Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
Combinando a crítica anarquista ao Estado e ao Capital com uma perspectiva ecocêntrica vinda do veganismo, do primitivismo, da crítica à sociedade industrial ou da ecologia profunda, a filosofia eco-anarquista tem se mostrado uma fonte valiosa de reflexões e provocações para o contínuo desenvolvimento das teorias e práticas anarquistas, desafiando os paradigmas das escolas de pensamento mais tradicionais.
São consideradas como ligadas ao eco-anarquismo as seguintes tendências: o anarco-naturismo (inspirado por Thoreau, Tolstoi e Élisée Reclus), a ecologia social (que não se limita ao movimento iniciado por Bookchin), o anarcoprimitivismo (representado por John Zerzan e os autores da revista Green Anarchy) e o veganarquismo (movimento anarquista e vegano).
O anarcoprimitivismo e o veganarquismo se destacam em tempos de pandemia pela crítica que já faziam há muito tempo à sociedade de massas e à domesticação de animais como fatores da produção de pandemias e novas doenças. (Janos Biro)
CONHEÇA OS DEBATEDORES:
PEDRO TABIO é urbanista, bioconstrutor, agricultor, inpermacultor libertário, eco-anarquista e editor na Monstro dos Mares.
JANOS BIRO é formado em filosofia pela UFG e membro do coletivo eco-anarquista Contra a civilização (contraciv.noblogs.org). Criador do site Contrafatual (contrafatual.com).
RENATO COSTA é chef vegano e estudante de jornalismo na UFG.
EDUARDO CARLI é jornalista, filósofo, mestre em Ética e Filosofia Política pela UFG, professor do IFG, fundador d’A Casa de Vidro, onde atua como agitador cultural.
I) E O LOCKDOWN, ANARQUISTAS?Se observarmos as crises econômicas e políticas, os alertas climáticos, e agora a crise epidemiológica, muito do que um suposto alarmismo radical anunciava vem se concretizando. Hoje os bolsonaristas acusam a pauta do isolamento de alarmismo. Entretanto subjaz o problema da condução das medidas de isolamento por parte do Estado, amparado pelas recomendações dos organismos internacionais de saúde. Na visão de vocês, a possibilidade de isolamento total, obrigatório, conhecido como lockdown, contraria o princípio libertário defendido pelo anarquismo? O fator de controle sanitário, e consequentemente, a necessidade compulsória de isolamento legitimado pela ciência, em “defesa de vida”, contrariam as liberdades individuais e os princípios da auto-gestão coletiva? Quero dizer, o lockdown atenta, por princípio, contra a organização autônoma das comunidades? Ou seria manipulável apenas em caso de qualquer tipo de autoritarismo se valer da pandemia como álibi da repressão, no oportunismo da condução da crise em favor do Estado e do Capital?
II) TECNOFOBIA vs TECNOFILIA
Os ativistas eco-anarquistas, no que diz respeito às táticas de enfrentamento das forças sociais que causam as catástrofes ecológicas, aceitam de bom grado o uso das tecnologias digitais e das mídias sociais como ferramentas de mobilização? Percebem pautas em comum com movimentos como o Software Livre e certas vertentes do circuito hacker? Ou vocês consideram que a anarquia verde aproxima-se mais do anarco-primitivismo, da recusa diante de um cenário cibernético dominado por empresas como Facebook, Google, Apple etc.? Digo isso pois uma publicação do Comitê Invisível,Foda-se o Google (faccaoficticia.noblog.org), coloca em foco a diferença entre movimentos caracterizados por tecnofilia ou por tecnofobia, arriscando também a seguinte caracterização:
“O grosso dos marxistas e pós-marxistas juntam à sua propensão atávica para a hegemonia um certo vínculo à técnica-que-liberta-o-homem, enquanto uma boa parte dos anarquistas e pós-anarquistas se acomodam sem dificuldade numa confortável posição de minoria, ou mesmo de minoria oprimida, acantonando-se geralmente em posições hostis à ‘técnica’. Cada tendência dispõe até da sua caricatura: aos partidários negristas do ciborgue, da revolução eletrônica pela multidão conectada, respondem os anti-industriais que fizeram da crítica do progresso e do ‘desastre da civilização tecnicista’ um gênero literário bem rentável, feitas as contas, e uma ideologia de nicho onde nos mantemos quentes e aconchegados, à falta de entrever uma qualquer possibilidade revolucionária. Tecnofilia e tecnofobia formam um par diabólico unido por essa mentira central: que uma coisa como a técnica existe.” (Cap. 4)
Fragmento do livro Aos Nossos Amigos do Comitê Invisível que trata da expansão tecnológica e política sobre as formas de governo e controle social. “Uma empresa que mapeia todo o planeta, enviando equipes para fotografar cada rua de cada cidade não pode ter interesses apenas comerciais. Ninguém mapeia um território sem intenções de dominá-lo. ‘Don ́t be evil’”.
1. Não existem “Revoluções de Facebook” mas uma nova “Ciência de Governo”, a Cibernética. 2. Guerra a tudo que for Smart! 3. Miséria cibernética. 4. Técnicas contra tecnologia.
III) INTEGRAÇÃO COMUNITÁRIA EM TEMPOS DE CONSUMISMO PREDATÓRIO
Considerando mais especificamente o sujeito político contemporâneo, em relação com a coletividade massificada pelas formas de consumo predatórias, estimuladas em grande parte pela hegemonia neoliberal do culto ao mercado, quais seriam as dinâmicas entre o papel do indivíduo e sua integração comunitária para fixarmos uma agenda de transformações ambientais e sócio históricas, desejáveis no futuro próximo? Mais especificamente ainda, de acordo com os aspectos sociais da atual crise do Coronavírus, interpretados pelo crítica eco-anarquista ao capitalismo em geral, quais as estratégias eco-anarquistas que permitiriam a cada um e cada uma de nós influir numa conjuntura de luta contra as opressões coletivas e a degradação ambiental? Ou seja, minha pergunta vai no sentido de buscar saber como equacionar indivíduo e sociedade, do ponto de vista da filosofia anarquista, no contexto da crise ecológica e sanitária!
IV) A BADERNA ORGANIZADA?
A coleção de livros Baderna, originalmente publicada pela ed. Conrad, depois relançada pela Veneta, trouxe ao público brasileiro a oportunidade de conhecer mais sobre grupos anarquistas e similares, como Luther Blissett, organizados mundo afora, além de propiciar contato com pensadores como Hakim Bey e Raoul Vaneigem. Qual seria, para vocês, a importância de organizações coletivas de ativistas eco-anarquistas? Quais os exemplos destas que vocês poderiam citar? O que pensam sobre certas experiências no mundo atual, citadas por Camila Jourdan e Acácio Augusto, de regiões “liberadas” onde princípios anarquistas estão presentes na prática? Os autores se referem sobretudo “À experiência zapatista no México, cujos territórios autônomos se organizam de maneira federalista libertária, sem Estado e de modo comunal, e o confederalismo libertário de Rojava, no território de ocupação majoritariamente curdo que derrotou o Daesh (Estado Islâmico) e hoje está sob ameaça militar do Estado turco.” (pg. 9)
V) CARNISMO INFECCIOSO – UMA OUTRA ALIMENTAÇÃO ANARCOVEGANA É POSSÍVEL? Em relatório da OMS, Ben Embarek, especialista em segurança alimentar, atesta-se que o novo coronavírus veio do morcego, provavelmente mediado por um outro animal “criado para fornecer alimento”. Além disso, confirmou o que Manuais Epidemiológicos chineses já atestavam: a doença pode circular entre gatos, furões e cachorros. Estes fatos colocam em destaque o risco sanitário envolvido no consumo de carne e no morticínio de animais. O Vegan-arquismo vem denunciando há muito o abandono e a domesticação dos animais – uma sendo condicionante da outra. Pergunto: como vocês trata dessas urgências éticas e ecológicas, a exemplo da necessidade de se adotar uma dieta vegetariana, ou de se representar o veganismo como orientação ao consumo, e também como filosofia em si? Como vocês vêem o papel do veganismo na crise ecológica e na crise sanitária?
VI)A ABOLIÇÃO DO ESTADO: AINDA É O CENTRO DA PROPOSTA ANARCO?
Em Marx Selvagem, Jean Tible busca um “diálogo entre as concepções marxiana de abolição do Estado” com a noção de Pierre Clastres de uma “sociedade contra o Estado”. Sabemos que Marx polemizou com grandes anarquistas de sua época – Bakunin, Proudhon e Max Stirner – a respeito do processo de abolição do estado, visto como fim tanto pelo anarquismo quanto pelo comunismo. A diferença essencial estaria na reivindicação anarquista de extinção súbita do Estado em contraste com um processo mais gradual no âmbito do marxismo que prevê uma transição – a ditadura do proletariado servindo-se do Estado como “instituição transitória, da qual nos servimos na luta durante a revolução para reprimir à força os adversários” (ENGELS, citado por Tible, pg. 192). Para Lênin, o Estado burguês é sucedido pelo Estado proletário no pós-revolução de modo a “reprimir a resistência dos exploradores” (ou seja, combater a reação contra-revolucionária) mas também para “dirigir a grande massa da população na efetivação da economia socialista” (Lenin, 1918, citado por Tible, p. 194). Como compreendem os eco-anarquistas esta questão? É preciso abolir o Estado imediatamente ou gradualmente? De que modo a preocupação com as questões ambientais, ecológicas, de sustentabilidade, justifica práticas e movimentos que visam esmagar o Estado? E como ficam os Mercados e Corporações nesta luta, considerando-se que os Estados neoliberais atuais são basicamente lacaios das mega-empresas e seus financiadores, seus banqueiros, a classe rentista?
“We did not weave the web of life, we are merely strands in it. Whatever we do to the web we do to ourselves.” ― Chief Seattle
Que a Vida emergiu no seio da Natureza, que inúmeros organismos animados incandescem no pulsante coração da Phýsis, isto é o irrefutável – é o que Hans Jonas chama de o “testemunho do Ser” e que é difícil para qualquer vivente conseguir negar. Mesmo o mais empedernido niilista, o mais pessimista dos misantropos, não conseguiriam negar que a vida existe – podem negar somente que ela tenha algum valor, que seja digna de ser preservada, mas o fato ontológico de seu Ser é aquilo que agarra qualquer indivíduo em seu seio com o abraço magnético das verdades irrefutáveis. Nem mesmo os suicidas conseguem negar o fato vital, ainda que apaguem o élan vital deste minúscula parte do cosmos que é um indivíduo. Mas matar-se é sempre afirmar que a vida, indubitavelmente, existia, e que sobrevivem vidas às mancheias a qualquer cadáver. Todo suicida é sobrevivido por uma profusão de vivos que insistem e resistem.
Respiro, resisto, provo que existo. Para além do racionalismo cartesiano, a evidência irrecusável de que há Vida.
Quer a descrevamos como Árvore, quer como Teia, a Vida é aquilo de que não se pode duvidar sem absurdo: qualquer vivo é prova viva de que não existe, nem atualmente nem nos milhões de anos do passado mais recente, Natureza desprovida de vida. Está ao nosso redor em toda a exuberância que alucinava Williams Blakes e Lucrécios, it’s plain to see and it doesn’t need Belief.
A Vida, fenômeno dinâmico e mutável, inclui entre as suas potencialidades uma diversidade de formas cambiante, uma biodiversidade que pode ir do mínimo (imaginemos um mundo onde só existem organismos unicelulares) a uma exuberante cornucópia de milhões de espécies diversas. Este colorido da Árvore da Vida, o número de “frutos” diferentes que esta grande árvore consegue nutrir com sua seiva, varia enormemente conforme corre o rio do tempo em sua infindável viagem. Espécies podem ser extintas em massa devido a eventos cataclísmicos como aquele que, há cerca de 65 milhões de anos atrás, varreu os dinossauros da face da Terra. Não temos que enxergar como nossa responsabilidade coletiva, enquanto seres humanos capazes de impactar tremendamente esta Árvore a qual pertencemos, a preservação das condições não só de nossa própria existência específica, mas de algo mais vasto, de todo o conjunto da pluridiversa teia da Vida? E o que fazemos hoje senão, irresponsavelmente, serrar o galho sobre o qual estamos sentados?
O aquecimento global causado pelas excessivas emissões carbônicas que empestam a nossa atmosfera e produzem o Efeito Estufa, os 9 milhões de mortes prematuras causadas pela poluição e a crescente acidificação dos oceanos são algumas das causas atuantes na contemporaneidade que vem causando uma extinção em massa da biodiversidade terrestre que está entre os processos globais mais assustadores hoje em curso. A ética e a política necessitam dar o salto percepcional – vivemos, como diz Fritjof Capra em Ponto de Mutação – uma crise sócio-ambiental global que decorre também de uma disseminada e nefasta crisis of perception.
Ainda há muitos que não perceberam que a Humanidade, com o conjunto de seus meios de produção, tem transformado tão radicalmente toda a biosfera que hoje tornou-se o perigo suprem para a própria Teia da Vida sobre a face da Terra. No Antropoceno, uma forma de vida pode estar causando a extinção de milhares e milhares de espécies vivas, agindo de uma maneira que justifica plenamente as preocupações da Mafaldita, a guria-filósofa de Quino. Muito esperta e afinada com a filosofia de Hans Jonas, Malfada um dia grudou ao mapamúndi o dito: “CUIDADO! IRRESPONSÁVEIS TRABALHANDO!”
É para transcender a irresponsabilidade hoje hegemônica – e que leva, p. ex., fazendeiros acéfalos, cheios de bufunfa mas nulos de sabedoria, a botarem fogo de maneira criminosa na Chapada dos Veadeiros, como fizeram em Outubro de 2017 – que podemos encontrar muita serventia na filosofia de Hans Jonas. Desde que a conectemos a mais de 25 séculos de reflexão sobre a Phýsis, desde os primeiros pré-socráticos (Tales de Mileto, Empédocles, Xenófanes, Heráclito etc.) até a constituição da primeira teoria científica de explicação da Natureza – a teoria atômica.
O materialismo, em suas primeiras encarnações históricas, com Demócrito de Abdera, Epicuro de Samos, Lucrécio de Roma, faz a aposta ontológica em uma Natureza integralmente composta de átomos e vazio. Em outros termos: tudo que há compõe-se de Matéria a interagir de maneira dinâmica no interior e na imanência de um espaço imenso. No salão de danças do cosmos, sóis e planetas entretecem suas matérias no fluxo sem fim do Tempo, viagem sem arremate, percurso sem repouso. Everything forever flows.
Como a vida pôde emergir deste fluxo? Como a Natureza foi capaz de parir a primeira centelha de vida? Que forças e contextos fizeram eclodir, em meio à matéria inanimada, a vida animada? Isto faltava ao precursor histórico do materialismo: a filosofia de Demócrito, tal como chegou até nós – mutilada pelo Tempo, censurada pelos adversários… – não parece realizar as devidas distinções entre a matéria animada (viva) e a matéria inanimada (ou inorgânica). Darwin e sua Teoria da Evolução pressupõe uma continuidade entre estes dois “reinos”: eles teriam bem mais do que pontes os conectando, seriam ontologicamente unos, unidos no seio do Ser, irmanados pela matéria comum. Demócrito, sobre isso, calou-se.
O esplendor da diversidade da vida seria algo que o materialismo só saberia cantar com o devido esplendor alguns séculos depois, com Lucrécio, poeta-pagão de verbo incandescente, que legou à Humanidade seu “De Rerum Natura – Da Natureza das Coisas”, obra de amplíssima repercussão histórica (como demonstrado por Greeenblatt em “A Virada”), livro que ajudou a parir o Mundo Moderno e enterrar a Idade das Trevas (Saiba mais:http://wp.me/pNVMz-1QY).
Estamos hoje em pleno Antropoceno – nome da nova era geológica que os antropobichos encontraram para designar isto que estamos vivendo, ou seja, o Planeta Terra sequestrado aos desígnios colonizadores de uma Humanidade com mais de 7 bilhões de membros, endoidecida em seus processos de devastação da Natureza e de destruição da Teia (ou Árvore) da Vida.
Nesta encruzilhada urgente e fatal onde a Humanidade se encontra, a maioria de seus membros talvez ainda não tenha acordado para a plena consciência do que significa o homo sapiens ter se convertido em agente de extinção em massa. Que nós, humanos, possamos estar sendo, aos viventes com quem convivemos, algo equivalente a um cometa cataclísmico capaz de varrer os dinossauros para sempre de estarem “among the living”, é uma notícia que muito humano ainda não teve. Ou preferiu recebê-la fingindo-se de avestruz.
O mito de Narciso, que Freud aplicou à Humanidade como um todo em sua célebre preleção sobre as Três Feridas Narcísicas (o Heliocentrismo, o Evolucionismo, a Psicanálise…), merece ser re-ativado para pensarmos os porquês desta lamentável situação em que nos encontramos enquanto “raça humana” (como se diz na expressão infeliz…).
A Humanidade – o conjunto de todas as pessoas que existem em dado momento da história – ainda prefere o seu velho conhecido, o narcisismo antropocêntrico, àquela desagradável tarefa de honestidade consigo mesma que também é um dos alvos inglórios da Filosofia promover. A Humanidade-Narcisa, a Humanidade-avestruz, no geral apenas se esquiva dos conhecimentos que podem ferir sua auto-imagem positiva e brilhosa.
Os membros da Humanidade com síndrome narcísica não querem nem mesmo pensar na possibilidade de que possamos estar agindo como “espécie daninha” e produzindo alguns dos mais hediondos desequilíbrios ecosistêmicos já perpetrados por qualquer espécie de seres vivos…
É o momento, urgente e inadiável, de refletirmos a fundo sobre a Natureza e sobre a emergência, nela, de nós, que somos a natureza em processo de conscientizar-se sobre si mesma (para lembrar uma bela idéia do geógrafo anarquista Elisée RECLUS).
Gosto de pensar a Vida como uma Árvore que cresce por um período imensamente superior no tempo em comparação com as árvores normais que conhecemos: a Árvore da Vida persevera no ser por bilhões de anos, apesar de cataclismos e extinções, o que traz à mente os poetas que lindamente nos ensinaram, como Pablo Neruda, que “pode-se cortar todas as flores, mas não se pode deter a primavera.” Porém, espécies extintas são perdas irrecuperáveis. São primaveras que foram de fato detidas. O que a Natureza forjou em milhões e milhões de anos de evolução, aniquilamos para sempre.
“Estamos em guerra contra a natureza. Se vencermos, estamos perdidos” – Hubert Reeves
Um dos meus maiores interesses na obra do Hans Jonas, “O Princípio Responsabilidade”, livro magistral e que me vejo tão atraído a estudar mais a fundo, está na capacidade deste autor de filosofar com um enraizamento profundo no solo vital da Vida em Árvore, em seu processo infindável de acontecer.
Hans Jonas sabe que o presente da Vida inclui necessariamente, como testemunhado por nós mesmos, a vida consciente, a vida animada por subjetividade. Esta consciência, esta subjetividade, caso queiramos nos manter em solo monista, na companhia de Réclus e de Spinoza, de Deleuze e de Nietzsche, de Darwin e de Marx, esta vida capaz de consciência e que se qualifica como sujeito do conhecimento e da percepção, tem necessariamente que ter emergido do próprio seio da Matéria natural. A Vida emerge da própria imanência material em certo ponto de sua caminhada histórica. Isto não é apenas fato – impõe certos valores. O que é, por ser, implica-nos num dever-ser.
O axioma de Jonas – não muito distante de um vitalismo Nietzschiano – afirma que a Vida exige que a Vida continue. A Vida é um valor e um fim para a Vida. É o que Hans Jonas vai procurar provar através dos meandros de sua prosa filosófica densa e bem argumentada.
A Vida não está aí à-toa. A Vida trabalha. Rumo ao quê? Qual o alvo que a Vida busca em seus labores milenários? Qual o sentido de haver uma Árvore da Vida nascendo e perseverando no jardim terrestre, na espaçonave Terra? Segundo Hans Jonas, em seu ímpeto de tentar dar resposta a questões filosóficas tão antigas e tão sempiternas, a Vida nos dá como testemunho aquilo que não podemos legitimamente recusar: a Natureza tem sim seus fins, seus objetivos, suas vontades, seus télos, e entre eles está certamente a própria vida.
“A subjetividade é, em certo sentido, uma manifestação superficial da natureza – a ponta visível de um iceberg muito maior -, ela fala também em nome do seu interior mudo. Ou: o fruto revela algo da raiz e do caule dos quais ele proveio. (…) A ciência natural não nos diz tudo sobre a natureza: disso é testemunha mais cabal a sua incapacidade de dar conta do caso mais elementar do sentir (e, portanto, do fenômeno mais bem comprovado de todo o universo!) – exatamente a ponta do iceberg. Essa é uma incapacidade essencial, e não provisória. Um efeito colateral e paradoxal dessa incapacidade é o fato de que a própria ciência natural, como um evento no universo a ser explicado, permanece eternamente excluída daquilo que ela pode explicar.
De todo modo, repetimos, da mesma forma como a subjetividade manifesta (que também é sempre particular) é algo assim como um fenômeno que emerge na superfície da natureza, ela se encontra enraizada nessa natureza e em continuidade essencial com ela, de modo que ambas participam do ‘fim’. À luz do testemunho da vida (que nós, rebentos que nos tornamos capazes de compreender a nós mesmos, deveríamos ser os últimos a negar), afirmamos, portanto, que o fim, de modo geral, tem domicílio na natureza. E podemos dizer algo mais quanto ao conteúdo: ao gerar a vida, a natureza manifesta pelo menos um determinado fim, exatamente a própria vida… Evitamos dizer que a vida seja ‘o’ fim, ou mesmo o principal fim da natureza, pois não temos elementos para fazer tal tipo de suposição; basta dizer: um fim.”
[HANS JONAS, “O Princípio Responsabilidade – Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica ” (Das Prinzip Verantwortung – Versuch einer Ethic für die Technologische Zivisilation). Publicado em alemão em 1979 e em inglês em 1984. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006. P. 136-139.]
Ora, se a Natureza tem por um de seus alvos a Vida, e a Vida está aqui como testemunho da resiliência da Natureza na persecução incansável de seus planos, quem somos nós enquanto Humanidade para violar esta lei natural e rompermos com nossa ação conjunta todo o tecido vital? Isso é modo de tratar nossos con-viventes? O desprezo e a negligência, que manifestam muitos de nossos líderes políticos em posição de poder e decisão no topo de hierarquias econômicas e políticas, pelo FUTURO DA VIDA SOBRE A FACE DA TERRA é algo que deveria nos estarrecer, indignar e revoltar. A leitura de Hans Jonas, acredito, possui um certo potencial inflamável: lê-lo poderia nos ajudar a aumentar a temperatura de nossa ação comum contra todos aqueles que violam a vontade natural de que siga existindo Vida em diversidade e em evolução no seio da Natureza imediata – onde estamos mergulhados e enraizados.
“A natureza cultiva valores”, escreve Jonas, e a expressão me faz pensa no Jardim de Epicuro. Ali, cultivava-se a amizade, ali as flores que se queriam colher tinham o perfume delicioso da amorosidade entre pessoas que buscam sinceramente a verdade e a felicidade. Como propor que a Natureza é “neutra de valores” se temos a prova do contrário em nós mesmos, se temos a evidência suprema em nosso próprio coração, na pulsância mesma de nossas viscerais vontades? Se nós, que estamos na Natureza e somos Natureza, perseguimos fins, temos metas, somos impulsionados por desejos por aquilo que encontra-se ainda no horizonte do possível e do realizável, por que a Natureza seria diferente? É o que Jonas chama de “a imanência dos fins no Ser”.
Seríamos, nós humanos, corpóreos espíritos que manifestam por sua própria existência que o Ser em sua totalidade não poderia jamais ser considerado como isento de fins. A Natureza encontra na Vida seu sentido e não teríamos nós, humanos, o direito de tudo destroçar.
“O mais forte argumento do materialismo”, segundo Jonas, é que “em conformidade com toda experiência humana, existe matéria sem espírito, mas não espírito sem matéria: não se conhece qualquer exemplo de espírito incorpóreo.” Ora, esta união corpo-espírito, que atravessa a história da filosofia, de Demócrito e Epicuro, de Lucrécio e Spinoza, de Bergson a Jonas, é aquilo que justifica a noção de felicidade como fim imanente irrecusável de qualquer ética monista-materialista.
É aí que Jonas e Epicuro podem se unir, através dos abismos do tempo histórico, para dançarem uma ciranda muito solidária sobre a canção entoada pela Felicidade – musa-Vênus que, como élan, em nossos peitos irrefutavelmente pulsa:
“Todos os homens, diz-se, almejam a felicidade. Não se diz isso em virtude de uma comprovação estatística, pois ao dizê-lo acrescentamos a afirmação de que tal busca da felicidade se encontra na sua própria natureza; portanto, fazemos uma constatação sobre sua essência. A universalidade do objetivo de ser feliz, definida dessa forma, a princípio não é mais do que um fato: não parece que seja necessário concordar com o consequente esforço de buscá-la; pode-se desdenhá-lo ou rejeitá-lo.
É preciso reconhecer que a busca da felicidade não é fruto de escolhas voluntárias, e o fato de que ela se encontre enraizada de modo tão universal em nossa natureza provoca no mínimo uma forte presunção de que esta seja uma busca legítima. Se ela não indica uma obrigação, pelo menos indica um direito: se não temos a obrigação, pelo menos temos o direito de buscar a felicidade (desde que respeitemos um certo número de condições). Mas daí, por sua vez, resultaria então a obrigação – ou seja, um dever – de respeitar no outro esse direito, de não impedi-lo, e talvez até de promovê-lo.” (JONAS, p. 143)
O que não temos o direito de fazer, argumenta Jonas, é aniquilar a possibilidade do surgimento de novos seres que, como nós, têm a capacidade da finalidade, o desejo de dignamente buscarem serem felizes. Ser responsável – pôr em prática o Princípio Responsabilidade! – é olhar em direção ao futuro e enxergar que aqueles que não nasceram ainda não podem ser por nós condenados à não-existência sem que com isso nós cometamos o mais tolo, o mais vil, o mais suicida de todos os crimes: o crime contra a Natureza, que equivale a serrarmos o galho onde nós mesmos estamos sentados.
Urge acordarmos para o fato de que não temos nenhum direito a depredar a Árvore da Vida, de meter fogo nela como fazem ruralistas do agrobiz no Cerrado brasileiro, e que ao fazê-lo nos expomos à pérfida posição de inimigos da vida, agentes da morte, laboradores pela extinção – feia e triste coisa de se ser…
Estou com os que afirmam e defendem a Vida, irrefutável não só por sua beleza e diversidade, mas por ser, no seio da Natureza, uma das produções imanentes mais complexas e resilientes que Pachamama já pariu de seu incansável útero grávido de estrelas e células.
Temos o direito de condenar futuras gerações de viventes a uma miséria de vida em meio a um ecosistema desequilibrado, caótico, contaminado? Não é irresponsável legar aos vindouros que viverão um dia uma situação tão desgraçada que eles estejam condenados ao fracasso naquela busca pela felicidade que a Natureza solidamente implantou em suas vísceras e nos recônditos de seus cérebros perpassados pela Pulsão, pelo Impulso, pela Vontade?
“O interesse do Outro, que eu devo respeitar, poderia ter como consequência indireta para mim o dever de também promover a minha própria felicidade, cuja limitação poderia perturbar a felicidade comum…” (JONAS: p. 143)
O Princípio Responsabilidade não é exatamente uma doutrina ética que pregue o ascetismo individual, nem exatamente uma pregação moralista que exige o sacrifício da geração presente em prol da futura. Essencialmente um pensador ético-político, Hans Jonas propõe uma nova governança e uma nova legalidade coletivas para os novos tempos – que ele ainda não chamava de Antropoceno, como será batizado por Paul Crutzen . A ética da responsabilidade pela vida vindoura que Hans Jonas propõe postula a posição de primazia que aquele que ainda vai nascer pede de nós, os hoje-vivos, dada a magnitude da potencialidade humana de aniquilar tecnicamente as condições para a continuação da vida sobre a face da Terra.
Esses vindouros que um dia ainda vão nascer neste nosso Mundo Comum, superando o Outro sempre-contemporâneo das éticas tradicionais, devem ganhar mais espaço em nosso radar moral, os viventes vindouros devem se torna o Outro pelo qual nos responsabilizamos. E quando dizemos vivemos vindouros, queremos incluir aí todas as vidas não-humanas, inserir na ética e logo na responsabilização inclusive este estranho Outro, este Outro que ignoramos tanto e tão irresponsavelmente, que é o Futuro Ser Vivo Não-Humano, que desde já estamos aniquilando em vastíssima escala (conferir Elizabeth Kolbert e seu livro premiado com o Pulitzer, “A Sexta Extinção”: http://wp.me/pNVMz-470).
Novos imperativos categóricos daí decorrem. Aja sempre de modo a não aniquilar a possibilidade de continuação da aventura da Vida na viagem do Tempo. Jamais ponha em risco a capacidade da Natureza em prosseguir produzindo a Vida em sua diversidade e em sua capacidade de diversificação, mutação, inovação.
Procure sempre olhar para além do umbigo do instante imediato e enxergue que Mundo Comum, como ensina Hannah Arendt, é aquilo que adentramos ao nascer, que deixamos ao morrer, que precede em bilhões de anos nossa entrada, que sobreviverá por bilhões de anos após a nossa saída.
A dita Mãe-Natureza, a Espaçonave em que estamos todos embarcados, obriga-nos a percebermos, caso queiramos ser sábios e colaboradores de seus astrofísicos projetos, que “diante dos nossos desejos e opiniões particulares ela detém os privilégios do todo diante das partes, do duradouro diante do transitório, do poderoso diante do ínfimo.” (HANS JONAS, p. 144)
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A UTOPIA COMUNISTA EM QUESTÃO: Hans Jonas comenta a herança marxista
Poderíamos legitimamente atribuir a degradação ambiental do planeta toda ao capitalismo? Como a utopia comunista se coloca, no campo de debates e conflitos, em relação à gestão ambiental? O que o marxismo e as revoluções por ele inspiradas propõe diante da perspectiva da Terra, no Antropoceno, vivenciar algumas das piores catástrofes e crises humanitárias já vivenciadas por qualquer geração humana? Precisamos de fato de uma utopia, como a comunista, para guiar nossas ações rumo a um futuro melhor, ou devemos ser mais modestos e, como propõe Hans Jonas, abandonar utopias para focar na tarefa urgente de tornar este mundo um pouco menos hediondo?
Vejamos, por exemplo, no capítulo V de O Princípio Responsabilidade, o que diz Jonas sobre “os efeitos desmoralizantes da exploração econômica”. Ele parte do “mote da crítica marxista ao capitalismo, segundo a qual as relações de exploração são imorais como tal, sendo seus efeitos igualmente desmoralizantes, tanto para os ganhadores quanto para os perdedores. Os exploradores são culpados pelo simples fato de sê-lo e, além disso, como ninguém é capaz de suportar por muito tempo a consciência da culpa, eles sofrem com a deformação moral da insensibilização e da consciência mentirosa, sem as quais não poderiam continuar a desemprenhar seu papel. (…) A sentença socrática, de que o injusto antes de tudo prejudica a si mesmo, cabe aqui também ao ‘explorador’… o sistema é moralmente prejudicial até para os seus beneficiários.” (p. 275)
O capitalismo só tem perdedores – mesmo aqueles que pensam estar ganhando, ou seja, aqueles que comemoram seus privilégios nos topos de pirâmides econômicas, estão moralmente na lama, no lodaçal da injustiça praticada cotidianamente e recalcada através das invenções psíquicas alienantes e perigosas produzidas pela hipocrisia. O bilionário hipócrita irá colocar a máscara de cidadão caridoso ao doar alguns milhões para uma ONG de combate à desnutrição infantil, mas jamais ousará questionar que a própria fonte de seu capital bilhardário seja de fato um sistema que condena milhões a morrer de fome.
O explorador, ao empobrecer o Outro, ao desrespeitar as dignidades mais básicas que seriam de direito de todos. E isso de acordo não apenas com os Direitos Humanos universais mas de acordo também com muitas pregações religiosas, como as do catolicismo, palavra que literalmente quer dizer universal e que jamais previu um deus como Jeová, particularista em sua escolha do povo eleito; no catolicismo, não há povo eleito senão a humanidade como um todo… ao (menos em teoria, ou melhor em teologia, na prática a coisa sempre foi outra e católicos não conseguiram estender aos partidários de Alá os princípios de seu ímpeto kathólico…).
“Os primeiros tempos do capitalismo industrial nos ensinaram sobre o resultado duradouro e objetivo da exploração econômica: a distribuição injusta dos bens (ou seja, não conforme ao trabalho despendido), que pode conduzir um grande número de despossuídos à degradação da sobrevivência mais elementar, que não deixa espaço para mais nada. Sobre isso, vejam o livro de Friedrich Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. É óbvio que tal situação amesquinha o homem como tal: a pobreza conduz ao empobrecimento também do ponto de vista moral. O que se obtém no despotismo, por meio da violência e do medo, obtém-se aqui pela miséria material e a necessidade bruta… Ecoam as palavras de Bertolt Brecht em nossos ouvidos: ‘Primeiro vem a comida, depois a moral’, ‘mas as circunstâncias não o permitem’.” (Ópera dos Três Vinténs)
Quando Brecht escreve esta famosa frase, quer dizer de fato que há uma relação de primazia do pão (primeiro a comida!) em relação à moral. O que queremos não é uma sociedade onde riquíssimos senhores, detentores de capitais provenientes da exploração em massa de seus próximos, fiquem em cima de púlpitos, cátedras ou parlamentos fazendo pregações morais sobre a importância da caridade, ou seja, das esmolas. O que queremos é uma sociedade onde a miséria de muitos não sirva de trampolim os privilégios injustos de poucos. Comentando o mote Brechtiano, Hans Jonas diz: “isso significa que os famintos (ameaçados de morrer de fome), bem como aqueles que estão sendo sufocados, são privados das necessidades das necessidades mais básicas da vida e, por isso, mantidos em um estado pré-moral; mas, em seguida, efetivamente vem a moral, que reivindica seu quinhão.” (p. 256)
A teoria ética de Jonas prevê um “dever moral para com terceiros” que consiste em “ajudar a superar uma condição que inviabiliza a moral”, o que significa construir uma “situação justa” que “abriria as portas para a libertação do potencial humano propriamente dito, que até agora estaria obstruído pelas relações injustas de ambos os lados da divisão em classes.” (p. 257) Parece-nos, pois, que Hans Jonas sonda a sério a possibilidade de que a utopia comunista possa participar da solução de nossos problemas, que envolvem também a tarefa monumental de formular novos paradigmas para a ética e para a política com a perspectiva da responsabilidade expandida, que deve abarcar também os que viverão um dia e não só os que vivem agora.
Porém, aquilo que torna Hans Jonas um crítico contundente do marxismo e das utopias políticas a ele vinculadas é o “culto da técnica”. Marxistas seriam idólatras da tecnologia, estariam de joelhos diante do mesmo deus de muitos capitalistas, ou seja, o chamado “progresso técnico-científico”.
“O marxismo é um dos frutos do pensamento baconiano. Ele se compreende, fundamentalmente, como aquele que foi escolhido para ser o seu executor testamentário. Desde o início o marxismo celebrou o poder da técnica, acreditando que a salvação dependesse da união desta com a socialização. Para ele, não se trata de controlar a técnica, mas de liberá-la dos grilhões da propriedade capitalista, pondo-a a serviço da felicidade humana. (…) Aqueles que são bastante idosos para terem testemunhado os primórdios da Rússia soviética se recordam do lema ‘socialismo e eletrificação’, do livro chamado Concreto, do filme de Eisenstein narrando a heroica construção de uma estrada de ferro, da glorificação dos tratores, da comemoração da instalação de cada nova fábrica e de cada progresso na engenharia, saudados como contribuições ao socialismo. Podemos hoje sorrir dessa fase infantil…” (p. 254-255)
A crítica de Jonas ao marxismo dirige-se, pois, à dominação da natureza pelos meios de produção coletivizados, de modo que mesmo na utópica sociedade em classes os humanos seguiriam impondo excessivas espoliações à Phýsis. Não tenho conhecimento suficiente sobre a obra de Francis Bacon para julgar se Jonas tem razão em vincular o pensamento de Marx e Engels a ele. Parece-me estranho, porém, que O Princípio Responsabilidade trace este vínculo Marx-Bacon e nem sequer mencione um vínculo muito mais sólido, firme, explícito, aquele que une Marx ao materialismo filosófico inaugurado por Demócrito e Epicuro. O próprio jovem Marx, em seu doutorado, devotou-se a analisar as filosofias da natureza destes dois filósofos, de modo que a visão Marxiana da Phýsis parece-me muito mais próxima das percepções materialistas (reavivadas no Iluminismo francês, que Marx tão bem conhecia, por Helvétius, Diderot, D’Holbach etc.) do que da tradição Baconiana… Contestável, a tese de Jonas afirma:
“Pode-se dizer que o marxismo, que integra a ingênua fórmula baconiana da dominação da natureza e a transformação radical da sociedade, pode ser hoje considerado seriamente como fonte de uma ética que oriente a ação predominantemente para o futuro, daí extraindo suas normas para o presente. Pode-se dizer que o marxismo pretende colocar os frutos da herança baconiana à disposição da humanidade, realizando a promessa original de um gênero humano superior, promessa que se encontrava em má situação nas mãos do capitalismo. Por isso, podemos dizer que o marxismo é uma escatologia ativa, da qual tanto a previsão quando a vontade são elementos equitativos, e cuja busca se impõe como um dever irrecusável, posta inteiramente sob o signo da esperança.” (p. 239)
Sabe-se que a série de livros de Ernst Bloch, O Princípio Esperança, é aquilo que Hans Jonas busca refutar em seu O Princípio Responsabilidade. Digamos, de modo simplista, que Hans Jonas prefere uma ética do medo a uma ética da esperança. Jonas acha que o medo da catástrofe deve servir como motivação para o nosso agir presente de modo mais determinante do que a esperança de uma mundo melhor. Ao utopismo, ao “melhorismo”, ao progressismo, ele opõe a noção, supostamente realista, de que o melhor que temos a fazer é combater a vinda do pior. Nosso dever é criar obstáculos à barbárie, é resistir aos destruidores de ecosistemas, é evitar que o pior se concretize. Hans Jonas olha para o futuro com olhos cheios de terror e pânico, e depois nos pede: renunciem à utopia! Só precisamos, no real distópico em que estamos afundados, de responsabilidade, não de delírios quiméricos de comunas perfeitas prometidas no futuro radiante…
“A abundância material, produzida pela tecnologia moderna, constitui um elemento essencial do ideal socialista. De fato, em todas as partes onde o socialismo conquistou o poder, acelerar a industrialização foi a marca da sua política efetiva e resoluta. Assim, é válido seguir dizendo que o marxismo ‘progressista’ na origem,nascido sob o signo do ‘princípio da esperança’ e não sobre o ‘princípio do medo’, é tão tributário do ideal baconiano quanto a sua contra-parte capitalista, com a qual ele compete: a lógica que comanda o projeto socialista é igualar e depois ultrapassar o capitalismo na coleta dos frutos obtidos graças à técnica. Em suma, o marxismo é, quanto à sua origem, um herdeiro da revolução baconiana, compreendendo-se como seu testamenteiro – aliás, como melhor testamenteiro do que o capitalismo, pois mais eficiente.
Resta provar se ele poderá ser superior ao mestre. Nossa resposta é a de que ele só poderá sê-lo caso modifique a forma como interpreta a si mesmo, deixando de ser aquele que traz a salvação para tornar-se aquele que protege do mal, renunciando, portanto, ao seu sopro vital, a utopia. Esse seria um marxismo muito diferente, quase irreconhecível…. Estaria perdido o ideal que o animava (não sabemos se a dor da perda seria ou não salutar). A sociedade sem classes não mais apareceria como a realização do sonho da humanidade, mas, de forma muito sóbria, como a condição para preservar a humanidade diante da era crítica que se anuncia.” (p. 241)
Ora, Hans Jonas insiste que sua obra é escrita na pressuposição de que “vivemos em uma situação apocalíptica, às vésperas de uma catástrofe, caso deixemos que as coisas sigam o curso atual. O perigo decorre da dimensão excessiva da civilização técnico-industrial, baseada nas ciências naturais. O que chamamos de programa baconiano – ou seja, colocar o saber a serviço da dominação da natureza e utilizá-la para melhorar a sorte da humanidade – não contou desde as origens, na sua execução capitalista, com a racionalidade e a retidão que lhe seriam adequadas….” (p. 235) Os excessos de produção e consumo, com as consequentes emissões de poluentes e lixo, trazem para cima de nossas cabeças as nuvens carregadas de tempestade.
O Antropoceno é justamente a fase histórica conde estamos “sob perigo do esgotamento dos recursos naturais” que ocorre devido “a um crescimento enorme do intercâmbio metabólico entre o corpo social e o ambiente natural”, somado ao “aumento numérico desse mesmo corpo coletivo metabolizante, ou seja, o crescimento exponencial da população na esfera de influência da civilização técnica, estendendo-se recentemente por todo o planeta.” (p. 235) Esta globalização da civilização técnica-científica-industrial impactou toda a biosfera, e analisando o marxismo Hans Jonas conclui que ele também é, de certa maneira, cúmplice no culto “Baconiano”. Ficamos tentados a dizer que ele fornece arsenal para aqueles que, dissidentes do marxismo até certo ponto, inventam vertentes ecosocialistas e anarcoecologismos. Filia-se também às teses sobre a necessidade de decrescimento, como as de Serge Latouche.
Decerto Hans Jonas se filia àqueles pensadores que criticam severamente a noção de crescimento econômico, tecnológico e industrial infinitos, uma quimera das mais nefastas e que decorre da incapacidade de enxergar que estamos em um mundo finito e que este dito “progresso” vem se dando às custas da dilapidação de recursos naturais não-renováveis. Nossa situação é tão catastrófica pois o aumento da população humana é uma tendência real, a população humana em ascensão é uma verdadeira bomba demográfica que não tarda a inviabilizar a sustentabilidade da biosfera – em breve seremos, segundo as estimativas, cerca de 9 bilhões de humanos.
“Uma população estática poderia em determinado momento dizer “BASTA!”, mas uma população crescente obriga-se a dizer “MAIS!”. Hoje começa a se tornar assustadoramente evidente que o êxito biológico não só coloca em questão o êxito econômico, reconduzindo-nos do efêmero banquete da abundância para o quotidiano crônico da miséria, mas ameaça levar-nos a uma catástrofe aguda da humanidade e da natureza, de proporções gigantescas. A explosão demográfica, compreendida como problema metabólico do planeta, rouba as rédeas da busca de uma melhora no nível de vida, forçando uma humanidade que empobrece, na luta pela sobrevivência mais crua, àquilo que ela poderia fazer ou deixar de fazer em função de sua felicidade: a uma pilhagem cada vez mais brutal do planeta, até que este diga a última palavra, não mais consentindo em sua superexploração. É com pavor que imaginaríamos as mortes e os assassinatos em massa que acompanhariam uma situação como essa. Mantidas por longo tempo fora do jogo, graças à técnica, as leis de equilíbrio da ecologia, que impediam o crescimento excessivo de uma única espécie, se imporão de forma assustadora, na mesma proporção em que se atingiram os limites de sua tolerância. É um grande desafio especular como será possível que aquela parte da humanidade, que restará, seguirá vivendo em uma Terra devastada.” (p. 236)
A CORNUCÓPIA DAS CRISES E AS TAREFAS DA FILOSOFIA – Reflexões após o III Seminário NUPEFIL e VII Encontro de Filosofia no IFG Goiânia >>> https://wp.me/pNVMz-49v.
PROMETEU DESACORRENTADO – A responsabilidade pelos viventes vindouros na filosofia de Hans Jonas (1903 – 1993) >>> http://wp.me/pNVMz-2dY
NÓS SOMOS A CATÁSTROFE: A Humanidade Como Força Geológica Cataclísmica na obra “A Sexta Extinção” de Elizabeth Kolbert >>>http://wp.me/pNVMz-470
O CINEMA COMO HINO A GAIA: Terrence Malick e “A Viagem do Tempo: Jornada da Vida” (2016, 90 min) >>> http://wp.me/pNVMz-43s
BLISSFUL IMPERMANENCE – A impermanência não é um argumento contra a vida, mas é parte essencial de seu esplendor: um tributo a Alan Watts>>> http://wp.me/pNVMz-43U.
I. PRELÚDIO: CARTOGRAFIA DOS QUE ENCRENCARAM COM O FATO DE TERMOS NASCIDO
Em uma das frases mais impactantes já paridas na história da literatura brasileira, Machado de Assis põe na boca de Brás Cubas, que narra suas memórias direto do além-túmulo, uma súmula de sua estadia entre os vivos: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”
Este sarcástico petardo de pessimismo Schopenhaueriano, que serve de inesquecível epitáfio para as Memórias Póstumas, revela o imenso talento de Machado para inserir em uma única frase todo um tratado de filosofia. Na tradução do livro para o inglês, o título da obra tornou-se Epitaph For A Small Winner, de modo que o pensamento de Cubas ganha ainda mais destaque como “o epitáfio de um pequeno vencedor”.
É uma frase tão magistral que o Emil Cioran (1911 – 1995), um dos melhores forjadores de frases assim, poderia tê-la invejado e ter sentido comichão por não tê-la escrito. Este filósofo romeno, aliás excelente escritor e talentoso estilista da prosa, explorou como ninguém, no pensamento do século 20, o fenômeno que chamou de “o inconveniente de ter nascido”.
Estudioso voraz da história da filosofia, Cioran encontrou seus heróis bem longe de nomes consagrados como Platão e Kant, pensadores de quem foi antagonista e crítico feroz. Preferia mirar-se no exemplo de obscena lucidez do filósofo cínico Diógenes, “um santo da chacota”. Também um profundo conhecedor e debatedor dos escritos de Nietzsche, Cioran decerto sabia muito bem que os pensamentos que problematizam a encrenca que é nascer circulam desde tempos imemoriais. Encontramos um excelente exemplo na mitologia grega: ela nos conta que Sileno, companheiro de Dionísio, teria sido questionado pelo rei Midas sobre qual era, dentre todas as coisas, a melhor para o ser humano.
Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche relembra o mito e conta que Sileno, após ser perseguido pelo Rei Midas pela floresta, foi capturado e questionado sobre o sumo bem para as pessoas, tendo dado uma resposta que atravessará os séculos como um emblema do niilismo:
“Forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras:
– Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer.”
“Sileno Ébrio sustentado por sátiros”, pintura atribuída a Antoon van Dyck. Aproximadamente 1620. Copyright (C) The National Gallery, London.
Fico me perguntando, diante de idéias assim, rotuladas como niilistas ou pessimistas, se isso tudo é pra ser levado a sério. Em mim, confesso, idéias assim fazem cócegas. Isso de “não ter filhos para não transmitir a ninguém o legado de nossa miséria”, isso de ser delicado e generoso o bastante com os não-nascidos para evitar que sofram “o inconveniente de nascer”, são propostas éticas e existenciais a serem seguidas a risca? Ou estas propostas são veículos também de um certo escárnio, de um libertador humor que nos emancipa até mesmo daquele fardo que é crer na seriedade da vida?
O que fascina em idéias deste teor é a ousadia com que confronta-se o senso comum, que tende a conceber a vida como: um dom de Deus, o maior dos bens, a maravilha das maravilhas, valor absoluto e independente de quaisquer circunstâncias. Questionar o valor do nascimento ou da transmissão da vida é pôr em dúvida o próprio dogma quase nunca questionado da vida como um valor absoluto.
Ouvi outro dia que “a vida é uma doença sexualmente transmissível e com um grau de letalidade de 100%”. E não só encontrei aí motivos para o riso, mas também achei neste pensamento tragicômico um bom grau de verdade. Na filosofia budista, aliás, a pior coisa que pode acontecer ao sujeito é ficar empacado na roda do Samsara, renascendo sem fim neste mundinho de tédios e sofrimentos, retornando sempre para a mesma sede insaciável, a insatiable craving que nos torna, segundo Schopenhauer, parecidos a torturados míticos como Íxion ou as Danaides. Nada parece mais desejável aos praticantes do budismo, que aspiram atingir o Nirvana, do que cessar de (re)nascer!
Tendo a achar graça quando leio pensamentos desta estirpe – que abundam também nas páginas de Samuel Beckett ou de Louis-Ferdinand Céline… – pois decerto há algo de cômico nas hipérboles pessimistas, algo que as aproxima do chamado “humor negro”. Descrever o nascimento como um péssimo negócio pode inclusive aliviar o insustentável pesadume de ser: há possibilidade de alívio afetivo na expressão de nossas inquietações existenciais, inclusive aquelas que nos levam a pôr em questão se a vida vale a pena ser vivida.
Em O Mito de Sísifo, Camus dizia que o suicídio é a maior das questões filosóficas. Acredito que Camus pensava que decidir-se quanto à questão do suicídio, abraçá-lo ou recusá-lo, significa escolher entre permanecer na vida, apesar de todo seu absurdo e de todos os aspectos revoltantes e intragáveis da realidade, ou aniquilá-la de vez, manifestando assim, em ato e de fato, o veredito do sujeito sobre a indesejabilidade de viver. Decidir se nascer foi uma boa ou má coisa é algo que implica-nos na filosofia mesmo que não o saibamos; somos filósofos, ainda que inconscientes disso, quando por atos e palavras buscamos dar sentido, forma e mérito a isto que nos aconteceu a todos: nascer.
O aspecto mais enigmático de nascer consiste, certamente, no fato de que ninguém solicitou vir à vida: dão-nos à luz, é verdade, mas é à nossa revelia. Sempre podemos dizer, cada um de nós, com justiça: “não pedi para nascer”. O mundo é um espaço ao qual fomos lançados por forças que parecem transcender totalmente a nossa escolha. O nascimento prescinde da vontade do sujeito que nasce; ele é produto da união de outras vontades, mas vêm à existência sem ter escolhido este rumo, este destino, este fatum. Pelo menos assim parece ser àquele que segue a filosofia materialista, de matriz epicurista, que concebe o tempo de existência como rodeado, no passado e no futuro, por dois grandes e misteriosos nadas:
O filósofo romano Lucrécio (1º século antes de Cristo)
“Olhe para trás: nada foi para nós Todo o tempo infinito antes da gente nascer! Isto é como um espelho vazio onde vêm se refletir Aquilo que será o tempo que se seguirá à nossa morte. O que perceberíamos nisto de horrível ou de triste? Não é isto um repouso mais doce que o sono?”
(LUCRÉCIO: Da Natureza, III, 972-977)
Lucrécio, no clássico poema epicurista Da Natureza, explicitará seu estarrecimento diante do quão pouco os seres humanos se espantam diante do fato de que um tempão gigante decorreu antes deles terem nascido. O tempo que precedeu nosso nascimento é como se não existisse. Tendemos a ficar mais angustiados com a perspectiva do tempo, supostamente infinito, que decorrerá depois que morrermos. No entanto, ambos os tempos – o que precede nossa chegada ao mundo, o que sucede à nossa partida – são enigmáticos, pois transcendem a duração em que está comprimida a efêmera vela de vida dos mortais.
O enigma do mundo antes de nós parece ter premência menor sobre nossa curiosidade do que o enigma similar do mundo depois de nós. Alguns dos mais belos versos de Lucrécio são dedicados a isso, e uma de suas missões na vida, como a de seu mestre Epicuro, era curar o ser humano de seu medo da morte.
Estes exemplos, evocados en passant, são alguns indícios da dificuldade humana de suportar nossa condição. Também mostram uma miríade de diferentes expressões deste desconforto que parece inerente à condição humana, afinal somos (lá vem clichê…) o único animal que sabe que vai morrer. Talvez esta expressão da angústia de ter nascido mortal seja terapêutica, talvez seja até mesmo aquilo que salva alguns do auto-aniquilamento: falar mal da vida e de ter nascido pode às vezes salvar alguém do desejo de morrer, fazendo-o ter pelo menos a ânsia de quedar entre os vivos pelo prazer de expressar os desacertos e desencontros de que nossa condição está repleta.
Sabe-se do potencial de terapia da expressividade autêntica dos afetos há muito tempo, bem antes do advento histórico da psicanálise e de sua terapêutica, batizada por Anna O, desde os primórdios, como talking cure (cura pela fala) e chimney sweeping (limpeza de chaminés). Eu ousaria dizer que toda a poesia – Octavio Paz que me perdoe… – bebe eternamente na fonte da angústia. E diria ainda que falar mal da vida é um dos prazeres mais puros destes viventes que somos diante da encrenca que é termos nascido mortais, passageiros, adoecíveis, frágeis, incompletos, além de condenados sempre a amar o que está fadado a terminar.
Eis algo também encapsulado com perfeição por Woody Allen em uma frase hilária: “a vida é repleta de miséria, solidão e sofrimento – e o pior de tudo é que acaba rápido demais.”
Ora, se “a vida é cheia de miséria, solidão e dor”, não teríamos porquê lamentar seu rápido fim, muito pelo contrário: morrer rápido seria a segunda melhor de todas as coisas, como sugere Sileno ao Rei Midas (a primeira melhor coisa seria, é claro, nunca ter nascido). O brilhantismo da frase de Woody Allen está em explicitar o paradoxo que está em lamentarmos que esta vida-encrenca acabe tão rápido, quando a julgamos tão lotada de aporrinhações. É tão lamentável que esta vida que nos espanca, nos humilha, nos maltrata, que por fim nos destina à condição de comida na cadeia alimentar, tenha ainda o atrevimento e a insolência de ser tão efêmera!
Na sequência, gostaria de explorar duas obras que mergulharam fundo em toda a maravilha e todo o horror de nascer: o inspirado romance Enclausurado (Nutshell), de Ian McEwan (Companhia das Letras, 2016), e o heterodoxo clássico psicanalítico O Trauma do Nascimento, de Otto Rank (Cienbook, 2016). Ambos são contribuições muito originais aos seus respectivos campos e fornecem incontáveis pretextos para a reflexão de todos aqueles que um dia nasceram – vulgo “nós” ou “todo mundo”. São livros repletos de food for thought para todos aqueles que um dia serão food for worms.
II. ENCLAUSURADO: DILEMAS HAMLETIANOS DENTRO DE UM ÚTERO
“Ser ou não ser: eis a questão” – o dilema hamletiano é subvertido por McEwan em Enclausurado e torna-se um “nascer ou não nascer, eis a questão.” O romance é inteiro narrado por um feto dentro do útero e inspira-se diretamente no plot da peça Shakespeareana Hamlet.
Relembremos. Há algo de podre no reino da Dinamarca, vocês sabem bem: o Rei Hamlet foi morto por seu próprio irmão Claudius, que assume o trono e casa-se com a rainha recém-enviuvada Gertrude. O fantasma do rei morto aparece ao príncipe Hamlet, exigindo vingança e reparação; corroído pela insegurança, pela confusão, pela sedução do suicídio, pelo dever da vendeta, o atormentado príncipe descrito por Shakespeare é célebre por monólogos onde reflete interminavelmente sobre o que deve fazer.
Pegando carona neste célebre plot, McEwan encena um genial Hamlet Intrauterino. Já em seu terceiro trimestre de gestação, nosso minúsculo narrador testemunha de dentro de sua clausura maternal um tenebroso conluio entre sua mãe Trudy e seu tio Claude para assassinar seu pai, John Cairncross. O romance extra-conjugal de Trudy e Claude, que logo transforma-se em plano de homicídio com intentos de lucro prodigioso, têm por testemunha fetal nosso pobre protagonista e narrador em primeira-pessoa.
Tanto o pequeno herói de McEwan, confinado na barriga de sua mãe, quanto o príncipe de Shakespeare, têm em comum uma angustiada sensação de impotência, somada à necessidade premente de agir, diante de situações pra lá de encrencadas.
Quando esteve no Brasil, participando das comemorações dos 30 anos da Companhia de Letras, Ian McEwan comentou que um dos principais temas de Enclausurado é a “agência” [agency], ou seja, aquilo que compele o personagem a agir mesmo em um cenário onde tudo conspira para reduzi-lo à total impotência. Pois não parece haver alguém mais utterly powerless, mais totalmente desempoderado, do que um embrião em gestação.
McEwan, cuja trajetória artística têm consistido em ousadias narrativas cada vez mais arrojadas, é um dos gênios da literatura global contemporânea, autor dos magistrais Reparação (Atonement), Enduring Love, Amsterdam, Sábado, Solar, dentre outros. Este escritor britânico já faz por merecer um Nobel de Literatura ou o reconhecimento como autor destinado ao cânone futuro da escrita em língua inglesa. Qualquer crítica supostamente demolidora sobre a “inverossimilhança” de seu enredo cai por terra quando lemos Enclausurado, livro que demonstra que a literatura é um campo para a liberdade imaginativa e não para os realismos confinantes.
De fato, é inacreditável que nosso narrador, com seus 8 meses de existência intra-uterina, tenha tal domínio linguístico e narrativo quanto está manifesto em cada frase, repleta de wit, de Enclausurado. Qualquer realismo foi chutado para escanteio, mas assim é também em grandes clássicos da literatura, e não somente do gênero ficção científica, que também não se deixaram engaiolar pela descrição realista. Caso a literatura tivesse se mantido agrilhoada ao realismo estrito, não teriam nascido obras-primas como o Frankenstein de Mary Shelley, a Viagem ao Centro da Terra de Julio Verne, as Crônicas Marcianas de Ray Bradbury, nem as obras de Vonnegut, William Gibson ou Philip K. Dick, nem… os exemplos são infindáveis.
Em Enclausurado, a leitura é tão deliciosa, a narrativa é tão arrojada, que não nos incomoda nem um pouco a absurdidade patente de que estamos diante de um bebê com uma inteligência e uma sensibilidade tão prodigiosas e precoces. Na real ele mais parece um bebê que tivesse o cérebro… de Ian McEwan.
“Então estou aqui, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda. Meus olhos se fecham com nostalgia quando lembro como vaguei antes em meu diáfano invólucro corporal, como flutuei sonhadoramente na bolha de meus pensamentos num oceano particular, dando cambalhotas em câmera lenta, colidindo de leve contra os limites transparentes de meu local de confinamento, a membrana que vibrava, embora as abafasse, com as confidências dos conspiradores engajados numa empreitada maléfica. Isso foi na minha juventude despreocupada…” (Cap. 1, p. 9)
O livro já começa encapsulando em poucas linhas muitas das melhores qualidades da prosa de McEwan: seu humor cáustico, que remete a Sterne ou Swift, explorado com magistrais efeitos também em seu romance Solar, tão genial e ainda subestimado; seu interesse pela vivência carnal, biofísica, de personagens que são enxergados sob o viés de um olhar “científico”, informado pela neurociência, pelo evolucionismo e pela pertença à complexas circunstâncias geopolíticas; sua capacidade de criar um suspense, uma thrilling vibe, através de situações extraordinárias que parecem desafiar a possibilidade da palavra escrita de descrevê-las.
O bebê que está enclausurado no ventre de Trudy, observando a mãe transformar-se em cúmplice do assassinato do pai, terá para si o dilema de Hamlet: vingar ou não vingar o ato horrendo de envenenamento de John Cairncross, não só pai da criança, mas talentoso editor de livros de poesia e “caça-talentos” no mercado editorial inglês. O bebê que antes curtia o resort aquático de seu oceano particular, curtindo a beatitude de um útero espaçoso, nutrido sem esforço algum (inclusive com doses embriagantes de bom vinho!), aproxima-se do momento de nascer quando a situação lá fora está pegando fogo.
Ele vê-se na necessidade de agir antes de nascer, de intervir no enredo de algum modo. Em cenas impagáveis e hilárias, descreve sua relação de ódio e rechaço diante da pica ereta de seu tio traíra; na hora do boquete, fica temendo que sua mãe engula a porra do tio e que aquilo acabe chegando para nutri-lo através do cordão umbilical; a certo ponto, desesperado, tenta suicidar-se, enforcando-se no próprio cordão umbilical. É um fracasso (Cap. 13). A vida deste ainda-não-nascido não é mole…
Antes mesmo de ser plenamente, ele parece pender para a escolha do não-ser: “A gloriosa sociedade à qual em breve me reunirei, a nobre congregação de seres humanos, seus costumes, deuses e anjos, suas ideias ardentes e brilhante fermentação intelectual, já não me excitam… No meu estado de espírito, me inclino pela esterilidade do natimorto, depois as cinzas.” (Cap. 10, p. 97)
Em outros momentos, este mood suicida é vencido por um temperamento mais jovial, por uma ânsia de vida, em que o bebê mostra-se corajoso, cheio de audácia para enfrentar a aventura perigosa do viver: “Quero minha chance, a vida que me espera… Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta anos? Embrulhe, vou levar.” (p. 164)
Estas oscilações e mood swings são parentes próximas dos monólogos hamletianos. Mas McEwan sabe evocar temas que não poderiam estar nas reflexões de Hamlet enquanto procura determinar se deve ou não vingar a morte do pai. Hamlet não poderia, por exemplo, debater as idéias do filósofo político Thomas Hobbes, o que o bebê prodigioso de McEwan faz. Evocando o Leviatã do Estado, o bebê a certo ponto procura dissuadir-se da vingança:
“Fazer a lei com as próprias mãos – isso é coisa do passado, típica de velhos albaneses com rixas de família e subdivisões do Islã tribal. A vingança está morta. Hobbes tinha razão, meu jovem. O Estado precisa deter o monopólio da violência, um poder centralizado que inspire em todos nós um temor reverencial.” (p. 61)
E é justamente o avanço dos agentes do Leviatã que servem de prelúdio ao nascimento do enclausurado: os policiais, a detetive de homicídios, despontam no horizonte existencial do embrião, enquanto ele assiste, de camarote, ao plano tétrico de sua mãe e seu tio chafurdar na lama de uma comédia de erros, daquelas que poderia ser filmada pelos irmãos Coen.
O bebê de McEwan vai percebendo, filósofo político mirim alimentado pelo noticiário, que a vingança sangrenta – o caminho Hamletiano, que arrastou em seu turbilhão de sangue os cadáveres de Ofélia, de Polônio, de Claudius, de Gertrude e do próprio príncipe, naquele banho-de-sangue palaciano que Shakespeare pinta em tão fortes cores – não será o seu.
“Hamlet e a Caveira de Yorick” – Pintura de Delacroix
“Vingança: o impulso é instintivo, poderoso – e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nessa extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. (…) A vingança pode ser executada 100 vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar. Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao statu quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio – ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante… A eliminação de Claude não trará meu pai de volta.” (p. 139)
Vocês vêem que o bebê, sábio apesar da tenra idade, consegue controlar seus impulsos de derramar o sangue do tio assassino e boçal; apesar das fantasias sangrentas que nutre, chega à decisão ética de que não vale a pena nascer para matar Claude, por vingança. O que vemos, na verdade, é o bebê transformar-se sorrateiramente em parceiro do Leviatã.
Legalista, o bebê enfim decide pela ação que dá desfecho à trama: diante do plano de fuga da mãe Trudy e do tio Claude, casal com as mãos sujas de sangue (ou melhor, de veneno…), ele toma a decisão de colaborar com a polícia. De dentro do útero, escolhe o momento mais inoportuno possível para romper a bolsa, forçando a barra para sair logo de sua bolsa de líquido amniótico. Sua vingança, ao invés de pagar na mesma moeda, consiste em sabotar o plano de fuga dos criminosos, contribuindo assim para a prisão dos homicidas.
“Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilamento e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. Hora de entrar em ação. Hora de começar… Duas semanas antes do tempo e unhas muito compridas…” (p. 193)
O rompimento da bolsa pelas unhas compridas da crianças, duas semanas antes do previsto, é também uma espécie de irrupção da liberdade na existência do bebê que narra Enclausurado. Ele tomou uma decisão, entrou em ação, sepultou a passividade, parou de pensar e passou a fazer. Nasce experimentando toda a glória e todo o horror da condição destas criaturas que, segundo Sartre, estão “condenadas à liberdade.”
Jovem grávida (2010) – de Dimitri Kozma
“Atravesso uma região que, eu sei, um pedaço do meu tio frequentou com demasiada frequência indo na direção oposta. Não me preocupo. O que nos dias dele era uma vagina agora tem o orgulho de ser um canal de nascimento, meu Panamá, e sou maior do que ele, um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas. Nenhum caralho ocasional pode competir com isso. Durante algum tempo, fico surdo, cego e mudo, tudo me dói. Mas a dor é maior para minha mãe, que, aos gritos, faz o sacrifício de todas as mães por suas crias de cabeça grande e pulmões vigorosos…” (p. 198)
É como se McEwan fizesse o seu pequeno Hamlet decidir-se quanto aos dilemas do ser ou não ser, do vingar ou não vingar, de maneira mais “madura” e “civilizada” do que o príncipe da tragédia Shakespeareana. Apesar de todos os pesares, o herói em sua Nutshell – literalmente, “casca-de-noz” – vivencia altos dramas em seus 9 meses de vida, em que flerta com o pessimismo suicida mas termina como cúmplice do Leviatã. Nasce, como todos nós, berrando um primal scream saído dos pulmões de alguém que sabe que, ao nascer, a sua encrenca só começou. A última frase, genial, é simplesmente: “the rest is chaos” (“o resto é caos”).
Um aspecto pouco explorado do talento de McEwan está naquilo que eu chamaria de suas digressões geopolíticas, em que a literatura mostra-se profundamente antenada com os problemas coletivos globais, como o escritor já havia realizado, por exemplo, em Sábado, que se passa naquele memorável dia de mobilização global contra a Guerra do Iraque – 15 de Fevereiro de 2003 – e que levou às ruas de 600 cidades, em 60 países, mais de 5 milhões de cidadãos (Folha De São Paulo: “Maior Protesto da História Pede Paz”).
O protagonista de McEwan em Enclausurado têm sérias dúvidas sobre se nascer será um bom negócio, e isto não se deve somente à sua situação familiar e privada, mas também por sua percepção de que o mundo anda muito complicado e conflitivo. De dentro do útero, ele informa-se sobre a realidade do planeta através de podcasts e palestras ouvidas por sua mãe, de modo que transforma-se logo em alguém que debate internamente com pensamentos pessimistas e desesperados diante do estado das coisas:
“Uma especialista em relações internacionais me informou que o mundo não vai bem… A palestrante mostrou uma visão sombria de nossa espécie, em que os psicopatas constituem uma fração permanente, uma constante humana. A luta armada, justa ou não, os atrai. Eles ajudam a transformar desavenças locais em conflitos mais amplos. Segundo ela, a Europa, em meio a uma crise existencial, está irascível e fragilizada porque muitas variedades de nacionalismo autoindulgente estão provando dessa mesma poção saborosa… Unindo e nivelando toda a humanidade, os velhos e tediosos fatos da mudança climática, do desaparecimento das florestas, das criaturas e das calotas polares. A agricultura rentável e perniciosa destruindo a beleza biológica. Os oceanos se transformando em bacias de ácido diluído… Robôs roubando empregos…” (p. 32 -34)
Há páginas em que McEwan parece um sociólogo à la Bauman, fazendo leituras de conjuntura, mas isto está sempre inserido, como digressão, em sua teia narrativa. O bebê de Enclausurado, longe de ser totalmente narcisista e auto-centrado, focado apenas em sua intriga familiar, é alguém com interesse pela história, pela política, pelas relações internacionais, pela ecologia etc. Apesar da situação desgraçada em que ele vai nascer, num contexto tanto individual quanto coletivo dos mais encrencados, ele dá mostras de uma intensa ânsia de viver, mesclada com curiosidade, desejo de vivência, conatus em estado puro, invencível por quaisquer reflexões teóricas ou racionais.
“Quero ler até o final a Minha História do Século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de Dezembro de 2099. Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heróica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de 100 anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky.
No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os 9 bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? (…) E quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de 4 graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político…” (p. 133-134)
Eis um exemplo do quanto Ian McEwan é um autor plenamente embarcado no século 21, com suas sombrias perspectivas de disrupções climáticas, conflagrações nucleares e os fantasmas sempre redivivos do totalitarismo, do fascismo e do obscurantismo religioso militante. Pulsa nele também um forte espírito de valorização da empreitada tecno-científica, que não parece ser deslumbre acrítico diante de geringonças hi-tech e de prodígios como a Internet e os satélites, mas sim reconhecimento dos imensos avanços ocorridos, por exemplo, na área da neurociência, da genética e da medicina, sensível na ampliação inegável de nossa expectativa de vida (ao menos nos locais da terra onde há acesso à médicos e medicamentos…).
Enclausurado é um livro poderoso, que dá novo sentido à expressão “literatura visceral”, dialogando de modo fecundo e criativo com este clássico universal que é Hamlet. Revela também potência para ser debatido no âmbito da psicologia – tema do próximo capítulo, centrado na obra de Otto Rank, O Trauma do Nascimento. O protagonista de Enclausurado é alguém para quem nascer é um trauma, e mesmo aquilo que precede o nascimento está longe de ser um picnic de beatitude e despreocupação. Seus últimos momentos de vida intra-uterina e sua irrupção no mundo revelam um inesquecível personagem que sabe e sente, em carne viva, que nascer é uma grande encrenca.
III. OTTO RANK: O TRAUMA DO NASCIMENTO
O Trauma do Nascimento (Cienbook, 2016, 192 pgs) foi originalmente publicado em 1924 e levou seu autor, Otto Rank (1884 – 1939) a romper com o movimento psicanalítico fundado pelo “professor Freud”, com quem havia colaborado e debatido por duas décadas. Otto nasceu em Leopoldstadt, uma periferia de Viena, em 1884, em família de raízes judias, os Rosenfeld. Otto Rosenfeld, em certo momento, decide-se a mudar de sobrenome, adotando “Rank” por inspiração na peça de Ibsen, Casa de Bonecas.
Ainda com 20 e poucos anos, escreve um livro sobre um dos temas que mais o ocupará em sua vida: a criação artística à luz da psicanálise. O trabalho impressiona o próprio Freud, que ajuda a publicá-lo; o “pai da psicanálise”, “impressionado com as qualidades intelectuais e o entusiasmo do jovem Rank, não apenas lhe concede um posto de secretário da Sociedade Psicanalítica de Viena (entre 1910 e 1915, quando teve oportunidade de protocolar todas as discussões do período), como também financia seus estudos universitários até o doutorado em filosofia, em 1912, com a tese O tema do incesto na literatura e no mito. (…) Em 1920, começa a atuar como psicanalista, com uma clínica no coração de Viena. Ele gozava do respeito e do afeto de Freud mas não um diploma em medicina…” (Érica Gonçalves de Castro, p. 11-12)
Da esquerda para a direita, sentados: Sigmund Freud, Sándor Ferenczi, Hanns Sachs. De pé; Otto Rank, Karl Abraham, Max Eitingon, Ernest Jones. 1922.
A obra de Otto Rank, de fato, manifesta um desejo de libertar a Psicanálise do confinamento no âmbito da medicina e da cura dos transtornos mentais e emocionais; sua ambição é que a psicologia, para além de seu benefício prático/terapêutico, possa fornecer chaves de compreensão para os mais longevos e insistentes mistérios, enigmas e esfinges da existência humana. Na década de 1920, Rank exporá sua polêmica teoria, fadada a tornar-se razão para muitas desavenças com seus colegas, em que concentra-se no sentimento de desamparo que sentimos após o nascimento e que seria determinante, vida afora, como um anseio de retorno ao útero materno.
O nascimento como trauma universal geraria um fenômeno subjetivo muito disseminado, um desejo onipresente apesar de recalcado, encontrável numa inumerável amplidão de produtos culturais e fantasias individuais: a nostalgia do útero, a fantasia de retorno a um estado concebido como paradisíaco (e que foi perdido). Este ímpeto libidinal de retorno ao contexto intrauterino, do qual fomos expulsos pelo parto, marcaria não só o mundo onírico de nossas noites (tanto as amenas quanto as de pesadelo), mas estaria presente, ainda que de modo disfarçado, nos mitos, nas religiões, nos produtos culturais, nos artefatos, nas criações artísticas, nos sistemas filosóficos etc.
O Trauma do Nascimento cai como uma bomba no seio da ortodoxia Freudiana: pela primeira vez, alguém ousava questionar os dogmas do Complexo de Édipo e sugerir que a ansiada chave de explicação para os fenômenos psíquicos podia estar em um momento anterior à própria emergência do curinga Freudiano. Antes do Édipo, o trauma do nascimento – nisto seria resumível a contribuição de Otto Rank a este ponto de sua reflexão.
Ele ousou sustentar que havia uma espécie de fato psíquico universal, que atinge os sujeitos em todas as épocas e espaços geográficos, vinculado à experiência que todos compartilhamos de termos vivenciado o contraste entre o ambiente intrauterino (pré-natal) e o extra-uterino (pós-natal). Nascer, para Rank, ainda que nenhum sujeito possua memórias claras e nítidas de sua vivência nas horas do parto, deixa profundas marcas não só no âmbito da psique individual, mas na determinação dos destinos coletivos.
Quando Otto Rank busca aclarar as obscuras maquinações da sexualidade humana, quando visa explicar as complexas criações culturais da libido sublimada e do amor socialmente codificado, chega a conclusões que, reconhecendo o poder do platonismo e suas concepções sobre o Eros, parece atingir Platão em sua raiz, ou seja, em seu idealismo, já que o corpo animado pela libido ganha a primazia, e não mais o mundo inteligível das idéias-paradigmas eternas, que lá da transcendência exerceriam uma misteriosa atração sobre nós:
“O amor sexual, que atinge seu ápice na união sexual, surge como a tentativa mais admirável de um restabelecimento da situação original entre mãe e filho, que só se completa com a fertilização de um óvulo. E quando Platão, seguindo as tradições orientais, define a essência do amor a partir da atração de duas partes separadas que outrora estiveram unidas, esta é a descrição poética mais bela da maior tentativa biológica de superação do trauma do nascimento através do amor genuinamente ‘platônico’ – o da criança pela mãe.” (OTTO RANK, p. 56)
O Eros platônico – que, durante o Banquete, Aristófanes vincula à busca pela metade perdida – é re-inserido no âmbito da biologia por Otto Rank, que formula uma explicação que dispensa quaisquer elementos sobrenaturais ou transcendentais para a explicação do chamamo “amor platônico”. Este têm por paradigma original, não qualquer ideal eterno, mas a vivência carnal e concreta da gestação e posterior nascimento. Não foi o raio de Zeus enfurecido que cortou em dois as criaturas duais e conexas que éramos no passado mítico; foi simplesmente o trauma do nascimento que instaurou uma situação existencial originária de separação, em que o sujeito fica com seu desejo de certo modo atado ao desejo impossível de retorno ao útero. A proibição cultural do incesto, o poderio repressor do pai, a rivalidade entre irmãos, a competitividade social, tudo isto virá depois deste fato básico incontornável de que nascer foi uma ruptura orgânica que separou em dois organismos o que por 9 meses foi uma conectadíssima simbiose.
O componente de heresia e de heterodoxia que torna-se explícito quando lemos O Trauma do Nascimento está essencialmente na ousadia através da qual Otto Rank explica uma ampla miríade de fenômenos remetendo à experiência visceral da primeiríssima infância. Deuses e demônios, Édens e Infernos, não escaparão de serem explicados como projeções fantásticas realizadas por sujeitos que possuem complicadas relações com sua libido, que não se resignou à perda de seu paraíso primevo, o intrauterino. Estou simplificando muito, mas em última análise Rank afirma que o útero é a fonte de todos os paraísos e todos os infernos. A experiência visceral do parto é aquilo que explica todos os mitos da Queda e do – esqueçam Milton! – Paraíso Perdido. “O problema do nascimento humano de fato está no centro do interesse mítico e do infantil, influenciando de forma decisiva no conteúdo dos produtos da imaginação.” (p. 78)
Quando rompe-se a bolsa de líquico amniótico, quando o cordão umbilical é cortado, quando o corpo migra de sua caverna maternal para todo o som e toda a fúria do mundo exterior, não parece haver bebê capaz de conter o grito. O que dará aos pessimistas de todos os tempos o pretexto de brincarem que, se choramos todos ao nascer, é por uma espécie de premonição de que estamos entrando numa baita encrenca. Otto Rank criará uma teoria da neurose que a vinculará a um ímpeto de regressão, a um desejo libidinal de re-entrar no ventre materno, o que é uma impossibilidade objetiva. Desejar o impossível adoece o sujeito que fixa-se nesta vontade retrógada, recusando a difícil empreitada do amadurecimento, o qual consiste necessariamente numa tentativa de lidar de maneira criativa e construtiva com as cicatrizes e saudades vinculadas ao trauma do nascimento.
“…por causa do longo período de gestação e com ajuda das faculdades intelectuais superiores que posteriormente foram desenvolvidas, o homem procura restabelecer, de todas as formas possíveis, enquanto por assim dizer criador, o estado primitivo. E isso ele consegue, até um nível elevado de prazer, por meio dos produtos socialmente adaptados de sua imaginação, como a arte, a religião, a mitologia; na neurose, porém, esses esforços adaptativos sofrem um fracasso lastimável.” (OTTO RANK: p. 45)
Otto Rank não pensa estar praticando nenhuma ruptura radical com Freud, ele concebe seu trabalho como uma espécie de continuação criativa das descobertas freudianas; não é, porém, um daqueles discípulos puxa-sacos, papagaios, que só sabem repetir o que já foi dito pelo mestre. “Não sabemos o que é mais admirável em Freud: sua coragem de descobridor ou seu caráter combativo e tenaz, com o qual ele sempre soube defender suas descobertas contra as resistências vindas de toda parte” (p. 162). Figuras como Breuer, precursor da psicanálise, que buscou tratar histerias, desde a década de 1880, com uma espécie de terapia dialogada que prenuncia o método psicanalítico, ou posteriormente Carl G. Jung, muito próximo de Freud por um tempo mas que tornou-se seu antagonista, são criticados por não admitirem a centralidade da sexualidade como fator essencial para o aclaramento da verdade sobre os sujeitos.
Uma psicologia que se esquive da libido será sempre suspeita de estar recalcando aquilo que melhor explica as dinâmicas afetivas do ser humano, e a teoria do trauma do nascimento é em essência uma espécie de epopéia que narra “os destinos da libido”. Perto do fim de seu livro, Otto Rank pontua:
“Por várias vezes, no curso de nossa exposição, nos esquivamos da questão de saber como é possível que o anseio – agora reconhecido como sendo a tendência primordial da libido – de reconstituir a situação primitiva e prazerosa no útero materno, e que temos de considerar como a expressão máxima da possibilidade de prazer, esteja ligado de maneira tão indissolúvel ao sentimento primitivo de angústia, como o revelam o pesadelo, o sintoma neurótico, mas também tudo aquilo que deriva desses fenômenos ou que se assemelhem a eles. Para que compreendamos este fato, precisamos ter em mente que o estado primitivo prazeroso é interrompido de maneira indesejada pelo ato do nascimento… e que toda vida posterior consistirá em substituir esse paraíso perdido, e que não pode mais ser encontrado, pelos já descritos, e extremamente complicados, atalhos dos destinos da libido.” (p. 164)
Trocando em miúdos: não existem paraísos senão os paraísos perdidos. Todo paraíso sonhado, fantasiado, ansiado, todo paraíso representado em pinturas ou filmes, em sonhos ou delírios, é uma espécie de fantasma compensatório. As religiões oferecem prêmios de consolação para estas criaturas que somos e que às vezes convivem mal com a necessidade de amadurecer e reconhecer que a vida é uma via de mão única, que não se entra duas vezes nem no mesmo rio, como diz Heráclito, nem no mesmo útero, como diz Rank.
Parece-me que a neurose, segundo Rank, usualmente está vincula com uma espécie de vontade regressiva, de desejo de retorno a uma situação primitiva perdida, de fixação (ainda que inconsciente, recalcada, não-reconhecida pelo sujeito) de reconquistar um paraíso que é sentido como perdido. A situação anterior ao trauma do nascimento seria a “tendência primordial da libido”, ou seja, nosso hedonismo infantil vincula-se àquela época (“minha juventude despreocupada”, como diz o bebê de McEwan em Enclausurado) quando éramos nutridos sem esforço algum de nossa parte, flutuávamos sem preocupações num lago amniótico, quentes e protegidos, e não precisávamos derramar o suor de nosso rosto no trabalho por um salário que nos permita comprar nosso pão, nossa vestimenta, nossa moradia; enfim, estávamos no paraíso dos preguiçosos. Estávamos fundidos, como no mito grego narrado por Aristófanes no banquete, antes do raio punitivo do Olimpo rachar-nos em pessoas inconclusas, incompletas, que vagam pela vida em busca de re-unificação.
Não é difícil de entender porque Rank insiste em descrever o ato do nascimento como um acontecimento extremamente traumático para a vida do bebê – tão traumático que deixará sequelas em nossa vida psicológica por toda a vida. Imaginem vocês que o bebêzinho estava lá, “numa relax, numa tranquila, numa boa” (para lembrar Tim Maia), só curtindo umas férias preguiçosas num resort aquático cinco estrelas, sendo alimentado sem precisar mexer um dedo, livrando-se de seus cocôs e xixis sem nem precisar ir ao banheiro, não tendo nem que trabalhar, nem que estudar, nem que acordar cedo todo dia… Ê maravilha! Uma vida de príncipe num trono de delícias!
E aí, de supetão, ele toma um pé-na-bunda súbito e é expulso de sua casa como quem não pagou aluguel e agora é despejado. Sem aviso prévio e sem o menor respeito por seu desejo, ele é evacuado – e com que grosseria! Ele vai sendo empurrado para fora do corpo que o acolhera, tendo que passar por um portal apertado, que lhe dá talvez a sensação terrível de asfixia e esmagamento… E eis que ele se vê num lugar estranho e bizarro, separado pela primeira vez do corpo de sua mãe, longe do calor protegido do seu antigo ninho, tendo o cordão que os ligava tão intimamente cruelmente rasgado, de pulmões entregues aos ventos do mundo poluído ao qual o trouxeram, sem nem antes consultá-lo…
E ei-lo ali, entregue ao frio, entregue a mãos estranhas, entregue, pela primeira vez, à solidão que tanto o fará chorar pela vida afora… É por isso que todos nós choramos quando nascemos. É por isso que todos os bebês humanos nascidos de mães de carne-e-osso, e não de tubos de ensaio ou de robôs, não importa o quanto a tecnologia se desenvolva, vão continuar para sempre a nascer berrando e chorando… Porque nascer não é exatamente divino, mas uma visceral vivência da qual a carne não se esquece. E Rank dirá algo assim: nascer equivale, em termos metafóricos, a ser expulso do paraíso.
Essa experiência primordial, segundo Rank, vai deixar no nosso psiquismo uma tatuagem perpétua e indelével. Nossa vida inteira ficará marcada por essa temporada no céu e por esse trauma da expulsão. O cristianismo, com o mito do Éden, não fez nada além de inventar uma historinha que serve como metáfora para a perda real do útero-ninho, sofrida por todos nós – e que é o fardo que carrega todo ser humano. Como bom ateu, discípulo de Freud em matéria de religião, Rank também dirá que as religiões, no fundo, inventam e imaginam um céu onde colocam somente projeções de desejos regressivos. Projetamos no além-túmulo a vida in utero!
E assim Rank vai explicando tudo como uma espécie de efeito do trauma do nascimento: a transformação da natureza pela técnica e pela ciência teria como objetivo principal transformar o mundo tendo como molde a vida intra-uterina e o nosso desejo de voltar a habitar num “ambiente” semelhante ao corpo maternal. A quem retrucar dizendo que tudo o que queremos através da transformação da natureza e dos avanços tecnológicos é nada mais do que “conforto” e “prazeres fáceis”, Rank responderia, provavelmente, que queremos essas coisas justamente em virtude da saudade que temos do conforto e dos prazeres fáceis que experimentamos na vida intra-uterina…
A arte, por sua vez, também teria relações umbilicais com uma tentativa de expressar a angústia, perpétua dentro de nós, associada com a expulsão do útero e com a impossibilidade de retornar a ele, de modo que a criação artística serviria para fabricar “satisfações substitutivas” que nos consolem de nossa sina de exilados… Ainda não tive acesso aos livros de Rank sobre o tema, como Art and Artist, mas parece-me que ele segue nos trilhos da teoria Freudiana que vê a arte como decorrente da “sublimação”, mas dá primazia a uma sublimação libidinal tanto do anseio de regresso quanto da angústia de ruptura com as quais convivemos desde que nos ocorreu esse evento espantoso e repleto de consequências – nascer.
Se entendi bem, a sabedoria, para Rank, é conexa à conquista de uma maturidade, de uma vitória sobre o infantilismo, em que enfim percebemos que a vida é pra ser olhada com os olhos voltados para frente e não para trás; com os pés saudavelmente implantados num aqui-agora durável (penso na duração Bergsoniana) e não na nostalgia pelo impossível. Precisamos superar em nós a fantasia do regresso, o delírio de que um dia reencontraremos um amor de perfeita unificação e fusão, destruir a enorme atração da nostalgia que informa e deforma nosso imaginário… E acho que isso representa, no fundo, aquela velha necessidade, que Freud tanto destacava, de fazer triunfar o princípio de realidade sobre o princípio de prazer. Não para sejamos ascéticos e puritanos, mas, pelo contrário, para que nossas interações sexuais-afetivas possam ser sublimes, satisfatórias, sábias, crescidas, na plena aceitação de nossos limites e na gloriosa consumação de paraísos efêmeros e parciais possível àqueles que descrêem por completo dos paraísos eternos e totais.
Pode-se criticar, é claro, Otto Rank por ter uma espécie de idéia fixa: pelo menos neste livro, o trauma do nascimento parece ser como um Sol na galáxia teórica de Otto Rank; todo o resto parece orbitar ao redor desse conceito. Porém, uma leitura de outras obras, como o Mito do Nascimento do Herói, permite-nos vislumbrar um pensador profundo, eclético, que soube ir muito além deste seu conceito central e que inspirou também o trabalho posterior de figuras revolucionárias no âmbito da psicologia e da antropologia, caso de Ernest Becker, autor de A Negação da Morte, livro de 1984, vencedor do Prêmio Pulitzer, profundamente inspirado por Rank.
Depois de ler Otto Rank, é como se começássemos a enxergar o trauma do nascimento em locais e obras que antes pareciam-nos somente estranhas, absurdas, obscenas, malucas. Ele fornece-nos uma chave explicatória que parece fornecer frutíferos caminhos para a decifração, por exemplo, de mitos ancestrais e de sonhos aparentemente nonsense; mesmo coisas de que ele não trata em seu livro ganham um grau mais alto de inteligibilidade a partir de sua teoria – como é o caso, por exemplo, de quadros de Salvador Dali ou da arte de Kurt Cobain.
Um dos exemplos mais impressionantes na arte contemporânea de uma referência explícita à problemática analisada por Rank é decerto In Utero, o último álbum de estúdio lançado pelo Nirvana, uma obra que desde sua capa, em cada uma de suas distorções e dissonâncias, na sua lírica e na pregnância afetiva de uma angústia onipresente, está toda impregnada por uma imagética e uma ansiedade que estão explicitamente marcadas por uma psiqueê que têm a ânsia, confessada em “Heart Shaped Box”, de esconder-se dos percalços do mundo no refúgio do womb: “Throw down your umbilicalnoose /So I can climb right back.” Outras pistas impressionantes para a compreensão do universo psíquico Cobainiano estão nas análises de Simon Reynolds em Beijar o Céu (Ed. Conrad) ou no documentário-ensaio Montage of Heck (de Brett Morgen).
“Dias antes desta palestra, a jornalista Naomi Klein estava num barco no Golfo do México, a ver os catastróficos resultados da arriscada busca de petróleo pela BP (British Petroleum). As nossas sociedades têm-se tornado viciadas no risco extremo na procura de nova energia, novos instrumentos financeiros e mais… e, com demasiada frequência, fica-nos a tarefa de limpar os estragos. Klein pergunta: Qual é o plano B?”
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In the two months since the Deepwater Horizon explosion, millions of litres of oil have gushed out of BP’s well into the water each day, slowly encroaching on the coastline. Fault Lines’ Avi Lewis travels to the drill zone, and learns about the erosion in the wetlands from industry canals and pipelines, the health problems blamed on contaminated air and water from petrochemical refineries.
People and organizations in this film include: Avi Lewis, Aaron Viles, Larry Thomas, Henry Hess, Byron Encalade, Monique Harden, Tracie Washington, Dorothy Felix, Debra Ramirez, Linda Budwine, Advocates for Environmental Human Rights, Louisiana Oysters Association, Gulf Restoration Network, British Petroleum, US Coast Guard, Louisiana Justice Institute, Mosseville Environmental Action Now.
“A terra, nossa casa comum, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo.” Papa Francisco, Encíclica Laudato Si, #21
Uma imagem polêmica circulou o mundo e “viralizou” na Internet em Julho de 2015 (veja acima): nela, o Papa Francisco, em visita à Bolívia, recebe do presidente Evo Morales um curioso artefato, mescla da cruz cristã com o supremo símbolo comunista, a foice-e-martelo. Vale lembrar, diante da desinformação que circula por aí, que a foice-e-martelo não é um instrumento de tortura, como alguns acéfalos ideólogos da Direita anti-comunista dizem, mas significa a união entre a classe trabalhadora, a foice representando o campesinato e o martelo servindo como símbolo proletariado, emblema incorporado à bandeira escarlate da URSS.
Promulgada pelo governo de Evo Morales em 2012, como reportado pela Opera Mundi, a formidável Ley de Derechos de la Madre Tierra do Estado Plurinacional da Bolívia (click para ler na íntegra), é uma das mais importantes contribuições políticas da América Latina ao debate global sobre nosso futuro comum. Nesta era geológica nova em que nos encontramos, o Antropoceno, marcada pela crise em curso do aquecimento global e da vasta degradação socioambiental globalizada causadas pelos mais de 7 bilhões que hoje infestam o planeta, os bolivianos inseriram na constituição:
“La Madre Tierra es el sistema viviente dinámico conformado por la comunidad indivisible de todos los sistemas de vida y los seres vivos, interrelacionados, interdependientes y complementarios, que comparten un destino común. (…) Para efectos de la protección y tutela de sus derechos, la Madre Tierra adopta el carácter de sujeto colectivo de interés público.” (Fonte) (Confira também: The Guardian, Al Jazeera)
Muita coragem e ímpeto de renovação ficam manifestam na atitude do líder espiritual supremo da Cristandade ao ousar uma aproximação com uma doutrina ética, política e jurídica que me parece digna de todo respeito e consideração: já consagrada nas legislações de várias nações latino-americanas – como Bolívia, Peru e Equador – aquilo que está sendo chamado de “ecologia dos Andes” afirma-se devotada à salvaguarda de uma entidade conhecida como Pachamama, a “Mãe-Terra”, em homenagem ao mito ameríndio dos Incas.
“Tierra Madre Pacha Mama” – Graffiti
A encíclica papal Laudato Si – Sobre o Cuidado Da Casa Comum (Ed. Paulus/Loyola, SP, 2015), escrita na consciência plena da deterioração global do meio ambiente, comunica claramente a possibilidade de uma catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial nos últimos séculos. Francisco frisa de modo recorrente a necessidade urgente de uma mudança radical no comportamento da humanidade e também refere-se à Terra como uma espécie de divindade feminina – que tem lá suas similaridades com Pachamama ou Gaia – e que é descrita como
“nossa casa comum, que se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços. (…) Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos pensando que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. (…) Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra. O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta: o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos.” (#1 e #2)
Está em curso o esforço do Papa em questionar a “confiança irracional no progresso” (#19), pondo em dúvida a ideologia da tecnocracia hoje triunfante e que vê a natureza como algo a ser explorada, dominada, espoliada, em prol da modernização, da industrialização e dos fluxos de capitais e mercadorias através do globo. A encíclica faz parte de uma longa jornada de Jorge Bergoglio – nome de batismo do argentino hoje conhecido sob a alcunha de Francisco – em prol da conscientização social. Ele clama por uma “crescente sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da natureza”, com o “objetivo de tomar dolorosa consciência, ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece no mundo e, assim, reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar.” (#19)
Dentre os livros já publicados sobre o engajamento político do Sumo Pontífice, um deles é explícito em apontar a postura “anti-capitalista” daquele que não tem poupado esforços para denunciar a “nova tirania” de um sistema econômico “assassino”: This Economy Kills: Pope Francis on Capitalism and Social Justice, de Andrea Tornielli eGiacomo Galeazzi. Na encíclica, fica explícita a intervenção papal de crítica aos poderes que lançam à nossa casa comum os “poluentes atmosféricos” e “fumos da indústria” que “provocam milhões de mortes prematuras”; ele fustiga também os “fertilizantes, inseticidas, fungicidas, pesticidas e agrotóxicos em geral”; além das “centenas de milhões de toneladas de resíduos, muitos deles não biodegradáveis, altamente tóxicos e radioativos” (#20, 21).
Com sua incisiva crítica ao ecocídio globalizado produzido pelo capitalismo desenfreado, o argentino deu muitos motivos para preocupações daquela facção mais conservadora da Igreja Católica que jamais admitiria uma aproximação ideológica entre Vaticano e a esquerda socialista. Por essas e outras, o Papa tem sido acusado por muitos por sua diabólica postura marxista, inclusive pelo crime de ter sido recebido com clamor popular em Cuba. Por essas e outras, este Papa é um prodígio da Cristandade sem precedentes nas últimas décadas, o que fica ainda mais claro quando lemos sua encíclica “ecológica”, de profundas reverberações anti-capitalistas: Laudato Si – Sobre o Cuidado Da Casa Comum,que aqui pretendemos esmiuçar, comentar e criticar.
Alçado ao cargo de Sumo Pontífice após a renúncia do alemão Ratzinger (Bento XVI) em 2013, Bergoglio adotou sua nova alcunha em homenagem a São Francisco de Assis (1182 – 1226) e cometeu desde então toda uma série de atos e falas estarrecedoras em seu compromisso de preferir os pobres, defender os oprimidos e pregar uma verdadeira revolução cultural em prol da sustentabilidade socioambiental. O Papa Chico ousou inovar. Sua visita à Bolívia deixou isto explícito e demonstrou, na prática, que a Igreja Católica não é exatamente um sólido monolito, incapaz de mudança e inovação, esclerosado em dogmas mofados.
Não era mera diplomacia, para o Papa Chico, aceitar o presente curioso da cruz-comunista, doado pelo presidente boliviano Evo Morales, o primeiro presidente latino-americano de raízes indígenas a ser eleito democraticamente para o cargo executivo supremo de uma república. O pensamento ecológico-político de que Evo Morales é um dos mais célebres representantes está muito presente na encíclica papal Laudato Si.
Quem tiver o cuidado de lê-la com atenção encontrará uma notável reverência de Francisco pelas conclusões dos bispos da Bolívia, citados e louvados pelo Papa argentino por terem afirmado: “Os países que foram beneficiados por um alto grau de industrialização, à custa de uma enorme emissão de gases com efeito estufa, têm maior responsabilidade em contribuir para a solução dos problemas que causaram.” (#170)
Emissões de CO2 por país (via Wikipédia)
Este é um dos fatos mais extraordinários, revelados com clareza pela encíclica de Papa Chico: não somente ele está plenamente consciente da degradação socioambiental que vivemos e do tempestuoso futuro climático de nosso planeta, como também está antenado com a vanguarda do movimento ecosocialista, que frisa a questão das responsabilidades diferenciais que decorrem dos diferentes graus de “culpa” na determinação da catástrofe ecológica que vivenciamos.
Ou seja, os países que mais poluíram a atmosfera e que mais determinantes foram para a condição – em constante agravamento – do efeito estufa, agora devem também ser os países que mais arquem com os custos da transição energética rumo às energias renováveis. Os países que foram mais criminosos em sua relação com o meio-ambiente (EUA e China no topo da lista) também teriam de ser aqueles mais responsabilizados para prestar os auxílios humanitários aos atingidos pelas catástrofes que já não podemos evitar.
No aforismo #161 da encíclica, o Papa diz:
“As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como, aliás, já está acontecendo periodicamente em várias regiões. A atenuação dos efeitos do desequilíbrio atual depende do que fizermos agora, sobretudo se pensarmos na responsabilidade que nos atribuirão aqueles que deverão suportar as piores consequências.”
Teses similares podem ser encontradas na obra de alguns dos pesquisadores, ecoativistas, jornalistas e acadêmicos que devotaram-se à compreensão sobre as mudanças climáticas e a degradação socioambiental global, como Naomi Klein, George Monbiot, Bill McKibben, Naomi Oreskes, dentre tantos outros. Outras lideranças políticas, como o ex-presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica, também falaram em tom bastante semelhante ao do Papa Francisco sobre a insustentabilidade do modo-de-produção-e-consumo hoje vigente, clamando por valores éticos como a temperança e a frugalidade.
A encíclica não poupa pregação contra “a busca egoísta da satisfação imediata”, o “consumo excessivo e míope”, apontando que a deterioração ecológica é resultado de uma crise que é tanto ética-cultural quanto sócio-política: “Esta falta de capacidade para pensar seriamente nas futuras gerações está ligada com a nossa incapacidade de ampliar o horizonte das nossas preocupações e pensar naqueles que permanecem excluídos do desenvolvimento.” (#162)
Um dos filósofos-da-ética mais importantes do século XX, Hans Jonas, também destacava a necessidade urgente de formularmos uma ética que leve em conta não apenas nossas relações interpessoais presentes, mas também o mundo que será legado aos que ainda não nasceram, de modo a somar aos direitos humanos uma espécie de cláusula aditiva que consagra os direitos dos viventes-ainda-por-nascer: os que um dia viverão também têm direito a uma vida digna e isto é nossa responsa, aqui-e-agora. Diante do capitalismo atual, para julgá-lo com lucidez e numa apreciação justa de seu real valor, precisamos também avaliar: que tipo de casa comum será legada às gerações do futuro por nossas ações, aqui e agora?
Não é Che Guevara nem Lula quem disse as próximas palavras de exortação à uma “opção preferencial pelos mais pobres”: “Nas condições atuais da sociedade mundial, onde há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas as pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres.” (#158)
Por essa não esperávamos: no momento histórico em que a Igreja Católica via-se chafurdando na lama de um escândalo global envolvendo a prática epidêmica de pedofilia por parte dos padres, após o fato inédito de uma renúncia como a de Bento XVI (há várias gerações um Papa não “jogava a toalha”, admitindo que não dá conta do recado!), o novo pontífice supremo da Cristandade não só surge como antenadíssimo às mais importantes lutas sociais de raiz – conhecidas em inglês como grassroots activism – mas mais do que isso: re-aproxima Roma da América Latina, já que flerta abertamente com Pachamama e com a Teologia da Libertação!
Papa Chico defende os direitos indígenas ao criticar os grandes projetos que avançam sobre territórios que são vistos pelos habitantes “não como um bem econômico”, mas sim como uma terra que é “espaço sagrado” onde “descansam os antepassados” e “com a qual precisam interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objeto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projetos extrativos e agropecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura.” (#146)
Talvez ele concordasse comigo que os Krenak são gestores da natureza muito mais conscientes e responsáveis do que a corporação Samarco/Vale/BHP, que logrou assassinar o Rio Doce e contaminar todo um ecossistema, como vimos na pior catástrofe socioambiental já ocorrida no Brasil.
O Papa Chico sabe também que há “áreas rurais aonde não chegam os serviços essenciais” e “há trabalhadores reduzidos a situações de escravidão.” (#154) Diante deste quadro catastrófico, ele ousa explicar, no capítulo III da encíclica, qual a “raiz humana da crise ecológica”. Sua acusação recai, de modo bastante similar à argumentação de Fritjof Capra em O Ponto de Mutação, no paradigma do capitalismo tecnocrático dominante, que impõe uma “cultura consumista corrompida”, que consagra a lógica do descarte e acarreta lixo em excesso, aferrando-se ademais às fontes de energia fósseis, não-renováveis (petróleo, carvão e gás natural), ignorando todos os limites na busca egoísta do gozo de curto prazo. O mito do crescimento econômico infinito é desmascarado como ilusão perniciosa:
“Daqui passa-se facilmente à idéia de um crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isso supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a ‘espremê-lo’ até ao limite e para além deste. Trata-se do falso pressuposto de que existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos. (…) Temos um superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora, mas não se criam, de forma suficientemente rápida, instituições econômicas e programas sociais que permitam aos mais pobres terem regularmente acesso aos recursos básicos.” (#106, #110)
Na era da biotecnologia, do DNA, da informática, das redes sociais digitais, dos foguetes e satélites, Papa Chico mostra-se estarrecido com o nosso “poder tremendo” – apesar de não batizar, como fazem boa parte dos geólogos e antropólogos atualmente, nossa era de Antropoceno. Critica incisivamente a “cultura do descarte”: “o sistema industrial, no final do ciclo de produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e reutilizar resíduos e escórias. Ainda não conseguiu adotar um modelo circular de produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não renováveis, moderando o seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e reciclando-os.” (#22)
Quanto ao “preocupante aquecimento do sistema climático”, “acompanhado de uma elevação constante do nível do mar”, o Papa é digno o bastante para frisar a responsabilidade humana na gênese do problema e de clamar, como tantos cientistas atuais, pelo fim da era dos combustíveis fósseis:“a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases de efeito estufa emitido sobretudo por causa da atividade humana. A sua concentração na atmosfera impede que o calor dos raios solares refletidos pela terra se dilua no espaço. Isso é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial.” (#23)
As consequências concretas do aquecimento global incidem “sobre a disponibilidade de recursos essenciais como a água potável, a energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção de parte da biodiversidade do planeta. (…) A perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática. A poluição aumenta a acidez dos oceanos e compromete a cadeia alimentar marinha. Se a tendência atual se mantiver, este século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e de uma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós. Por exemplo, a subida do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se se considerar que um quarto da população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades está situada em áreas costeiras.” (#24)
Uma matéria do jornal inglês The Guardian contêm preocupantes previsões sobre a elevação do nível do mar causada pelo aquecimento da temperatura global: mesmo que consiga-se limitar o aumento de calor a 2 graus Celsius, ainda assim 20% da população global seria obrigada a migrar e mega-cidades litorâneas seriam submersas, incluindo Nova York, Londres, Rio de Janeiro, Cairo, Calcutá e Xangai.
“É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante essas tragédias que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reações diante desses dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil.” (#25)
Extraordinário é o teor anti-quietista e pró-ativista que Papa Francisco insufla à sua encíclica: não há nenhum sinal do deplorável discurso de muitas autoridades religiosas que pregam, como única solução, a oração… Tanto as causas quanto as soluções estão no âmbito humano e “não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental”, escreve Francisco, se não reconhecermos o fato de que “a deterioração do meio ambiente e da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis do planeta” e que “os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres” (#48).
Como exemplo do quanto a encíclica está próxima do pensamento eco-político mais contemporâneo, cito um trecho do artigo de Rebecca Solnit:
“A mudança climática é antropogênica – causada por humanos, alguns mais que outros. Nós sabemos as consequências dessas mudanças: a acidificação dos oceanos e o declínio da maioria das espécies que vivem neles, o lento desaparecimento de ilhas-nações, como é o caso das Maldivas, o aumento de inundações, secas, a quebra na produção agrícola, o que leva ao aumento do preço dos alimentos e à fome, aumento da instabilidade climática. (É só pensar no furacão Sandy e no recente tufão nas Filipinas. Nas ondas de calor que mataram idosos aos milhares). Mudança climática é violência. Portanto, se nós queremos conversar sobre violência e mudanças climáticas – e nós estamos falando sobre isso, depois do informativo aterrador da última semana, vindo dos melhores cientistas climáticos do mundo – então vamos falar sobre mudanças climáticas como violência. Ao invés de nos preocuparmos se os homens e mulheres comuns vão reagir com turbulência à destruição de seus meios de sobrevivência, vamos nos preocupar com essa destruição – e com a sobrevivência. Obviamente a escassez de água, as péssimas colheitas, inundações, entre outras coisas, vão desencadear migrações em massa e refugiados climáticos – eles já existem – e isso vai gerar conflitos. Esses conflitos estão entrando em ação, agora.” (SOLNIT, publicado em A Casa de Vidro, trad. Josemar Vidal Jr)
No contundente capítulo da encíclica intitulado Desigualdade Planetária, não faltam exemplos deste verdadeiro massacre dos pobres que está em curso:
“a poluição da água afeta particularmente os mais pobres que não têm possibilidades de comprar água engarrafada, e a elevação do nível do mar afeta principalmente as populações costeiras mais pobres que não têm para onde se transferir. O impacto dos desequilíbrios atuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres e nos conflitos gerados pela falta de recursos” (#48).
A natureza anti-capitalista da encíclica se exacerba quando a desigualdade planetária é mencionada:
“uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos de tal consumo. Além disso, sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço dos alimentos produzidos, e a comida que se desperdiça é como se fosse roubada da mesa do pobre. (…) O aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais pobres da terra, especialmente na África, onde o aumento da temperatura, juntamente com a seca, tem efeitos desastrosos nos rendimentos das cultivações.” (#51)
A conexão entre ecocídio e corporações capitalistas multinacionais também não escapa à análise apresentada pela encíclica, que denuncia “os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos tóxicos para os países em vias de desenvolvimento”.
Francisco ergue um dedo acusador contra a “atividade poluente de empresas que fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer nos países que lhes dão o capital”, de modo que os bispos da Patagônia, na Argentina, expressaram em sua Mensaje de Navidad (2009):
“Constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são multinacionais que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas atividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento de algumas reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode sustentar.”
Diante de tal cenário catastrófico, em que o interesse financeiro e o poderio capitalista prevalece sobre o bem comum e os direitos da natureza, a encíclica não é somente a evidência de uma revolucionária “virada ecológica” da Igreja Católica, é também o momento para uma inédita aposta no ativismo social: “hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.” (#50, grifo meu)
De modo que Papa Francisco aproxima-se bastante da mensagem de todos aqueles movimentos sociais, coletivos de ativismo e fóruns participativos que nos últimos anos estiveram engajados na discussão sobre “um outro mundo possível”, mote do Fórum Social Mundial.
Apesar de um certo apego ao tradicionalismo católico – pois a noção patriarcal-machista de um Deus-Pai, a centralidade da família monogâmica heterossexual, a crítica inflexível de qualquer interrupção da gravidez prosseguem marcando o discurso papal – é notável a aproximação que Francisco realiza com o grassroots activism, com a Teologia da Libertação, com o “levante de Pachamama” nos Andes, com todas as forças contra-hegemônicas que questionam a globalização hegemônica, teorizada pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos:
GLOBALIZAÇÃO HEGEMÔNICA & CONTRA-HEGEMÔNICA
A globalização hegemônica é a nova fase do capitalismo global, constituída pela primazia do princípio do mercado, liberalização do comércio, privatização da economia, desregulação do capital financeiro, precariedade das relações de trabalho, degradação da proteção social, exploração irresponsável dos recursos naturais, especulação com produtos alimentares, mercantilização global da vida social e política. A globalização hegemônica tem ao seu serviço uma institucionalidade diversificada e muito poderosa, dos Estados centrais à União Européia, do Banco Mundial ao Fundo Monetário Internacional, das grandes empresas multinacionais à Organização Mundial do Comércio.
Por outro lado, a globalização contra-hegemônica, ou globalização a partir de baixo, engloba os movimentos sociais e organização não governamentais (ONGs) que, por meio de articulações locais, nacionais e transnacionais, lutam contra o capitalismo e a opressão colonialista, a desigualdade social e a discriminação, a destruição ambiental e de modos de vida decorrente da voracidade da extração dos recursos naturais, a imposição das normais culturais ocidentais e a destruição das não ocidentais causada ou agravada pela globalização hegemônica.
A globalização contra-hegemônica consiste em articulações transnacionais entre movimentos sociais e ONGs, sejam elas o Fórum Social Mundial, a Assembleia Geral dos Movimentos Sociais, a Cúpula dos Povos, a Via Campesina, a Marcha Mundial das Mulheres, o Movimento Indígena Mundial, em conjunto com redes transnacionais de advocacia sobre temas específicos de resistência à globalização hegemônica. A contra-hegemonia resulta de um trabalho organizado de mobilização intelectual e política contra a corrente, destinado a desacreditar os esquemas hegemônicos e fornecer entendimentos alternativos credíveis da vida social.” (BOAVENTURA SOUSA SANTOS, p. 32-33)
Acredito – “piamente”? – que Papa Chico tem sim agido como interventor social e cultural de teor contra-hegemônico, manifestando assim uma compreensão lúcida e profunda da figura histórica de Jesus, um cara que foi tão anti-establishment que Roma mandou-lhe crucificar feito um reles bandido quando ele só tinha 33. O poeta Paulo Leminski, na esplêndida biografia de Jesus que escreveu, argumenta que seu biografado merece estar no “time” dos revolucionários vinculados ao socialismo utópico. Evidentemente é um anacronismo, mas poeta tem direito a tudo – e que vivam livres as “licenças poéticas”! Para Leminski, Jesus foi sim um socialista que criticou as classes abastadas e em sermão célebre vaticinou que era mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus… (LEIA: Quarteto Vital, de Paulo Leminski)
Papa Francisco reata com uma certa tradição do cristianismo primitivo, ao mesmo tempo que liga-se com o que há de mais vital e pulsante no atual movimento global de resistência à catástrofe ecológica e às mudanças climáticas antropogênicas, fenômeno que Naomi Klein propôs batizar de Blockadia e que analisa em minúcias em This Changes Everything, filme e documentário.
O “emblema” da “nova era” na Igreja Católica parece-me ser o encontro de Bergoglio e Morales, curiosa aliança entre o Vaticano e os Andes, excêntrico sincretismo cultural que re-significou tudo o que pensávamos sobre o Papa e até mesmo sobre Deus: que virada realmente revolucionária caso a Cristandade modifique suas concepções religiosas para a de um Deus menos parecido com Jeová e mais afinado com Pachamama!
Para os mais dogmáticos ou suscetíveis, a cena que envolve o Papa e o presidente Morales pode até ter um cheiro insuportável de heresia: “isso não é”, dirão alguns católicos da velha guarda, grunhindo contra o pontífice, “nem jamais será um comportamento digno de um Papa! Andar por aí, segurando uma cruz subvertida, mas que blasfêmia! Sujar as mãos com um emblema-de-comunista! Bem sabemos (apesar de nada constar sobre isso nem nos Evangelhos nem nos livros de História e Antropologia) que esta cambada de comunistas não são somente canibais, como praticam seu canibalismo sobre criancinhas!”
Ironias à parte, estou impressionado com a capacidade de Papa Francisco de confrontar aqueles setores mais reacionários e tradicionalistas desta “instituição” – a Igreja Católica Apostólica Romana – que com frequência, na história, fez-se cúmplice e co-responsável por atrocidades e horrores, tendo sido, em outras eras, operadora internacional de infâmias éticas e catástrofes humanitárias como a célebre “Santa Inquisição”, que impôs a morte-pelo-fogo a tão incontáveis quantidades de pessoas previamente estigmatizadas como hereges, ateus, pecadores, bruxas, pagãos, feiticeiras etc.
Mais recentemente, a Igreja Católica também viu-se em meio ao escândalo global envolvendo o abuso sexual de crianças perpetrado por seus clérigos. O declínio parecia não ter fim e a renúncia de Ratzinger parecia com alguma espécie estranha de emblema da decadência e do caos. E justamente aí ocorreu essa guinada à esquerda, que trouxe uma certa versão da Teologia da Libertação para o centro polêmico do debate da Cristandade.
Capitalismo em questão: o império das marcas e multinacionais, antes de ser tema da encíclica papal, foi foco de livros como “No Logo” de Naomi Klein
As próximas palavras, do capítulo #195 da encíclica Laudato Si, são emblemáticas deste prodígio que é um papa anticapitalista, capaz de articular uma crítica à doutrina neo-liberal e seu funcionamento na base de benefícios privados e prejuízos públicos:
“O princípio da maximização do lucro, que tende a isolar-se de todas as outras considerações, é uma distorção conceptual da economia: desde que aumente a produção, pouco interessa que isso se consiga à custa dos recursos futuros ou da saúde do meio ambiente; se a derrubada de uma floresta aumenta a produção, ninguém insere no respectivo cálculo a perda que implica desertificar um território, destruir a biodiversidade ou aumentar a poluição. Em outras palavras, as empresas obtêm lucros calculando e pagando uma parte ínfima dos custos.” (#195)
O Papa não prega que oremos, ele quer sim é educação que forme para a “cidadania ecológica” e uma revolução cultural que “dê forma a um estilo de vida” baseado na “responsabilidade ambiental” (#123). Para este fim, é evidente, a ética é essencial, sendo que a encíclica é um tratado de ética, de cabo a rabo, que dialoga inclusive com muitas das ideias de Hans Jonas, autor de um dos clássicos tratados da ética no século XX – O Princípio Responsabilidade. Francisco afirma sem pestanejar que o atual sistema capitalista hegemônico globalmente é insustentável e só pode nos conduzir ao esgotamento e à catástrofe. Nossa era demanda uma urgente mudança de rumos.
Em 2000, em Haia, na Carta da Terra, a exortação de Bergoglio clama por um “novo início”: “Como nunca antes na história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início. Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar de uma nova reverência adiante da vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida.” (#207)
Não estamos diante de um “profeta do Apocalipse” e nem há nenhum teor, na fala de Francisco, daquele odioso discurso que pretende transformar as catástrofes climáticas em “vinganças de um Deus enfurecido” – não, New Orleans não foi devastada pelo Furacão Katrina por causa dos pecados cometidos por seu habitantes, nem por ser uma nova Sodoma e Gomorra…
A fala de Francisco carrega mais doçura e ternura do que reprovação esbravejante. Decerto é alguém “atento ao futuro”, ou seja, alguém que está plantado no presente em condição de profundo engajamento com o porvir planetário. O Papa Francisco, diria até, integra o grupo de inteligências internacionais que, através de estudos prolongados e pesquisas empíricas cuidadosas, concluíram que existe sim razão para um “catastrofismo esclarecido”.
“Não pensemos só na possibilidade de terríveis fenômenos climáticos ou de grandes desastres naturais, mas também nas catástrofes resultantes de crises sociais, porque a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e de destruição recíproca.” (#204)
Enquanto pensador ético, Francisco insiste num estilo-de-vida que têm elementos do que Nietzsche chamava de “ideal ascético”, recomendando o controle dos impulsos e desejos, que conecta não somente ao pecado como também ao serviço satânico que prestamos às forças ecocidas do consumismo e do descartismo.
Em um livro polêmico, Pascal Bruckner fustigou a nova onda de “ascetismo verde”, aqueles que chamou de Fanáticos do Apocalipse. O escárnio supostamente libertário de Bruckner não me convence, e o compromisso “franciscano” com a sustentabilidade e a solidariedade intergeracional talvez seja mesmo uma das poucas “ideologias” capazes de evitar que sejamos compelidos à era das hecatombes climáticas de escala mega. “As previsões catastróficas”, diz a encíclica, “já não se podem olhar com desprezo e ironia” – e isso vale quase como uma refutação do livro de Bruckner.
Vejo, na encíclica, conexões possíveis do projeto social papal com a pedagogia do oprimido Paulo Freireana: Francisco clama por um “programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático.” (#111)
O papa filosofa sobre a liberdade que se encontra “adoecida” em todos àqueles que “se entregam às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal” (#105). A ética apolínea e ascética preconizada por Chico propõe um “lúcido domínio de si”. Minha impressão é que não se tem necessidade de fé para fundar uma ética assim. Pepe Mujica e sua preconização do mérito pessoal e civilizacional vinculado às virtudes da moderação e da frugalidade parece-me uma encarnação laica e secular do que Papa Francisco representa no âmbito religioso.
No mundo cultural dos gregos havia a noção de que tragédias decorreriam sempre que não soubéssemos respeitar os limites. Aos excessos, de resultadostrágicos e catastróficos, os gregos chamavam hýbris. Malditos eram todos os excessivos, todos aqueles que desrespeitavam um dos princípios básicos e sagrados, entronizado no Oráculo de Apolo em Delfos: “nada em demasia!”. As fúrias viriam assombrar e desgraçar todo aquele que fosse pego em flagrante delito de hýbris. A deusa Nêmesis não perdoa quem despreza os limites.
De certo modo, também sinto no Papa Francisco a presença, ainda que latente, de um senso trágico que compreende o quanto a desmesura / descontrole / deslimite causam como efeitos concretos muito palpáveis e catástrofes reais, dentre elas a tremenda degradação socioambiental que hoje vivenciamos.
Tenho minhas divergências, de natureza filosófica e teológica, com a noção de que estamos “em pecado” pois abusamos e desrespeitamos “os bens que Deus na Terra colocou“: não vejo porque o argumento em prol da sustentabilidade deveria enveredar por esta linha de dependência em relação à fé. Quando se diz que “a natureza deve ser preservada pois é obra de Deus“, o argumento tende a submeter as lutas ecológicas a uma prévia tomada de posição religiosa, um ato-de-fé sobre a proveniência divina daquilo que o ser humano parece tão engajado em destruir.
A proposta da encíclica é igualar “crime contra a natureza” e “pecado contra Deus”, algo que faz com que o argumento caia por terra para todos aqueles que não acreditam, por exemplo, no mito da Criação tal como o narra o livro do Gênesis. Mais inteligente e lúcido me parece Bergoglio quando aposta mais em um conceito “Pachamâmico” de interdependência, aproximando-se assim de cosmologias ameríndias e do web of life do Chief Seattle.
Porém, há vários “deslizes” de Papa Chico em um questionável teocentrismo: no aforismo #33, por exemplo, protestando contra a extinção de espécies causada pela humanidade, o Papa escreve: “por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com sua existência.”
Compartilho o lamento pela extinção da biodioversidade, mas não subscrevo o argumento de que a tragédia está na “destruição da obra de Deus” – prefiro falar, simplesmente, num atentado contra a teia-da-vida. Por que ateus e agnósticos, por que ativistas e políticos plenamente fiéis ao valor da laicidade, não poderiam ser entusiásticos ativistas da causa ambiental, mesmo na ausência da crença, tão duvidosa e dogmática, num planeta que supostamente foi criado pelas mãos de um Deus-Pai há 6.000 anos atrás?
À parte esta divergência de teor teológico, aplaudo o teor político e mobilizatório da intervenção de Francisco. Para a nossa geração, para nós-os-vivos-de-agora, é o próprio sentido de nossa passagem pela Terra que está agora em questão. O mundo que legaremos às próximas gerações está visceralmente conectado à questão, quiçá mais psicológica e simbólica, do sentido da vida (ou da descoberta de sua ausência ou inexistência):
“Com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós esta terra? Já não basta dizer que devemos preocupar-nos com as gerações futuras; exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo. Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que vai nos suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa passagem por esta terra.” (#160)
Que a destruição do próprio sentido da existência da Humanidade possa estar diretamente atrelado à continuação do insustentável sistema global ecocida que hoje devasta o planeta é decerto uma das mais contundentes críticas apresentadas pela encíclica Laudato Si. O texto encontra-se atravessado por inteiro por um ethos de empatia pelo clamor da terra e pelo clamor dos pobres. Francisco não foge de tirar todas as consequências de sua teoria, tão próxima à dos ecossocialistas, tão alinhada à Teologia da Libertação, tão próxima à Pachamama andina, e acaba por claramente defender o fim do direito absoluto à propriedade privada:
“A terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos. (…) O princípio da subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens e, consequentemente, o direito universal ao seu uso é uma regra-de-ouro do comportamento social e o ‘primeiro princípio de toda a ordem ético-social’ (João Paulo II, Laborem exercens, 1981). A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada. (…) A Igreja defende sim o direito legítimo à propriedade privada, mas ensina, com não menor clareza, que sobre toda a propriedade particular pesa sempre uma hipoteca social… Isto põe seriamente em discussão os hábitos injustos de uma parte da humanidade.” (#93)
Eu não chegaria a dizer, para escândalo de católicos ortodoxos, que Papa Francisco está sendo marxista, mas quem pode negar o forte conteúdo de luta de classes que marca presença na encíclica? Também nela, os maiores ecocidas, os piores poluidores, os causadores de catástrofes, têm classe e endereço.
Também é uma falácia dizer que todos os países têm a mesma responsabilidade – na verdade, são as ações de uma parcela da humanidade que está conduzindo o clima ao caos. Os países mais responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa não poderiam legitimamente querer que os miseráveis da Índia ou de Bangladesh arcassem igualmente com os custos da crise. Quem mais destruiu o bem coletivo é que deve – justiça exige! – arcar com a maior parte dos custos, investindo na transição energética para os renováveis, pagando indenizações aos países prejudicados por catástrofes etc.
“O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos na consciência o peso de negar a existências aos outros. Por isso, na Statement on Environmental Issues (2006), os bispos da Nova Zelândia perguntavam-se que significado possa ter o mandamento ‘não matarás’, quando ‘uns 20% da população mundial consomem recursos numa medida tal que roubam às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de que necessitam para sobreviver’.” (#95)
O prodigioso papa anticapitalista já percebeu – com Naomi Klein, Rebecca Solnit, George Monbiot, Christian Parenti, dentre outros – que o clamor da terra e o clamor dos pobres integram um mesmo clamor. O que faremos diante deste clamor – ouvi-lo ou ignorá-lo; agir ou padecer; mobilizar simpatia ou adormecer na indiferença; abrir os olhos para enxergar ou fingir que não se vê… – é o que definirá o “sentido de nossa passagem” por este exuberante e biodiverso jardim terrestre onde tece-se, interminável, a teia da vital “interdependência”. “O espetáculo das suas incontáveis diversidades e desigualdades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem na dependência umas das outras, para se completarem mutuamente no serviço umas das outras.” (#86)
Na reciprocidade provinda da percepção lúcida de nossa interdependência, co-laboremos contra as catástrofes acarretadas pelo capital, certos de que o vil metal das finanças nada vale diante da riqueza imensa, inestimável mas tão frágil, desta teia planetária de sociobiodiversidade hoje esgarçada e ameaçada por um Antropocalipse industrial motorizado.
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ALGUNS VÍDEOS SUGERIDOS:
Igreja dos Oprimidos – Documentário de Jorge Bodanzsky
Pachamama segundo o History Channel (dublado em português)
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ANEXO I
Ley de Derechos de la Madre Tierra
do Estado Plurinacional da Bolívia
La Madre Tierra tiene los siguientes derechos:
1. A la vida:Es el derecho al mantenimiento de la integridad de los sistemas de vida y los procesos naturales que los sustentan, así como las capacidades y condiciones para su regeneración.
2. A la diversidad de la vida:Es el derecho a la preservación de la diferenciación y la variedad de los seres que componen la Madre Tierra, sin ser alterados genéticamente ni modificados en su estructura de manera artificial, de tal forma que se amenace su existencia, funcionamiento y potencial futuro.
3. Al agua: Es el derecho a la preservación de la funcionalidad de los ciclos del agua, de su existencia en la cantidad y calidad necesarias para el sostenimiento de los sistemas de vida, y su protección frente a la contaminación para la reproducción de la vida de la Madre Tierra y todos sus componentes.
4. Al aire limpio: Es el derecho a la preservación de la calidad y composición del aire para el sostenimiento de los sistemas de vida y suprotección frente a la contaminación, para la reproducción de la vida de la Madre Tierra y todos sus componentes.
5. Al equilibro: Es el derecho al mantenimiento o restauración de lainterrelación, interdependencia, complementariedad y funcionalidad de los componentes de la Madre Tierra, de forma equilibrada para la continuación desus ciclos y la reproducción de sus procesos vitales.
6. A la restauración: Es el derecho a la restauración oportuna y efectiva de los sistemas de vida afectados por las actividades humanas directa o indirectamente.
7. A vivir libre de contaminación: Es el derecho a la preservación de la Madre Tierra de contaminación de cualquiera de sus componentes, así como deresiduos tóxicos y radioactivos generados por las actividades humanas.
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ANEXO II – ARUNDHATI ROY
Pachamama!
“If there is any hope for the world at all, it does not live in climate-change conference rooms or in cities with tall buildings. It lives low down on the ground, with its arms around the people who go to battle every day to protect their forests, their mountains and their rivers because they know that the forests, the mountains and the rivers protect them. The first step towards reimagining a world gone terribly wrong would be to stop the annihilation of those who have a different imagination—an imagination that is outside of capitalism as well as communism. An imagination which has an altogether different understanding of what constitutes happiness and fulfillment. To gain this philosophical space, it is necessary to concede some physical space for the survival of those who may look like the keepers of our past, but who may really be the guides to our future.”
—Arundhati Roy
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003 – PORTO ALEGRE
FALA DE ARUNDHATI ROY:
OBS – Compartilhamos abaixo alguns trechos seletos do brilhante prefácio de Viveiros de Castro para a obra de Kopenawa e Albert; faça o download em PDF do prefácio completo AQUI; para compartilhar este post nas redes sociais e contribuir para a disseminação deste conteúdo, use os seguintes links: Facebook || Twitter || Tumblr
A Queda do Céu é um livro sobre o Brasil, sobre um Brasil — decerto, ele é ostensivamente ‘sobre’ a trajetória existencial de Davi Kopenawa, onde o pensador e ativista político yanomami, falando a um antropólogo francês, discorre sobre a cultura ancestral e a história recente de seu povo (situado em terras venezuelanas tanto quanto em brasileiras), explica a origem mítica e a dinâmica invisível do mundo, além de descrever as características monstruosas da civilização ocidental como um todo, e de prever um futuro funesto para o planeta — mas, de um modo muito especial, ele é um livro sobre nós, dirigido a nós, os brasileiros que não se consideram índios.
Pois com a A queda do céu mudam-se o nível e os termos do diálogo pobre, esporádico e fortemente desigual entre os povos indígenas e a maioria não-indígena de nosso país, aquela composta pelo que Davi chama de “Brancos” (napë).4 Nele aprendemos algo de essencial sobre o estatuto ontológico e ‘antropológico’ dessa maioria — são espectros canibais que esqueceram suas origens e sua cultura —, onde vive ela — em altas e cintilantes casas de pedra amontoadas sobre um chão nu e estéril, em uma terra fria e chuvosa sob um céu em chamas—, e com o que ela sonha, assombrada por um desejo sem limites — sonha com suas mercadorias venenosas e suas vãs palavras traçadas em peles de papel.
Essa maioria, como eu disse, somos, entre outros, nós, os brasileiros ‘legítimos’, que falam o português como língua materna, gostam de samba, novela e futebol, aspiram a ter um carro bem bacana, uma casa própria na cidade e, quem sabe, uma fazenda com suas tantas cabeças de gado e seus hectares de soja, cana ou eucalipto. A maioria dessa maioria acha, além disso, que vive “num país que vai pra frente”, como cantava o jingle dos tempos daquela ditadura que imaginamos pertencer a um passado obsoleto.
Do ponto de vista, então, dos povos autóctones cujas terras o Brasil ‘incorporou’, os brasileiros não-índios — tão vaidosos como nos sintamos de nossa singularidade cultural perante a Europa ou os EUA, isso quando não nos envaidecemos justo do contrário — são apenas “Brancos/inimigos” como os demais napë, sejam estes portugueses, norte-americanos, franceses. Somos representantes quaisquer desse povo bárbaro e exótico proveniente de além-mar, que espanta por sua absurda incapacidade de compreender a floresta, de perceber que “a máquina do mundo” é um ser vivo composto de incontáveis seres vivos, um superorganismo constantemente renovado pela atividade vigilante de seus guardiões invisíveis, os xapiri…
Impossível, de fato, não nos reconhecermos nessa caricatura fielmente disforme de nós ‘mesmos’ desenhada, para nosso escarmento, por esse ‘nós’ outro, esse outro que entretanto insiste em nos advertir que somos, ao fim e ao cabo (mas talvez apenas ao fim e ao cabo), todos os mesmos, uma vez que, quando a floresta acabar e as entranhas da terra tiverem sido completamente destroçadas pelas máquinas devoradoras de minério, as fundações do cosmos ruirão e o céu desabará terrível sobre todos os viventes. Isso já aconteceu antes, lembra o narrador. O que é o modo índio de dizer que acontecerá de novo.
Kopenawa na FLIP
***
A queda do céu é um acontecimento científico incontestável, que levará, suspeito, alguns anos para ser devidamente assimilado pela comunidade antropológica. Mas espero que todos os seus leitores saibam identificar de imediato o acontecimento político e espiritual muito mais amplo, e de muito grave significação, que ele representa. Chegou a hora, em suma; temos a obrigação de levar absolutamente a sério o que dizem os índios pela voz de Davi Kopenawa — os índios e todos os demais povos ‘menores’ do planeta, as minorias extra-nacionais que ainda resistem à total dissolução pelo liquidificador modernizante do Ocidente.
Para os brasileiros, como para as outras nacionalidades do Novo Mundo criadas às custas do genocídio americano e da escravidão africana, tal obrigação se impõe com força redobrada. Pois passamos tempo demais com o espírito voltado para nós mesmos, embrutecidos pelos mesmos velhos sonhos de cobiça e conquista e império vindos nas caravelas, com a cabeça cada vez mais “cheia de esquecimento”, imersa em um tenebroso vazio existencial, só de raro em raro iluminado, ao longo de nossa pouco gloriosa história, por lampejos de lucidez política e poética.
Davi Kopenawa ajuda-nos a pôr no devido lugar as famosas “ideias fora do lugar”, porque o seu é um discurso sobre o lugar, e porque seu enunciador sabe qual é, onde é, o que é o seu lugar. Hora, então, de nos confrontarmos com as ideias desse lugar que tomamos a ferro e a fogo dos indígenas, e declaramos “nosso” sem o menor pudor; ideias que constituem, antes de mais nada, uma teoria global do lugar, gerada localmente pelos povos indígenas, no sentido concreto e etimológico desta última palavra.
Uma teoria sobre o que é estar em seu lugar, no mundo como casa, abrigo e ambiente, oikos, ou, para usarmos os conceitos yanomami, hutukara e urihi a: o mundo como floresta fecunda, transbordante de vida, a terra como um ser que “tem coração e respira”, não como um depósito de ‘recursos escassos’ ocultos nas profundezas de um subsolo tóxico — massas minerais que foram depositadas no inframundo pelo demiurgo para serem deixadas lá, pois são como as fundações, os sustentáculos do céu —; mas o mundo também como aquela outra terra, aquele ‘suprassolo’ celeste que sustenta as numerosas moradas transparentes dos espíritos, e não como esse ‘céu de ninguém’, esse sertão cósmico que os Brancos sonham — incuráveis que são — em conquistar e colonizar.
Por isso Davi Kopenawa diz que a ideia-coisa “ecologia”sempre fez parte de sua teoria-práxis do lugar:
Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o que ainda não tem cerca. As palavras da ecologia são nossas antigas palavras, as que Omama [o demiurgo yanomami] deu a nossos ancestrais. Os xapiri defendem a floresta desde que ela existe. Sempre estiveram do lado de nossos antepassados, que por isso nunca a devastaram. Ela continua bem viva, não é? Os brancos, que antigamente ignoravam essas coisas, estão agora começando a entender. É por isso que alguns deles inventaram novas palavras para proteger a floresta. Agora dizem que são a gente da ecologia porque estão preocupados, porque sua terra está ficando cada vez mais quente. […] Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro da ecologia e lá crescemos.
O mundo visto então — melhor, vivido — a partir daqui, do ‘centro da ecologia’, do coração indígena dessa vasta e ilimitada Terra cosmopolítica onde se distribuem nomadologicamente as inumeráveis gentes terranas, e não como uma esfera abstrata, um globo visto de fora, cercado e dividido em territórios administrados pelos Estados nacionais, épuras da alucinação euro-antropocêntrica conhecida pelos nomes de “soberania”, “domínio eminente”, “projeção geopolítica” e fantasmagorias do mesmo quilate. Talvez seja mesmo chegada a hora de concluir que vivemos o fim de uma história, aquela do Ocidente, a história de um mundo partilhado e imperialmente apropriado pelas potências europeias, suas antigas colônias americanas e seus êmulos asiáticos contemporâneos.
Caberia-nos portanto constatar, e tirar daí as devidas consequências, que “o nacional não existe mais; só há o local e o mundial.” Dir-se-á que tal declaração é conversa de europeu decadente, fantasia de ‘localista’ romântico, mantra de anarquista irresponsável, isso se não for, Deus nos proteja, um arroto do ‘libertarianismo’ à americana, aquele sinistro fascismo supremacista do indíviduo macho branco armado que grassa em nosso Grande Irmão do Norte.
O que cabe a nós brasileiros, dizemos com a cabeça erguida, é construir a Pátria Socialista do Porvir, o prometido país de classe média e feliz, sustentado por um Estado forte capaz de defendê-lo contra a cobiça internacional, ou, para sermos ‘proativos’, capaz de fazê-lo ingressar no clube seleto dos patrões deste mundo. Mas, se o nacional vai de fato — aguardemos — deixando de existir lá fora (só que nunca houve lá fora, pois o aqui dentro sempre foi, e continua sendo, uma das ‘dependências’ do lá fora), é provável que o conceito do nacional acabe mudando mundialmente de lugar, isto é, de sentido, e isso até mesmo ‘aqui dentro’.
No mínimo, talvez comecemos a nos dar conta de que se continuarmos a destruir obtusamente o local, este local do mundo que chamamos de ‘nosso’ — mas quem detém, para além do mero direito pronominal, o fato brutalmente proprietarial deste possessivo? —, não sobrarão nem fundos nem fundamentos para construirmos qualquer nacional que seja, anacrônico ou futurista. O Brasil é grande mas o mundo é pequeno.
A queda do céu é rico em lições, entre outras, sobre a incompetência eficaz, a irrelevância maligna, o ufanismo bufão da teoria e prática da governamentalidade ‘nacional’, esse nomos antinômico que estria e devasta simultaneamente um espaço que ele imagina instituir quando é, na verdade, literalmente suportado por ele. O Estado nacional? Muito bem, muito bom; mas muito antes dele, há os espíritos invisíveis da floresta, as fundações metálicas da terra, a fumaça diabólica das epidemias e a doença degenerativa do céu — e nada disso tem fronteira, porteira ou bandeira. Os xamãs e seus xapiri não carecem de passaporte nem de visto dado por gente; são eles que vêem, se forem bem vistos pela onividente gente invisível da floresta…
O Brasil? — O Brasil, na imagem tão bela e melancólica de Oswald de Andrade, já foi “uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”. Hoje, ele está mais para uma corporação empresarial coberta a perder de vista por monoculturas transgênicas e agrotóxicas, crivada de morros invertidos em buracos desconformes de onde se arrancam centenas de milhões de toneladas de minério para exportação, coberta por uma espessa nuvem de petróleo que sufoca nossas cidades enquanto trombeteamos recordes na produção automotiva, entupida por milhares de quilômetros de rios barrados para gerar uma energia de duvidosíssima ‘limpeza’ e ainda mais questionável destinação, devastada por extensões de floresta e cerrado, grandes como países, derrubadas para dar pasto a duzentos e onze milhões de bois (hoje mais numerosos que nossa população de humanos). Enquanto isso, a gente… Bem, a gente continua dizendo adeus — às árvores. Adeus a elas e à república, pelo menos em seu sentido original de res publica, de coisa e causa do povo.
***
O depoimento-profecia de Kopenawa aparece, assim, em boa hora; porque a hora, claro está, é péssima. Neste momento, nesta república, neste governo, assistimos a uma concertada maquinação política que tem como alvo as áreas de preservação ambiental, as comunidades quilombolas, as reservas extrativistas e em especial os territórios indígenas. Seu objetivo é consumar a ‘liberação’ (a desproteção jurídica) do máximo possível de terras públicas ou, mais geralmente, de todos aqueles espaços sob regimes tradicionais ou populares de territorialização que se mantêm fora do circuito imediato do mercado capitalista e da lógica da propriedade privada, de modo a tornar ‘produtivas’ essas terras, isto é, lucrativas para seus pretendentes, os grandes empresários do agronegócio, da mineração e da especulação fundiária, vários deles aboletados nas poltronas do Congresso, muitos apenas pagando seus paus-mandados para ali ‘operarem’.
Na verdade, são os Três Poderes da nossa república federativa que vêm costurando uma ofensiva criminosa contra os direitos indígenas, conquistados a duras penas ao longo da década entre 1978, ano do ‘Projeto de emancipação’ da ditadura (o qual deu espetacularmente com os burros n’água), e 1988, ano da ‘Constituição cidadã’ que reconheceu os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras, consagrando e perenizando o instituto fundamental do indigenato. Esse acolhimento dos índios como uma categoria sociocultural diferenciada de pleno e permanente direito dentro da nação suscitou uma feroz determinação retaliativa por parte do sistema do latifúndio, que hoje ocupa vários ministérios, controla o Congresso e possui uma legião de serviçais no Judiciário. Chovem, de todas as instâncias e níveis dos poderes constituídos, tentativas de desfigurar a Constituição que os constituiu, por meio de projetos legislativos, portarias executivas e decisões tribunalícias que convergem no propósito de extinguir o espírito dos artigos da Lei Maior que garantem os direitos indígenas.
O presente governo, e refiro-me aqui ao Executivo, desde sua comandante até seus ordenanças ministeriais, vem-se mostrando o de pior desempenho, desde a nossa tímida redemocratização, no tocante ao respeito a esses direitos, agravando a já péssima administração anterior sob a mesma gerência: procedimentos de demarcação e homologação de terras indígenas praticamente nulos; políticas de saúde mais que omissas, desastrosas para as comunidades indígenas; uma indiferença quase indistinguível da cumplicidade diante do genocídio praticado continuadamente e às escâncaras sobre os Guarani-Kaiowá, ou periodicamente e ‘por descuido’ sobre os Yanomami e outros povos nativos, bem como diante do assassinato metódico de lideranças indígenas e ambientalistas pelo país afora — quesito no qual o Brasil é, como se sabe, campeão mundial.
Veja-se por fim, mas não por menos lamentável, a jóia da coroa da suprema mandatária da república, a saber, a construção a toque de caixa, por mega-empreiteiras de capital privado a serviço do poder público e/ou vice-versa, ao arrepio insolente da legislação e às custas de ‘financiamentos’ de dimensões obscenas, feitos com o chamado dinheiro do povo, de dezenas de hidrelétricas na bacia amazônica, que trarão gravíssimos danos à vida de centenas de povos indígenas e de milhares de comunidades tradicionais — para não falarmos nas dezenas de milhares de outras espécies de habitantes da floresta, que vivem nela, dela e com ela; que são, enfim, a floresta ela própria, o macrobioma ou megarrizoma autotrófico que cobre um terço da América do Sul, e cuja estrutura lógico-metafísica, se me permitem a expressão, se encontra claramente exposta por Kopenawa em A queda do céu. Mas de que vale tudo isso, perante as leis inexoráveis da Economia Mundial e o objetivo supremo do Progresso da Pátria?
A entropia crescente se transfigura dialeticamente em antropia triunfante. E ainda se diz que são os índios que crêem em coisas impossíveis. Em suma, o que a ditadura empresarial-militar não conseguiu arrasar, a coalizão comandada pelo Partido dos …Trabalhadores! vai destruindo, com eficiência estarrecedora. Seu instrumento material para tanto são as mesmas forças político-econômicas que apoiaram e financiaram o projeto de poder da ditadura. Tal ‘eficiência’ destrutiva, note-se bem, anda longe da “destruição criadora” marxista e schumpeteriana, valha o que esta ainda valer nos sombrios tempos que correm.
Não há absolutamente nada de criador, e menos ainda de criativo, no que a classe dominante e seu órgão executivo fazem na Amazônia. O que falta em inteligência e descortino sobra em ganância e violência. As invasões das terras dos Yanomami por garimpeiros — e suas consequências em termos de epidemias, estupros, assassinatos, envenenamento dos rios, esgotamento da caça, destruição das bases materiais e dos fundamentos morais da economia indígena — se sucedem com monótona frequência, seguindo a oscilação das cotações do ouro e outros minerais preciosos no mercado mundial. No dia mesmo em que escrevo este parágrafo (7 de maio de 2015), leio a notícia de que uma “organização criminosa de extração de ouro” em território yanomami, que movimentou cerca de um bilhão de reais nos últimos dois anos, foi desmantelada pela Polícia Federal (em um acesso inédito de eficiência que deve ter lá seus motivos). O esquema tinha a participação de servidores públicos locais — entre eles, funcionários da Funai —, intermediação de joalherias das grandes cidades da Amazônia, e financiamento por “empresários do ramo localizados, principalmente, em São Paulo”.
Davi Kopenawa vem sendo ameaçado repetidamente de morte, desde pelo menos 2014, por ter denunciado a situação. E como se lerá neste livro (ver especialmente o cap. XV), foi sua consternação atônita ao testemunhar a sucessão de catástrofes desencadeadas pela corrida do ouro na terra Yanomami, entre os anos 1975 e 1990 — desde a construção mal-inacabada da rodovia Perimetral Norte, na primeira metade da década de 1970, até a maciça invasão garimpeira, estimulada pelos militares, a partir da implantação do Projeto Calha Norte no Governo Sarney, em 1985 — foram essa raiva e essa perplexidade, transformados em convicção militante,23 que levaram Kopenawa a se engajar na dupla posição de xamã e de diplomata (trata-se, como veremos, de uma só e mesma posição). Ele inverteu assim a polaridade de sua função de intérprete a serviço dos Brancos, que desempenhou por algum tempo como funcionário da Funai, para se tornar o intérprete e o defensor permanente de seu povo contra os Brancos, como descreve perspicazmente Albert.
O sistema do garimpo é semelhante ao do narcotráfico, e, em última análise, à tática geopolítica do colonialismo em geral: o serviço sujo é feito por homens miseráveis, violentos e desesperados, mas quem financia e controla o dispositivo, ficando naturalmente com o lucro, está a salvo e confortável bem longe do front, protegido por imunidades as mais diversas. No caso do garimpo nos Yanomami, o dispositivo, como é de notório conhecimento nos meios especializados, envolve políticos importantes de Roraima, alguns deles defensores destacados, no Congresso, de reformas ‘liberalizantes’ da legislação minerária relativa às terras indígenas. Esses próceres não aparecem na notícia sobre o desmantelo da operação criminosa mais recente. Duvido que apareçam. Quem sabe, sequer existam. O povo inventa muito…
Mas não temos a exclusividade do ruim; nossa estupidez etnocida, ecocida, e em última análise suicida, não é sequer original. A concorrência internacional é fortíssima. O diagnóstico e o prognóstico contidos em A queda do céu não concernem apenas aos brasileiros. Neste momento, assistimos a uma mudança do equilíbrio termodinâmico global sem precedentes nos últimos 11 mil anos da história do planeta, e, associada a ela, a uma inquietação geopolítica inédita na história humana — se não em intensidade (ainda), certamente em extensão, na medida em que ela afeta literalmente ‘todo (o) mundo’. Neste momento, portanto, nada mais apropriado que venha dos cafundós do mundo, dessa Amazônia indígena que ainda vai resistindo, mesmo combalida, a sucessivos assaltos; que venha, então, dos Yanomami, uma mensagem, uma profecia, um recado da mata alertando para a traição que estamos cometendo contra nossos conterrâneos — nossos co-terranos, nossos co-viventes — assim como contra as próximas gerações humanas; contra nós mesmos, portanto.
O que lemos em A queda do céu é a primeira tentativa sistemática de “antropologia simétrica”, ou “contra-antropologia”, do Antropoceno, a época geológica atual que, na opinião crescentemente consensual dos especialistas, sucedeu o Holoceno, e na qual os efeitos da atividade humana — entenda-se, a economia industrial baseada na energia fóssil e no consumo exponencialmente crescente de espaço, tempo e matérias primas — adquiriram a dimensão de uma força física dominante no planeta, ao par do vulcanismo e dos movimentos tectônicos.
Ao mesmo tempo uma explicação do mundo segundo uma outra cosmologia e uma caracterização dos Brancos segundo uma outra antropologia (uma contra-antropologia), A queda do céu entrelaça estes dois fios expositivos para chegar à conclusão de uma iminência da destruição do mundo, levada a cabo pela civilização que se julga a delícia do gênero humano — essa gente que, liberta de toda ‘superstição retrógrada’ e de todo ‘animismo primitivo’, só jura pela santíssima trindade do Estado, do Mercado e da Ciência, respectivamente o Pai, o Filho e o Espírito Santo da teologia modernista.26 Tal credo fanático, de resto, é costumeiramente empurrado goela baixo dos índios por um estranho instrumento, ao mesmo tempo arcaico e modernizador, o Teosi (Deus) dos missionários evangélicos norteamericanos que Davi conheceu tão bem, esses insuportáveis operadores de telemarketing do Capital.
(…) A Queda do Céu é um ‘objeto’ inédito, compósito e complexo, quase único em seu gênero. Pois ele é, ao mesmo tempo: uma biografia singular de um indivíduo excepcional, um sobrevivente indígena que viveu vários anos em contato com os Brancos até reincorporarse a seu povo e decidir tornar-se xamã; uma descrição detalhada dos fundamentos poéticometafisicos de uma visão do mundo da qual só agora começamos a reconhecer a sabedoria; uma defesa apaixonada do direito à existência de um povo nativo, que vai sendo engolido por uma máquina civilizacional incomensuravelmente mais poderosa; e, finalmente, uma contraantropologia arguta e sarcástica dos Brancos, o “povo da mercadoria”, e de sua relação doentia com a Terra — conformando um discurso que Albert (1993) caracterizou, lapidarmente, como uma “crítica xamânica da economia política da natureza”.
O livro se destaca de seus aparentes congêneres, antes de mais nada, pela densidade e solidez inauditas de seu contexto de elaboração, que pôs frente a frente, em um diálogo ‘entrebiográfico’ que é também a história de um projeto político convergente, um pensador indígena com uma longa e dolorosa experiência ‘pragmática’ (mas também intelectual) do mundo dos Brancos, observador sagaz de nossas obsessões e carências, e um antropólogo com uma longa experiência ‘intelectual’ (mas também prática, e não isenta de dificuldades) do mundo dos Yanomami, autor que chegou a esta obra a quatro mãos já de posse de um saber etnográfico que conta entre as mais importantes contribuições ao estudo dos povos amazônicos, e cuja biografia é quase tão ‘anômala’, em sua recusa a se deixar capturar pela carreira acadêmica, quanto a do xamã-narrador.
Não caberia, em todos os sentidos, resumir aqui a narrativa de Davi Kopenawa, cujo interesse extravasa de muito as questões e querelas ‘antropológicas’ acima expostas. Pois o que realmente importa é como este livro pode dar a pensar aos não antropólogos; o que conta é o que Davi Kopenawa tem a dizer, a quem souber ouvir, sobre os Brancos, sobre o mundo e sobre o futuro. Que seu seu repertório conceitual e seu universo de referências sejam muito estranhos ao nosso só torna mais urgente e inquietante sua ‘profecia xamânica’, cada vez menos ‘apenas’ imaginária e cada vez mais parecida com a realidade. Como observou Bruno Latour, falando da crise da ontologia dos Modernos e da catástrofe ambiental planetária a ela associada, assistimos hoje a um “[r]etorno progressivo às cosmologias antigas e às suas inquietudes, as quais percebemos, subitamente, não serem assim tão infundadas” (Latour 2012: 452).
Há, entretanto, duas pequenas passagens de A queda do céu que me tocam especialmente, por resumirem de modo epigramático o que eu chamaria a diferença indígena. A primeira é uma citação, em epígrafe ao capítulo XVII, “Falar aos Brancos”, de um diálogo havido no dia 19 de abril de 1989 (o “Dia do Índio”) entre o General Bayma Denis, ministrochefe da Casa Militar durante o governo Sarney — sempre ele — e Davi Kopenawa. Quase conseguimos ouvir o tom arrogante e complacente com que o dignitário militar, provavelmente obrigado a jogar conversa fora com um índio qualquer durante aquela tediosa efeméride, pergunta a Davi: “O povo de vocês gostaria de receber informações sobre como cultivar a terra?” Ao que o impávido xamã replica: “Não. O que desejo obter é a demarcação de nosso território.”
Pano rápido… O que me fascina neste diálogo, além, naturalmente, da soberba indiferença à farda demonstrada por Kopenawa, é a presunção do general, que imagina poder ensinar aos senhores da terra como cultivá-la — convicto de que, povo da natureza, os índios não entendiam nada de cultura, Bayma Denis devia pensar que os Yanomami eram ‘nômades’ ou algo assim—; que acredita, ademais, que os pobres índios estavam sequiosos de beber dessa ciência agronômica possuída pelos Brancos, a ciência que nos abençoa com pesticidas cancerígenos, fertilizantes químicos e transgênicos monopolistas, enquanto os Yanomami se empanturram com o produto de sua roças impecavelmente ‘agrobiológicas’.
Mais fascinante ainda, porém, é a total inversão de conceitos proposta por Davi em sua réplica, verdadeiro contragolpe de mestre espadachim. O general fala em “terra”, quando deveria estar falando é em “território”. Fala em ensinar a cultivar a terra, quando o que lhe compete, como militar a soldo de um Estado nacional, topográfico e agro-nomocrático, é demarcar o território. Bayma Denis não sabe do que sabem os Yanomami; e, aliás, o que sabe ele de terra? Mas Kopenawa sabe bem o que sabem os Brancos; sabe que a única linguagem que eles entendem não é a da terra, mas a do território, do espaço estriado, do limite, da divisa, da fronteira, do marco e do registro. Sabe que é preciso garantir o território para poder cultivar a terra. Faz tempo que ele aprendeu a regra do jogo dos Brancos, e nunca mais esqueceu. Veja-se esta sua entrevista ao Portal Amazônia, concedida exatamente 26 anos após o colóquio com o General:
Quem ensinou a demarcar foi o homem branco. A demarcação, divisão de terra, traçar fronteira é costume de branco, não do índio. Brasileiro ensinou a demarcar terra indígena, então a gente passamos a lutar por isso. Nosso Brasil é tão grande e a nossa terra é pequena. Nós, povos indígenas, somos moradores daqui antes dos portugueses chegarem. Lutei pela terra Yanomami para que o meu povo viva onde eles nasceram e cresceram, mas o registro de demarcação da terra Yanomami não está comigo, está nas mãos do Governo. Mesmo diante das dificuldades, o tamanho da nossa terra é suficiente para nós, desde que seja mesmo somente para nós e não precisamos dividir com os garimpeiros e ruralistas.
A segunda passagem, e aqui transcrevo (não conseguiria fazer melhor…) três parágrafos do comentário que Deborah Danowski e eu tecemos sobre ela em Há mundo por vir?, equivale a um tratado inteiro de contra-antropologia dos Brancos:
Os brancos nos tratam de ignorantes apenas porque somos gente diferente deles. Na verdade, é o pensamento deles que se mostra curto e obscuro. Não consegue se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. […] Ficam sempre bebendo cachaça e cerveja, que lhes esquentam e esfumaçam o peito. É por isso que suas palavras ficam tão ruins e emaranhadas. Nós não as mais queremos ouvir. Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos.
O vão desejo de ignorar a morte está ligado, segundo Kopenawa, à fixação dos Brancos na relação de propriedade e na forma-mercadoria. Eles são “apaixonados” pelas mercadorias, às quais seu pensamento permanece completamente “aprisionado”. Recordemos que os Yanomami não só valorizam ao extremo a liberalidade e a troca não-mercantil de bens, como destroem todas as posses dos mortos. E então, a volta do parafuso: “Os Brancos dormem muito, mas só sonham consigo mesmos.” Este é, talvez, o juízo mais cruel e preciso até hoje enunciado sobre a característica antropológica central do “povo da mercadoria”. A desvalorização epistêmica do sonho por parte dos Brancos vai de par com sua autofascinação solipsista — sua incapacidade de discernir a humanidade secreta dos existentes não-humanos — e sua avareza ‘fetichista’ tão ridícula quanto incurável, sua crisofilia. Os Brancos, em suma, sonham com o que não tem sentido. Em vez de sonhar com o outro, sonhamos com o ouro.
É interessante notar, por um lado, que há algo de profundamente pertinente do ponto de vista psicanalítico no diagnóstico de Kopenawa sobre a vida onírica ocidental — sua Traumdeutung é de fazer inveja a qualquer pensador freudo-marxista —, e, de outro lado, que seu diagnóstico nos paga com nossa própria moeda falsa: a acusação de uma projeção narcisista do Ego sobre o mundo é algo a que os Modernos sempre recorreram para definir a característica antropológica dos povos “animistas” — Freud foi, como se sabe, um dos mais ilustres defensores desta tese. No entender desses que chamamos animistas, ao contrário, somos nós, os Modernos, que, ao adentrarmos o espaço da exterioridade e da verdade — o sonho —, só conseguimos ver reflexos e simulacros obsedantes de nós mesmos, em lugar de nos abrirmos à inquietante estranheza do comércio com a infinidade de agências, ao mesmo tempo inteligíveis e radicalmente outras, que se encontram disseminadas pelo cosmos. Os Yanomami, ou a política do sonho contra o Estado: não o nosso “sonho” de uma sociedade contra o Estado, mas o sonho tal como ele é sonhado em uma sociedade contra o Estado.
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O mais assustador de tudo é que a receita para cozinhar o mundo é de chocante simplicidade: basta que deixemos tudo como está. Que as maiorias silenciosas permaneçam com as bundas sentadas no sofá, imbecilizados pela televisão e confortavelmente entorpecidos pelo besteirol das ideologias dominantes, são ingredientes que bastam para a concretização da catástrofe.
Aqueles que querem contribuir para o fim da civilização ocidental e para o declínio brutal da biodiversidade sobre a face da terra só precisam fazer isto: permanecer de braços cruzados e permitir que os “entendidos” e endinheirados sigam dominando o cenário. Afinal, os plutocratas e as elites devem saber o que fazem, né? Well, not really! A máquina está montada para mover-se rumo à catástrofe climática e à mega-tragédia humanitária – e nossa única solução, como aponta claramente a autora de Sem Logo e Doutrina do Choque, é uma boa dose de rage against the machine.
Naomi Klein sempre teve o mérito de unir uma crítica mordaz do capitalismo neoliberal globalizado com um reconhecimento da importância dos movimentos sociais “altermundialistas” e grassroots. Em sua abordagem da crise que “muda tudo” – ou seja, o aquecimento global antropogênico, causado por alguns séculos de capitalismo industrial poluidor e ecocida – a brilhante escritora canadense também aposta suas fichas numa pressão que vem de baixo para impedir o pior. O básico de sua mensagem em seu novo livro – que traz como subtítulo “O Capitalismo Vs O Clima” – é resumível nisto: é impossível lutar contra o efeito estufa e a hecatombe ecológica sem atacar o capitalismo em sua raiz.
Pois o pior está a caminho: nosso sistema econômico dominante está em guerra contra a teia-da-vida terrestre, tecida por milhões e milhões de anos de evolução orgânica e que agora o homo sapiens ameaça destroçar em poucos séculos. Tudo o que precisamos fazer para que a catástrofe se concretize é nada: se deixarmos as mega-corporações prosseguirem tirando combustíveis fósseis do subsolo e colocando-os no mercado para serem consumidores; se os consumidores prosseguirem a cegamente contribuir com emissões grotescas de CO2 para a atmosfera; se as empresas poluidoras e devastadoras continuarem praticando suas devastações ambientais impunemente e praticando recorrentes mega-crimes, de oil spills ao assassinato de rios; se os governos, ajoelhados diante do poder financeiro, permitirem a perpetuação do vale-tudo do mercado, súditos fiéis do capitalismo-de-cassino e dos financiamentos empresariais de campanha… bem, aí então estamos fritos. We’re cooked. Literalmente.
Um dos dados mais aterradores que a consagrada jornalista investigativa Naomi Klein compartilha em This Changes Everything revela o cerne do nosso trágico problema: para que a Humanidade consiga evitar um aumento de 2ºC na temperatura do planeta – a meta fixada no último acordo internacional de Paris-2016 (COP 21) – existe uma certa quantidade x de carbono que pode ser lançado à atmosfera (eis aquilo que é conhecido como carbon budget); no entanto, o total das reservas comprovadas de combustíveis fósseis é cerca 5 vezes superior àquilo que podemos queimar com segurança sem causar uma apocalíptica catástrofe.
Autores como Bill McKibben, organizações como o IPCC (Intergovernamental Panel on Climate Change) e jornais como o The Guardian têm repetido incansavelmente este fato nos últimos anos: se quisermos limitar a quentura planetária ao incremento (por si só bastante inflamante!) de 2º C, podemos emitir apenas 565 bilhões de toneladas de carbono; porém, o total das reservas de petróleo, carvão e gás natural já comprovadas equivaleria à emissão de 2,795 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa. Faça a conta e chegarás à conclusão incontornável: 4/5 de todas as reservas precisam ficar exatamente onde estão: no chão. Lançar tudo à atmosfera equivale a um suicídio coletivo e um atentado contra a biosfera. (Saiba mais: relatório Unburnable Carbon)
A previsão é a de que, se queimarmos tudo o que temos pra queimar, vamos todos morrer cozinhados numa grande labareda de caos climático: haverá escassez de alimentos e grandes mortandades por fome e sede; inundações monstruosas de metrópoles costeiras e países (como Bangladesh) transformados em encarnações da mítica Atlântida; para não falar nas gigantescas crises de refugiados (“resolvidas” por inimagináveis crueldades fascistas). Sobre o tema, remeto às obras de George Monbiot, Isabelle Stengers, Michel Serres, Viveiros de Castro & Déborah Danowski, Alexandre Araújo Costa.
A conclusão que tiro a partir do que sei é: se quisermos sobreviver, temos que tomar a decisão (urgente) de deixar onde está o famoso “ouro negro” ao qual os plutocratas estão tão apegados. Nossa única chance de evitar um aquecimento global de proporções infernais é superar a lógica do lucro a curto prazo que é hoje tão hegemônica e migrar velozmente para uma economia planetária “verde”, sustentável, de teor ecosocialista e mais leal ao commons do que ao capital.
“THIS CHANGES EVERYTHING”
DOWNLOAD TORRENT: http://bit.ly/1LbPKQb
(BluRay, 720p, 1,09 gb; ainda sem legendas em português)
Os livros de Naomi Klein possuem não apenas uma assombrosa coerência interna e uma maravilhosa estrutura argumentativa: eles conectam-se uns aos outros como peças de um mesmo quebra-cabeça. A Doutrina do Choque começava por uma obra-prima de jornalismo investigativo sobre New Orleans e os impactos do Furacão Katrina. A intenção de Klein era mostrar em minúcias, a partir deste exemplo preciso, o quão cruel e desumana é a doutrina neoliberal de que “nas desgraças, há oportunidade$”: uma cidade devastada por uma catástrofe climática viu sua população mais pobre e despossuída tratada com um descaso e uma negligência que demonstrou a expícita falência do Estado diante do poderio das forças do “mercado”.
A lendária “mão invisível” de Adam Smith, esta versão da Providência Divina adorada por white anglo-saxan protest males, não deu o ar de sua graça para salvar os moradores de New Orleans, que foram abandonados à própria sorte pelo governo federal (mais preocupado com suas guerras-imperialistas-em-prol-de-petróleo do que com o cuidado com seus próprios cidadãos).
O livro seguinte de Klein – This Changes Everything – Capitalism vs the Climate – ataca a questão das mudanças climáticas permanecendo no mesmo âmbito de sua análise de obras precedentes: é o “fundamentalismo de mercado” que tem sabotado nossa resposta coletiva à crise, afirma Klein. A humanidade vê-se diante de uma “crise existencial” que a ataca num momento histórico onde, infelizmente, vivenciamos o desmonte generalizado da esfera pública e a disseminação epidêmica do individualismo consumista de massa.
TORONTO, ON – SEPTEMBER 13: Journalist Naomi Klein (L) and director Avi Lewis attend the “This Changes Everything” photo call during the 2015 Toronto International Film Festival at Ryerson Theatre on September 13, 2015 in Toronto, Canada. (Photo by Mike Windle/Getty Images)
Agora Naomi Klein e seu marido, o jornalista Avi Lewis, lançaram também um documentário que pretende repercutir ainda mais a relevante mensagem de This Changes Everything. Dirigido por Avi e narrado por Naomi, o filme viaja o mundo revelando as frentes-de-batalha da geopolítica contemporânea, revelando várias facetas de um planeta devastado. Revela também a resistência em ascendência que promete pôr um freio aos capitalismos desenfreados que estão nos empurrando ao estado de emergência de um globo em incêndio.
Nos oil sands de Alberta, Canadá, o filme revela um mega-empreendimento de extração de petróleo das areias betuminosas, um dos projetos industriais mais destrutivos (e lucrativos) da Terra, contestado pela insurgência das First Nations e de organizações como o Idle No More.
Em Nova York, após a passagem do furacão Sandy, vemos a auto-proclamada “civilização avançada” revelando-se em toda a sua fragilidade diante do poderio das tempestades e ventanias. Wall Street joga com o mundo como se tudo não passasse de um grande cassino, enquanto multidões engolem o fascismo populista em versão hard (Donald Trump) ou soft (Hilary Clinton) naquele país onde, segundo a cáustica ironia de Nicanor Parra, “a liberdade é uma estátua”.
Na China, presenciamos recorrentes notícias de uma situação de calamidade pública com a poluição atmosférica extrema, que obriga os chineses, nos grandes centros urbanos, a usarem máscaras de proteção contra a smog. Na Índia, testemunhamos milhares de suicídios decorrentes de dívidas contraídas por pessoas “sequestradas pelo Sistema Monsanto” e a eclosão de guerrilhas camponesas (como os maoístas, cuja história foi tão bem contada por Arundhati Roy) que lutam contra o ecocídio militarizado. Na Alemanha, uma luz de esperança brilha através do exemplo de uma transição veloz e bem-sucedida para fontes de energia renováveis (30% da eletricidade do país já provêm de fontes limpas), mostrando que o caminho para a solar e a eólica pode ser trilhado já. Divest from fossil fuels!!!
Pedestrians wear pollution masks as they cross an overhead bridge over a busy highway in Beijing, China. Photograph: Ng Han Guan/AP
O contexto brasileiro não aparece no filme de Lewis e Klein, mas podemos enquadrar o “drama do pré-sal” nesta problemática constelação e perguntar: a descoberta das vastas reservas de petróleo submarino, no Brasil, é uma dádiva ou uma maldição? Devemos celebrar o fato de possuirmos tantas “riquezas naturais” em nosso território, ou serão profundamente lamentáveis as consequências disso para a nossa estabilidade política e convivência cívica? Sobre o tema, cito e referendo a opinião de Bruno Torturra (Facebook, 25/02/2016):
Sabe a quem o pré-sal pertence? Ao subsolo.
Sempre sou ridicularizado pela esquerda por dizer isso. Mas repito hoje. O pré-sal nunca foi um bilhete premiado como afirmou o então presidente Lula. É, desde que foi encontrado, uma maldição.
Primeiro, uma maldição para nossa estabilidade política. Uma reserva de petróleo dessa magnitude, encontrada em país de vocação extrativista e colonial, é claramente uma presa saborosa demais para agentes econômicos de todo tipo, para a ganância multinacional, para a corrupção local e operadores eleitorais deixarem em paz. Em um país como o nosso, claro que seria veneno para a saúde institucional. Taí a realidade que não me deixa mentir.
Segundo, uma maldição para nosso modelo de desenvolvimento. Exaltar e associar a exploração de combustíveis fósseis como a grande solução para a educação nacional? Bela lição às crianças que vão viver no perigoso século das mudanças climáticas. Bela estratégia para um país que, antes de encontrar a reserva, era referência no desenvolvimento de biocombustíveis. E enquanto Lula e Dilma posavam rindo com as mãos sujas de óleo sob aplausos da esquerda ufanista, o mundo começava a entender que as potências energéticas do futuro imediato seriam criadoras de novas tecnologias para fontes limpas.
Terceira, e mais grave, maldição ambiental. Vamos explicar de novo: a atmosfera não dá mais conta. A humanidade, não apenas o Brasil, deveria ter lamentado que encontramos tanto óleo. Lamentado que a conta é feita em dólar, não em toneladas de carbono. Mas… recuperamos o slogan dos tempos de Monteiro Lobato, aceitamos a metáfora de Lula, de que o “bilhete premiado é nosso!”.
Bem… A Chevron, José Serra e desde ontem a própria Dilma discordam. E a esquerda sonâmbula toma um susto. E já começa a racionalizar, dizer que Dilma está refém, “golpe! golpe! Brasileiros, às timelines!” Até porque vai ser bem complicado ir para as ruas exigir todo aquele arame para a educação. É que junto com o fim da exclusividade da Petrobrás, ontem aprovamos o projeto anti-terrorismo que pode enquadrar manifestantes mais assertivos. Uma cortesia do Planalto.
Eu sigo em cima do meu caixote na praça dizendo: o petróleo não é nosso. Sabe onde a natureza o escondeu? Abaixo da camada de sal na crosta terrestre. Esse bilhete não foi “encontrado”. Será saqueado de um cofre geológico. E agora, como era de se esperar, também do caixa da educação. (BRUNO TORTURRA)
Não vejo motivos para otimismo: no Brasil, as mobilizações em prol da causa ambiental-ecológica são pífios, quase nulos, e mesmo o pior crime corporativo da história do país não gerou nem sequer uma mísera marcha ou manifestação significativa contra Samarco-Vale-BHP.
Também beira o inacreditável que um livro de tamanha importância planetária quanto a nova obra-prima de Naomi Klein ainda não tenha sido traduzido e lançado no mercado brasileiro, perpetuando o estado de desinformação e alienação em que nos encontramos sobre as questões mais prementes de nosso tempo. A temática das mudanças climáticas aparece na mídia muito mal e porcamente, quando aparece. A loucura do deixe-tudo-como-está é uma doença muito disseminada entre nós, assim como a insanidade suplementar da fé na tecnocracia e nos gestores empresariais.
Diante desse quadro lastimável, é preciso afirmar e re-afirmar a importância do trabalho de figuras como Naomi Klein, cuja obra ainda é subestimada e sub-estudada entre nós. This Changes Everything, tanto o livro quanto o filme, são guias essenciais não só para a compreensão do nosso presente, são cruciais para a criação de um futuro vivível: a tarefa é articular não somente uma proposta de políticas alternativa mas também uma outra visão-de-mundo que rivalize contra aquela que está no cerne da crise ecológica.
Precisamos com urgência da disseminação de uma visão-de-mundo alternativa, como diz Klein, baseada em “interdependência mais do que em hiperindividualismo, reciprocidade mais do que dominância, cooperação mais do que hierarquia. É o que precisamos não somente para criar um contexto político capaz de reduzir dramaticamente as emissões, mas também para nos auxiliar a lidar com os desastres que não podemos mais evitar. Pois no quente e tempestuoso futuro que já tornamos inevitável por nossas emissões do passado, uma inquebrantável crença nos direitos igualitários de todos os povos e uma profunda compaixão serão os únicos valores separando a civilização do barbarismo.” (KLEIN, This Changes Everything)
Nem tudo está à venda! Eis um dos brados que os mercantilizadores-de-tudo estão sendo obrigados a ouvir nas manifestações e ocupações atuais, em várias frentes (do Occupy Wall Street aos Indignados espanhóis, da guerrilha síria em Rojava aos secundaristas-em-luta e passe-livristas em marcha no Brasil). As mobilizações em prol da educação pública também revelam outra das trincheiras de batalha contra os poderes que, como o Rei Midas da mitologia grega, querem transformar tudo o que tocam em ouro, instituindo o império universal daquele que Davi Kopenawa batizou de “o povo da mercadoria” (@ A Queda Do Céu). Vivemos sob o reinado daqueles que, como Oscar Wilde dizia, “sabem o preço de tudo mas não sabem o valor de nada.”
Um de nossos maiores pensadores da educação, Paulo Freire, sempre deixou muito explícita sua recusa daquilo que apelidou de “malvadez neoliberal”. Basta atentar para o que ele diz Pedagogia da Autonomia, onde Freire não deixa margem a dúvidas quanto a seu engajamento e sua “crítica permanentemente presente” à “malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia”:
Estamos de tal maneira submetidos ao comando da malvadez da ética do mercado que me parece pouco tudo o que façamos na defesa e na prática da ética universal do ser humano. (…) Não é possível ao sujeito ético viver sem estar permanentemente exposto à transgressão da ética. Uma de nossas brigas na história, por isso mesmo, é exatamente esta: fazer tudo o que possamos em favor da eticidade, sem cair no moralismo hipócrita, ao gosto reconhecidamente farisaico. (…) Quando falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana.” (PAULO FREIRE, Primeiras Palavras, p. 16-19)
Ainda que sua voz soe serena e amorosa em vários trechos de sua obra, Freire confessa que é um “tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo. Daí o meu nenhum interesse de assumir um ar de observador imparcial… Quem observa o faz de um certo ponto de vista, o que não situa o observador em erro. O erro na verdade não é ter um certo ponto de vista, mas absolutizá-lo… O meu ponto de vista é o dos ‘condenados da Terra’, o dos excluídos.” (op cit, p. 16)
Freire alia-se a uma decifração-do-real proposta, por exemplo, por Franz Fanon n’Os Condenados da Terra, onde a condição existencial e psico-física da legião de oprimidos é o foco de atenção e de compreensão. Contra a absolutização da chamada “ética do mercado”, posta pela ideologia dominante como irremediável e insuperável, Paulo Freire reclama não só a possibilidade, mas a urgente necessidade de instauração coletiva de uma outra ética, ou melhor, de uma eticidade, espraiada pelo cotidiano, que faça frente à hegemonia do capitalismo neoliberal globalizado, no qual a ética é cotidianamente transgredida pois vista apenas como obstáculo no caminho dos lucros (como prova a imensa irresponsabilidade empresarial, o grotesco desrespeito aos direitos humanos e às práticas ecologicamente sustentáveis, envolvidos na pior tragédia socioambiental da história do Brasil, por cortesia da privatizada Vale e sua subsidiária Samarco, amargas assassinas do Rio Doce).
Vivemos em meio à efervescência das lutas contra o avanço do capitalismo neoliberalizante na educação, com a privatização crescente das escolas e a restrição do educador ao papel limitado (e limitador) daquele que treina seus clientes para que adquiram competências técnicas valorizadas pelo mercado de trabalho capitalista. Uma pedagogia que é convidada a ser serviçal do capital, colocando ainda mais lenha na fogueira de um sistema grotescamente excludente, opressor e desumanizante. Segundo recente pesquisa da Oxfam, a desigualdade social e a concentração de riqueza em poucas mãos são males que não cessa de aumentar: os 62 indivíduos mais ricos do planeta já detêm mais capital que metade da humanidade (3,6 bilhões de pessoas). Meritocracia ou plutocracia?
Uma encarniçada batalha opõe o capitalismo neoliberal – novo Midas que quer privatizar tudo o que toca e pretende gerir e$cola$ como se fossem empre$a$, instituindo a epidemia de universidades que vendem diplomas na base do pagou, passou – às vertentes contra-hegemônicas e de resistência, que demandam a universalização do ensino gratuito e sem fins lucrativos.
Alguns dos capítulos mais interessantes desta História-em-curso foram escritos no continente americano dos últimos anos:
a ainda-pulsante maré brasileira de ocupações e manifestações que tomou conta dos estados do Paraná, de São Paulo e de Goiás, em 2015-2016, em protesto contra as “reorganizações” e privatizações impostas pelos novos paladinos da Privataria Tucana (os governadores do PSDB Beto Richa, Geraldo Alckmin, Marconi Perillo…).
Se há um brado que resume todas essas lutas, ei-lo numa fórmula: educação não é mercadoria!
* * * * *
Realizou-se em Porto Alegre (RS), julho de 2004, o III Fórum Mundial da Educação, cuja conferência de abertura ficou a cargo do professor István Mészáros, que proferiu ali palavras preciosas para nos guiar rumo a uma Educação Para Além Do Capital(Google Livros). Segundo Ivana Jinkings, fundadora da Editora Boitempo, Mészáros – pensador húngaro nascido em 1930 em Budapeste e que foi assistente de Georg Lúkacs – “afirma que a educação não é um negócio, é criação; que a educação não deve qualificar para o mercado, mas para a vida.” [1]
“Mészáros ensina que pensar a sociedade tendo como parâmetro o ser humano exige a superação da lógica desumanizadora do capital, que tem no individualismo, no lucro e na competição seus fundamentos. Que educar é – citando Gramsci – colocar fim à separação entre Homo fabere Homo sapiens; é resgatar o sentido estruturante da educação e de sua relação com o trabalho, as suas possibilidades criativas e emancipatórias. E recorda que transformar essas ideias e princípios em práticas concretas é uma tarefa a exigir ações que vão muito além dos espaços das salas de aula, dos gabinetes e dos fóruns acadêmicos. Que a educação não pode ser encerrada no terreno estrito da pedagogia, mas tem de sair às ruas, para os espaços públicos, e se abrir para o mundo.
Ele alerta, porém, que o simples acesso à escola é condição necessária mas não suficiente para tirar das sombras do esquecimento social milhões de pessoas cuja existência só é reconhecida nos quadros estatísticos. (…) O que está em jogo não é apenas a modificação política dos processos educacionais – que praticam e agravam o apartheid social -, mas a reprodução da estrutura de valores que contribui para perpetuar uma concepção de mundo baseada a sociedade mercantil. (…) Pequeno em tamanho, A Educação Para Além do Capital é um livro imenso em esperança e determinação. Nele, o filósofo marxista condena as mentalidades fatalistas que se conformam com a ideia de que não existe alternativa à globalização capitalista.” IVANA JINKINGS (Leia também: Um caminho trilhado pela esquerda, Revista Saraiva)
A fotografia que ilustra a capa do livro é de Sebastião Salgado e retrata uma menina do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) que faz os deveres escolares e toma conta dos irmãos enquanto a mãe trabalha.
No reino do capital, tudo é mercadoria, e a educação não escapa a esta infecção: “daí a crise do sistema público de ensino, pressionado pelas demandas do capital e pelo esmagamento dos cortes de recursos dos orçamentos públicos”, lembra Emir Sader. “Talvez nada exemplifique melhor o universo instaurado pelo neoliberalismo, em que tudo se vende, tudo se compra, do que a mercantilização da educação. Uma sociedade que impede a emancipação só pode transformar os espaços educacionais em shopping centers, funcionais à sua lógica do consumo e do lucro.” EMIR SADER
Que o pensamento de Marx e Engels inclui uma dimensão educativa e uma preocupação pedagógica é algo revelado não só por Mészáros, mas também pela “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire ou por estudos como Marx e a Pedagogia Moderna de Mario Manacorda. Certos trechos conhecidíssimos do “cânone” materialista-dialético exploram diretamente o tema, por exemplo:
“a teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado.” KARL MARX e FRIEDRICH ENGELS
Aos que pregam que o capitalismo não merece ser extinto e revolucionado, mas só reformado e aprimorado, Mészáros afirma convicto que o capital é “irreformável” e “incorrigível” (p. 27) e que necessitamos mesmo é de uma “radical mudança estrutural” (p. 25). “O sentido da mudança educacional radical não pode ser senão o rasgar da camisa de força da lógica incorrigível do sistema: perseguir de modo planejado e consistente uma estratégia de rompimento do controle exercido pelo capital…” (p. 35).
István Mészáros
“A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu – no seu todo – ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes… A própria História teve de ser totalmente adulterada, e de fato frequente e grosseiramente falsificada para esse propósito.” (MÉSZÁROS, p. 36)
É bem verdade que, com sua distopia 1984, George Orwell pretendeu denunciar o totalitarismo, e não oferecer um manual de instruções. Porém, a realidade mostra o quanto o romance orwelliano é representação fidedigna dos mecanismos de funcionamento da ideologia, esta arte de inculcar, de condicionar, de fazer acreditar no falso, tão essencial à perpetuação do capitalismo e seu séquito de desigualdades e exclusões.
Apesar de ciente da força dos aparelhos ideológicos, inclusive os (des)educativos e (de)formadores que estão a serviço dos interesses das classes proprietárias, Mézsáros não é pessimista a ponto de propor que seja realizável a distopia de 1984, ou seja, uma sociedade totalitária, gerida por um Grande Irmão ou um führer, reinando inconteste sobre um rebanho de conformistas e submissos, que aceitaram fazer da ideologia a eles “pregada” – papagueada em púlpitos e jornais, em propagandas e teletelas – sua carne e coração.
O pesadelo – ufa! – não pode se realizar por inteiro! Por mais que tenebrosos poderes insistam em transformar salas-de-aula em celas-de-aula, escolas em cadeias, ensino em doutrinação, sabedoria em ideologia, há algo de incontrolável e de anárquico na ânsia de saber do ser humano e que romperá sempre as correntes limitantes que instituições tentem impor.
“O pesadelo em 1984, de Orwell, não é realizável precisamente porque a esmagadora maioria das nossas experiências constitutivas permanece – e permanecerá sempre – fora do âmbito do controle e da coerção institucionais formais. Certamente, muitas escolas podem causar um grande estrago, merecendo portanto, totalmente, as severas críticas de José Martí, que as chamou de ‘formidáveis prisões’. (…) ‘A aprendizagem é a nossa própria vida’, como Paracelso afirmou… Mas para tornar essa verdade algo óbvio, como deveria ser, temos de reivindicar uma educação plena para a vida, para que seja possível colocar em perspectiva a sua parte formal, a fim de instituir, também aí, uma reforma radical.” (MÉSZÁROS)
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EDUCAR PARA A VIDA – ÉTICA & PEDAGOGIA
Quando a educação cessa de servir à emancipação e passa a acorrentar-nos à camisa-de-força de uma ideologia classista, que falsifica a História, degrada a dignidade do presentee aniquila a possibilidade de um futuro melhor (pois aposta somente na continuação do mesmo,) podemos sem dúvida exigir das lutas populares que foquem sua atenção na tarefa de uma educação revolucionada, mas que só o será no interior de uma revolução social mais ampla. Mészáros fornece um bom plano, sintético, para a educação revolucionada de amanhã: ela deve educar para a vida, e não para o mercado.
Daí a importância crucial da ética, ou melhor, de uma educação ética, de uma formação que foque não apenas em fornecer treinamentos técnicos e saberes necessários ao Homo faber de uma certa especialização profissional, mas que enxergue como essencial e incontornável a própria conduta na vida, tanto privada como pública,como quintessencial a qualquer prática pedagógica libertária e sábia. Por essas e outras é que acredito que a filosofia nas escolas é um ingrediente imprescindível pra qualquer educação que seja autenticamente destinada à emancipação e não à opressão. Mas uma filosofia que inclua os rebeldes, os revoltados, os ímpios, os questionadores, os espíritos livres, os injuriados e caluniados (Epicuro, Spinoza, Voltaire, Nietzsche…)!
Desconfiar das idolatrias, pôr em dúvida os dogmatismos, refletir ao invés de se submeter a todos os catecismos, esses são alguns dos efeitos íntimos e psicoafetivos gerados por um contato duradouro com o fogo e o ânimo, irrefreáveis e fecundos, daqueles que podemos chamar de “filósofos rebeldes”, ou de “espíritos livres”. Como ler Nietzsche, deixando-se afetar pela potência de sua linguagem, sem sentir-se transformado em alguém com um senso crítico mais apurado, com um faro para as farsas que se torna aprimorado? Como seguir de joelhos diante da autoridade da moral, da razão, da ciência, após termos sido alertados por Foucault, Adorno, Horkheimer, Hans Jonas, e tantos outros, de todos os pesadelos que foram gerados quando estes ídolos foram sacralizados, quando nos rendemos acriticamente a ele?
Que superstições ignorantes sobrevivem ao benefício gerado por um convívio com Lucrécio, Comte-Sponville, Albert Camus? O perigo, porém, é aquele de transformar a filosofia em um novo ídolo, para em seguida fazer diante dela, de rosto baixo, uma genuflexão submissa e servil. Ao invés de exercitar o pensamento autônomo e ousado com a ajuda, na companhia, no debate, com os filósofos, corremos o risco de nos tornar dogmáticos papagaios do que outros pensaram, e que nós não fazemos senão repetir como um eco, tal qual a ninfa amaldiçoada por Hera e negligenciada por Narciso.
Não me parece ser jamais isso – subserviência e servilismo – aquilo que a filosofia que é digna desse nome demanda daqueles que a praticam. A filosofia não põe à toa entre o seu inventário de virtudes, de excelências humanas, de inestimáveis aretés, os valores e as práticas da justiça, da coragem, da generosidade, da tolerância, da responsabilidade, do amor.
O leque das “virtudes” filosóficas, que tanto merecem estar no currículo escolar de qualquer instituição educativa que busque educar para a vida e não só para o mercado, foram excelentemente exploradas no já clássico Pequeno Tratado Das Grandes Virtudes, de André Comte-Sponville, obra magistral e preciosa, inspirada nas reflexões de mestres éticos como Jankélévitch, Alain e Simone Weil.
Uma reflexão meramente teórica sobre as virtudes é uma infâmia, já que elas existem para serem postas em prática. Ética: indissolúvel dança, em sintonia, da reflexão e da ação, guiados pela sabedoria possível e pela amizade desejável que norteiam as mentes e as vidas dos filósofos (estes funcionários das forças da Sophia e da Philia). Ao menos é assim que estou tentando compreender, cada vez com mais afinco e mais visceralidade, esta tal de “ética”, que minha atual situação como professor (do ensino público e numa era de tragédias!) obriga-me a confrontar. Em termos mais concretos: não vejo como um professor de filosofia possa se esquivar da ética, dedicando suas aulas a outros assuntos mais “neutros” e supostamente dela desconectados.
Fernando Savater, em seu agradável livrinho Ética Para Meu Filho, sustenta que é imprescindível à pedagogia dos nossos jovens que falemos de ética, pois isto é o mesmo que refletir sobre o sentido da liberdade:
“Deve-se falar em ética no ensino médio? De início parece-me nefasto apresentar uma matéria com esse nome como alternativa à aula de doutrinamento religioso. A pobre ética não veio ao mundo para dedicar-se a escorar ou substituir catecismos… pelo menos não o deveria fazer. Mas não tenho nenhuma certeza de que devam ser evitadas algumas primeiras considerações gerais sobre o sentido da liberdade… A reflexão moral não é apenas um assunto especializado para quem deseja fazer cursos superiores de filosofia, sendo, antes, parte essencial de qualquer educação digna desse nome.” (SAVATER, 2012) [5]
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REVOLUCIONÁVEIS MANEIRAS DE SER
As maneiras-de-ser são revolucionáveis: eis uma das apostas da ética. Também é uma das esperanças do marxismo. Uma certa leitura reducionista e estreita do marxismo acaba por transformar este num “economicismo”, como se Marx e Engels estivessem sugerindo que a única coisa que importa é revolucionar o sistema de produção capitalista e mais nada, quando é evidente que a revolução envolve uma reestruturação radical também das chamadas “subjetividades”, no sentido da superação da alienação, na vitória sobre os véus ilusórios da ideologia internalizada, além das revoluções simultâneas no âmbito da cultura, das artes, das mídias etc. E “é aqui que a educação – no sentido mais abrangente do termo – desempenha um importante papel”:
“Desde o início o papel da educação é de importância vital para romper com a internalização predominante nas escolhas políticas circunscritas à ‘legitimação constitucional democrática’ do Estado capitalista que defende os seus próprios interesses. (…) A tarefa histórica que temos de enfrentar é incomensuravelmente maior que a negação do capitalismo… Tendo em vista o fato de que o processo de reestruturação radical deve ser orientado pela estratégia de uma reforma concreta e abrangente de todo o sistema no qual se encontram os indivíduos, o desafio que deve ser enfrentado não tem paralelos na história. Pois o cumprimento dessa nova tarefa histórica envolve simultaneamente a mudança qualitativa das condições objetivas de reprodução da sociedade e a transformação progressiva da consciênciaem resposta às condições necessariamente cambiantes. Portanto, o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para aautomudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente.” (MÉSZÁROS, p. 65)
A questão da educação está vinculada, nas sociedades capitalistas, à preparação para o mercado de trabalho, porém sabemos o quão desigual e injusto é todo o “mundo do trabalho” sob o capitalismo globalizado, que permite a coexistência de centenas de bilhões de trabalhadores que ganham salários-de-fome com um punhado de multibilhonários ociosos cujo único labor é apostar nos cassinos das bolsas de valores…
Já tem uma longa história a crítica aos ricos que coçam o saco enquanto os pobres derramam o suor, tanto que Paracelso (1493 – 1541), um dos modelos que inspirou o Fausto de Goethe, “chegou ao ponto de defender a expropriação da fortuna dos ricos ociosos, de forma a compeli-los a ter uma vida produtiva.” (p. 68)
Na verdade, o negócio não é exatamente o contrário do ócio para aqueles que detêm o capital roubado aos trabalhadores. Os produtores das mercadorias, sob o capitalismo, jamais têm seu trabalho pago com justiça: a mais-valia, que está na raiz da propriedade de capital, é em essência um roubo, como Proudhon, antes de Marx, já havia compreendido. O negócio do capitalista é seu pretexto para ficar “de papo pro ar” enquanto seus funcionários fazem os “corres” todos, gastando grande parte dos seus tempos-de-vida nas linhas de montagem frenéticas tão bem satirizadas por Chaplin em Tempos Modernos.
A própria existência de capitalistas é sinal de um mundo do trabalho regido pelo acinte da opressão, da desigualdade imposta pela violência, do apartheid social que fratura o social entre os que não trabalham e gozam com luxos e confortos, por um lado, e os que só trabalham e quase nada tem, por outro lado… É um pouco o que revela o samba de Elton Medeiros e Paulinho da Viola, “Maioria sem Nenhum”:
“Uns com tanto Outros tantos com algum Mas a maioria sem nenhum!”
Diante da urgência do tempo histórico – vivemos, como diz o título do novo livro de Isabelle Stengers, In Catastrophic Times – a educação também precisa colocar-se urgentemente em posição de luta em prol da emancipação, já que a omissão significaria a cumplicidade com as forças da destruição. “É suficiente apontar duas diferenças literalmente vitais que colocam em acentuado relevo a urgência do tempo em nossa própria época”, escreve Mészáros. “Em primeiro lugar, o poder de destruição antes inimaginável que se encontra hoje à disposição da humanidade, pelo qual se pode alcançar facilmente o completo extermínio da espécie humana por meio de uma variedade de meios militares. Isso é gravemente acirrado pelo fato de que testemunhamos, no último século, tanto a escala como a intensidade sempre crescentes de conflagrações mundiais efetivas, incluindo duas guerras mundiais extremamente destrutivas.” (p. 107)
Além da ameaça das armas nucleares que pesam sobre o cérebro dos vivos – apocalipse tecnocrático tão bem retratado e satirizado por Stanley Kubrick em Doutor Fantástico – soma-se hoje uma “segunda condição gravemente ameaçadora”, como também lembra Mészáros, que é “a natureza destrutiva do controle sociometabólico do capital em nosso tempo – manifesta pela predominância cada vez maior da produção destrutiva, em contraste com a mitologia capitalista tradicionalmente autojustificadora da destruição produtiva – e que encontra-se no processo de devastação do ambiente natural, arriscando com isso diretamente as condições elementares da própria existência humana neste planeta.” (p. 108)
Diante da “magnitude sem precedentes das tarefas em jogo e da urgência historicamente única de nosso tempo”, espremidos entre o perigo do militarismo desenfreado, por um lado, e da hecatombe ecológica, por outro, só resta a certeza, pulsante e urgente, da “necessidade de instituir com êxito uma alternativa historicamente sustentável à crescente destrutividade do modo de controle sociorreprodutivo do capital.” (p. 110) Estamos diante da encruzilhada do Antropoceno, na era do duelo épico que, na formulação de Naomi Klein, opõe capitalism vs the climate(o capitalismo versus o clima). Ou, como disse Hubert Reeves, “estamos em guerra contra a natureza: se vencermos, estamos perdidos”.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes Necessários à Prática Educativa. Ed. Paz e Terra. JINKINGS, Ivana. Apresentação de Educação Para Além Do Capital. SADER, Emir. Prefácio a Educação Para Além Do Capital. MARX, K; ENGELS, F. Teses sobre Feuerbach. MÉSZÁROS, István. A Educação Para Além do Capital. Ed. Boitempo. SAVATER, Fernando. Ética Para Meu Filho. Trad. de Monica Stahel. Ed. Planeta, 2012. COMTE-SPONVILLE. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Ed. Martins Fontes.
Se você for pobre, a única maneira de você machucar alguém é através do tradicional e antigo método, violência artesanal, ou seja: pelas mãos, com faca, com ripa, ou, talvez, uma forma de violência moderna, mais eficaz, com um revólver ou um carro.
Mas se você for estupidamente rico, você pode praticar violência em escala industrial, sem precisar sujar as mãos, literalmente falando. Pode construir, digamos, uma fábrica escravocrata em Bangladesh pronta para desmoronar e matar mais pessoas que um assassínio em massa, ou pode calcular os riscos e os benefícios de espalhar artefatos venenosos e inseguros pelo mundo, como os fabricantes fazem todos o dias. Se você é líder de um país, pode declarar guerra e matar centenas de milhares (ou milhões) de pessoas. E os superpoderosos nucleares – Estados Unidos e Rússia – ainda têm a opção de destruir boa parte da vida na terra.
Assim fazem os barões do petróleo. Mas quando falamos em violência, quase sempre falamos da violência vinda de baixo, não de cima.
Foi mais ou menos o que eu pensei quando recebi um comunicado, na última semana, de um grupo ligado ao clima anunciando: “cientistas afirmam que há uma relação direta entre mudanças climáticas e o aumento da violência”. O que os cientistas disseram, de fato, num artigo sem muitas novidades da Nature, de um ano e meio atrás, é que há mais conflitos nos trópicos em anos de El Niño, e que isso talvez vá se escalonar fazendo da nossa era de mudanças climáticas também uma era de conflitos.
A mensagem é de que o cidadão médio vai se comportar mal numa era de mudanças climáticas acentuadas.Tudo isso faz sentido, a menos que você retroceda a premissa e perceba que mudança climática é, em si, uma forma de violência. Extrema, terrível, duradoura, ampla violência.
A mudança climática é antropogênica – causada por humanos, alguns mais que outros. Nós sabemos as consequências dessas mudanças: a acidificação dos oceanos e o declínio da maioria das espécies que vivem neles, o lento desaparecimento de ilhas-nações, como é o caso das Maldivas, o aumento de inundações, secas, a quebra na produção agrícola, o que leva ao aumento do preço dos alimentos e à fome, aumento da instabilidade climática. (É só pensar no furacão Sandy e no recente tufão nas Filipinas. Nas ondas de calor que mataram idosos aos milhares).
Mudança climática é violência.
Portanto, se nós queremos conversar sobre violência e mudanças climáticas – e nós estamos falando sobre isso, depois do informativo aterrador da última semana, vindo dos melhores cientistas climáticos do mundo – então vamos falar sobre mudanças climáticas como violência.
Ao invés de nos preocuparmos se os homens e mulheres comuns vão reagir com turbulência à destruição de seus meios de sobrevivência, vamos nos preocupar com essa destruição – e com a sobrevivência. Obviamente a escassez de água, as péssimas colheitas, inundações, entre outras coisas, vão desencadear migrações em massa e refugiados climáticos – eles já existem – e isso vai gerar conflitos. Esses conflitos estão entrando em ação, agora.
Você pode considerar a Primavera Árabe, em parte, como um conflito climático: o aumento no preço do trigo foi um dos gatilhos para a série de revoltas que mexeram com o norte da África e com o Oriente Médio. Por um lado, você poderia dizer “que bom que essas pessoas não estão passando fome”. Por outro, como pode não dizer “quão grave é essa situação, que fez pessoas se insurgirem, desprovidas de garantias e esperança”. E, finalmente, é preciso olhar para o sistema que criou a fome – a descomunal desigualdade econômica em lugares como o Egito e a brutalidade usada para conter os manifestantes.As pessoas se revoltam quando suas vidas estão insuportáveis. Por vezes, a realidade material cria essa sensação: secas, pragas, chuvas, inundações. Mas alimentação e assistência médica, saúde e bem-estar, moradia e educação – tudo isso é governado por relações econômicos e políticas governamentais. O “Occupy Wall Street” estava focado nisso.
As mudanças climáticas vão aumentar a fome, uma vez que o preço dos alimentos vai subir e a produção alimentar decrescer, mas nós já estamos promovendo a fome na Terra, e boa parte disso não é devido a falhas da natureza ou dos agricultores, mas por causa dos sistemas de distribuição. Nos Estados Unidos, cerca de 16 milhões de crianças vivem hoje com fome, de acordo com o Departamento de Agricultura americano, e isso não acontece porque o vasto e rico setor agrícola estadunidense não consegue alimentar a todos. Nós somos um país cujo sistema de distribuição é, ele mesmo, um tipo de violência.
As mudanças climáticas não vão, repentinamente, trazer uma era de distribuição equânime. Creio que as pessoas vão se revoltar, no futuro, contra o que elas se revoltaram no passado: as injustiças do sistema. E elas precisam se revoltar, e nós precisamos nos alegrar com isso, já que não podemos ter a alegria de não precisar fazê-lo. Um dos eventos propulsores da Revolução Francesa foi a falência da colheita de trigo, em 1788, o que fez o preço do pão ir às alturas e os pobres passarem fome.
Na mesma semana em que recebi o infeliz comunicado sobre clima e violência, o Grupo ExxonMobil divulgou um relatório de políticas. Uma leitura entediante, a não ser que você possa transformar a seca linguagem mercadológica em imagens das consequências dos atos perpetrados em função exclusiva do lucro. Como observa o relatório:
Nós estamos confiantes de que nenhuma de nossas reservas de hidrocarboneto estão ou irão ‘encalhar’. Nós acreditamos que produzir esses bens é essencial para manter a crescente demanda de energia no mundo”.
Bens encalhados significa reservas de hidrocarboneto – carvão, óleo, gás – que podem perder o seu valor se for decidido que eles não devem mais ser extraídos e queimados num futuro próximo. Pois os cientistas dizem que precisamos deixar as reservas de petróleo debaixo da terra, se quisermos nos deparar com versões mais brandas das mudanças climáticas. Na versão branda, incontáveis pessoas e espécies vão sobreviver. No cenário otimista, o colapso da terra vai ser menor. O que se discute agora é quanto devastar a Terra.
Em qualquer atividade, é preciso observar a escala industrial e a violência sistêmica, não apenas a violência dos desapoderados, feita com as próprias mãos. Quando trazemos à tona as mudanças climáticas, isso soa particularmente verdadeiro. Exxon decidiu apostar na ideia de que não podemos fazer a corporação manter as suas reservas intactas e a companhia está tranquilizando seus investidores, pois eles vão continuar lucrando em cima da destruição da Terra, imediata e violenta.
Mas esse bordão já se tornou exaustivo, “a destruição da Terra”. Traduza-o para crianças famintas e terras inférteis – e depois multiplique alguns milhões de vezes. Ou apenas mentalize os pequenos bivalves: ostras, vieiras, caracóis que, no momento, não conseguem formar as suas carapaças por causa da acidificação dos oceanos. Ou pense em outra super-tempestade arrasando mais uma cidade. Mudança climática é violência em escala global, contra regiões e espécies, bem como contra seres humanos. Apenas chamando as coisas pelo seu verdadeiro nome é que podemos começar a ter um diálogo franco sobre nossas prioridades e valores. Porque a revolta contra a brutalidade começa com a revolta contra a linguagem que mascara essa brutalidade.
PROMETEU DESACORRENTADO A responsabilidade pelos viventes vindouros na filosofia de Hans Jonas (1903 – 1993). Comentários sobre “O Princípio Responsabilidade – Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica” [Wikipedia]
por Eduardo Carli de Moraes / A Casa de Vidro.com
Conta a lenda que Prometeu, após ter roubado o fogo do Olimpo para presenteá-lo aos mortais, foi punido por um Zeus furibundo e vingativo. Os suplícios que Zeus aplica a seus desafetos são um manual prático de crueldade e sadismo – que o digam Sísifo, Tântalo, Íxion e as Danaides – e com Prometeu, o ladrão do fogo, a fúria divina também se manifesta em todo o esplendor de sua violência. O titã transgressor é acorrentado por Hefesto a uma rocha, para em seguida ser submetido a uma tortura infinda: uma águia almoça todos os dias o seu fígado, em carne viva, e a cada novo dia o fígado se regenera, sendo novamente devorado. Este mito grego é um daqueles que teve mais profundas repercussões na história da cultura – tendo sido material inspirador da dramaturgia grega clássica (a Prometeu era dedicada uma trilogia trágica de Ésquilo, apenas parcialmente conservada), da poesia (com destaque pros versos de Percy Shelley e Goethe), da pintura (inesquecíveis as imagens de Peter Paul Rubens e Dirck van Baburen) etc.
Hefesto acorrentando Prometeu (1623) em tela de Dirck van Baburen
Também é Prometeu quem Hans Jonas invoca ao iniciar esta obra crucial da filosofia do século XX, O Princípio Responsabilidade: “O Prometeu definitivamente desacorrentado, ao qual a ciência confere forças antes inimagináveis e a economia o impulso infatigável, clama por uma ética que, por meio de freios voluntários, impeça o poder dos homens de se transformar em uma desgraça para eles mesmos. A tese de partida desse livro é que a promessa da tecnologia moderna se converteu em ameaça…” [1]
O fogo serve aqui como símbolo para aquilo que possibilita que a humanidade desenvolva sua tecnologia, uma espécie de estágio inicial no processo científico e criador de técnicas de intervenção e modificação da realidade natural: a domesticação do fogo seria o marco zero da tecnê (o termo grego para “saber fazer”, para todas as vertentes do conhecimento técnico). Ora, Hans Jonas, fiel neste sentido à tradição de Heidegger (desconsiderados os imensos abismos que os separam em política), reflete fundamentalmente sobre o efeito da tecnologia sobre as civilizações e com a imagem do Prometeu desacorrentado põe em evidência o perigo, o risco, a ameaça, de um poder titânico, desenfreado, que pode exagerar na dose de seu intervencionismo dominador e transfigurador.
O filho do Prometeu desacorrentado é o Antropoceno, e Hans Jonas, ainda que mencione o efeito estufa e o aquecimento global apenas en passant, sem estar exatamente consciente do peso e da gravidade que hoje adquiriram as mudanças climáticas e as catástrofes delas decorrentes, construiu uma filosofia que tem muito a nos ensinar sobre os tempos em que vivemos – e os tempos que virão.
O problema da humanidade atual não é a falta do fogo, isto é, a primitividade tecnológica, mas sim o fogo em excesso, ou seja, o planeta transformado em demasia pela intervenção humana, a ponto de termos entrado em uma nova era geológica, o Antropoceno. O mito antigo, que trazia Prometeu privado da liberdade, tem que ser atualizado para o contexto contemporâneo: o de Prometeu sem freios, devastando um planeta com o consumismo, o produtivismo, a queima de energias fósseis, num “poluicionismo” insano e titânico. Na wasteland do real, Prometeu passa por símbolo de uma tecnologia que saiu dos trilhos e encaminha-nos para distopias sci-fi à la Matrix, Children of Men, Snowpiercer, The Road… (Sobre as conexões múltiplas entre o cinema de ficção científica atual e a especulação sobre os efeitos da tecnociência sobre a biosfera, conferir o ótimo livro de Viveiros de Castro e Danowski, Há Mundo Por Vir?)
Exemplo contemporâneo melhor da titânica desmesura não há do que este: sabe-se há décadas que a queima de combustíveis fósseis gera como subprodutos tóxicos a emissão de gases de efeito estufa, que tornam nossa atmosfera uma sauna com temperaturas em ascensão (as previsões do IPCC, Intergovernamental Panel on Climate Change, são de um incremento de 2º a 6º graus Celsius na temperatura da Terra ao fim do século XIX).
A era em que entramos, o Antropoceno, não deve ser comemorada acefalamente como se provasse a supremacia humana, nossa posição de domínio – pois alguns humanos narcisistas talvez sintam vontade de comemorar o Antropocen como se fosse uma vitória esportiva ou uma medalha de ouro olímpica! Na real, o Antropoceno é vivenciado como uma desgraça pela a teia da vida (cito aqui o Chief Seattle em seu discurso the web of life): para a diversidade dos viventes, o ser humano – um dentre esta miríade de viventes – tornou-se um tão mortífero extintor-de-espécies que age hoje com o poder de um cataclismo geofísico. Deixo ao leitor a tarefa de julgar do que sofre este escriba: paranóia catastrofista ou excessiva lucidez?…
“We did not weave the web of life, we are merely strands in it. Whatever we do to the web we do to ourselves.” ― Chief Seattle
O que urge é termos “a coragem de ter medo” [2], como já recomendava Günther Anders, em 1959, diante da ameaça de uma guerra nuclear (leia, na revista Sopro, as Teses Para A Era Atômica, de 1962). Hoje, tanto as mudanças climáticas quanto a guerra nuclear devem nos pôr em estado de medo construtivo – um outro nome para a boa e velha virtude da prudência? – como argumentam tantos climatologistas, antropólogos, cientistas e outros humanos que, quanto mais esclarecidos se tornam, mais aterrorizados parecem ficar com os rumos planetários catastróficos. Essa coragem de temer é também sublinhada por Hans Jonas que, num arroubo de ironia, subverteu a tradição filosófica da dúvida cartesiana, demandando que é preciso duvidar de tudo, menos do pior.
Parece-me que o pensamento e o ativismo ecológicos da atualidade possuem uma forte tendência ao catastrofismo esclarecido, vertente que talvez se aplique a autores como Naomi Klein, George Monbiot, Eduardo Viveiros de Castro, entre outros. Trata-se sempre de estar com a mente clara e lúcida quanto às consequências de longo prazo de nossas ações presentes que, analisadas com profundidade, revelam-se de uma irracionalidade e de uma destrutividade preocupantes. De onde diabos saiu o tal do “catastrofismo esclarecido”? Até onde sei, o termo vem de Jean-Pierre Dupuy, discípulo de Ivan Illich e René Girard, que publicou no começo do século XXI seu livro Pour Un Catastrophisme Éclairé. Dupuy parece defender a tese (bastante discutível) de que “a ação política deve atualmente pensar menos na perspectiva da revolução a conseguir e mais na catástrofe que é preciso barrar se ainda houver tempo.” [3]
Segundo os catastrofistas esclarecidos – que estão no pólo oposto dos “negacionistas”, estes otimistas muito bem-pagos que recusam-se a admitir que temos um problema… (vejam o artigo de Deborah Danowski) – a ação política hoje deve estar focada numa ação de frenagem (que pode, é claro, incluir vastas ações de sabotagem do atual sistema).Devemos nos mobilizar para frear a loucura suicida do atual sistema de produção e consumo, caso contrário a biosfera sofrerá um colapso ainda mais grave do que este que já está em curso e que já vem gerando imensa devastação socioambiental, extinção de inúmeras espécies, com prognósticos de aquecimento global galopante e crise de refugiados de proporções épicas. Um cenário que o deputado federal brasileiro Chico Alencar (PSOL) descreveu em sucintas palavras: “Cada vez mais somos tripulantes de uma nave comum ameaçada que é a mãe Terra. O desastre ambiental vai nos afetar a todos, sem exceção, embora comece tirando a vida dos mais pobres por causa de nossa desordem injusta estabelecida.” [4] (Assista o vídeo em http://bit.ly/1tGGnIu)
No caso de Hans Jonas, o que está em jogo é a criação de uma nova ética, de um novo paradigma de relacionamento, de modo a agirmos com uma precaução,uma prudência, a generosidade atenta (à la Simone Weil), não somente no nosso trato uns com os outros, mas também em relação aos vivos que ainda estão por nascer. As futuras gerações, destacará Hans Jonas, devem ser levadas em consideração desde já. A ética do presente não pode ignorar o futuro, sob o risco de legar aos que viverão amanhã um mundo muito mais terrível do que aquele em que nascemos. A ecologia, a economia, a ética, não podem ser desvinculadas. É nossa responsabilidade legar aos viventes vindouros um planeta habitável, com água bebível, ar respirável.
O filósofo Hans Jonas, que foi aluno de Heidegger e amigo de Hannah Arendt
O filósofo Hans Jonas, nascido em 1903 na Alemanha, é muitas vezes classificado como um dos pensadores do círculo de Martin Heidegger, na companhia de Hannah Arendt, Herbert Marcuse, Karl Löwith, dentre outros (vejam Heidegger’s Children, de Richard Wolin). Em 1934, com a ascensão do III Reich hitlerista, vê-se obrigado a deixar a Alemanha. Nos anos 1960, publica uma obra marcante de seu percurso intelectual, O Fenômeno Da Vida, um livro que pode ser sintetizado pelas seguintes palavras de seu epílogo: “com a continuidade da mente com o organismo, do organismo com a natureza, a ética torna-se parte da filosofia da natureza. (…) Somente uma ética fundada na amplitude do Ser pode ter significado.” [5] Em 1979, é publicada em alemão sua obra clássica, O Princípio Responsabilidade, que aqui propomos analisar mais detidamente.
Pensemos em um organismo biológico como um gato. Não qualquer gato, mas um gato arisco que foge em busca de abrigo ao menor sinal de perigo. Este gatinho arisco, que alguns podem xingar de covarde, exemplifica uma conduta baseada nos perigos do futuro; sua ação é guiada pelo medo legítimo de sofrer algum mal. O gato sabe-se ferível e dribla como pode, com a ligeireza de suas lépidas patas, os perigos do ambiente, incluindo prevendo, ainda que num horizonte temporal menos amplo do que aquele atingível pelo cérebro humano, os focos futuros de perigo.
Ora, a tecnologia humana transformou (e segue transformando) de modo tão radical o mundo natural, e talvez de modo irreversível, que hoje não somos apenas nós, os humanos, que vivemos na artificialidade de um mundo tecnologizado. A “tecnologização” tem tentado engolir a Terra por inteiro, mandar Gaia para a barriga cibernética, emblogando todos os viventes em uma teia tecnológica tecida por mãos humanas. Bem-vindos ao Antropoceno e àquilo que venho chamando, em textos que seguem as pegadas de Michel Serres, de A Nova Condição Humana. Uma era geológica onde o auto-proclamado homo sapiens, o animal racional, deixou ir até o exagero delirante (àquilo que os gregos chamavam de hýbris ou húbris e que vinculavam com o desencadeamento de tragédias) o seu lado homo faber. E agora tem milhões de revólveres apontados para as cabeças de bilhões de organismos vivos – e não pára de apertar os gatilhos. Não tem razão de estar apavorado o gato arisco, que foge de todo e qualquer ser humano, na visceral intuição de seu catastrofismo esclarecido de felino?
O que devem estar pensando de nós os castores, dada a grotesca mercantilização das árvores e das nozes? Fariam os castores o mesmo, caso tivessem nossos poderes? A civilização ocidental fabrica mitos otimistas e kitsch, como sorridentes Mickey Mouses, enquanto na prática conduz sua economia e sua gestão do meio-ambiente de maneira ecocida-genocida. O capitalismo atual pratica o assassinato em massa em vasta escala, não só de humanos mas de bilhões de viventes não-humanos, por exemplo aqueles que são massacrados em abatedouros para que tenhamos nossos hamburguers e salsichas.
Já no fim dos anos 1970, Hans Jonas já percebia a gravidade da situação e deu à luz um livro assombrado pela expectativa do pior. Em um tratado de ética que permanece de alta relevância meio século depois de publicado, Jonas pretende fundamentar uma nova ética para o futuro. O desafio: que leve-se em conta a pluralidade de existências e consciências, esculpidas pela evolução da matéria viva, que estão ameaçadas na base ontológica radical de seus corpos físicos pelo Prometeu desacorrentado da tecnê humana. É preciso construir uma ética que considere dignos de respeito e consideração os interesses das futuras gerações, dos ainda não nascidos. Por isso alguns ecologistas chegarão a dizer que, na obra de autores como Hans Jonas, “fala-se pelas árvores” – o que significa dizer que filósofos assim demandam de nós que sejamos éticos não só entre humanos, mas éticos entre os vivos, vivendo de modo a legar dignas condições de existência aos viventes vindouros.
Mais que isso: Jonas tenta construir com urgência uma ética que não ponha em risco tudo aquilo que a vida necessita para a continuação de seu peregrinar evolutivo. É preciso preservar um mundo ameaçado de cair no caótico desequilíbrio causado por uma tecnologia caída em húbris, de uma economia que consome e polui em escala trágica, que em sua insânia predatória e sanha transformadora, sufoca a natureza e acarreta a crise climática que hoje já anuncia-se como um problema global de imensa gravidade e sem precedentes. Nisto, a História não poderá guiar-nos tanto, já que não há no passado tanto a aprender sobre os eventos que “vem do futuro”, de modo que precisamos, neste caso, de uma ética e de uma política, umbilicalmente conectadas, onde os labores da evolução, que deram como frutos esta profusão prodigiosa de espécies viventes, sejam salvos da destruição e escapem do pior.
Pois é preciso duvidar de tudo, salvo do pior.
Jonas é um pessimista incurável? Se for, é de maneira bem diversa de Schopenhauer ou Cioran. Acredita em um “estado de coisas metafísico” que “nos impõe o mais alto dever de conservá-lo” (capítulo II, p. 80) [6]. Nenhum niilista tem tais tendências ao “conservacionismo”, nem tais clamores pelo respeito a algo de “metafísico”. De modo a conservarmos o que é valioso, dirá Jonas, é preciso levar a sério os prognósticos de catástrofe que ameaçam-nos com a morte de valores inestimáveis. “Em assuntos de certa magnitude – aqueles com potencial apocalíptico – deve-se dar mais peso ao prognóstico do desastre do que ao prognóstico da felicidade.” (capítulo III, p. 83)
Já que pesa sobre nós, que vivemos na época do Prometeu desacorrentado, a “ameaça de um futuro terrível” (p. 85) [7], devemos ser prudentes e assumir o dever irrecusável de responsabilidade diante do futuro da vida. Um dos maiores problemas, porém, é que “aquilo que não existe não faz reivindicações”, como escreve Jonas pensando nas futuras gerações, cuja voz ainda não ouvimos mas que nossa conduta presente pode estar lesando. Em nossas escolhas e ações, individuais e coletivas, devemos respeitar o “direito daqueles que virão e cuja existência podemos desde já antecipar” (p. 91) [8]. Devemos ouvir, desde já, as vozes daqueles que ainda estão por nascer. A ética, como formulada por Hans Jonas, precisa considerar “a possível acusação de nossas vítimas futuras” (p. 92) [9].
“Convoque seu Buda, o clima tá tenso.” (Criolo)
O problema filosófico que se coloca claramente no livro é o de nossas relações com o tempo futuro, dada a nossa incontornável necessidade de agir no presente com conhecimentos limitados, prognósticos falhos e miríades de incertezas. Um argumento que se lança frequentemente à cara dos “ecochatos” é o de que é prepotência dos ecologista achar que eles vêem o futuro melhor do que os outros, “sabichões” que pensam descrever qual será o futuro real quando apenas projetam suas fantasias catastrofistas… Pascal Bruckner escreveeu um livro polêmico, O Fanatismo do Apocalipse, que ataca várias vertentes do discurso “verde”, vegan, ecológico, pró-indígena, grass-roots, acusando ativistas de todas as estirpes de serem uns fanáticos pelo apocalipse, imaginando desgraças que o futuro, de fato, não nos reserva. Os manifestos de Bruckner parecem uma acusação en bloc da ecologia por disseminar o medo, sendo que essa história de apocalipse iminente é papagaiada mais velha que a Bíblia… E mesmo os materialistas às vezes não escapam de crer em mitos apocalípticos, como alguns marxistas que têm fé no futuro pois o funeral iminente do capitalismo irá desaguar na ressurreição beatífica de uma sociedade sem classes.
Bruckner sugere que façamos uma distinção entre dois tipos de medo: “um, salutar e que mobiliza; o outro, deletério e que enfraquece.” (p. 76) [10] O que motiva a crítica de Bruckner àqueles que xinga de “neo-puritanos verdes” é uma recaída no ascetismo auto-mortificante, que ele já atacara em livros anteriores como A Tirania da Penitência. Ele despeja seu desprezo em cachoeiras sobre as virtudes da frugalidade e da simplicidade – valores de que foram arautos figuras como Gandhi, Thoreau ou Pepe Mujica (o ex-presidente do Uruguai). Em ecologia, Bruckner parece mais próximo da vertente dos “aceleracionistas” (sobre estes, recomenda-se a leitura de Benjamin Noys), e todos os discursos de apologia ao freio (temos que frear a queima de combustíveis fósseis, o consumo de carne, a derrubada das florestas!) aparecem a Bruckner como babaquices de hippies repressores querendo “reciclar o velho ideal da penitência” (p. 238) [11]. No fundo, fica-se com a péssima impressão que Bruckner é como um bully que ataca, com seu taco de baseball retórico, aqueles que ele desdenha como ecochatos moralistas que só querem estragar a festa do consumo, a folia da hedonê desacorrentada…
Não quero aqui me alongar em atacar as posições de Bruckner, mas sim aproveitar o ensejo para ir mais a fundo na questão, considerando o problema: podemos realmente prever o futuro e fazer prognósticos seguros sobre catástrofes vindouras? É possível encontrar soluções atuais para problemas futuros que, a rigor, ainda não começaram a se manifestar em toda a sua fúria? Para sondar estes abismos, parece-me bem interessante a filosofia do tempo, vinculada à doutrina ética, que está exposta no O Princípio Responsabilidade de Jonas.O ímpeto polêmico e bélico do livro de Bruckner prejudica aquele livro com uma certa rasidão na consideração de fatias de tempo amplas; em contraste, é espantosa a profundidade com que Jonas aborda a questão do tempo, da “duração” Bergsoniana. Diz, se o entendi bem, que o futuro distante não está acessível ao nosso saber e isto nos obriga a agir na penumbra. Não é que estejamos na escuridão total e absoluta sobre o futuro, mas quanto mais distante é o futuro considerado, mais incertos são os prognósticos, mais na penumbra agimos.
Daí a tese de Jonas de que “a incerteza dos prognósticos de longo prazo deve ser considerada um fato”. A existência humana aparece então como que regida por um onipresente desconhecido, o futuro distante. Donde o “aspecto de jogo de azar ou de aposta contido em todo agir humano, concernente ao seu resultado e aos efeitos colaterais, e quando nos interrogamos sobre que lances poderíamos fazer, falando em termos éticos.” (p. 83) [12]
A condição humana não pode ser dissociada da condição vivente, que por sua vez não é dissociável de um planeta, e este, por sua vez, conectado umbilicalmente ao sistema cósmico completo, de modo que há um “entrelaçamento indissolúvel”, dirá Jonas, no qual “não se pode evitar que o meu agir afete o destino de outros.” (p. 84) [13] Responsabilidade é algo que decorre deste nosso entrelaçamento, desta nossa comum pertença à teia da vida e ao tecido cósmico. O contrário da responsabilidade é a inconsequência, o agir cego ao amanhã. E pode ser profundamente irresponsável a omissão quietista dos que nada fazem, lavam as mãos, não querem saber. A apatia pode ser sintoma de indiferença aos outros, de incapacidade de enxergar o fluxo vital que faz com que, numa corrente ininterrupta, misturem-se no mundo os últimos gemidos dos moribundos com os primeiros choros dos recém-nascidos, na sempiterna renovação da existência.
Uma das características mais marcantes da obra de Jonas é essa ênfase nos viventes vindouros, nas futuras gerações, entes esses que muitas vezes são desconsiderados pelas doutrinas éticas. É possível dizer inclusive que uma filosofia como a de Hans Jonas só pôde nascer em certo momento histórico – a 2ª metade do século XX d.C. – em que a aniquilação da humanidade passou a estar entre os possíveis, entre os feitos realizáveis, por cortesia da bomba atômica. A era atômica trouxe-nos a um estado de risco sem precedentes – e vivemos hoje em um globo marcado pelos desastres de Chernobyl, de Fukushima, de Hiroshima e Nagasaki… Neste contexto, Hans Jonas formula a diferença entre a política do passado – em que o líder político jamais tinha suficiente poder de aniquilação para pôr em risco a vida da humanidade como um todo – e a política que surge no novo contexto criado pelas bombas-H:
“Quando, na hora fatídica, o líder político arrisca a existência inteira de seu clã, de sua cidade e de sua nação, ele sabe que mesmo após a eventual derrocada continuará existindo uma humanidade e um mundo da vida aqui na Terra. Só nos marcos desse pressuposto abrangente torna-se moralmente defensável, em casos extremos, o grande risco ímpar… Mas, agora, entre as possíveis obras da tecnologia, há algumas que, por seus efeitos cumulativos, têm precisamente essa abrangência e penetração globais, ou seja, têm o poder de pôr em perigo quer a existência inteira ou a essência inteira dos homens no futuro. (…) Não seria possível supor que a humanidade que ainda está por vir possa concordar com sua própria inexistência ou desumanização… existe (como ainda deve ser demonstrado) uma obrigação incondicional de existir, por parte da humanidade, que não pode ser confundida com a obrigação condicional de existir, por parte de cada indivíduo. Pode-se discutir a respeito do direito individual ao suicídio, mas não a respeito do direito de suicídio por parte da humanidade.” (JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 86) [14]
A humanidade, segundo Jonas, não tem direito de auto-aniquilar-se, o suicídio só é justificável para casos individuais e nunca para o conjunto do humano, e daí decorre o princípio já citado, o de que “no processo decisório deve-se conceder preferência aos prognósticos de desastre em face dos prognósticos de felicidade. O princípio ético fundamental, do qual o preceito extrai sua validade, é o seguinte: a existência ou a essência do homem, em sua totalidade, nunca podem ser transformadas em apostas do agir.” (p. 86) [15] Não é ético brincar de roleta russa com a cabeça da humanidade.
E o que fazem hoje em dia esses bambambans do mercado financeiro, nas bolsas de valores do cassino global cognominado capitalismo, do que apostar com a cabeça da humanidade toda, nos altares da acumulação de capital, mesmo que este tenha como subproduto as catástrofes sócio-ambientais? Um banqueiro, um especulador financeiro, um CEO corporativo, um rei do agronegócio, estes tipos fazem o quê senão, através de sua irresponsabilidade, desprezar completamente os viventes vindouros e as condições ecológicas da dignidade para os seres que ainda estão por nascer?
O elemento subversivo na obra de Hans Jonas se manifesta em sua “inversão do princípio cartesiano da dúvida” e em sua objeção ao argumento da aposta de Pascal. É o que ele mesmo esclarece no trecho seguinte:
Retrato de Descartes, por Frans Hals
“Segundo Descartes, para que possamos estabelecer o que é indubitavelmente verdadeiro, deveríamos equiparar tudo o que for duvidoso, de uma forma ou de outra, ao que é comprovadamente falso. Aqui, ao contrário, para tomarmos uma decisão, deveríamos tratar como certo aquilo que é duvidoso, embora possível, desde que estejamos tratando de um determinado tipo de consequência. Seria também uma variante da aposta pascaliana, descontado o seu caráter egoisticamente eudemônico e, em última instância, aético. Segundo Pascal, na aposta entre os prazeres breves e questionáveis da vida mundana, de um lado, e a possibilidade da eterna felicidade ou da eterna danação no além, de outro, o puro cálculo obrigaria a apostar nesta última possibilidade. (…) A esse tipo de aposta de tudo ou nada se pode objetar, entre outras coisas, que, em comparação com o nada, que aqui é assumido entre outros riscos, qualquer coisa – mesmo a vida fugidia e passageira – torna-se uma grandeza infinita… a aposta na eternidade possível com o sacrifício da temporalidade dada significa a possibilidade de perda infinita. (…) Já o nosso princípio ético da aposta, em suma, proíbe a aposta do tudo ou nada nos assuntos da humanidade.” [16]
Não quero aqui entrar em detalhes sobre a dúvida fajuta de Descartes, que deságua no dogmatismo de uma “alma pensante” indubitável, nem sobre as minúcias da aposta de Pascal, que já discuti em outro texto. Mais do que elucidar o pensamento de Hans Jonas, situando-o em relação a estes paradigmas que são Descartes e Pascal, o interessante da argumentação do trecho destacado acima é uma concepção ética que tem uma atenção ao futuro que é rara de encontrar na filosofia. Ler Jonas estimula a enxerga o futuro sob várias perspectivas: o futuro envolto numa rósea névoa do idealismo e suas utopias de amanhãs cantantes, de futuros radiosos de felicidade perfeita; o futuro do fatalista, do resignado, do desistente de si e da vida, propõe que fiquemos de braços cruzados, deixando o futuro acontecer; o futuro do ativista, do humano de ação e práxis, que crê que o futuro devemos obrar para construí-lo; o futuro da catástrofe ecológica (seja por fervências climáticas ou hecatombes nucleares) que nos ronda como um espectro que ganha peso e realidade maiores a cada dia…
“Toda vida reivindica vida”, escreve Jonas, e mesmo os que não nasceram, podemos ter certeza, quando estiverem vivos irão estar animados, como nós estamos, por um ímpeto vital que demanda vida – e vida digna. Olhar o mundo sob o viés dos viventes vindouros é um dos benefícios que se pode tirar da leitura “mergulhante” da obra de Jonas, que convida-nos a pensar que aqueles que ainda não existem, tem direitos a serem respeitados e podem estar sendo, hoje, severamente lesados. A questão “que mundo legaremos aos de amanhã?” passa a ganhar um peso inaudito no campo da ética e da política.
Pergunto-me, lendo O Princípio Responsabilidade, se a leitura e o estudo de obras como a de Hans Jonas não sejam uma condição necessária para que nós, os contemporâneos, possamos ter um amanhã menos sombrio do que este que se delineia. Enquanto as calotas polares derretem, os combustíveis fósseis são queimados e a chapa planetária esquenta ao ponto da fervura, talvez um tratado de ética como este merecesse tornar-se best seller (futuro improvável, é claro…). De todo modo, parecem-me possíveis muitas articulações entre a filosofia de Jonas e algumas vozes ressonantes que já clamam: “ecossocialismo ou barbárie!”
Sobre o ecossocialismo, o elucidativo livro de Michael Löwy, “O Que É O Ecossocialismo” (Ed. Cortez), revela inclusive que o próprio Karl Marx “parece aceitar o Princípio Responsabilidade caro a Hans Jonas, a obrigação de cada geração de respeitar o meio ambiente – condição de existência das próximas gerações.” [17] (p. 35)
“Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, enfim, todas as sociedades contemporâneas tomadas em conjunto, não são proprietárias da terra. Elas são apenas ocupantes, usufrutuárias (Nutzniesser), e devem, como bons paters familias, deixá-la em melhor estado para as futuras gerações.” KARL MARX, O Capital, Volume III [18]
O imperativo de não aniquilar a natureza vincula-se ao imperativo humano de não cometer suicídio coletivo, já que é na Natureza que estamos enraizados e atacando-a atacamos a nós mesmos. Hans Jonas reflete detidamente sobre o que chama de “processo evolutivo”, tentando compreender como a subjetividade, a consciência, emerge da Natureza, tornando-se um de seus dados ontológicos. A subjetividade é algo que emerge da Natureza conforme organismos mais complexos vão evoluindo, diferenciando-se do ambiente (ao qual permanecem umbilicalmente conectados). E caímos no risco da irresponsabilidade ética caso esqueçamos de ouvir àquilo que Jonas chama de “o testemunho da vida”, esta coisa tão maior do que “ponta do iceberg” que são as subjetividades dos viventes:
“A subjetividade é, em certo sentido, uma manifestação superficial da natureza – a ponta visível de um iceberg muito maior -, ela fala também em nome do seu interior mudo. Ou: o fruto revela algo da raiz e do caule dos quais ele proveio. (…) A ciência natural não nos diz tudo sobre a natureza: disso é testemunha mais cabal a sua incapacidade de dar conta do caso mais elementar do sentir (e, portanto, do fenômeno mais bem comprovado de todo o universo!) – exatamente a ponta do iceberg. Essa é uma incapacidade essencial, e não provisória. Um efeito colateral e paradoxal dessa incapacidade é o fato de que a própria ciência natural, como um evento no universo a ser explicado, permanece eternamente excluída daquilo que ela pode explicar.
De todo modo, repetimos, da mesma forma como a subjetividade manifesta (que também é sempre particular) é algo assim como um fenômeno que emerge na superfície da natureza, ela se encontra enraizada nessa natureza e em continuidade essencial com ela, de modo que ambas participam do ‘fim’. À luz do testemunho da vida (que nós, rebentos que nos tornamos capazes de compreender a nós mesmos, deveríamos ser os últimos a negar), afirmamos, portanto, que o fim, de modo geral, tem domicílio na natureza. E podemos dizer algo mais quanto ao conteúdo: ao gerar a vida, a natureza manifesta pelo menos um determinado fim, exatamente a própria vida… Evitamos dizer que a vida seja ‘o’ fim, ou mesmo o principal fim da natureza, pois não temos elementos para fazer tal tipo de suposição; basta dizer: um fim.” [19]
Que a vida exista, ainda que seja neste cantinho do universo que chamamos de casa, prova ao menos que a Natureza é capaz de produzi-la, que a vida está dentre os realizáveis. O valor da vida, na obra de Hans Jonas, não irá fundamentar-se numa durabilidade infinita: não é por ser necessariamente eterna e imorredoura que a vida é um valor. Pois a vida pode ser vista como algo que emergiu da Natureza e que poderia revelar-se como precária e extinguível. Refletindo sob o impacto da radiação tremenda das bombas atômicas, Hans Jonas escreve tendo em mente o memento inolvidável da terra devastada. E não custa lembrar que a mãe do filósofo morreu em Auschwitz! Diante disso, é inegável que o homo sapiens converteu-se em uma entidade de tal poderio que põe sob ameaça toda a biosfera, todo o planeta e seus vivos.
Reencontramos o mito de Prometeu, do qual partimos, no capítulo V – “A Responsabilidade Hoje: O Futuro Ameaçado e a Ideia de Progresso”, no qual Hans Jonas está longe de ignorar ou fazer pouco caso da tecnologia (ele não é um hippie cantando pelado pelos jardins do amor um hino em louvor à bucólica Arcádia primaveril). Jonas reconhece a imensa ambiguidade da tecnologia, seu potencial que pode ser atualizado de modo tão maléfico (a bomba H) e tão benéfico (o avião, a informática). Não se trata de julgar se a tecnologia é boa ou má, mas sim de mostrar toda a complexidade de seus efeitos sociais, alguns péssimos, outros repletos de potencial libertador. Resumo da ópera hi-tech que vivemos e em que tanto ouvimos ser celebrado o “êxito” da tecnologia:
“Na técnica, o êxito, com sua visibilidade pública estonteante, abarcando todos os domínios da vida – um verdadeiro cortejo triunfal -, faz com que a aventura prometeica se desloque, diante da consciência comum, do papel de um simples meio (o que toda técnica é em si mesma) para o de finalidade, mostrando-se a ‘conquista da natureza’ como a vocação da humanidade: o Homo faber ergue-se diante do Homo sapiens…” [20]
Sobre este tema, um dos filmes contemporâneos mais relevantes, me parece, é o documentário canadense Manufactured Landscapes, dirigido por Jennifer Baichwal e inspirado na obra do artista e fotógrafo Edward Burtynsky. Todo o impacto do ser humano, como força coletiva e global, sobre o planeta, é exposto de modo impressionante pela arte de Burtynsky, que esforça-se também por sublinhar as paisagens onde o lixo eletrônico vai parar, contaminando lençóis freáticos e tornando a água tóxica e imbebível para as populações locais (por exemplo na China ou em Bangladesh…). Uma resenha publicada no site Dwell sintetiza bem o valor de Paisagens Manufaturadas para a nossa compreensão de mundo (e é um excelente manancial de evidências empíricas a ser utilizado por educadores que queiram discutir Hans Jonas, Philip K. Dick, Terence McKenna…)
The film shifts between photography and video almost seamlessly, portraying Burtynsky’s experiences in both China and Bangladesh to capture the visceral nature of large-scale infrastructure, quarries, mines, landfills, and specifically China’s Three Gorges Dam. In another scene, focusing on the concept of e-waste recycling, Burtynsky depicts mountains of motherboards, wires, smashed monitors in the town of Seguo in Zhejiang Province, and interviews the people affected. Due to this massive influx of poisons, Zhejiang now has a contaminated watertable, and must ship water into the province for its residents.
While many praise the film for presenting the evidence of industrialization in such a powerful, yet non-didactic way, Burtynsky’s message has, undoubtedly, a pretty directed agenda. “Maybe the landscape of our time is the one that we can change,” Burtynsky muses, as the videocamera flies across an harrowing ocean of discarded phone dials. [21]
O projeto de dominação da natureza, que podemos descrever miticamente como o êxito de Prometeu desacorrentado, modificou a face da Terra por inteiro e fez com que embarcássemos no Antropoceno, esta era em que estamos ameaçados de conhecer, muito em breve, a extensão dos danos que causamos ao ambiente natural. Os impactos cumulativos destes séculos de industrialização, de desmatamentos, de fertilizantes artificiais, de uso de pesticidas em escala industrial, de extinção de espécies, deveria deixar-nos mais temerosos do que otimistas quanto ao futuro – eis, parece-me, o mood da obra de Hans Jonas. Ele já sabia muito bem, aliás, do quão problemático era, para a humanidade, a dependência energética de fontes não-renováveis:
“Os combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás natural -, resultado da sedimentação de milhões de anos de síntese orgânica e atualmente a fonte predominante do consumo energético do planeta, não são renováveis. Dada a magnitude do seu consumo (que beneficia apenas uma pequena fração da população mundial, os países industrializados), caminham a passos gigantes para esgotar-se. O que o Sol armazenou no curso de milhões de anos no mundo vegetal terrestre os homens estão consumindo em alguns séculos. Desses combustíveis fósseis dependem também os fertilizantes químicos… A queima dos combustíveis fósseis, além do problema da poluição local do ar, traz o problema do aquecimento global, o efeito estufa, que ocorre quando o dióxido de carbono formado pela combustão se acumula na atmosfera e funciona como a cobertura de vidro de uma estufa, permitindo que os raios de Sol penetrem, mas impedindo que a radiação térmica escape da Terra.
O aumento da temperatura global, que provocamos e mantemos desse modo (e que, a partir de certo grau de saturação, será capaz de continuar mesmo na ausência de combustão suplementar), pode ter consequências duradouras e indesejáveis para o clima e a vida, até a catástrofe extrema do derretimento das calotas polares, da elevação do nível dos oceanos, da inundação de enormes extensões de planícies… Assim, a frívola e alegre festa humana de alguns séculos industriais seria paga talvez com a alteração por milênios da feição do planeta – o que não seria injusto do ponto de vista cósmico, já que durantes aqueles séculos se teria dilapidado uma herança de milhões de anos passados.” [22]
Cena de “MANUFACTURED LANDSCAPES” (a Zeitgeist Films release).
TRABALHO EM ANDAMENTO.
ESTE ARTIGO SERÁ CONTINUADO EM BREVE…
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade – Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica (Das Prinzip Verantwortung – Versuch einer Ethic für die Technologische Zivisilation). Publicado em alemão em 1979 e em inglês em 1984. Prefácio. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006. p. 21.
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