do próprio âmago da vontade de sobrevivência, esta que é a mais primeva e a mais intensa das forças que nos habitam: o que Spinoza chamou de conatus, e que Kalil Gibran disse ser “a ânsia da vida por ela mesma”. As pessoas que estão sob ameaça maior de perder a vida pois encontram-se em situação de precariedade, vulnerabilidade, risco, aquelas pessoas que os poderosos de certo modo marcam para morrer, aquelas pessoas que os políticos palacianos calculam que não valem o esforço de tentar salvar, pessoas que podem tranquilamente perecer, pessoas para quem está vigente o descaso absoluto de uma política do deixar-morrer, são justamente estas as pessoas que precisaram organizar-se de modo solidário.

A união de fato faz a força para quem foi destituído por outrem a ponto de ser forçado à posição de fraco. Judith Butler é uma pensadora-ativista que convoca nossos afetos, a exemplo de Conceição Evaristo, a uma espécie de fratria dos fracos, uma sororidade dos despossuídos, uma aliança dos marginalizados, uma força coletiva que nasça da precariedade de cada um para transformar-se na força de todos, no raiar da consciência salutar e imprescindível de nossa interdependência. Caso estejamos dispersos e desunidos, eles que combinaram de nos matar vão triunfar. Nós, que preferimos a vida ao capital, o amor à ganância, a diversidade em flor ao purismo dos racistas, devemos nos insurgir conjuntamente para que o berro agonizantes dos eugenistas não triunfe, e sim todo o colorido de uma queer-Idade que faça valer, enfim, o mote de Rosa Luxemburgo: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.”

QUANDO A ECONOMIA SE TORNA O BERRO AGONIZANTE DOS EUGENISTAS 
Judith Butler em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil (Maio de 2020):
 
“As políticas sociais são armadas e aplicadas de maneira a se configurar como a morte das populações marginalizadas, especialmente, das comunidades indígenas e das populações carcerárias, também daqueles que, como resultado de políticas públicas racistas, nunca tiveram um tratamento de saúde adequado. Afinal, a taxa de mortes nos Estados Unidos neste momento está diretamente correlacionada à pobreza e privação de direitos das populações negras. Quando nos referimos àqueles com “complicações prévias de saúde” estamos geralmente nos referindo àqueles que nunca tiveram a assistência e diagnóstico que precisaram e certamente mereciam. E esse é apenas um dos efeitos mórbidos do capitalismo de mercado. Nós deveríamos usar esse momento para pensar em práticas universais de sistemas de saúde e sua relação com um socialismo global que esclareça o jeito como somos todos interdependentes.
Temos que deixar bem claro que todos os humanos possuem igual valor. E ainda assim a maioria de nossas ideias sobre o que é ser humano implica em estruturas radicalmente desiguais porque algumas pessoas tornam-se mais “humanas” ou “valiosas” aos olhos do mercado e do Estado. Nós ainda não sabemos como seria o humano se nos imaginássemos todos possuindo o mesmo valor. Essa seria uma nova imagem de humano, uma nova ideia e horizonte. Quando ouvimos falar sobre a “saúde” da economia sendo mais importante do que a “saúde” dos trabalhadores, dos idosos e dos mais pobres, somos convidados a desvalorizar o humano para que a economia reine acima dele. Agora se “saúde econômica” significa expor o trabalhador à doença e à morte, então nos voltamos à produtividade e ao lucro, não à “economia”. A brutalidade do capitalismo se apresenta às claras, sem nenhum pudor: o empregado deve ir trabalhar para conseguir viver, porém o local de trabalho é onde sua vida é colocada em risco. Marx já dizia isso na metade do século XIX e assustadoramente esse pensamento ainda se aplica à nossa realidade.
 
Talvez ainda não tenhamos nos decidido entre ficar chocados pela compreensão de que existe uma interdependência global como um fato inerente à nossa existência no planeta ou se seremos puxados de volta ao relato de nossas fronteiras e identidades, lógicas de mercado e individualismo. O que parece claro é que essa dúvida faz parte do nosso desafio contemporâneo. Depende de conseguirmos nos enxergar como criaturas porosas, aquelas em constante troca com os ambientes pelos quais transitam, coabitando com todas as outras formas de vida. E mesmo assim as fantasias da autossuficiência ainda são os resquícios de nossa cultura masculina, e as fantasias de autossuficiência nacional são formas fracas (porém atraentes) de ideologia. Faria toda a diferença nos entendermos como seres interpelados (chamados à ação) por um vírus para conseguirmos nos tornar uma comunidade global, não uma que é apenas efeito da globalização. Agora temos a chance de criarmos novas formas de solidariedade baseadas na ideia de que nossa vida é uma corrente de relações interdependentes. Ambos, indivíduo e nação, terão que ser repensados através dessa nova ótica.
 
A interseccionalidade (categoria teórica que focaliza múltiplos sistemas de opressão a um mesmo sujeito, em particular, articulando raça, gênero e classe) permite que enxerguemos quem é desproporcionalmente afetado pelo vírus, aqueles desproporcionalmente desprotegidos e expostos. Isso porque aqueles cuja morte é mais provável tendem a ser pobres, indígenas, pessoas de raças marginalizadas, aqueles que não possuem o privilégio de ter seguro de saúde. Mulheres que antes já eram impedidas de desempenhar certas funções, que aceitam o trabalho doméstico sem salário, que sofrem abuso em suas casas – todas essas comunidades estão em grande perigo. Deste modo, o que a interseccionalidade nos permite ver é que uma ameaça de doença e morte aumenta em populações que acumulam categorias de discriminação, aqueles corpos que não podem escolher a qual minoria pertencem por estarem com mesma intensidade na intersecção de várias minorias.
 
Pensando como ambos, Trump e Bolsonaro, são favoráveis à abertura da economia mesmo que isso signifique o aumento de mortes de populações vulneráveis, entendemos que esses líderes políticos percebem que essas “comunidades vulneráveis” são mais propensas a sofrerem as consequências do colapso da saúde, e não veem problema algum nisso. Eles não imaginam que seus operários mais jovens e produtivos morrerão. Mas muitos deles podem contrair o vírus e se tornarem focos de transmissão quando voltam para suas casas. Pode ser que eles não compreendam a seriedade da situação, mas também pode ser o caso de estarem dispostos a deixarem corpos morrerem em favor da economia. Bolsonaro parece acreditar no darwinismo social onde apenas os mais fortes sobreviverão, e que apenas os fortes merecem sobreviver. Ele até se imagina imune ao vírus – sua última forma de fantasia narcisista. O narcisismo de Trump difere do de Bolsonaro, pois seu único feito é contabilizar votos em sua mente. E ele não vencerá a próxima eleição se a economia estiver fraca. “É a economia!” se torna agora o grito agonizante dos novos eugenistas.
 
Não me vejo como uma teórica do neoliberalismo e tenho consciência da complexidade desse debate. Eu diria que neste momento há uma estrutura econômica em que números crescentes de pessoas estão em condições limítrofes de vida, expostos à morte, acumulando precariedades. Também há poucas restrições às corporações bilionárias que acumulam riquezas, superando o poder econômico da maior parte dos países. Nós deixamos que essa desigualdade econômica ganhasse forma e agora estamos vendo através de gráficos o quão facilmente a vida dos mais vulneráveis é abandonada e destruída. Minha aposta é de que as versões inalteráveis de masculinidade e feminilidade serão reencenadas dentro de novas formas no liberalismo, mas que o neoliberalismo não é capaz de produzir novas formas de gênero radicalmente diferentes. Ao pedir que pessoas fiquem em casa, os governantes presumem que as casas possuem uma estrutura de cuidado, que a divisão de gênero do trabalho funciona, que mulheres – mesmo quando ainda empregadas e trabalhando de casa – também assumirão os afazeres domésticos e os cuidados com os filhos. Algumas casas não são constituídas por famílias tradicionais, algumas pessoas vivem sozinhas, outras em abrigos com desconhecidos. E mulheres são profundamente atingidas pela violência de gênero quando ficam impedidas de procurar ajuda externa. Então devemos ter em mente que o gênero está sendo redefinido pelo confinamento, para então fazermos o possível para manter vivas as correntes de afeto, comunidades, alianças queer e solidariedade online até podermos, mais uma vez, demonstrar nossos números nas ruas.” (BUTLER, 2020)
 

Novo livro de Judith Butler, “O Poder da Não Violência”

 

Eduardo Carli de Moraes
Abril e Maio de 2020

SAIBA MAIS: Acesse A Casa de Vidro – https://wp.me/pNVMz-6hU

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, JudithVida Precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
————-. Quando a economia se torna o berro agonizante dos eugenistas – Entrevista ao Le Monde Diplomatique. Maio de 2020.
GARFIELD, R. Morbidity and Mortality among Iraqi Children from 1990 through 1998: Assessing the Impact of the Gulf War and Economic Sanctions. Link.
LUXEMBURGO, Rosa.
ORWELL, George. Revolução dos BichosAnimal Farm. Via site da BBC.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS:

No filme “Kursk”, a tragédia submarina filmada por Thomas Vinterberg ilustra o conceito existencialista de “situação-limite” (Karl Jaspers)

“No one has forever… but I wanted more.”
Uma das frases na última carta antes da morte
escrita por um marinheiro no Kursk

A ninguém é concedida a eternidade. Esta verdade que soa banal – ou seja, o fato que qualquer um de nós é mortal e nunca ninguém terá um tempo infinito para viver – é diferencialmente apreendida em vários pontos do nosso fluxo de vida.

Na infância e primeira juventude, podemos ter a ilusão da imortalidade advinda da falta de experiência da morte alheia ou de vivência prévia de ameaça grave contra nossa vida própria. Mas é só um cachorro ser atropelado e morrer diante dos olhos da criança, ou o jovem ter que acompanhar a agonia senil de uma avó ou um bisavô, para que comece a raiar – frequentemente de forma traumática – a consciência da mortalidade.

Baseado no livro A Time To Die, de Robert Moore, e roteirizado por Robert Rodat (o mesmo de O Resgate do Soldado Ryan), o novo filme de Vinterberg tranforma o submarino naufragado Kursk numa espécie de palco trágico para encenar a Situação-limite daqueles marinheiros.

Situações-limite, segundo o filósofo alemão Karl Jaspers (1883 – 1969), são como “paredes com as quais nos deparamos, uma parede em que batemos e fracassamos.” (JASPERS, 1932, vol. 2, pg. 178) Situação-limite é aquela que o filme se interessa em capturar, através de uma narrativa fílmica potente e impiedosa: obrigados a encarar o fracasso, batendo os crânios contra as paredes da necessidade, sentindo na língua o sabor amargo da morte precoce, eles estão levados aos limites da condição humana e aos confins extremos do nosso sofrimento.

Confinados no fundo do mar, tremendo com o frio do Ártico, rodeados pela água que avança por todos os lados a ponto de molhar até os ossos, contemplam na cara o corte da foice iminente. A monstra invisível já afia suas lâminas para terminar de ceifar todas aquelas vidas naufragadas no nada.

Filósofo Karl Jaspers no seu lar em Basel, 1956

Em “Kursk”, filme que desembarcou nos cinemas do Brasil no início de 2020, aparentemente Vinterberg aderiu ao gênero do filme-catástrofe – já repleto de blockbusters sobre tragédias marítimas. Mas seu tom é muito mais próximo a do o clássico esplendoso Moby Dick, em que John Huston adaptou, na companhia de Ray Bradbury, o romance épico de Herman Melville em um dos grandes filmes da história da sétima arte.

Em Kursk, não há baleia em guerra contra Ahab, causando muitos rolês cheios de desventuras e que trituram toda a tripulação do Pequod, mas há sim a batalha humana contra “monstros de nossa própria criação” (como cantava Renato Russo em “Será” da Legião). Estes monstros que criamos – os submarinos bélicos lotados de torpedos e movidos a energia nuclear, por exemplo, e que podem acabar nos devorando.

Kursk é uma espécie de Titanic de teor existencialista, em que o complexo afetivo Vinterberguiano é radicalmente distinto daquele que anima o filme – melodramático e grandiloquente – do papa-bilheterias James Cameron. O filme de VInterberg se baseia em fatos reais: a catástrofe no submarino nuclear russo Kursk, em 2000, no mar de Barents, ao norte da Noruega, com 118 mortos. O submarino tinha sido batizado em homenagem a uma batalha épica da 2ª Guerra Mundial entre alemães e soviéticos.

Esse evento histórico que o filme evoca serve como ocasião para que uma poderosa narrativa fílmica nos leve a acompanhar a agonia claustrofóbica de marinheiros colocados diante da iminência da morte: “No one has forever, but I wanted more”, escreve o protagonista à sua esposa em sua carta de despedida. Um clima de Eclesiastes pulsa nesta frase que faz lembrar ditos como “ninguém é senhor do dia da própria morte, e nessa guerra não há trégua.”
Bíblia (Eclesiastes, 8-8)
Este “eu queria mais” também é prova de que o conatus pulsa mesmo em meio à agonia. Uma sabedoria que só ensinam as situações-limite?

O que é extremamente interessante nesta situação-limite em que o filme nos imerge é uma espécie de proliferação social da angústia extrema daqueles sobreviventes que no submarino, esperam por resgate enquanto agem desesperadamente para se manterem vivos. A angústia prolifera, é evidente, sobretudo sobre os parentes, que na cidade portuária preocupam-se desde as vísceras com os destinos de seus pais, de seus maridos, de seus irmãos, de seus primos. A angústia também prolifera para a hierarquia de comando da Marinha, obrigada, pela situação-limite, a tomar decisões urgentes.

O filme pode ser estudado em faculdades e cursos de relações internacionais pelo retrato realista que faz das dificultosas relações entre os russos e os britânicos – estes, com equipamento de resgate mais avançado, poderiam ter salvado a parcela dos marinheiros que sobreviveram à explosão. Não é nada louvável o retrato que se faz das autoridades russas, que teriam perdido o kairós (o momento propício) em que suas decisões poderiam ter salvado vidas, e isto em decorrência de uma reticência em admitir o despreparo tecnológico para lidar com aquela emergência.

No entanto, creio que é preciso ter uma boa dose de desconfiança em relação à crítica cinematográfica que instrumentaliza o filme para tacar pedras nos russos, ignorando os aspectos de tragicidade que esta situação-limite envolve. Isabela Boskov, da revista Veja, em uma resenha tão rasa que ocupa apenas um parágrafo, apedreja os russos com esta frase peremptória:

“Quase uma década após o fim da União Soviética, a Rússia demonstrou de maneira cruel que não perdera os velhos vícios do sigilo e da indiferença: em 12 de agosto de 2000, quando o supersubmarino nuclear Kursk sofreu uma explosão e afundou no Mar de Barents, o governo preferiu proteger seus segredos militares a dar uma chance real de resgate aos sobreviventes aprisionados na embarcação.” (BOSCOV, Veja, 2020)

O comentário de Boscov comete uma injustiça elementar: atribui à “Rússia” um equívoco de agentes públicos da Marinha deste país, num caso de generalização em que o tom condenatório parece querer abarcar todo um país (“a Rússia demonstrou de maneira cruel que não perdera os velhos vícios do sigilo e da indiferença”). Não se confunde o Estado e a população de um território; não se taca pedras na Rússia como um todo, quando os culpabilizáveis por decisões errôneas são funcionários públicos de uma entre centenas de outras instituições públicas deste Estado-nação.

O próprio filme é repleto de tensões entre os familiares dos marinheiros do Kursk e as autoridades militares e políticas responsáveis pela gestão da crise, mostrando que, se houve negligência ou indiferença pela vida humana, com os segredos de Estado sendo colocados acima da abertura imediata à colaboração internacional que poderia ter salvado algumas vidas, de modo algum se pode atribuir à “crueldade russa” (como faz Boscov em sua frase desastrada). A crueldade, caso fosse atribuída a alguns personagens, que se mostraram um tanto frios e indiferentes diante dos horríveis momentos de agonia dos marinheiros, incapazes de se colocarem na pele dos que estavam confinados naquela submarina infernaria, poderia até ser um juízo moral defensável. O que não é defensável é a atitude de Veja de veicular a ideia, em manchete sensacionalista, de que o filme fala sobre “a crueldade dos russos em meio a uma tragédia”.

É o tipo de resenha que, além de não contribuir em nada para uma apreciação mais aprofundada e nuançada da obra-de-arte, como é uma das funções do crítico, presta à produção encabeçada por Vinterberg o desserviço de atribuir a ele um intento difamatório contra toda a Rússia que não está no cineasta, mas sim na articulista da revista.

Fotografia do submarino russo Kursk – O Globo

Para explicar mais a fundo o que quero dizer, sublinho que uma das melhores cenas do filme é aquela em que o menino, após o funeral de seu pai, tem a mão a ele estendida por uma alta autoridade de hierarquia da Marinha (interpretado por Max Von Sydow) e recusa o cumprimento. Este russinho, recusando a vênia a este russão, já é prova inconteste da falácia absurda da generalização realizada por Boskov. Trata-se de um ato de desobediência civil que logo prolifera e é imitado por todos os outros órfãos que se perfilavam, no enterro de seus entes queridos, para receber os pêsames da parte daquele oficial que tinha fracassado em resgatá-los e trazê-los de volta com vida.

Lembrei-me na hora de uma das melhores cenas de The Handmaid’s Tale, episódio 10 da primeira temporada, em que a desobediência civil também é ilustrada quando as mulheres recusam-se a apedrejar uma outra mulher, a mando da mandona xerifa Tia Lydia. Pequenos gestos, grandes significados.

Além do significativo gesto de desobediência civil que o menino realiza diante do velho comandante, demonstrando uma revolta silenciosa diante da instituição que fracassou em salvar vidas resgatáveis naquela difícil situação-limite, o filme também dá o que pensar sobre o tema do sacrifício. Pouco depois da explosão, temos o exemplo de marinheiros dispostos a sacrificar seus últimos alentos e derramar suas últimas gotas de suor para evitar o que se chama, no filme, de “uma nova Chernobyl”. O filme de Vinterberg nos convida a pensar numa certa formação prévia que gerou nos marinheiros uma atitude de aceitação do sacrifício por um bem maior, ou pelo menos pela evitação de um mal pior.

 Em situações-limite, o apego tradicional do indivíduo por sua existência pode ser transcendido por um ímpeto de utilização produtiva de uma vida em iminência de acabar em prol do bem-estar de outros. Ou seja, a morte iminente não necessariamente instala um clima de egoísmo total, abjeto, brutal, mas abre a possibilidade também de atos de um heroísmo extremado, nos limites das capacidades físicas do organismo humano – como naquela cena em que os dois nadadores mergulham nas águas de frio ártico para irem resgatar os cartuchos de oxigênio que permitirão a sobrevida daquela pequena comunidade de desesperados e ofegantes sobreviventes temporários de uma catástrofe gigante.

A reflexão pós-filme que me domina é esta: quase sempre a morte vem nos pegar quando queríamos um tempo a mais para sorver a vida, por pior que ela seja. Aquele submarino serve de palco para o drama trágico da resiliência humana – e despontam ali momentos de intenso companheirismo. Mesmo que seja no singelo gesto de emprestar uma caneta ao companheiro que quer rabiscar suas últimas palavras antes de morrer. Seja no gesto heróico de não abandonar o companheiro desmaiado no mergulho e içá-lo a um patamar onde o ar seja respirável.

Até mesmo o humor se ergue na cara da morte – como a piada do ursinho polar mostra. Aqueles caras, tiritando com o gélido frio daquelas águas extremadamente geladas, aquecem-se por dentro com a graça do ursinho polar perguntando pra mãe: “se você é uma ursa polar, e meu pai também, e sou filho de vocês, isso faz de mim um ursinho polar, não? Então por que caralho estou com tanto frio?”O humor também desponta na última refeição – comida com tragos generosos da última garrafa de vodka -, onde sentir o bafo da bocarra aberta da morte já perto de nos devorar não consegue impedir o riso. É bela esta última gargalhada bêbada dos condenados. A situação-limite pode ter como consequência, se conseguirmos, um estouro de riso. Nosso fracasso é tão hilário, nossa espécie tão estúpida, nossa cooperação tão falha, nossas tecnologias tão traiçoeiras! É rir pra não chorar….

Thomas Vinterberg, o cineasta dinamarquês que iniciou o movimento estético Dogma 95 na companhia de Lars Von Trier nos anos 1990, nunca teve medo de frustrar as expectativas de uma platéia fissurada no happy end hollywoodiano (similarmente, Michael Haneke dedica-se a triturar nossas vontades de filmes leves, agradáveis e conformistas, crowd-pleasers de gostosa alienação industrializada).

Aqueles que acompanham a obra de Vinterberg já se acostumaram a esperar dele finais infelizes – que nos impactam justamente por um certo tom trágico, desesperançado. Assistir a “Submarino”, “A Caça”, “A Comunidade”, “Dear Wendy”, “Far From The Madding Crowd”, dentre outros de seus filmes, é expor-se a um artista disposto a realizar, através do cinema, um processo de provocação existencial que sacuda a apatia e a normose do espectador, fazendo-o considerar a vida através do viés meio dark, repleto de humor negro, que é uma das marcas do olhar Vinterberguiano. Se estivesse vivo, talvez o grande filósofo romeno Emil Cioran teria em Vinterberg um de seus cineastas contemporânos prediletos.

A Jasperiana situação-limite do Kursk, que envolve todos os personagens numa trama sinistra de decisões difíceis diante de mortes evitáveis, revela muito sobre a condição humana: a personagem de Léa Seydoux (que neste filme está loura e não com os cachos azuis que usou em Azul É a Cor Mais Quente, de Kechiche) é emblema das cicatrizes que os “fracassos” ocasionados pela confrontação insuficiente das situações-limite acarreta. As lágrimas que Vinterberg nos obriga a assistir caindo dos olhos desta mulher que acaba de enviuvar, com um filho pequeno para criar e um outro filho em gestação em seu ventre, é bem mais que melodrama apelativo. São lágrimas que nos convidam à reflexão sobre a precariedade, a fragilidade, o caráter radicalmente destrutível de nossas vidas e, portanto, de nossos laços afetivos. A resiliência do amor em face da catástrofe triunfal é um dos encantos maiores que reluz, como um Nabokoviano fogo pálido, na escuridão deste luto coletivo enquanto o filme se encerra.

O clima afetivo que domina Kursk, afinal de contas, é mesmo o que eu chamaria de uma vibe death-conscious, um sentimento de ciência da mortalidade, muito marcante em vários pensadores e artistas identificados com o existencialismo, e que o Nabokov sintetiza, recuperando a percepção de Lucrécio sobre os dois vazios – antes-de-nascer e depois-de-morrer – que estão nos extremos de uma vida humana: “nossa existência não é mais que um curto-circuito de luz entre duas eternidades de escuridão.” (NABOKOV)

Vladimir Nabokov

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 14/01/2020

LINKS SUGERIDOS – SAIBA MAIS:

“No dia seguinte ninguém morreu” – José Saramago sonda a tragicomédia da existência em “As Intermitências da Morte” (2005)

Nunca houve, desde que há mundo, um único dia que tenha transcorrido sem mortes. Não há registro ou notícia, desde que há vidas nesta esfera que rodopia ao redor do sol, de um giro completo do planeta ao redor de seu próprio eixo em que não tivessem se entremesclado no Theatrum Mundi os primeiros gritos dos recém-nascidos com os últimos suspiros dos agonizantes (como já nos ensinava a poesia epicurista de Lucrécio).

Se na realidade nunca houve época em que a morte tivesse entrado em férias, na literatura pode-se fantasiar livremente sobre o inaudito, o inédito, o nunca-dantes-nos-anais-da-história: como aquela formidável época em que a gente parou de morrer. A crônica imaginária destes sucessos extraordinários foi realizada em As Intermitências da Morteromance publicado em 2005 por José Saramago e que assim se inicia:

“No dia seguinte ninguém morreu. O fato, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme… não havia notícia nos 40 volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenômeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas 24 horas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.” (SARAMAGO – Cia das Letras, 2005, p. 11)

Na trajetória do escritor, este livro é da fase tardia, escrito após a consagração mundial de Saramago em 1998, quando o hoje defunto autor português foi laureado com o Nobel de Literatura, aquele prêmio que concede a tão poucos e seletos mortais a aura de sua glória, auréola de fama que promete a seu detentor que sua obra irá seguir ecoando, enganando a bocarra gigantesca da obscuridade do túmulo que engoliu quem esta obra pariu.

Neste livro, como de praxe, o Saramago é o cronista sagaz de nosso absurdo individual e coletivo. É o autor capaz de enxergar com profunda ironia, tingida de melancolia, todas as nossas adversidades, todas as nossas idiotices, todas as nossas incompletudes. É também o crítico mordaz das religiões instituídas, das máphias políticas, das velharias autoritárias, agindo como um iluminista tardio que age contra todos os obscurantismos que insistem em medievalizar a terra.

Saramago atua, através de sua caudalosa escrita, como um pedagogo sábio que quer nos ensinar a travessia que vai da cegueira à lucidez. Pela via régia do ateísmo, busca a emancipação do pensamento e da sensibilidade, libertos das cataratas de mentiras que nos vendam os olhos. O pior cego é o que não quer ver, o que pôs vendas em seus próprios olhos, em atitude análoga à daquele que está perecendo em uma cela de prisão sem perceber que a chave está por dentro.

Explorado em outras de suas obras, como Ensaio Sobre a Cegueira, o tema da cegueira – não literal, mas sim moral, existencial, relacional – parece estar correlacionado, na obra saramaguiana, com a condição mortal. Como se fôssemos demasiado covardes, a maioria de nós e a maior parte do tempo, para estar with eyes wide open diante de nossa condição.

Preferimos a semi-obscuridade – a falta de lucidez – de nossas fés e ideologias, que tanto contribuem para que vivamos com eyes wide shut (nome, aliás, do notável filme de despedida de Stanley Kubrick). Cegos de propósito, pois nunca suficientemente corajosos para encarar, no espelho, a caveira que nos olha de volta por detrás da pele da face. Crânio escondido por detrás da cara que é o retrato de nosso futuro incontornável.

O único animal que sabe que vai morrer inventa, através da história, os ópios e morfinas espirituais que mediquem sua angústia da finitude. A música do Morphine expressa isto à perfeição em Cure for Pain, uma das mais belas canções do finado Mark Sandman: “someday there’ll be a cure for pain, that’s the day I’ll throw my drugs away”.

Saramago sabe que as religiões instituídas, aí incluída a católica apostólica romana, sempre insistiram no tema da “morte como porta única para o paraíso celeste, onde, dizia-se, nunca ninguém entrou estando vivo, e os pregadores, no seu afã consolador, não duvidavam em recorrer a todos os métodos da mais alta retórica e a todos os truques da mais baixa catequese para convencerem os aterrados fregueses de que, no fim de contas, se podiam considerar mais afortunados que os seus ancestres, uma vez que a morte lhes havia concedido tempo suficiente para prepararem as almas com vista à ascensão do éden” (p. 133). A extinção da morte é um perigo para a sobrevivência das religiões instituídas, estas profanas criações humanas destinadas a pôr em circulação os ópios fantasiosos que acalmam os terrores e angústias do bicho que sabe que vai morrer.

Há muito tempo estou convencido – e nisto a leitura de Saramago muito contribuiu – de que as religiões e as mitologias são incompreensíveis em um horizonte onde não coloquemos, no cerne, a mortalidade humana e o nosso protesto contra ela. Diante da morte invencível, os seres humanos erguem suas catedrais e suas preces; imaginam-se triunfantes em um além-túmulo que o poeta Tennyson chamará de local do Segundo Nascimento; Idolatram a figura de um crucificado que supostamente voltou à vida depois de três dias morto. Só inventamos deuses pois morremos – e é porque morremos que “se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo.”

Pintura de Andrea Mantegna – “Lamentação de Cristo”

Mortais humanos apegam-se com esperanças fervorosas ao sonho de ressurreição, e olhando, seja de frente ou de soslaio, seus destinos de criatura temporárias, abraçando ou recusando esta ciência fatal, os seres que somos recusam-se a ir ladeira abaixo, no processo que conduz pra baixo da terra, em silêncio e resignação. Para lembrar o célebre estribilho poético: We not go quietly into that good night… We rage, rage against the dying of the light! (Dylan Thomas)

Como disse Albert Camus, “o ser humano é a única criatura que se recusa a ser o que é.” E a danada da morte tem tudo a ver com isso. Ela é, para os viventes, aquilo que Manuel Bandeira chamou de “a indesejada das gentes” – e os suicidas sempre foram minoria da humanidade, pois os que buscam com ânsia uma morte que lhes dê fim aos tormentos e angústias sempre foram menos numerosos do que aqueles que foram impelidos à sobrevivência resiliente até que o tempo os matasse com seus instrumentos do costume, como as doenças e as violências bélicas. Ainda assim, o suicídio e a eutanásia são fenômenos que nos obrigam a refletir sobre o direito de morrer, quando a vida não é mais sentida como digna de ser vivida, um tema abordado com muita sensibilidade e pungência por filmes como Mar Adentro de Amenábar ou Amor de Haneke.

Saramago, no espaço livre de seu livro, suspende as leis natural que estão por aí desde que o mundo é mundo. Mago plenipotente no espaço de seu romance, ele conta uma história fantasiosa: na alvorada de um ano novo, todos os 10 milhões de habitantes de um certo país subitamente descobrem que a morte saiu de férias. Por tempo indeterminado. Sem aviso prévio, abandonou o posto e desistiu de seu fatal ofício, há tantos milênios incansavelmente exercido.

Não se sabe os motivos de sua greve, e ninguém explicou se o fenômeno é uma casual e efêmera transformação da ordem cósmica, que logo re-entrará nos eixos costumeiros, ou se as regras da vida e da morte foram alteradas para sempre neste pequeno rincão da terra. A princípio, é o fervor patriótico e todos comemoram o privilégio. Logo depois, percebem que a morte sair de férias irá acarretar um imenso transtorno – tanto é assim que os fluxos migratórios irão se acentuar, com inúmeros nômades-peregrinos querendo chegar a outro país onde ainda se tem a possibilidade de morrer.

Tudo se transtorna com as férias que a morte resolveu tirar: os hospitais ficam repletos de doentes terminais, os asilos de velhos sofrem com o excesso dos agonizantes estão à espera de seu ocaso, os escritórios das companhias de seguros e os bancos onde elas depositam seus capitais entram em crise…

Os impactos na economia são tremendos – e não apenas no pequeno nicho que são as empresas funerárias, que fornecem aos que sobrevivem os necessários auxílios para o despojo daquelas partes do ex-vivo tão brutalmente chamados por alguns de “restos mortais”, aquilo que, abandonado pela chama da vida, apodrece logo com exalações de odores pútridos e que por isso corremos a afastar de nossas fuças e vistas.

A teledramaturgia, nos últimos anos, foi responsável pela criação de uma obra-prima das séries dramáticas com A Sete Palmos (Six Feet Under), da HBO, cujas 5 temporadas expuseram em minúcias as vidas da família Fisher e seus agregados afetivos enquanto tocam avante a difícil empreitada de gerir uma funerária.

Saramago também se interessa por todas as indústrias que lucram com a morte, mas é mais como um crítico ácido que ele atua, nunca como alguém que não enxergue a problemática complexa que envolve hospitais, asilos, funerárias e os elos que os conectam aos poderes políticos e eclesiásticos. As altas cúpulas do clero e as altíssimas autoridades do reino são alvo da pena mordaz de Saramago, que em inúmeros livros despeja sua ironia sobre o fenômeno da vinculação teologia-política (Memorial do Convento, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Caim etc.).

Em As Intermitências da Morte, o romance revela tudo o que ocorre no curto período em que a morte cessa de desempenhar suas funções.

“A igreja”, por exemplo: “saiu à arena do debate montada no cavalo-de-batalha do costume, isto é, os desígnios de deus são o que sempre foram, inescrutáveis, o que, em termos correntes e algo manchados de impiedade verbal, significa que não nos é permitido espreitar pela frincha da porta do céu para ver o que se passa lá dentro.

Dizia também a igreja que a suspensão temporária e mais ou menos duradoura de causas e efeitos naturais não era propriamente uma novidade, bastaria recordar os infinitos milagres que deus havia permitido se fizessem nos últimos 20 séculos, a única diferença do que se passa agora está na amplitude do prodígio, pois que o que antes tocava de preferência o indivíduo, pela graça da sua fé pessoal, foi substituído por uma atenção global, não personalizada, um país inteiro por assim dizer possuidor do elixir da imortalidade, e não somente os crentes, que como é lógico esperam ser em especial distinguidos, mas também os ateus, os agnósticos, os heréticos, os relapsos, os incréus de toda a espécie, os afeiçoados a outras religiões, os bons, os maus e os piores, os virtuosos e os maphiosos, os verdugos e as vítimas, os polícias e os ladrões, os assassinos e os doadores de sangue, os loucos e os sãos de juízo, todos, todos sem exceção, eram ao mesmo tempo as testemunhas e os beneficiários do mais alto prodígio alguma vez observado na história dos milagres…” (p. 75)

Descrente em milagres como bom ateu, Saramago brinca de imaginar as consequências que tomariam o mundo caso este milagre ocorresse e a “Velha da Capa Preta” parasse de trabalhar. O desemprego dos coveiros seria a menor de nossas encrencas. A editora Companhia das Letras sintetizou bem os charmes e graças do romance:

De repente, num certo país fabuloso, as pessoas simplesmente param de morrer. E o que no início provoca um verdadeiro clamor patriótico logo se revela um grave problema.

Idosos e doentes agonizam em seus leitos sem poder “passar desta para melhor”. Os empresários do serviço funerário se vêem “brutalmente desprovidos da sua matéria-prima”. Hospitais e asilos geriátricos enfrentam uma superlotação crônica, que não pára de aumentar. O negócio das companhias de seguros entra em crise. O primeiro-ministro não sabe o que fazer, enquanto o cardeal se desconsola, porque “sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja”.

Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à mortalidade comum de todos os cidadãos. Mas, na sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar os afazeres de sempre. Então, o que vai ser da nação já habituada ao caos da vida eterna?

LEIA OUTRO TRECHO

Vale lembrar que, na arte brasileira, há também um magnum opus que se equipara a Saramago na capacidade de expressar de maneira criativa e expressiva o enrosco humano com a mortalidade: estou falando da música de Siba, depois regravada por Juçara Marçal em seu álbum Encarnado, “A Velha da Capa Preta”:

A morte anda no mundo
Vestindo a mortalha escura
Procurando a criatura
Que espera a condenação
Quando ela encontra um cristão
Sem vontade de morrer
Ele implora pra viver
Mas ela ordena que não
Quando o corpo cai no chão
Se abre a terra e lhe come
Como uma boca com fome
Mordendo a massa de um pão

A morte anda no mundo
Espalhando ansiedade
Angústia, medo e saudade
Sem propaganda ou esparro
Sua goela tem pigarro
Sua voz é muito rouca
Sua simpatia é pouca
E seu semblante é bizarro
A vida é corno um cigarro
Que o tempo amassa e machuca
E morte fuma a bituca
E apaga a brasa no barro

A morte anda no mundo
Na forma de um esqueleto
Montando um cavalo preto
Pulando cerca e cancela
Bota a cara na janela
Entra sem ter permisão
Fazendo a subtração
Dos nomes da lista dela
Com a risada amarela
É uma atriz enxerida
Com presença garantida
No fim de toda novela

Disse a morte para a foice:
Passei a vida matando
Mas já estou me abusando
Desse emprego de matar
Porque já pude notar
Que em todo lugar que eu vou
O povo já se matou
Antes mesmo d’eu chegar
Quero me aposentar
Pra gozar tranqüilidade
Deixando a humanidade
Matando no meu lugar

A personificação da morte não é novidade na história da arte – de Van Gogh (pintura acima) a Bergman (em um filme como O Sétimo Selo), artistas de várias vertentes já representaram a dita cuja de muitas maneiras, como um esqueleto que fuma um cigarro ou como uma jogadora de xadrez que oferece ao rival a oportunidade de adiar sua estadia entre os vivos, desde que consiga não tomar um xeque-mate.

No caso de Saramago, ele se deleita em imaginar as enrascadas em que a morte responsável por matar os humanos entraria caso mudasse seus métodos imemoriais. A morte, quando sai dos trilhos, acaba por descarrilhar todo o trem da vida. Primeiro, ela escolhe as férias, mas depois decide retornar à labuta, mas com outra estratégia: mandará pelo correio uma carta de cor violeta, avisando aos que estão na iminência de morrer que lhes resta apenas uma semana de vida…

Poética, a morte pensa em enviar, ao invés de cartas, borboletas – em especial a espécie acherontia atroposdotada pela natureza de um visual curiosamente fúnebre. São maneiras irônicas de Saramago nos sugerir, com muita graça, que a morte sempre fez parte da vida e que ainda bem que é assim. Esta funcionária exemplar causaria o caos caso falhasse no desempenho de suas funções. Hospitais engarrafados de tantos doentes, asilos às dúzias tendo que ser construídos às pressas, empresas de enterros indo à falência, e religiões instituídas caindo no colapso – tudo isso como resultado da temporária intermitência da morte em seu ofício.

Se a vida fosse impossível de perder, que valor teria? Não temos apreço senão por aquilo que é a um só tempo precioso e destrutível. Sabemos e sentimos que tudo de bom que vivemos é efêmero e temporário, e André Gide ensinava que quem não pensa suficientemente na morte não consegue dar o devido peso e urgência à vida: “Um pensamento insuficientemente constante sobre a morte”, escrevia Gide, “nunca deu valor suficiente ao mais ínfimo instante de vida.”

Nas páginas de Saramago, é como se a morte aparecesse como a necessária força de renovação das coisas. Sem morte, tudo estagnaria e o mundo viraria um amontoado de velharias. O fluxo cósmico perderia sua fluidez. As velharias se amontoariam, sufocando o novo. Só através da morte é que a vida pode inovar. No balé infindável de Eros e Tânatos, o palco do mundo vê a emergência sem fim de novas formas. Metamorfoses advindas interminavelmente da dialética inextirpável da vida e da morte.

Pintura de Michael Wolgemut, “A Dança dos Esqueletos”

Em seus momentos mais filosóficos, As Intermitências da Morte nos faz refletir sobre os diversos modos de findar a existência, de acordo com o organismo vivo que chega a seu ocaso, como no capítulo 6, em que um peixinho de aquário, alçando-se por sobre as águas, pergunta (perdendo seu pobre fôlego):

“Já pensaste se a morte será a mesma para todos os seres vivos, sejam eles animais, incluindo o ser humano, ou vegetais, incluindo a erva rasteira que se pisa e a sequoia giganteum com os seus 100 metros de altura, será a mesma a morte que mata um homem que sabe que vai morrer, e um cavalo que nunca o saberá. E tornou a perguntar, Em que momento morreu o bicho-da-seda depois de se ter fechado no casulo e posto a tranca à porta, como foi possível ter nascido a vida de uma da morte da outra, a vida da borboleta da morte da lagarta, e serem o mesmo diferentemente, ou não morreu o bicho-da-seda porque está na borboleta… Disse o espírito que paira sobre as águas do aquário, o bicho-da-seda não morreu, dentro do casulo não ficou nenhum cadáver depois de a borboleta ter saído, tu o disseste, um nasceu da morte do outro, Chama-se metamorfose, toda a gente sabe do que se trata, disse condescendente o aprendiz de filósofo….” (p. 72)

Morte e vida dançam o rock da metamorfose no fluido palco do universo, mas cada organismo tem seu modo de experenciar o seu próprio processo de dissolução: se é verdade que o homo sapiens é o único animal consciente de sua própria mortalidade, ainda que ele tanto se esforce para recalcar e reprimir esta ciência (através de métodos psicológicos brilhantemente iluminados por Ernest Becker em A Negação da Morte, belíssimo livro laureado com o Pulitzer), não se pode negar que outros animais dotados de sistema nervoso central e altamente sensíveis aos estímulos ambientais também batalhem com todas as forças de seu âmago contra quem quer lhes impor a morte. Ser um animal é estar animado pelo duro desejo de durar.

Um pomar não nos dá a mesma impressão de resiliência, de perseverança na existência, de manifestação concreta do conatus conceituado na filosofia de Spinoza, o que torna bastante cômicos e risíveis os argumentos de certos carnívoros que, diante da argumentação de vegetarianos em prol da libertação animal, argumentam que as cenouras e os alfaces gostam tão pouco de terem suas vidas abreviadas quanto os porcos e bois abatidos nas milhares de factory farms desde nosso mundo.

Neste debate, Jacques Derrida foi ao cerne do problema ao dizer que a questão crucial a se colocar, diante da vida de um outrem não-humano, é esta: “esta criatura pode sofrer?” E só um mentecapto seria capaz de avaliar, no termômetro da sofrência, que um porco ou uma galinha sofrem menos que uma maçã ou um brocólis com a interrupção de sua existência para fins alimentícios humanos. O apego à vida é evidente maior quanto mais ampla é a consciência que o animal possui de sua condição existencial – e, como Peter Singer argumenta, é um escândalo global chocante o quanto nossas economias ainda estão baseadas no morticínio ultra-disseminado de criaturas que sofrem imensamente com o processo mortífero que os humanos lhes impõem, ao invés de adotarmos uma cultura culinária mais sábia pois atenta aos interesses de seres sencientes semelhantes a nós mesmos.

Passando ao largo dessas questões, o romance de Saramago prefere focar nas reações humanas diante da aproximação da data fatal nas novas condições impostas pela Dona Morte, que no âmbito do romance resolveu inovar em seus métodos. O affair quase romântico da morte com um violoncelista serve como emblema saramaguiano para os poderes transformadores da arte: sob o impacto da aproximação da morte, o músico toca seu Bach, seu Chopin, seu Beethoven, com tal feeling e potência expressiva que tudo transfigura a seu redor.

Saramago imagina então que a morte, encantada com a musicalidade deste mortal que ela não consegue se decidir a matar, escolhe fazer o que nunca antes fizera – é só lembrar que ela não teve piedades, em sua ação pretérita, de gênios musicais colhidos tão cedo do jardim da vida como Schubert, Mozart ou Janis. A morte depõe suas armas diante da música, adia suas tarefas, deixa para depois o único mandamento que segue – “matarás!” Enfeitiçada pela música que fazem os vivos, a morte que nunca dorme decide-se a deixar a foice encostada e vai tirar uma soneca – afinal suas pálpebras pesam após tanto tempo de ação em completa insônia. “E no dia seguinte ninguém morreu…”

“O que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naquela música uma transposição rítmica e melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma cousa ainda tivesse ficado por dizer… (p. 171)

É nossa sina de seres temporários que nunca possamos abandonar o palco depois de tudo termos dito. Resta sempre muito por dizer, e o resto é silêncio. Na literatura de Saramago, este incontornável da condição humana recebe um tratamento literário que é tonificante, não só pela liberação lúdica que nos fornece, aliviando a gravidade com que costumamos tratar do assunto e polvilhando tudo com um espírito de jocosa ironia, mas também pela intensificação de nossa consciência do quão tragicômico é este clarão entre dois nadas que cada um de nós chama de vida.

A morte saramaguiana tem muita graça e lendo este romance pude me divertir a imaginá-la como um funcionária exemplar, que desde a alvorada da vida exerceu suas funções de maneira impecável, mas que enfim decide reclamar seus direitos trabalhistas e reclamar do patrão (deus ou o universo, segundo o gosto do freguês…), já que ela já labuta há milênios, sem férias nem direito a greve, matando 24 horas por dia, inclusive em feriados religiosos e nos horários mais impróprios da madrugada.

A morte é parte inextricável e incontornável da vida de que cada um de nós não detêm a posse mas somente o fugaz usufruto. E a sabedoria epicurista sempre ensinou que não há carpe diem sem memento mori. Saramago, acredito, assinaria embaixo caso a morte tivesse lhe deixado mãos para escrever. Também assinaria embaixo, provavelmente, de duas idéias filosóficas que muito aprecio: a primeira, de Montaigne, que dizia que “filosofia é aprender a morrer”, e a segunda, de André Comte-Sponville, que ensina que “é preciso pensar a morte para amar melhor a vida – em todo caso, para amá-la como ela é: frágil e passageira.”

O pensamento de Saramago, tão filiado a um certo ímpeto de lucidez iluminista que batalha contra o obscurantismo e o fanatismo, busca conduzir-nos a esta sábia apreciação de nossa existência mortal que é tão rara e preciosa. Escrevendo logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001, Saramago soube conectar com profundidade os fatores inextricáveis mortalidade religiosidade ao escrever “O Factor Deus”, excelente provocação filosófica-política que é recomendável como posfácio às Intermitências da Morte:

“De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta dos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas sem excepção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que isto seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel.

Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os taliban, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente os textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conluio pactuado entre Religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos, o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gémeas de Nova Iorque e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela acção dos homens, cobriram e teimam em cobrir de torpor e sangue as páginas da História.

Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “factor Deus”, esse está presente na vida como se efectivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o “factor Deus” o que se exibe nas nota de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos e não a outra…) a benção divina. E foi o “factor Deus” em que o deus islâmico se transformou que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o “factor Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem, acabou por fazer do homem uma besta.

Ao leitor crente (de qualquer crença…) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiram, não peço que passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento se não puder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do “factor Deus”. Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.” – SARAMAGO / O FACTOR DEUS

Por Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, Julho de 2018

 

Dobradinhas Literário-Pictóricas: Clarice Lispector & Van Gogh

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” – Escute-me, amigo, a lua está alta no céu. Você não tem medo? O desamparo vem da natureza. Esse luar, pense bem, esse luar mais branco que o rosto de um morto, tão distante e silencioso, esse luar assistiu aos gritos dos primeiros monstros sobre a terra, velou sobre as águas apaziguadas dos dilúvios e das enchentes, iluminou séculos de noites e apagou-se em seculares madrugadas… Pense, meu amigo, esse luar será o mesmo espectro tranquilo quando não mais existirem as marcas dos netos dos seus bisnetos. Humilhe-se diante dele. Você apareceu um instante e ele é sempre. Não sofre, amigo? Eu… eu por mim não suporto. Dói-me aqui, no centro do coração, ter que morrer um dia e, milhares de séculos depois, indiferenciado em húmus, sem olhos para o resto da eternidade, eu, EU, sem olhos para o resto da eternidade… e a lua indiferente e triunfante, mãos pálidas estendidas sobre novos homens, novas coisas, outros seres. E eu Morto! – respirei profundamente. – Pense, amigo. Agora mesmo ela está sobre o cemitério também. O cemitério, lá onde dormem todos os que foram e nunca mais serão. Lá, onde o menor sussurro arrepia um vivo de terror e onde a tranquilidade das estrelas amordaça nossos gritos e estarrece nossos olhos. Lá, onde não se tem lágrimas nem pensamentos que exprimam a profunda miséria de acabar… Ouça, vou dizer mais: eu queria morrer vivo, descendo ao meu próprio túmulo e eu mesmo fechá-lo, com uma pancada seca. E depois enlouquecer de dor na escuridão da terra. Mas não a inconsciência.”

Palavras de um personagem de Clarice Lispector (1920 – 1977), no conto “Mais dois bêbedos”, que integra o livro “Todos os Contos”, Editora Rocco, 2016, organização de Benjamin Moser, pg 130-132.

Pintura: “Noite Estrelada” de Vincent Willem van Gogh (1853 – 1890).

Um oferecimento: A Casa de Vidro – Portal cultural e livraria virtual || http://www.acasadevidro.com/

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A VERTIGEM DA FINITUDE ou A CONSCIÊNCIA DA MORTALIDADE- por Drauzio Varella e Fernando Pessoa

:: A Vertigem ::
por Drauzio Varella

A angústia causada pela impossibilidade de comprovar por meios racionais se existe vida depois da morte acompanha a humanidade desde seus primórdios. Imaginar que nos transformaremos em pó e que capacidades cognitivas adquiridas com tanto sacrifício se perderão irreversivelmente é a mais dolorosa das especulações existenciais.

Tamanho interesse no destino posterior à morte, entre tanto, contrasta com a falta de curiosidade em saber de onde viemos. O que éramos antes de o espermatozóide encontrar o óvulo no instante de nossa concepção?

Aceitamos com naturalidade o fato de inexistir antes desse evento inicial, em contradição com a dificuldade em admitir a volta à mesma condição no final do caminho. Como não existíamos (portanto, não fomos consultados para vir ao mundo), consideramos a vida uma dádiva da natureza, e nosso corpo, uma entidade construída à imagem e semelhança de Deus, exclusivamente para nos trazer felicidade, atender aos nossos caprichos e nos proporcionar prazer.

Essa visão egocentrada de quem “não pediu para nascer” faz de nós seres exigentes, revoltados, queixosos, permanentemente insatisfeitos com os limites impostos pelo corpo e com as imperfeições inerentes à condição humana. Assim, acordamos todas as manhãs com tal expectativa de plenitude e de funcionamento harmonioso do organismo que o desconforto físico mais insignificante, a mais banal das contrariedades, são suficientes para causar amargura, crises de irritação, explosões de agressividade e depressão psicológica, não importa que privilégios o destino tenha nos concedido até a véspera ou venha a nos conceder naquele dia.

 Ao contrário da dificuldade em nos livrarmos desses estados emocionais negativos que nos consomem parte substancial da existência, as sensações de felicidade geralmente são fugazes, varridas de nosso espírito à primeira lembrança desagradável. Seria lógico esperar, então, que o aparecimento de uma doença grave, eventualmente letal, desestruturasse a personalidade, levasse ao desespero, destruísse a esperança, inviabilizasse qualquer alegria futura. Mas não é isso que costuma acontecer: vencida a revolta do primeiro choque e as aflições da fase inicial, associadas ao medo do desconhecido, paradoxalmente a maioria dos doentes com câncer ou AIDS que acompanhei conta haver conseguido reagir e descoberto prazeres insuspeitados na rotina diária, laços afetivos que de outra forma não seriam identificados ou renovados, serenidade para enfrentar os contratempos, sabedoria para aceitar o que não pode ser mudado.

 Não me refiro exclusivamente aos que foram curados, mas também aos que tomaram consciência da incurabilidade de suas doenças. Naqueles, é mais fácil aceitar que o fato de ter sobrevivido à ameaça de perder o bem mais precioso e de ser forçado a lutar para preservá-lo confira à vida um valor antes subestimado. Quanto aos que sentem a aproximação inevitável do fim, no entanto, soa estranho ouvi-los confessar que encontraram paz e se tornaram pessoas mais relaxadas, harmoniosas, admiradoras da natureza, amistosas, agradecidas pelos pequenos prazeres, e até mais felizes.

 – Troquei as noites frenéticas, de uma boate para outra até o dia clarear, por minhas plantas, pela algazarra dos passarinhos logo cedo, por meus livros, pelo café-da-manhã com minha mãe e o jornal – disse um de meus primeiros pacientes a descobrir que estava com AIDS.

 Um colega de profissão, mais velho, tratado por mim de um câncer de próstata incurável, certa vez disse:

 – Antes de ficar doente, eu nunca estava no lugar em que me encontrava: vivia alternadamente no passado e no futuro. Quantas coisas boas desperdicei por permitir que meus pensamentos fossem invadidos por memórias tristes ou contaminados pela ansiedade de planejar o que deveria ser feito em seguida. Era tão ansioso que chegava a puxar a descarga antes de terminar de urinar. A doença me ensinou a viver o presente.

 Um rapaz de vinte e cinco anos que tratei de uma forma grave de linfoma de Hodgkin, tipo de câncer que se instala no sistema linfático, uma vez resumiu o amadurecimento prematuro que considerava ter adquirido:

 – Sempre fui explosivo: brigava no trânsito, xingava os outros, ficava irritado por qualquer bobagem, já acordava chateado sem saber por quê. Quando entendi que podia morrer, pensei: não tem cabimento desperdiçar o resto da vida. Virei Albert Einstein, o defensor da relatividade: quando alguma coisa me desagrada, procuro avaliar que importância ela tem no universo. Descobri que é possível ser feliz até quando estou triste.

 No ambulatório do Hospital do Câncer, quando perguntei a um maranhense iletrado, pai de quinze filhos e rosto marcado pelo sol, se a doença havia lhe trazido alguma coisa de bom, ele respondeu:

 – O cavalo fica mais esperto quando sente vertigem na beira do abismo.

 Custei a aceitar a constatação de que muitos de meus pacientes encontravam novos significados para a existência ao senti-la esvair-se, a ponto de adquirirem mais sabedoria e viverem mais felizes que antes, mas essa descoberta transformou minha vida pessoal: será que com esforço não consigo aprender a pensar e a agir como eles enquanto tenho saúde?

[DRAUZIO VARELLA. Por Um Fio]

* * * * *

“Quando vier a Primavera”
Alberto Caeiro (F. Pessoa)

Pessoa

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

 

NIETZSCHE & TOLSTÓI EM PARALELO – Comentários sobre o livro do filósofo existencialista russo Léon Chestov [1866-1938]

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TOLSTÓI E NIETZSCHE:
RETRATOS PARALELOS NA PENA DE LÉON CHESTOV

Comentário sobre a obra “L’Idée Du Bien Chez Tolstoi et Nietzsche”.
Paris, 1949, Editora J. Vrin

A-Morte-de-Ivan-Ilitch

Em A Morte de Ivan Ilitch, uma das obras-primas da literatura universal, Tolstói assim pinta os últimos minutos da vida de Ivan: “Ele compreendeu que estava perdido, que não havia mais nenhum retorno possível, que o fim havia chegado, o fim derradeiro… Ele se agitava de modo desordenado dentro daquele saco negro para cujo fundo lhe empurrava uma força invisível, insuperável. Ele se debatia como um condenado à morte se debate nas mãos do carrasco, sabendo que não pode ser salvo…”

Esta “pintura” da agonia de Ivan Ilitch, de impacto estético impressionante, talvez só tenha a força que tem como obra-de-arte pois encontra um eco em cada um de nós, mortais que evitam confrontar-se com ela, “a indesejada das gentes” (na expressão de Manuel Bandeira), e de que não há gente que escape…

 A literatura em prosa tenta falar sobre a experiência de todos através do relato da experiência de alguém. O romance é o reino da singularidade do indivíduo único e irrepetível, mas que simboliza algo de universal. A morte de Ivan Ilitch não é a morte de qualquer um, não é a morte descarnada e abstrata do silogismo (“Todos os homens são mortais; Sócrates é homem; Logo, Sócrates é mortal…”); há em Ivan uma dor toda sua e que sugere que ninguém morre uma morte igual a de outrem. Mas ao mesmo tempo todos somos um pouco como Ivan, irmanados na mortalidade que nos é comum.

Tolstói, no fim de seu livro, oferece-nos uma espécie de resposta para a excessivamente angustiada e aflitiva agonia de Ivan Ilitch: Ivan atormenta-se por não conseguir olhar para sua vida e concluir que ela havia sido boa. Insatisfeito com sua vida em seu leito de morte, Ivan descobre que não poderá mudar mais uma vírgula e que o ponto final se aproxima.

O que se sublinha é a tragicidade deste fato: a morte não espera que todos se considerem “realizados” e “felizes” para fazer uso de sua foice. Os homens não morrem quando querem (com exceção dos suicidas), nem morrem só depois de poderem considerar sua existência “bem-sucedida”: eles são às vezes ceifados quando não desejam deixar a vida, e nem sempre é possível “enrolar” a Morte e adiar o momento fatal, jogando um interminável xadrez com a ceifadora, como faz o personagem de Bergman em O Sétimo Selo. O xeque-mate inelutável virá para todos nós.

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Como lembra Léon Chestov em seu comentário d’A Morte de Ivan Ilitch, todo o começo da narrativa nos explica porque a vida de Ivan Ilitch não havia sido boa: “Ele havia se economizado em demasia, ele havia preservado com muita atenção as compactuações com uma vida conveniente, ele tinha vinculado demasiado valor aos bens medíocres, e conforme foi se aproximando da tragédia, sentiu pela primeira vez que tinha deixado passar aquilo que há de melhor na vida.” (CHESTOV: p. 175) No entanto, essa angústia não durou muito: as últimas palavras que Ivan Ilitch ouve é a de alguém que diz: “A morte acabou. Ela não existe mais.” C’est fini.



Leon Chéstov (1916)

“Os horrores que Tolstói descobre quando visita, em Moscou, os asilos para as pessoas pobres e que vivem sem calefação”, como relembra Chestov, levou o escritor russo “a comover-se a ponto de não poder falar no assunto sem lágrimas e cólera” (CHESTOV: pg. 71). Tolstói, após experiências semelhantes, falará com frequência de seu “grande desgosto pela vida urbana”, a ponto de fabricar um ideal-de-vida que incluía labutar junto aos camponeses, abandonando as mordomias de letrado aristocrata para fraternizar com as penas dos mujiques. “Todos os prazeres de uma vida luxuosa”, escreve o autor de Anna Karenina, “se transformaram para mim em torturas.” (pg. 70)

Esta visita aos subúrbios empobrecidos de Moscou, esse encontro com uma multidão de humilhados, ofendidos, despossuídos e esfomeados, não foi decerto a primeira oportunidade que teve Tolstói de entrar em contato com alguns dos aspectos mais tenebrosos da existência – ele já era bastante experimentado neles: “O autor de Guerra e Paz, um pintor tão perfeito de todos os horrores de 1812, havia olhado na face milhares de mortos e de assassinatos, as mais terríveis e repugnantes manifestações da crueldade e da baixeza humanas” (pg. 70). Não era portanto um ingênuo, um desconhecedor dos males da terra, como foi um dia o super-protegido  jovem príncipe Sidarta que, “logo na primeira vez em que foge de seu palácio, encontra em seu caminho um doente, um velho e um mendigo.” (pg. 71)

Uma questão que vale a pena colocar é: teria Tolstói se transformado nesta figura tão imponente no âmbito da literatura e da ética, e teria Sidarta se convertido em Buda, se eles tivessem virado o rosto e vendado voluntariamente os olhos, recusando-se a reconhecer todos os males e todos os sofrimentos que o mundo comporta? Esquivar-se do sofrimento, procurar o comodismo da cegueira voluntária, proteger-se de conhecer as realidades que ferem, não é este o caminho que conduz certamente à mediocridade? E o que há de mais medíocre que “olhar com indiferença para o mal que reina sobre a terra”? (p. 71)

Chestov relata um episódio em que Tolstói, decidido a viver uma vida de benfeitorias ao visitar os pobres, conversar com eles e regalar-lhes com filantropias, conhece uma mulher que não comia há 10 dias. “Dei-lhe um rublo”, escreve Tolstói, “e me lembro que fiquei muito contente que outros tenham visto.” (p. 74)

 Chestov olha com suspeição para este episódio, para esta “satisfação com a própria virtude” que Tolstói confessa ter sentido com seu comovimento, este inchamento-de-ego que ele sente com sua deleitosa piedade pelos males alheios. Decerto que é humano… mas tudo que é humano é suspeito! Suspeitemos, pois, desta atitude de Tolstói, auto-congratulando-se por sua generosidade no auxílio financeiro, feliz com o elogio que recebeu dos amigos por ser um homem tão doce, tão bom, tão comovível.

Esta compaixão satisfeita-de-si, esta atitude de quem se orgulha de sua própria virtude ao demonstrar sua indignação diante do que aflige o outro, não merece também ser questionada? É o que Chestov soube realizar com brilhantismo, já que lidou com a obra e o pensamento de Tolstói depois de ter atravessado a “escola” de Nietzsche: “o que teria ocorrido se Tolstói tivesse se convencido que seus amigos tinham toda razão, que ele era mesmo bom e virtuoso, nada malévolo ou culpável? A sorte daqueles abrigados nos asilos não teria sido adoçada. As pessoas, parcialmente congeladas, se amontoariam como antes pelas ruas…” (pg. 72)

A consciência tranquila e pacificada daquele que, ao preço de compadecer-se dos outros, conquistou a agradável convicção de ser bom e virtuoso, auxiliará realmente a remediar os males daqueles cujo sofrer despertou os piedosos comovimentos? É digna do nome de “virtude” a satisfação-consigo daquele que se compadece, mas sem extinguir o mal que aflige o outro?

Em outras palavras: se o espetáculo da fraqueza, da fome e do frio do outro serve para aumentar a convicção na minha própria bondade por ser sensível e simpático ao sofrimento alheio, mas sem que eu pratique nenhuma atividade eficaz para remediar estes males, de que vale de fato esta compaixão? De que valem as lágrimas daqueles que tem “necessidade dos pobres” (CHESTOV: p. 73) para se sentirem bons e que, portanto, não tem interesse em acabar com a pobreza? Trama brechtiana!

A esmola que o rico dá ao mendigo é feita em favor de quem? É um altruísmo desinteressado que reina neste ato, ou então é o interesse do rico em mostrar-se humano e comprar com sua ação o aplauso dos outros e o sono dos justos? Quando Tolstói confessa o prazer que sentiu ao ser visto ajudando, aí se escancara o auto-interesse por trás da esmola. Pode-se suspeitar, como dirá André Comte-Sponville, que em casos semelhantes a esse não se trata de uma autêntica generosidade desinteressada, mas do “precinho de uma consciência limpa” (COMTE-SPONVILLE, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, capítulo “A Generosidade”). Ou mesmo uma moeda com que se compra as palmas da platéia.

 A confissão de Tolstói sobre o quanto lhe era “agradável” doar é só parte da história, é claro, pois ele logo descobrirá sua própria impotência diante da imensa miséria de Moscou: se ele abandona a cidade e seus pobres, depois de tentar ajudar a dúzias de esfomeados enregelados, retornando ao campo e à sua propriedade de Iasnaia Poliana, é pois percebe que não conseguirá fazer sozinho nenhuma grande diferença em meio ao gigantismo da metrópole. Não se vence a miséria com esmolas.

tolstoi ultimosDesesperado, cheio de angústias, numa situação grave onde murmura consigo que “é impossível viver assim”, Tolstói volta para o campo em busca de prosseguir na tentativa de decifrar seus enigmas. Sabe que seus olhos se abriram para horrores tais que ele dificilmente conseguirá esquecer: “Felizes aqueles que jamais abriram os olhos a tais horrores!”, escreve Chestov. “Mas o que deve fazer aquele que os viu, que não pode esquecê-los, que não deseja e não deve esquecê-los?” (pg. 76)

Em Iasnaia Poliana, resolve pôr em prática um novo estilo de vida, convencido de que “não é de dinheiro que os miseráveis tem necessidade”, mas sim de serem “ensinados a trabalhar, a estimar e a amar o trabalho, aquele trabalho através do qual se adquire os meios de existência.” (p. 77) Em outros termos: não dê um peixe, ensine a pescar. De agora em diante, Tolstói considerará uma vergonha ter as mãos sem calos.

Tolstói agora ensinará não somente através de seus livros, mas em ato, fazendo-se exemplo em carne viva que os outros fariam bem em imitar. Convidará seus contemporâneos, através de sua eloquência impressionante, a que cessem de privar outros do necessário por paixão pelo luxo. Consagrará 8 horas diárias ao trabalho físico no campo, descobrindo que ainda assim lhe restam ainda 8 horas diárias para consagrar ao trabalho intelectual. Diz-se cheio de boa disposição, jovialidade, paz d’alma, consciência tranquila. O “ato glorioso em prol do próximo sofredor realizado para lhe servir” parece-lhe um dever santo, quase um imperativo categórico de molde kantiano. E logo Tolstói estará pregando que “encontrou o meio de curar a humanidade de todos os males de que ela sofre”, além de profetizar que “todos os males desaparecerão e os homens se tornarão felizes” (CHESTOV: pg. 81) – e essa maravilha toda ocorrerá, é claro, caso todos ajam como ele.

Apesar da intensa admiração que Chestov nutre pelo “maior escritor da terra russa”, ele não dissimula seu desconforto com a convicção tolstoiana, que ele teria mantido, obstinado, por toda a vida, de que “fora do Bem não existe salvação” (pg. 91). “A validade dos meios recomendados por ele para garantir a cura da humanidade lhe parecia incontestável” (pg. 81). Donde o diagnóstico chestoviano de que há em Tolstói elementos de “intolerância sectária” em relação à opinião dos outros, “em relação àqueles que levam uma vida diferente da sua. Quem não está com ele, está contra ele. E qualquer um que tenha reconhecido a soberania do bem é forçado a dividir seus próximos em bons e maus, isto é, amigos e inimigos.” (pg. 91)

 Esta ética que louva o altruísmo mas que descamba para o maniqueísmo, que pretende ser universal mas acaba por cindir a humanidade em dois grandes grupos, é muito aparentada com o espírito do cristianismo primitivo. Tolstói prega que os homens corram ao auxílio do próximo e isso se tornará para ele a panaceia universal: “ele se persuade mais e mais que descobriu a via que conduzirá sem nenhuma dúvida – e em pouco tempo – à felicidade universal”, e essa certeza na bondade de sua própria conduta permite que ele “avance acusações severas e aniquiladoras contra todos aqueles que não estão dispostos a enxergar a solução na via indicada por ele.” (pg. 84) O princípio moral supremo que o guia agora é: “toda a felicidade dos homens repousa unicamente em renunciar a si mesmo e servir aos outros.” (pg. 88)

Estamos diante de um exemplo paradigmático do que Nietzsche chamará de “moralidade altruísta” ou de “auto-renúncia”, e ao pregá-la Tolstói “repete em língua atual o que os profetas e apóstolos ensinam há dois mil anos”, como frisa Chestov. “Mas se os povos europeus tiveram a Bíblia por livro santo por tantos séculos e não executaram seus mandamentos, como poderia Tolstói seriamente esperar que sua palavra tivesse mais efeito que a palavra de seus mestres?” (pg. 95).

Ao contrário do esperado, os homens não seguem as predicações tolstoístas como o mestre o teria desejado; alguns lêem seus textos como mera “literatura edificante” e não vêem necessidade alguma de imitá-lo ou segui-lo; outros sentem-se deprimidos diante deste “juiz inexorável” que é Tolstói e que multiplica as acusações contra aqueles que nada fazem em prol dos necessitados; Chestov conta até que conheceu um “industrial, milionário, que emprestava dinheiro a juros e se acreditava tolstoísta…” (pg. 95).

Enfim: não é fácil a vida de um pregador. Lembremos daqueles que Kierkegaard chamava jocosamente de “cristãos de domingo de manhã”, aqueles que nada fazem de altruísta ou caridoso no cotidiano, mas seguem com enfado e gravidade os ritos prescritos na Missa semanal. Tolstói decerto revolta-se contra eles, querendo ser um cristão não somente em certos dias ou horários pré-estabelecidos, não somente durante os ritos e solenidades, mas o tempo todo. É o que destaca Jankélévitch:

JANKELEVITCH

Vladimir Jankélévitch, filósofo francês

“Tolstoi o sabe tão bem quanto Kierkegaard: ser um cristão do domingo – do domingo de manhã, entre onze horas e meio-dia… – é a única ambição dos burgueses da paróquia. Porém Tolstoi quer que sejam benditos e santificados não somente os dias feriados, mas também todos os dias úteis, e todas as horas de todos os dias, e cada minuto de cada hora, e cada instante de cada minuto; que a vida inteira em sua plenitude e nos mais humildes detalhes de sua duração seja uma festa perpétua; que a temporalidade seja inteiramente festiva em sua cotidianidade e até no infinitamente pequeno das refeições diárias e até nos vazios do sono! (…) Ora, uma festa contínua é esgotante, e uma santificação de todos os instantes é quimérica; e o desespero de Tolstói é ainda mais profundo…” (JANKÉLÉVITCH: Cursos Sobre Filosofia Moral, Ed. Martins Fontes, pg. 69).

Além dos cristãos de domingo de manhã, há os cristãos que se permitem todos os pecados pois depois se confessam e se acreditam redimidos; há os cristãos que querem empunhar espadas e ir assassinar judeus e muçulmanos; há os cristãos que apoiam os tiranos mais opressores e as moralidades mais repressoras; e há os cristãos que são tiranos opressores e repressores… Além do mais, “ser um cristão em tempo integral”, como parecia ser o ideal tolstoísta, corre outro risco, o de se transformar em maquinismo, em mecanicismo, em comportamento rotineiro e frio. “A virtude não é em nenhum caso um hábito, pois quando se torna habitual a maneira de ser moral resseca-se e se esvazia de toda intencionalidade; torna-se tique, automatismo e despautério de um papagaio virtuoso. Ela é, então, o gesto da devota que, sem mesmo olhar para o mendigo, deixa cair uma moeda na sua tijela.” (JANKÉLÉVITCH, O Paradoxo da Moral, Ed. Papirus, p. 12)

Na leitura de Chestov, o Tolstói dos últimos dias decerto é descrito como cheio de angústias íntimas, mas ao mesmo tempo alguém que as escondia de seus leitores. Portando a máscara do pregador, assumindo a pose grandiloquente do messias, é como se quisesse vencer suas próprias dúvidas ao encarnar uma figura de solenidade profética. Mas um dos problemas com os profetas é que eles tem a mania aporrinhante de, com seus discursos cheios de moralina e ressentimento, condenar comportamentos, atos e palavras que não se adequam a seus ideais. Com esta atitude condenatória espalham o veneno da culpa por todos os cantos, como se quisessem banir do mundo a própria inocência.

No caso específico de Tolstói, quando ele é possuído pelo messianismo que enche as páginas de Os Últimos Dias (Ed. Penguin Books), ele vocifera e escarra sobre tudo aquilo que desaprova – o que incluí até mesmo a obra de Shakespeare! – de um modo que recende a um certo fanatismo: “Tolstói se dá o direito”, escreve Chestov, “de fulminar os homens por sua irreligião/incredulidade” (pg. 164).

Ao mesmo tempo que ataca a Religião Ortodoxa Russa e todos os seus rituais, ridicularizando o rito da hóstia como se não passasse de uma ridícula fé em “bolachinhas abençoadas”, também não escapa daquela ateofobia que alguns homens religiosos possuem entranhada no peito como um preconceito dos mais arraigados.

Lembremos que Pascal, por exemplo, encheu seu livro mais importante, Os Pensamentos, com insistentes afirmações peremptórias sobre “a miséria do homem sem Deus”. “Pascal não cansa de vincular o ateísmo com a loucura e com a doença, como se os ateus não passassem de doentes que precisam ser “curados de um mal”, aqueles que por negarem a existência de Deus caem ao nível das “bestas selvagens”… (CARLI: Crítica da Aposta de Pascal).

Ora, um homem que tanto sofreu, vida afora, com as doenças que nunca o abandonaram, um homem que assiste na primeira infância à morte de seu pai e seu irmão caçula, um homem que presencia todos os horrores cometidos em nome de Deus ou do Reich de Bismarck, um homem que diante das tragédias da existência acaba por não conseguir crer – um homem como Nietzsche! – eis uma figura que, como Pascal e Tolstói recomendam, deveria ser tratado como uma besta selvagem? Como alguém que o profeta fulminador-dos-descrentes tem o direito de condenar, lançar na lama e prometer sua alma ao inferno?

* * * * *

PARTE II

Nietzsche: eis uma vida vivida no “grande sofrer”, que foi trágica desde os seus princípios. Eis um ateu entre muitos outros, é claro, mas o poder de sua filosofia, a beleza de sua escrita, a radicalidade e o vigor de suas idéias, tudo isso que prossegue a ecoar tanto em nossos tempos, mostra o quão complexa, multifacetada e fascinante pode ser a vida do ateu.

As provocações e críticas que a obra nietzschiana possui em tamanha profusão contra os dogmatismos e fanatismos de todo tipo tendem a provocar a fúria dos ateofóbicos e dos crentes fundamentalistas. Quem se revolta contra Nietzsche, ou quem cobre os ouvidos para não escutá-lo, quem prefere o otimismo apaziguador dos evangelhos e bíblias, corões e torás, ou de quaisquer outros escritos ditos “sagrados”, quem enfim se recusa a ouvir o que este descrente tem a dizer (e ele tem tanto!), demonstra com isso, talvez, sua resistência ao reconhecimento de verdades desagradáveis.

Esta resistência às verdades tristes talvez esteja de certo modo “implantado” no aparelho psíquico humano, sendo uma espécie de disposição inata? Como se o “princípio de prazer” a que se refere Freud também invadisse o domínio da linguagem e do mito, nos convidando a crer no que dá mais prazer e nos fazendo fugir portanto de tudo aquilo que causa dor, inclusive algumas dolorentas verdades? Quiçá as mais importantes? Sobre este tema, Ernest Becker fez a melhor das análises que conheço em seu Negação da Morte.

A suspeita que Chestov compartilha com seus leitores é a seguinte: Tolstói, através da “indignação que demonstra com os descrentes”, ou com a “receita do trabalho físico que ele nos propõem como panaceia universal” (CHESTOV, pg. 67), não estaria simplesmente fazendo uso de uma artimanha para se livrar de suas próprias dúvidas?

Os escritos de Nietzsche, por sua vez, são com frequência repletos de uma outra indignação, nos antípodas da fúria tolstoísta – aquilo que indigna a Nietzsche é a arrogância dos que se arrogam o direito de fulminar os descrentes, dentre os quais se encontram com frequências os mais livres dos espíritos livres! “Toda virtude tem seus privilégios: por exemplo, o de levar seu próprio feixezinho de lenha para a fogueira do condenado.” (NIETZSCHE).

Poderíamos dizer que a crença baseia-se em idéias que não devem ser questionadas ou mudadas (exigência de imutabilidade), e que pretendem valer para todos (pretensão de universalidade). No caso da crença monoteísta-criacionista, aquele que se acredita o filho predileto de um Pai Celeste arroga-se o direito de auto-proclamar-se “virtuoso”, pois segue os preceitos escritos nos livros que ele considera sagrados, e então se dá o direito de levar os que rotula de viciosos para a fogueira, o suplício, a excomunhão, o exílio, o opróbrio. Palavras feias para ocorrências horríveis.

Em Nietzsche há defesas explícitas da incredulidade, elogios arrebatados do ceticismo que faz desabarem os dogmas, como se crer no mais cômodo e confortável não passasse de baixeza e comodismo: e isso dito por um homem que não tinha como escapar do sofrimento vitalício que o acompanhou pela vida afora sem que ele tenha a solicitado – como uma espécie de sadismo gratuito do destino.

Isso não significa que todo “grande sofrer” conduza à incredulidade – isso ocorreu, decerto, no caso de Nietzsche, por uma série de especificidades de sua vida que talvez não seja despropositado especular que remetem à primeira infância. O pai do pequeno Fritz Nietzsche, pastor protestante, homem-de-fé bastante firme, pregador do evangelho de Lutero, quando é subitamente fulminado por uma morte precoce aos 36 anos de idade, possivelmente deixou em seu primogênito estranhas dúvidas sobre a Bondade, a Generosidade e a Justiça que eram atribuídos nos sermões ao “Criador de Todas as Coisas”.

Que Deus estranho, este, que fulmina um de seus mais devotados servidores! Um Deus fulminador de padres, que não lhes cura as doenças quando eles rezam a ele por horas, por semanas, pela vida inteira! O quanto questões desse tipo devem ter acometido, em seu luto e em sua incompreensão, essa criança órfã-de-pai que cresceria para se tornar o filósofo da “morte de Deus”, isso deixo a vocês imaginar…

Um dos interesses maiores da obra de Chestov é que ele se interessa por combater a idéia, que encontramos em Tolstói e muitos outros autores da tradição judaico-cristã, de que a descrença é causada por uma “má vontade”, quer dizer, uma vontade . Como se qualquer um tivesse a plena liberdade de crer ou não crer, e aqueles que se descobrem como incapazes de fé seriam necessariamente reprovados no exame e considerados malvados. O problema com este exame, é claro, é que ele foi criado pelos crentes para aprovarem a si mesmos! E assim, criando para si um clubinho fechado que excomunga aquele que não comunga na crença, surge este perigoso fenômeno do sectarismo e todo seu séquito de intolerâncias e perseguições, excomunhões e inquisições. Pois na maior parte das vezes o clubinho que se acha o dono da verdade  se torna imperialista e quer converter o mundo inteiro.

Grande parte da obra de Voltaire debruça-se sobre este tema, eminentemente político, da religião em operação sobre o palco da História quando, em sua pretensão de universalidade, tenta impor-se de modo imperialista sobre as outras seitas e sobre todas as diversidades de descrentes. O sangue que correu por causa disso é tão imensurável que beira o infinito.

Já Zaratustra, que no Ecce Homo é sublinhado de modo insistente por Nietzsche como não sendo nada parecido com um fundador de religião, diz a seus discípulos, a certo momento: “vocês não haviam ainda encontrado a si mesmos e então me encontraram. Assim fazem todos os crentes… Hoje, ordeno-vos que me percam e que vos encontrem!” (“Da Virtude Que Doa”) Zaratustra recomenda que eles percam a fé nesta figura de autoridade que ele mesmo, Zaratustra, se transformou diante dos seguidores, que pensem por si mesmos, que não sejam papagaios do mestre, e que só retornem depois de terem se encontrado…

nietzsche2

PARTE III

“Pour satisfaire la curiosité provenant de l’étonnement,
est-il si indispensable de trouver la verité?”

LÉON CHESTOV

 Se a filosofia nasce do espanto, e se este acirra a curiosidade humana, isto significa que devemos aspirar a uma Verdade que nos retire desta condição de estarrecidos buscadores de respostas para nossos enigmas? Em outras palavras: a Verdade é algo pra se achar e se guardar num cofre (ou num livro), ou simplesmente algo pra se procurar, interminavelmente? Como a Utopia para Galeano, que se afasta 10 passos a cada 5 passos avante que damos, será a Verdade isso que fica sempre no Horizonte, seduzindo o desejo e nos servindo para que caminhemos?

Pobres daqueles que, por terem concluído que já a conhecem, cessaram de busca-la! Não será o filósofo um perpétuo espantado, sempre sedento por alimento para suas miríades de dúvidas e desassossegos? Um curioso insaciável, que não se cansa de questionar suas próprias respostas e multiplicar suas próprias perguntas? O filósofo: aquele que, para cada resposta que encontra, formula 10 novas perguntas…

A crença que alguém possui de ter descoberto a Verdade, de estar em sua posse, eis o que poderíamos chamar de dogmatismo. Aquilo que os dogmáticos sacrificam no altar da certeza é nada menos que a ânsia visceral de onde emerge a filosofia: o espanto, a dúvida, a curiosidade nascida da ignorância. Estabelecer-se na crença de que a verdade já está descoberta e é possuída, cessando assim de questionar as respostas dadas, desistindo de inquirir se as perguntas não estavam mal colocadas ou eram absurdas, procurar o descanso do pensamento na cômoda cama das convicções imutáveis: eis o que assassina o livre-pensamento e faz do filósofo um dogmático papagaio de certezas imutáveis.

Segundo o retrato que Lou-Salomé pinta de Nietzsche no lindo livro que publica em 1894 sobre seu metamórfico e desassossegado amigo, o bigodudo Fritz tinha uma personalidade radicalmente anti-dogmática, como o prova reiteradas vezes a obra deste martelador de convicções e certezas, deste grande “mestre da suspeita”:

“A mudança de opinião, a obrigação de se transformar, encontram-se tão profundamente ancorados no coração da filosofia nietzschiana e são eminentemente característicos de seus métodos de investigação. (…) Sua estranha necessidade de metamorfose, no domínio do conhecimento filosófico, provinha do desejo insaciável de renovar sem cessar suas emoções intelectuais. É por isso que a clareza perfeita não era, a seus olhos, senão um sintoma de saciedade e extenuação. (…) Para Nietzsche, uma solução encontrada não era jamais um fim, mas ao contrário o sinal de uma mudança de perspectiva que o obrigava a contemplar o problema sob um ângulo novo, a fim de lhe encontrar uma nova solução. (…) Nietzsche não admitia que um problema, qualquer que ele fosse, comportasse uma solução definitiva.”[1]

A relação de Nietzsche com a verdade, portanto, é também marcada pela suspeita: ele é precavido em relação a qualquer convicção que pretenda ao status glorioso de verdade; toda solução encontrada é atravessada pelo crivo da dúvida, analisada sob outras perspectivas, compreendida não como um ponto de repouso mas como uma stepping stone que conduz a renovadas reflexões.

 Uma atitude “idealista”, como aponta Chestov, seria a de um “homem que acredita que todas as suas dúvidas, todas as suas questões, todas as suas pesquisas não são nada além de questão de tempo. Todos estes problemas já encontraram faz tempo uma solução definitiva e excelente.” (pg. 36) Um exemplo por ele citado é a tese de Hegel de que “o real é razoável”, ou seja, o credo otimista de que “deveríamos nos representar a vida como respondendo plenamente às exigências da razão” (idem, pg. 38). Crer que a verdade já foi descoberta no passado e que basta se apossar dela através do intelecto; julgar que o real é integralmente compreensível pela razão e explicável em sua inteireza por meio de idéias; e, além do mais, “ter fé no futuro feliz”, como se o progresso fosse obrigatório e estivesse ontologicamente ancorado no seio da História… eis alguns das tomadas de posição, dos parti pris, daqueles que Nietzsche considera seus antípodas.

 Caberia então uma classificação dos pensadores em duas grandes categorias, a dos céticos e a dos dogmáticos? Seria um simplismo desaconselhável instaurar mais um dualismo (como se a filosofia não estivesse já o suficiente atolada em dualismos e maniqueísmos!). Melhor dizer que há muitos pensadores que, “humanos demasiado humanos”, procuram através do pensamento se desembaraçar de suas dúvidas e encontrar um solo estável onde possam instalar-se com suas certezas: por exemplo, uma cátedra ou um púlpito, sobre o qual proclamar às massas ávidas as respostas prontas e certas que se traz na bandeja. Este não é, porém, o caminho dos espíritos livres que Nietzsche descreve como intrépidos experimentadores, inimigos da fixidez, avessos a dogmas, suspeitosos de todos os sistemas, metamórficos e oni-questionantes.


[1] ANDREAS-SALOMÉ, L. Nietzsche À Travers Ses Ouvres. Paris: Grasset, 1992. Pgs. 49 e 84.  No original : “Le changement d’opinion, l’obligation de se transformer se trouvent ainsi profondément ancrés au coeur de la philosophie nietzschéenne, et sont éminemment caractéristiques de ses méthodes d’investigation. (…) Son étrange besoin de métamorphose, dans le domaine de la connaissance philosophique, provenait du désir insatiable de renouveler sans cesse ses émotions intellectuelles. C’est pourquoi la clarté parfaite n’était, à ses yeux, qu’un symptôme de satiété et d’exténuation. (…) Pour Nietzsche, une solution trouvée n’était jamais une fin, mais au contraire le signal d’un changement de point de vue qui l’obligeait à envisager le problème sous un angle nouveau, afin de lui apporter une solution nouvelle. (…) Nietzsche n’admettait pas qu’un problème quel qu’il fût comportât une solution définitive.”

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA PRINCIPAL:

CHESTOV, L. L’Idée Du Bien Chez Tolstoi et Nietzsche. Paris, 1949, Editora J. Vrin.

Flight from Death – The Quest for Immortality [Full Documentary]

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Considero Ernest Becker – vencedor do prêmio Pulitzer de 1974 por “A Negação da Morte: Uma Abordagem Psicológica da Finitude Humana” – um dos mais profundos pensadores do século 20. A abordagem multidisciplinar de Becker, que une Psicologia, Antropologia, Filosofia, Sociologia e Crítica Cultural, permitiu que ele compreendesse a condição humana com uma extraordinária amplidão de visão. Grande leitor e comentador de Freud e Otto Rank, dos existencialistas e de Kierkegaard, de Huizinga e Norman O. Brown, dentre muitos outros autores com o qual dialoga, Ernest Becker foi um brilhante e inovador “sintetizador” do problema antiquíssimo e sempre atual da Mortalidade.

O filme “Flight From Death”, que A Casa de Vidro aqui compartilha na íntegra, é o primeiro documentário calcado na obra de Ernest Becker – e é uma excelente porta-de-entrada para os grandes temas explorados nos livros de Becker. Narrado por Gabriel Byrne e com declarações contundentes de figuras como Sam Keen, Robert Jay Lifton e Irvin Yalom, o filme é uma excelente exploração de como as mais variadas culturas inventam meios para lidar com a finitude da existência humana – e quais são as consequências disso para as relações interpessoais e interculturais.

Uma das idéias-chave do pensamento de Ernest Becker é a de que só compreenderemos a Humanidade, inclusive em suas manifestações mais horrendas (guerras, massacres e arroubos cotidianos de agressividade), quando entendermos nossa relação com o fato incontornável de nossa mortalidade, tão denegada, renegada, sublimada e mal-compreendida. A prática da negação da morte, por exemplo, que Becker descreve como uma denegação tanto psíquica quanto cultural, como prática não só individual mas coletiva, é essencial para a nossa compreensão de nós mesmos e de nossas coletividades.

Doutrinas destinadas a confortar-nos com a ideia da imortalidade estão presentes nas mais variadas culturas e atravessam a história desde os tempos mais arcaicos até a contemporaneidade, A obra de Becker procura avaliar as consequências destas crenças e destes sistemas culturais, em especial quando entram em choque. Afinal de contas, a negação-da-morte tem várias facetas (uma cultura vizinha nega a morte de modo diferente do que a minha própria cultura, assim como em tempos passados vigiam outros tipos de ideologias de negação da morte…) e quase sempre há “clashs” sangrentos entre diferentes sistemas culturais em suas práticas denegadoras da mortalidade.

Enfim, é um excelente filme! Baseado na obra de um pensador que considero muito subestimado, e que está entre os meus psicólogos e filósofos prediletos, um grande desvendador da condição humana e que merece ser muito mais lido e discutido do que é atualmente. A contribuição dele é imensa, em especial a análise de nossa tendência psíquica de fingirmos que somos imortais, agarrando-nos a doutrinas negadoras-da-morte oferecidas no supermercado das culturas. A problemática da fé religiosa é compreendida a partir dos desejos psíquicos que ela satisfaz, mas penso que Becker vai muito além do que expõe Freud em “O Futuro de Uma Ilusão” e tem um pensamento até mais multi-facetado do que o do Pai da Psicanálise.

Deixem-se provocar e refletir por este documentário crucial, que explora as idéias magistrais de Ernest Becker sobre a agressividade humana, o choque de civilizações, a repressão da consciência da mortalidade e suas consequências (tanto individuais quanto coletivas), entre outros temas suculentos, desmascarados sem medo por um filme corajoso e provocativo. É ótimo instigador de reflexões para antropólogos, sociólogos, filósofos, psicólogos e quem quer que se interesse por compreender a condição humana, esta que é tão lotada de “som e fúria”.

Coloquei o vídeo inteiro no Vimeo em 3 partes, saquem aí (em inglês, sem legendas):

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“Patrick Shen’s award-winning “Flight From Death: The Quest for Immortality” is a provocative study of “death denial” in cultures around the world. It draws upon the expertise of scholars, theologians and philosophers to examine how human behavior is influenced by the universal fear of death, especially in a post-9/11 climate of terrorism. It’s a stimulating, ultimately life-affirming film, filled with big ideas and revelatory footage.” -Seattle Times

Gabriel Byrne“Narrated by Golden Globe Winner Gabriel Byrne (Usual Suspects, HBO’s In Treatment, Miller’s Crossing), this 7-time Best Documentary award-winning film is the most comprehensive and mind-blowing investigation of humankind’s relationship with death ever captured on film. Hailed by many viewers as a “life-transformational film,” Flight from Death uncovers death anxiety as a possible root cause of many of our behaviors on a psychological, spiritual, and cultural level.

the-denial-of-death-e9b699lFollowing the work of the late cultural anthropologist, Ernest Becker, and his Pulitzer Prize-winning book Denial of Death, this documentary explores the ongoing research of a group of social psychologists that may forever change the way we look at ourselves and the world. Over the last twenty-five years, this team of researchers has conducted over 300 laboratory studies, which substantiate Becker’s claim that death anxiety is a primary motivator of human behavior, specifically aggression and violence.

Flight from Death features an all-star cast of scholars, authors, philosophers, and researchers including Sam Keen, Robert Jay Lifton, Irvin Yalom, and Sheldon Solomon culminating in a film that is “not only thought-provoking but also entertaining and put together with a lot of class” (Eric Campos, Film Threat). Three years in the making and beautifully photographed in eight different countries, Flight from Death is “a stimulating, ultimately life-affirming film, filled with big ideas and revelatory footage” (Jeff Shannon, Seattle Times).”

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Do corpo efêmero à glória imorredoura – Reflexões sobre a “Bela Morte” na companhia de Jean-Pierre Vernant

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Do corpo efêmero à glória imorredoura:
Reflexões sobre a “bela morte” na companhia de J-P Vernant

por Eduardo Carli de Moraes ::: A Casa de Vidro.com

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“Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens.
Às folhas, atira-as o vento ao chão; mas a floresta no seu viço
faz nascer outras, quando sobrevêm a estação da primavera:
assim nasce uma geração de homens; e outra deixa de existir.”

HOMERO. Ilíada. Canto 6.
(Pg. 239 da edição Penguin & Companhia das Letras,
São Paulo, 2003. Tradução de Frederico Lourenço.)

I. AQUILES E A HIPERTROFIA DO AGONÍSTICO

A morte é um bem ou um mal? As respostas possíveis a esta questão são numerosas, mas podemos exemplificar as opiniões em debate pintando o retrato de duas atitudes que estão em pólos opostos: aqueles que crêem que a morte é uma ponte gloriosa para um Além redentor ou porta-de-entrada para o Paraíso, em contraste com aqueles que acreditam que a morte é somente o colapso do organismo físico e o início de sua desintegração.

A morte pode ser um mal, por exemplo quando ceifa em plena juventude alguém cujas potencialidades não haviam ainda desabrochado, ou um bem, como quando traz repouso a um corpo torturado pelo sofrimento e sem perspectivas de convalescença. Tanto o jihadista que imola-se em um atentado terrorista, na crença de que tão bela morte irá certamente arrancar aplausos de Alá e impelir o Senhor a liberar a entrada do Paraíso para o heróico mártir, quanto o doente terminal que escolhe o caminho da eutanásia (suicídio assistido), acreditam que algum bem pode provir da morte, esta que o poeta Manuel Bandeira tão bem descreve como “a indesejada das gentes”.

A condição humana é tão complexa e surpreendente que a morte, às vezes, é sim a desejada das gentes, desde que seja uma bela morte, repleta de sentido, cuja memória não se apagará da posteridade (mortes tão díspares quanto a de Sócrates, Jesus, Giordano Bruno ou Kurt Cobain podem dar-nos muito alimento para reflexão neste contexto). Longe de ser fácil pontificar sobre a negatividade absoluta da morte, na verdade ela – que o poeta chama de “a ineludível” – aparece-nos como algo inescapavelmente mesclado: algo que suscita terror e êxtase, que é ameaça e promessa, que é odiada como a peste e abraçada como a salvação.

Faço um ritornello para a questão que abriu este texto: “A morte é um bem ou um mal?”  Esta questão, que parece ter o dom da imortalidade (pelo menos enquanto durarem os mortais…), também interessava intensamente aos gregos. Entre os gregos também haviam muitos que acreditavam em boas e más mortes. Diferentes seitas vinculam a glória imorredoura a diferentes atividades: alguns põe a ênfase nas façanhas de conquista, de domínio e predomínio político; outros enxergam honra imperecível na realização de proezas artísticas, científicas, intelectuais, desportivas; enquanto outros ainda creem que morrerão bem caso tenham contribuído com sua semente para a perpetuação da espécie e tenham acendido as tochas de outras vidas humanas; e por aí vai…

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Ao lermos os poemas épicos de Homero, a Ilíada e a Odisséia, conhecemos não apenas os detalhes das carnificinas que gregos e troianos cometiam uns contra os outros durante a década que durou sua guerra fratricida. Em Homero, mais do que apenas descrições intermináveis de batalhas, conhecemos também muito do que se passa no íntimo, nos recessos da intimidade destas figuras heróicas, como Aquiles e Ulisses, que protagonizam muitas das façanhas celebradas em verso pelo poeta.

Um dos méritos maiores da obra tão iluminadora e bem-informada de Jean-Pierre Vernant está na profundidade de sua reflexão sobre o que de fato moldava o caráter, motivava o comportamento e fundamentava a visão-de-mundo dos gregos. Helenista capaz de unir a filosofia à antropologia, a sociologia à história, Vernant mostra-nos como na Grécia da era arcaica/homérica os ideais vinculados à bela morte já estavam em plena atividade.

Na guerra de Tróia, por exemplo, manifestam-se como motivação psicológica recorrente na determinação do comportamento belicista e assassino dos combatentes a idéia de que há glória a se conquistar no exercício da força, da violência, contra um certo outro, estigmatizado demonizado. Há glória para um grego em tripudiar sobre bárbaros e troianos, e vice-versa: eis uma ideologia altamente aristocrática, patriarcal, belicista, sem a qual não é possível compreender os porquês daquela absurdidade de violência interminável que a Ilíada nos descortina.

 Em meio às carnificinas, Homero também pinta o retrato de psiquês, revela-nos nos soldados em batalha a presença de uma fé: a de que para além da finitude do corpo, pode existir sobrevida na posteridade, em especial se levarmos uma vida heróica o bastante para merecer que seja relembrada por gerações futuras. A ambição de sobreviver à morte do corpo com uma espécie de segunda vida feita de glória imorredoura – eis uma das paixões que mais interessam à Jean-Pierre Vernant decifrar, até por ser uma das chaves para a compreensão de quebras-cabeças como o drama épico e trágico, estes monumentos gloriosos da defunta Civilização antiga.

Uma bifurcação do destino revela-se a Aquiles desde cedo, anunciada por sua mãe, a deusa Tétis. Ele cresce sob a pressão de uma ideologia que o impelia a escolher entre duas vidas, mutuamente exclusivas: uma breve e gloriosa; a outra duradoura mas condenada ao esquecimento. Não é possível abraçar ao mesmo tempo as duas alternativas: ele precisa tomar um caminho sabendo que isso excluirá o trilhar do caminho preterido, deixado para trás como uma potencialidade não-aproveitada.

A opção de Aquiles só é dita heróica pois é a escolha pela brevidade da existência. É a afirmação de uma vontade de glória que torna-se mais determinante da motivação do comportamento do que o tradicional freio que o medo da morte impõe aos corpos mortais dos humanos. Aquiles não considera sua vida como valiosa por si própria, pois seu valor é encontrado somente nas vestimentas que o louvor público e o reconhecimento geral conferem, como uma aura, àqueles dignos de figurar nas epopéias que os poetas cantarão. Para certos gregos, o único sentido da vida plausível estava em realizar feitos que os tornassem celebráveis em Ilíadas e Odisséias como os heróis inolvidáveis de um povo!

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Em um artigo sobre a Ilíada bem elucidativo, Douglas Greenfield resume o “Código Heróico”:

The Heroic Code

A few basic principles, the so-called “heroic code,” guide the conduct of the Homeric heroes: to be the best and the bravest and to be distinguished above others; to stand fast in battle; and to help one’s friends, while harming one’s enemies. The Homeric hero endlessly competed with his peers for prestige (timê) with the goal of being recognized as “best” (aristos) and winning the imperishable glory (kleos) celebrated in epic song. His exemplary death is dazzling. It is a “beautiful death” (kalos thanatos). The hero’s greatest fear was failure and the resulting public shame. His responsibility and loyalty were directed towards his immediate circle of friends and companions (philoi).

Aquiles, aquele que deseja que sua vida e seus feitos tenham intenso eco nas gerações subsequentes, leva ao extremo a noção de glória, associando-a principalmente a proezas bélicas. Aquiles é o jovem que põe-se em perigo de morte, que constantemente vai à refrega que tanto ceifa vidas nos ardores sanguinolentos da batalha. E tudo pois foi convencido pela ideologia de seu tempo e de sua classe social a crer como um patinho na lorota imortal: a de que o valor de um homem deve ser medido por sua coragem no cometimento de carnificinas cruéis e por sua capacidade de apropriar-se de butims (inclusive mulheres, cativas da lança, forçadas à escravidão sexual, como é Briseida para Aquiles ao início da Ilíada….).

Um inconfesso pânico íntimo parece também esconder-se em Aquiles: pode ser que ele esteja enganado quanto à sua própria supremacia na braveza. Sempre descortina-se diante dele a perspectiva, vivenciada com um forte temor, de uma derrota humilhante, seguida de uma morte desonrosa. Novamente trombamos com a questão da bela morte e de seu oposto, a morte desonrosa, o que constitui decerto já um bom caminho andado, já que nos recoloca de novo no cerne palpitante da obra de Vernant, em especial em L’Individu, La Mort, L’Amour.

Aquiles, na perspectiva de Vernant, não é uma figura que mereça somente palmas – muito pelo contrário, ele é cheio de vícios, em especial seu extremismo bélico, sua agressividade exacerbada, seu ímpeto de “resolver na porrada”, na crença de tirar da luta um lucro em mérito com o quê exaltar seu pequeno eu trêmulo, ansioso pela aprovação jubilosa dos outros aristocratas guerreiros.

A mentalidade de Aquiles é viciosamente competitiva, bélica, marcada por uma hipertrofia do agonal. Ele não quer parceiros de jogo; não quer companheiros de dança; não quer conviventes em diálogo; o que ele enxerga como caminho para a glória é o derramamento de sangue alheio em duelos bélicos infindáveis, nos quais ele supostamente adquire capital simbólico (para falar no idioma sociológico tão pertinente de Pierre Bourdieu) sob a forma de glória.

Aquiles é um pouco a encarnação de uma condição masculina ainda muito contemporânea, o fenômeno do machão metido a alfa, que de peito inflado bate com os punhos sobre os próprios peitos feito um Tarzan, urrando que é o maioral e que quem discordar vai tomar é sopapos. Um protótipo antigo da atitude do macho que deixa muita testosterona subir ao cérebro e acaba assim prejudicando seus neurônios. O militarismo bronco de quem acredita que há glória em massacrar adversários no campo de batalha, em nome de patriotismos e sectarismos de toda sorte, manifesta-se já em Aquiles – mas nele, também, algumas auroras de questionamento e revolta contra a ideologia hegemônica.

É como se a glória fosse um fantasma constante no horizonte subjetivo de Aquiles, algo que convoca-o à ação, fazendo-lhe buscar tornar-se um imprescindível herói. De fato, é quase unanimidade que Aquiles é o mais valente, o mais audaz, o mais mortífero dos soldados aqueus envolvidos na Guerra de Tróia. E Aquiles é também o mais excessivamente devotado ao extremismo da glória, à ideia fixa da bela morte. Tanto que Vernant escreve que “Aquiles parece empurrar até as últimas consequências – até o absurdo – a lógica da honra.” (L’Individu, La Mort, L’Amour, Ed. Gallimard, pg. 42).

Aquiles é antipático a muitos de seus concidadãos. Este perseguidor da glória, no processo de conquistar para si os holofotes e os aplausos, fez muitos inimigos e largou pelo caminho muitos cadáveres de adversários assassinados. Vernant pinta um retrato de Aquiles que o alça ao status de um vilão shakespeareano: “de coração desumano e selvagem, surdo à piedade, insensível às súplicas”, Aquiles aparece à Vernant como desprovido de algumas das virtudes essenciais que os gregos vinculam à deusa Aidos

Deusa Aidos

Aidos é a deusa da modéstia, da reverência, da humildade – isto, é claro, em um contexto pré-cristão. Para Vernant, Aidos nomeia aquelas atitudes de timidez respeitosa, de renúncia prévia ao trato violento, que tanto auxilia o estabelecimento de vínculos de amizade, de Philia. É a isso que Aquiles é cego: à possibilidade de que um grego e um troiano possam perfeitamente fazer as pazes e tomar um vinho juntos, às risadas, convivendo joviais. O próprio rei Agamemnon “reprocha ao herói de levar tão a sério seu espírito de competição que, em toda parte e em tudo, não tem na cabeça outra coisa senão rivalidade, querela, combate.” (VERNANT,op cit, p. 43)

Quando a Ilíada inicia, Aquiles está em pé de guerra com Agamemnon. A treta que os opõe em tão intenso antagonismo não tem a ver somente com mulheres – Briseida e Criseida – que estes machões autoritários tratavam como se fossem troféus-de-guerra, prêmios de butim. O que está em jogo, como Jean-Pierre Vernant argumenta com tanta ênfase, é mais do que uma briga-de-galos-tarados. Aquiles odeia em Agamenon não somente que este lhe tenha roubado Briseida, que Aquiles por sua vez já havia roubado. Aquiles odeia em Agamenon o rei que fica sempre protegido, em refúgio seguro, com guardas sempre cuidando por sua segurança, enquanto derramam o suor e o sangue os heróicos autênticos, dentre os quais, é claro, Aquiles acredita piamente estar – e destinado por isto a brilhar.

A Ilíada é tão interessante pois coloca-nos no epicentro de uma crise, de um antagonismo explícito como uma fratura exposta entre o rei dos Aqueus – Agamemnon – e o mais eficaz guerreiro dentre os aristocratas aqueus – Aquiles. Quando chegamos ao Canto X da epopéia homérica, Aquiles já fala na linguagem ambígua, densa e revoltada que será depois a de personagens shakespeareanos como Hamlet. Aquiles questiona a própria ideologia que nutriu e derramou sangue por; começa a descrer que há valor e mérito em viver nas batalhas, sofrendo e suando, matando e escapando de tentativas de homicídio, tudo para alimentar os privilégios imundos do déspota, do tirano, que ainda por cima – ó suprema canalhice de Agamemnon – ainda teve a desfaçatez de roubar de Aquiles sua escrava sexual predileta.

Aquiles, este herói em que manifesta-se em hipérbole o impulso agonístico e belicista, está em guerra contra seu rei, que ordenou ir à guerra contra Tróia. E é assim, no canto X, que um desconsolado Aquiles fala:

“Igual porção cabe a quem fica para trás e a quem guerreia;
na mesma honra são tidos o covarde e o valente:
a morte chega a quem nada faz e a quem muito alcança.
Nunca tive vantagem alguma por sofrer dores no coração
ao pôr constantemente em risco a minha vida na guerra.
Tal como a ave que leva no bico a seus pintos implumes
aquilo que encontra, enquanto ela própria passa mal,
de igual modo eu mantive vigília durante muitas noites
e suportei dias sangrentos em atos de guerra,
combatendo homens inimigos por causa das suas mulheres.
Doze cidades de homens eu destruí com as minhas naus;
por terra afirmo que saqueei onze na terra fértil de Troia.
Destas cidades retirei numerosos e excelentes despojos,
e carregando todas as coisas dava-as a Agamêmnon,
o Atrida, enquanto ele ficava atrás, nas suas naus velozes,
para receber. Depois distribuía pouco e ficava com muito.”

Fala de Aquiles no Canto X da Ilíada

Pompeo Batoni - Aquiles

Pompeo Battoni – “Thetis Takes Achilles from the Centaur Chiron” (Via Art Hermitage)

II. DEUSES FABRICADOS À NOSSA IMAGEM E SEMELHANÇA

A história dos gregos é tão imensa, e a paisagem intelectual e artística que nos legaram tão múltipla e diversa, que diante de tal complexidade às vezes nos acovardamos, petrificados como se tivêssemos focado nossos olhos na Medusa, aquela cujo olhar transforma o voyeur em estátua. Mas não nos deixemos petrificar pelo temor e sigamos adiante em busca de um encontro com os gregos que possa nos servir para iluminar nosso hoje!

Como venho tentado explorar, a obra de Jean-Pierre Vernant, brilhante helenista e teórico da civilização, oferece-nos uma preciosa contribuição à nossa compreensão dos gregos, tornando-nos acessível, para reavivamento contemporâneo, lições tão preciosas e fontes vitais tão fortes e profundas que estaríamos traindo a vida e seu élan ao ignorá-las e não aproveitá-las. A Grécia ainda pode fornecer-nos raízes, intensamente transmissoras de seivas, se soubermos entrar em comunicação e contato com os gregos como eles foram em carne-e-osso, no presente de então.

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Zeus e Hera

Por falar em carne-e-osso… uma das sacadas de Vernant foi notar, após seus impressionantes estudos de alta erudição sobre a mitologia grega, que os deuses do politeísmo grego são todos dotados de corpo, ou seja, são divindades antropomórficas e carnudas a quem atribui-se um organismo físico e psíquico muito semelhante ao humano, ainda que os deuses possuam poderes e privilégios sobre-humanos. Os deuses são tão carne-e-osso como os humanos, parece: também comem e bebem através de suas bocas, com a diferença de que por suas goelas privilegiadas só descer ambrosia e néctar, nutrição exclusivamente para VIPs olímpicos.

Atena, Afrodite, Hera ou quaisquer das outras deusas do panteão politeísta grego podem ser imaginadas perfeitamente com uma vestimenta que deixe em evidência as protuberâncias dos seus seios – e além do mais agem com frequência baseadas em motivos tão demasiado humanos como o ciúme, a inveja e a ambição. Já Zeus, Apolo, Dionísio – ou qualquer outro dos olímpicos – também são claramente corpulentos, às vezes beberrões, passíveis de cóleras, apreciadores de bacanais, o que nos conduz à suspeita de que foram fabricados à imagem e semelhança dos gregos em-carne-e-osso, dos gregos concretos, que também muito apreciavam gorós báquicos, bacanais enche-pança e jogos de violência.

Seis séculos antes de Cristo, Xenófanes já havia percebido e denunciado um procedimento que só muito recentemente a antropologia começou a descrever com o termo “etnocentrismo”: “os Etiópios dizem que seus deuses tem a pele negra”.

Com imensa predileção por si mesma, uma cultura ingenuamente narcísica e auto-centrada fabrica deuses à imagem-e-semelhança de seus criadores humanos específicos. Não se entenderá a mitologia separada da etnosfera. Esta tendência Xenófanes chega a transpor, de modo alegórico, para o domínio da animalidade, ao escrever que “se os bois, os cavalos, os leões tivessem mãos para desenhar e criar obras como fazem os homens, os cavalos representariam os deuses à semelhança do cavalo, os bois à semelhança do boi, e eles fabricariam os deuses com um corpo tal qual cada um possui ele mesmo.” [1]

Em termos mais contemporâneos, poderíamos dizer que um certo povo têm uma forte tendência a projetar em seus deuses o seu próprio etnocentrismo, os seus conceitos latentes do que são os valores civilizados e o que é a barbárie. Vale relembrar aliás as origens do conceito de “barbárie”, aliás: os gregos chamavam de bárbaros todos aqueles que não falavam a língua grega, ou seja, aqueles cujos idiomas soavam como mero blábláblá e nonsense. Os gregos, pois, tinham uma identidade coletiva que definia-se não somente a partir do que eram em isolamento, “em si mesmos” e em suas relações “internas”, mas também a partir de suas relações com o exterior, com o território vasto do não-grego, com o mundo estranho para além das fronteiras, aliás frágeis e mutáveis, que delimitam a Grécia. Talvez os mais lúcidos dentre os gregos percebessem claramente também que os bárbaros são legião. A identidade não se faz sem a alteridade, eis um dos pontos mais insistentemente comunicados por Vernant.

Como exímio conhecer tanto da mitologia quanto da filosofia dos gregos, Vernant percebe claramente que “os mais sábios dos antigos, pela luz da razão, souberam reconhecer a vaidade [vanité] do culto idólatra e lançar derrisão sobre os deuses de Homero, esses fantoches inventados pelos homens à sua imagem, com todos os seus defeitos, seus vícios, suas paixões, suas fraquezas.” (VERNANT, op cit, pg. 8)

Isto soa como uma crítica da ideologia religiosa que compreende a fé como uma projeção psicológica, realizada por organismos humanos efêmeros, através da qual eles constituem fantasticamente, em seres mitológicos, tudo aquilo que os humanos gostariam de ser mas não são. Os deuses são versões melhoradas de nós mesmos, fabricados a partir da exclusão da doença, da velhice e da morte que é o fado comum dos viventes.

Vale lembrar que o materialismo filosófico europeu do século XIX havia, através de figuras como Ludwig Feuerbach e Karl Marx, decifrado a fundo os mecanismos de projeção através dos quais o ser humano, condicionado por seu meio social, forja as imagens dos deuses com material que tira de si e de seu entorno cultural. Como se quisesse construir um espelho idealizado de si no céu. O segredo da teologia – dirá Feuerbach – só será desvendado com a chave da antropologia. De certo modo, Vernant parece abraçar este legado, ainda que coloque-o em atividade de modo muito próprio em sua obra como helenista.

Jean-Pierre Vernant escreve em um momento histórico – o século 20 da era comum – em que o corpo gozava já de um estatuto de objeto científico, definível e estudável em termos de anatomia e fisiologia, curável por terapêuticas químicas e psíquicas; não era mais aquele corpo que o fanatismo religioso havia condenado, por séculos, às trevas ascéticas da auto-mortificação. Um problema muito interessante é averiguar o que era o corpo para os gregos, ou melhor, quais foram as diferentes doutrinas e condutas que desenvolveram eles em seu trato com a materialidade do organismo.

O platonismo, decerto, carrega em si uma doutrina de desprezo pelo corpo, ainda que não atinja os extremismos que posteriormente a tradição judaico-cristã, com sua vulgarização de Platão, pregaria. O imperativo ético supremo em Platão é a ascese, que consiste em abandonar a lama imprestável das impressões sensíveis, que afetam nosso aparelho sensorial corporal, e subir a escada dourada rumo às ideias imperecíveis e transcendentes. Sintomas de platonismo podem mesmo ser facilmente identificados e diagnosticados quando deparamos com uma tendência ao dualismo, em especial a cisão entre corpo e alma (mas também entre o sensível e o inteligível, dentre outras oposições duais).

O corpo torna-se então, na perspectiva platônico-cristã, um mero receptáculo provisório de uma alma imortal, esta sim valiosa e que deve ser purificada para que um dia possa voar para longe de seu envelope de carne. É o que Vernant assim sintetiza: “Os Gregos, em especial nas seitas cujas doutrinas Platão transpôs para a filosofia, elaboraram uma nova noção da alma – alma imortal que o homem deve isolar, purificar, de modo a separá-la de um corpo que passa a ter como função nada mais que ser um receptáculo ou um túmulo.” (“Les Grecs ont, dans des milieux de sectes dont Platon reprend et transpose l’enseignement sur le terrain de la philosophie, élaboré une notion nouvelle de l’âme – âme immortelle que l’homme doit isoler, purifier pour la séparer d’un corps dont le rôle n’est plus alors que celui d’un réceptacle ou d’un tombeau.”) (p. 8)

"Wonder", uma obra de Alex Grey

“Wonder”, uma obra de Alex Grey

III. O CORPO É UM FLUXO

Voltar aos pré-socráticos é quase sempre jornada que vale a pena, e também no caso do corpo temos muito a aprender com aqueles que precedem o advento histórico do platonismo. Dos pré-socráticos pode-se dizer que ainda viviam em uma cultura que não estabelecia um corte e uma cisão tão radicais entre corpo e alma, natureza e sobrenatureza, humano e divino. O impacto das doutrinas atomísticas, como a de Demócrito, convidava ao estudo naturalista do organismo em sua unidade e complexidade, de um modo que diríamos hoje holístico, mas é claro que com predominância do somático sobre o psíquico.

Como é que os gregos vestiam simbolicamente o corpo? Eis como nosso problema poderia ser formulado. Pois o corpo, que porta a marca da limitação, da mutabilidade, da incompletude, da deficiência, da precariedade, não é nunca deixado inteiramente nu por uma cultura humana. E não é só com trapos que vestimos os corpos, mas também com uma profusão de símbolos. Inclusive estes mitos de corpos divinos que deixam Jean-Pierre Vernant espantado e instigam algumas de suas reflexões mais incisivas sobre a civilização grega. Se isto continua a nos interessar vivamente, é pois o corpo dos gregos (e gregas) era muito semelhante ao corpo que nós, os mortais vivos de hoje, provisoriamente portamos. E nunca inteiramente nus, nem mesmo nos ardores dos amores carnais, aos quais sempre levamos em nossos corpos despidos, junto conosco, as nossas fantasias…

livro“Engajados no curso da natureza, a phýsis, que ao ritmo dos dias, das estações, dos anos, das durações de vida próprias a cada espécie, faz surgir, crescer e desaparecer tudo o que venha a nascer cá embaixo, os humanos e seus corpos portam a marca de uma enfermidade congenital [infirmité congénitale]; como um estigmata está impresso neles o impermanente e o passageiro. Como as plantas e outras criaturas vivas sobre a terra, é necessário que passem por fases sucessivas de crescimento e declínio: depois da infância vem a juventude, e em seguida o corpo amadurece e envelhece, perde seu vigor, até que chegada a velhice ele altera-se, enfraquece-se, enfeia-se, degrada-se, antes de abismar-se para sempre na noite da morte.” (VERNANT, p. 14)

A inconstância de um corpo submetido inelutavelmente ao rio do tempo, como que acorrentado à physis, talvez explique este ímpeto de criação de mitos que tanto celebrizou os gregos pela posteridade afora. O titã Prometeu é um mito onde os gregos projetaram, de modo hiperbólico, os ímpetos de rebeldia, de rebelião, de desobediência diante dos ditames do Olimpo; nele também vê-se encarnado em mito o temor ancestral de uma punição divina que golpeie com sofrimentos infindos as atitudes ímpias de homens e titãs. Condenado a ficar amarrado a uma montanha e ter seu fígado devorado por um abutre, dia após dia, Prometeu é escancaradamente um mito corpóreo, e tanto é assim que seu presente à humanidade, o fogo roubado dos olímpicos, é uma benesse justamente para os corpos, que ele acalenta e ajuda a alimentar (ao possibilitar o cozimento de alimentos animais, por exemplo).

Do corpo pode-se dizer com certeza que é efêmero. E dos humanos é bem provável que se possa dizer que, se não conseguem contentar-se de ser somente corpo, é pois tem náusea de serem meramente transitórios. Os humanos são os únicos animais que revoltam-se contra a efemeridade do corpo ao fabricar fantasias sobre a suposta imortalidade de uma alma. Esta alma supostamente imortal, figuram como um fantasma na máquina, libertável pela morte, passível de ascender aos domínios etéreos onde vivem os deuses bem-aventurados.

A condição humana, ensina-nos Vernant, está indissoluvelmente conectada a um corpo: “como um fogo que se consome ao queimar e que devemos alimentar sem cessar para impedir que se apague, o corpo humano funciona por fases alteradas de dispêndio e recuperação.” (p. 14) Somos os efêmeros, aqueles cujos corpos são constituídos por fluxos (o sanguíneo, o respiratório, o libinal etc.). Embarcados no rio sempre corrente da phýsis e dotados de um organismo que trabalha por ciclos e conhece seus eclipses. Avançamos, pelos dias afora, na dança entre os sonos e as vigílias, os sóis e as luas, as primaveras e os invernos, bailantes na dança dinâmico do destino. E nunca a sós, pois sempre acompanhados pela alteridade, em toda a sua estonteante multiplicidade.

Sabedoria há em aceitar o corpo, sabendo que todo esforço conduz ao cansaço, mas que todo repouso reconduz à potência; que toda fome saciada por um banquete não é nunca mais que uma satisfação provisória de um ímpeto que tornará a surgir; e que não somente precisamos ir nutrindo nosso organismo conforme ele gasta suas energias, como também é inelutável que, com o uso, o corpo seja conduzido pelo tempo à tumba, este laboratório terrestre onde trabalham incessantemente as forças da renovação.

O que emerge das páginas de Vernant é um retrato da condição humana em que desaparecem as cisões costumeiras entre corpo e alma, vida e morte, bem e mal, de modo que a vida aparece como mélange inseparável dos pólos positivo e negativo. Não podem existir separados nem a tensão e o relaxamento, nem a lucidez e a inconsciência, nem a vigília e o sono, nem o bem e o mal, nem a vida e a morte. Eis a dança da complementaridade de yin e yang que a ancestral sabedoria taoísta chinesa sedimentou em um símbolo imorredouro.

A morte, portanto, não é apenas um evento futuro prometido a qualquer corpo; a morte está mesclada à vida, já que esta tem seus sonos, seus comas, suas fomes, suas sedes, seus desânimos, em suma: seus estados de enfraquecimento orgânico, de declínio do conatus (para usar o termo de Spinoza) ou do élan vital (para falar a língua de Bergson). O sono, a fadiga, a velhice, tudo isso aponta para a incompletude de um corpo como que esculpido diariamente pela morte que habita e coexiste em nossas vidas precárias, que perseveram e persistem até que não podem mais.

O corpo é um fluxo. Isso quer dizer também que não há para os corpos nenhuma escapatória da sina de perecibilidade. É também o decreto cósmico que impõe a renovação periódica de todas as coisas através de um recombinação constante dos elementos. Os deuses, em oposição, caracterizam-se por serem os imortais, os imperecíveis, de modo que é de se suspeitar que os corpos humanos projetaram em suas divindades aquilo de que estavam privados mas sonhavam possuir.

O corpo é inescapavelmente dinâmico, isto é, mutante. E nada simboliza isso melhor do que o sangue, esta substância que flui pelas veias e artérias nutrindo o organismo animal, e que deve sua virtude à seu movimento ininterrupto, impelido pela bomba cardíaca que está encarregada de não permitir parada à circulação. Quando derrama-se de uma ferida, de um corte na pele, de um ferimento de bala ou faca, o sangue então exposto, retirado de seu circuito natural, aparece como propiciador da morte, culpado pela vida que esvai-se. Não há vida sem sangue e há morte possível na hemorragia.

Esta ambiguidade do sangue – vital e precioso quando circula dentro do corpo, horrendo e mortífero quando jorra para o exterior… – pode servir-nos como símbolo da vida mesma, ela que é ao mesmo tempo benesse e maldição, bem e mal, eu e outro, individualidade e conexão.

O corpo para os gregos, longe de ser somente um obstáculo ou um fardo, é algo a ser exercitado, cultivado, bem-cuidado, para o que contribui uma civilização que inventou os jogos olímpicos e que incentivava ginásticas e danças. A palavra kháris, por exemplo, significa uma certa graça que faz brilhar um corpo com uma emanação alegre, um charme carismático que encanta quem o observa.

Também sabe-se o quanto os gregos, em seu militarismo vestido com a grandiosidade da poesia época, celebravam os guerreiros quando seus corpos demonstravam fortitude, ardor no combate, capacidade de auto-sacrifício. Como Vernant lembra, “para designar a nobreza d’alma, a generosidade de coração dos melhores homens, os aristoi (aristocratas), o grego diz kalòs kágathos, sublinhando que a beleza física e a superioridade moral não sendo dissociáveis, a segunda pode ser avaliada somente pela visão da primeira.” (p. 20)

O corpo humano é certamente delimitado, dotado de fronteiras bem concretas, separado de outros corpos e coisas, possuindo seu interior e seu exterior. Mas seria um erro concluir que o corpo está fechado na fortaleza de si mesmo, sendo portanto uma espécie de mônada incomunicável, estanque e sem poros. Pelo contrário, a delimitação do corpo não impede-o de ser uma entidade intensamente comunicante, com uma pele repleta de poros e com orifícios que servem de pontes para o tráfego de substâncias. É imprescindível aliás que o corpo possa receber continuamente, através de suas aberturas ao exterior, o ar e o alimento sem os quais ele não pode sobreviver, além de ser essencial a excreção daquilo que o organismo não pode aproveitar e que exclui de si através das fezes e da urina, também sine qua nons da manutenção vital. O corpo, sintetiza Vernant, é “fundamentalmente permeável às forças que animam-lhe, acessível à intrusão de potências vitais que fazem-no agir.” (p. 21)

Não há escapatória para os mortais: seus corpos estão submetidos à sina da mutação, que inclui também a possibilidade de modificações súbitas, daquele tipo que Lewis Carroll ilustrou tão bem em sua Alice.

Ainda que modifique-se de modo moroso e suave, o corpo segue sendo um fluxo e ninguém melhor do que o velho Nestor, na Ilíada, para exemplicá-lo, já que ele sente saudades de sua força perdida, de seu ardor diminuído, de seu vigor arrefecido. A chamada Terceira Idade conduz à conclusão de que o corpo humano está embarcado num rio de mão única, que flui do presente para o futuro, e nenhum velho recupera a força vital – aquilo que os gregos chamam de ménos – que teve em sua juventude.

Tendo isto em mente, podemos abordar a epopéia sob a perspectiva do corpo: o herói, quando morre em batalha, decerto perde seu corpo, transformado em cadáver, mero soma a caminho da decomposição, mas a história não finda aí. Quando afirmamos que nenhuma cultura permite que o corpo exista em sua nudez crua, queremos dizer também que nenhuma cultura é indiferente ao corpo abandonado pelo fogo vital. Um herói que realizou façanhas será honrado com pompas fúnebres e monumentos póstumos. Um adversário morto em combate às vezes pode continuar a sofrendo novos ataques sobre o seu cadáver, de modo a realizar o inverso de um funeral, a profanação da possibilidade de qualquer rito de louvor ao morto.

No local onde os corpos gloriosos são enterrados, são edificados memento destinados a “lembrar aos homens do porvir, na sequência das gerações, seu nome, seu renome, suas ações”, algo que serve como “testemunho permanente portanto da identidade de um ente que abismou-se, com seu corpo, na ausência definitiva.” (p. 26)

Os poetas adquirem importância crucial para os gregos como aqueles que, através de seus cantos em louvor dos heróis, ajudam a criar para os ausentes uma glória imperecível destinada a passar de geração em geração. Aqueles corpos falecidos são, através da palavra poética que rememora e celebra, “arrancados do anonimato onde evapora-se, na noite do Hades, o comum dos homens; pela constante rememoração, a recitação épica transforma os desaparecidos em heróis brilhantes” (p. 27).

O procedimento de vestir os corpos não deve portanto ser compreendido somente no sentido literal – vestimentas, adornos, calçados, armamentos, paramentos, insígnias etc. – mas também em um sentido mais simbólico: os corpos são ungidos de glória pelos monumentos funerários, pelos louvores públicos, pela poesia épica, de modo que “a permanência de uma beleza imortal, a estabilidade de uma glória que não perece, é a cultura somente que tem o poder de edificar, em suas instituições, conferindo às criaturas efêmeras, desaparecidas daqui debaixo, o estatuto de belos mortos, de mortos ilustres.” (p. 27)


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“Afterwards”, um lindo poema de Thomas Hardy comentado por Joseph Brodsky

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Afterwards

When the Present has latched its postern behind my tremulous stay,
And the May month flaps its glad green leaves like wings,
Delicate-filmed as new-spun silk, will the neighbours say,
“He was a man who used to notice such things”?

If it be in the dusk when, like an eyelid’s soundless blink,
The dewfall-hawk comes crossing the shades to alight
Upon the wind-warped upland thorn, a gazer may think,
“To him this must have been a familiar sight.”

If I pass during some nocturnal blackness, mothy and warm,
When the hedgehog travels furtively over the lawn,
One may say, “He strove that such innocent creatures should come to no harm,
But he could do little for them; and now he is gone.”

If, when hearing that I have been stilled at last, they stand at the door,
Watching the full-starred heavens that winter sees
Will this thought rise on those who will meet my face no more,
“He was one who had an eye for such mysteries”?

And will any say when my bell of quittance is heard in the gloom
And a crossing breeze cuts a pause in its outrollings,
Till they rise again, as they were a new bell’s boom,
“He hears it not now, but used to notice such things”?

Thomas Hardy (1840 – 1928)
* * * * *

“Afterwards” was written around 1917, when Hardy was 77 years old. Joseph Brodsky, in his article “Wooing the Inanimate”, states that “the conceit in this poem is fairly simple: while considering his imminent passing, the poet produces cameo representations of each of the four seasons as his departure’s probable backdrop. Remarkably well served by its title and free of the emotional investment usually accompanying a poet when such prospects are entertained, the poem proceed at a pace of melancholy meditation – which is what Mr. Hardy, one images, wanted it to be.”

Brodsky backs up his claims about the poet’s melancholia by interpreting some of his verses as follows: “I tend to think that ‘an eyelid’s soundless blink’ is a reference to Petrarch’s ‘one life is shorter than an eyelid’s blink’; ‘Afterwards’, as we know, is a poem about one’s demise.” While the seasons drift and change, the poet feels his “tremulous stay” (an expression that can evoke a candle in the wind) and yet imagines what will happen when he’s gone: will others, witnessing the starry skies in winter, remember him and think: “He was one who had an eye for such mysteries?”

Brodsky also claims that “Thomas Hardy’s poetry makes considerable inroads into what is the target of all cognition: inanimate matter. Our species embarked on this quest long ago, rightly suspecting that we share our own cellular mix-up with the stuff, and that should the truth about the world exist, it’s bound to be nonhuman. (…) Come to think of it, the expression ‘matter-of-fact’ could well apply to his idiom, except that the emphasis would be on matter. His poems very often sound as if matter has acquired the power of speech…” (BRODSKY, On Grief and Reason, p. 366 and 374, Harper Collins, 1995)

ThomasHardy
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