Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
Seu livro de estréia, Canções Para Ninar Adultos (Editora Patuá, 2012), foi prefaciado por Xico Sá, responsável pela seguinte síntese da prosa giacomiana: “Fred Di Giacomo faz um free-jazz que junta o repertório de vasta leitura com a velocidade fragmentada da sua geração.” Algumas das influências de Fred – autores como Bukowski, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Nelson Rodrigues – integram o time de personalidades literárias homenageadas nesta ilustração do livro:
Ilustração por Leonardo Mathias
Fred ainda encontra tempo para compor e tocar na banda Bedibê (com dois álbuns lançados: Envelhecer [2016] e América [2019]); para investigar os caminhos da felicidade na companhia de sua esposa Karin Hueck no Projeto Glück; para colaborar como designer de games interativos (o mais famoso deles, Filosofighters,desenvolvido em parceria com a Superinteressante); e pra arriscar-se como crítico de cinema – como fez na provocativa análise do Coringa publicada pelo UOL. Já foi também coordenador pedagógico da escola e agência de jornalismo ÉNóis.
Um caipira em Berlim: Fred Di Giacomo, que tem várias vivências na capital da Alemanha, esteve recentemente lá participando de uma das mais importantes feiras literárias do mundo, a Feira do Livro de Frankfurt. Saiba mais na Farofafá @ Carta Capital.
Nesta entrevista exclusiva que Fred Di Giacomo concedeu à Casa de Vidro, direto de Berlim, explora o tema da descolonização e as ressonâncias de teorias e práticas decoloniais nas obras literárias e jornalísticas que escreve. Reflete também sobre o conceito de escrevivências proposto pela Conceição Evaristo. Fala sobre o cenário de literatura brasileira contemporânea, explorando as similaridades e diferenças entre escritores já bem conhecidos, como Férrez e Paulo Lins, em relação a artistas hoje em atividade e que estão marcando a produção literária do Brasil – gente como Micheliny Verunschk, Mailson Furtado, Ana Paula Maia, Anderson França, Luisa Gleiser, Itamar Vieira Jr, dentre outros. Fred garante que “das bordas do Brasil nasce uma revolução literária no hemisfério sul.”
Fred Di Giacomo, escritor multimídia e polímata, é hoje uma das vozes críticas e contestadoras mais potentes do jornalismo e da literatura no Brasil. Em artigo para a revista Cult, falando sobre o que significa fazer arte em tempos de Bolsonaro, com o incremento assustador das práticas de censura, silenciamento e auto-exílios, Di Giacomo escreveu: “Eles não querem que existamos, que escrevamos nossos histórias, que cantemos nossas canções e façamos nossos filmes. Mas mesmo que estejamos longe de casa e de nossas raízes, seguimos insistindo nesse estranho vício de transformar dor e morte em arte.”
A CASA DE VIDRO ENTREVISTA FRED DI GIACOMO
Assista aos vídeos:
PARTE 1 – Apresentação
PARTE 2 – Descolonizando a Cultura
PARTE 3 – Escrevivências e Renovações dos Cânones
PARTE 4 – Censuras e Artistas na Resistência
Créditos do vídeo: Edição por Eduardo Carli de Moraes. Trilha Sonora: Bedibê.
A OFENSIVA DO MINOTAURUS Por Renato Costa & Eduardo Carli
O filme de terror que não sai de cartaz no Brasil de 2019 evoca a lembrança do mito grego do Minotauro. Este ser de natureza híbrida entre o humano e o bestial, encerrado dentro do labirinto do rei Minos de Creta, devorava ano a ano jovens atenienses entregues, como tributo em carne viva, ao feroz paladar da besta – até ser chacinado pela expedição de Teseu e Ariadne (saiba mais sobre este mito).
Aquilo que poderíamos chamar de massacre dos inocentes, para lembrar o título de uma obra do sociólogo José de Souza Martins, está funcionando a pleno vapor nesta época de predomínio da extrema-direita. Um símbolo deste predomínio é o monstro papavidas, a besta necrofílica, que aqui cognominamos MinoTaurus.
O catastrófico crash do capitalismo globalizado em 2008 inaugurou uma era de hegemonia de uma “ideia perigosa”: a austeridade. Segundo o cientista político escocês Mark Blyth, da Brown University, “a austeridade é a penitência – a dor virtuosa após a festa imoral -, mas não vai ser uma dieta que todos partilharemos. Poucos de nós são convidados para a festa, mas pedem-nos a todos que paguemos a conta.” [1] Ao estudar a evolução da perigosa noção de austeridade, desde a época de Locke, David Hume e Adam Smith até chegar nos neoliberais como Hayek e Milton Friedman, o autor tenta provar que a austeridade simplesmente não funciona.
Neste artigo, propomos uma análise da ofensiva desta Besta a partir de três de suas cabeças: a austeridade, o armamentismo e a plutocracia. Três elementos que se explicitam quando atentamos para o noticiário, repleto de notícias sobre cortes no financiamento público de políticas sociais (a exemplo do atual corte de recursos para a rede federal de educação, imposto pelo MEC, e que sofreu a histórica resistência tsunâmica do Maio de 2019); sobre o libera-geral das armas de fogo e da violência policial genocida (sendo que Bolsonaro, Moro e Witzel agem como necro-políticos que fazem a festa dos lucros de empresas como a Taurus); sobre um projeto de reforma da previdência que impõe a vontade da plutocracia e faz com que o Estado brasileiro fortaleça sua insana tendência a ser um Robin Hood às avessas.
VÍDEO RECOMENDADO: Mark Blyth on Austerity
Grande conhecedora da obra de Blyth, e autora do prefácio de seu livro, a economista Laura Carvalho é uma das vozes mais fortes a esclarecer a opinião pública no Brasil sobre um monstro que vem sendo chamado de “Robin Hood às avessas”, outro dos cognomes do nosso “MinoTaurus”.
Em uma sociedade como a nossa, que nunca deixou de estar entre as mais desiguais do mundo, a opção por medidas de redução estrutural da rede de proteção social, em vez da via da tributação mais justa e do fortalecimento do Estado de bem-estar social, reforça uma abordagem exclusivista e punitivista da marginalidade social.
A proteção aos mais vulneráveis sempre pode caber no Orçamento, mas o genocídio jamais caberá na civilização. Enquanto a insustentabilidade do sistema previdenciário em meio à elevação da expectativa de vida for vista pela maioria como mais dramática do que a insustentabilidade de um sistema penitenciário em meio à produção de um número cada vez maior de excluídos, estaremos condenados à barbárie. – CARVALHO, Laura. “Valsa Brasileira – Do Boom Ao Caos Econômico”. Editora todavia, 2018. Pg. 157 a 159. [2]
Na esteira de Blyth, Carvalho dá um excelente exemplo de austeridade à brasileira ao lembrar de uma fala de Michel Temer, uma das piores expressões do capitalismo austero, que em abril de 2017, em defesa da PEC do teto de gastos públicos, disse que “governos precisam passar a ter maridos” [2].
Ou seja, o governo é aí enxergado pelo viés masculinista: o Estado deve ser controlador como um “patriarca”, um maridão que fala grosso e controla com mão de ferro a economia doméstica fazendo uso de um instrumento supremo: a tesoura. Cortes e cortes e mais cortes nos serviços públicos é o que prega esta governamentalidade neoliberal colonizada pela noção de Estado mínimo.
Austeridade, conceito de teor moral (e moralista) aplicado ao âmbito da economia capitalista globalizada pós-crise (o crash de 2008 é considerado o pior desde a Grande Depressão iniciada em 1929), é um elogio hipócrita do recato feito por homens que já se esbaldaram até o excesso na ganância e no financeirismo plutocrático.
Austeridade é a máscara de moralidade que visa vestir o capitalismo financeiro: “Em última análise”, escreveu John Cassidy em The New Yorker, “a economia não pode ser divorciada da moral e da ética. A falha da austeridade não é apenas uma questão de decepção com PIB e déficits. É uma calamidade humana, e uma que poderia ter sido evitada.” [3]
No Brasil, uma das mais importantes iniciativas em prol do debate sobre austeridade são os livros publicados pela Editora Autonomia Literária, em parceria com a Fundação Perseu Abramo e Partido dos Trabalhadores, que integram o selo “ECONOMIA DO COMUM: ANTIAUSTERIDADE”. Após a crise de 2008, uma das piores de toda a história do capitalismo, muitas corporações capitalistas, em especial as financeiras, que colapsaram e quase foram à falência, foram resgatas da bancarrota com dinheiro público…
“A ‘reestatização’ dos bancos aplicou um socialismo ao avesso, onde socializavam os prejuízos nas costas dos 99% enquanto capitalizavam os lucros no bolso do 1%. O aumento da desigualdade, do caos e as desastrosas consequências após o colapso deu fôlego a um novo ciclo de lutas e de ativismo a partir de 2011. (…) Confrontar o amargo remédio da austeridade no labirinto do caos deflagrado pela crise é pensar nas chaves para a construção de uma nova economia, desta vez a serviço dos 99%, do meio-ambiente e do bem-estar – em um momento de franco ataques aos direitos fundamentais aqui e mundo afora.” [4]
O “labirinto do caos” tem em seu centro um devorador MinoTaurus, servidor do 1%. Meio homem, meio touro, este híbrido de humano e bestial é um papa-gente insaciável. Que forças sociais seriam a reencarnação de Teseu e Ariadne? Que novelo de lã poderia nos ajudar a confrontar este monstro, cortar a cabeça medusante das austeridades neoliberais, e depois sairmos vivos do labirinto para seguir o trabalho de reconstrução do mundo?
O aprofundamento da financeirização da economia global pós-2008 foi matéria de análise de Varoufakis neste seu paradigmático livro. “O Minotauro Global” reporta os efeitos da crise financeira de longo prazo e da consequente estagnação na economia de modo geral. O livro de 2011 já nos preparava para o ciclo de Crise (com c maiúscula, segundo o autor) que se estenderia ao longo desta década que se termina, e adiante, no alvorecer da década de 20, do século XXI.
George F. Watts (1877-86)
Segundo a metáfora proposta por Varoufakis, o mito do ser metade humano, metade touro, fruto híbrido de um adultério adultério mediado por Poseidon, o deus dos terremotos, o Minotauro seria uma forma acabada de se contrapor democracia e austeridade. O personagem labiríntico revelaria a incongruência entre o arrocho fiscal – ou“teto de gastos” para o contingenciamento de 1 trilhão de reais, em prol do “equilíbrio das contas públicas”, leia-se pagamento da dívida pública, segundo proposta do Ministro das Finança brasileiro, Paulo Guedes – e um sistema político baseado nos direitos humanos.
A tese econômica que guia a metáfora da tributação de guerra exercido “sobre os vencidos” é a inferência de causalidade entre ajuste fiscal e guerra comercial, decorrendo em corrida militar supremacista, todas formas de promover e impor o arrocho das contas públicas em diferentes estados nacionais, invariavelmente plutocráticos, governados pela “elite do dinheiro”, a mando do capital financeiro especulativo.
O sistema de crédito corporativo internacional – representado por Wall Street e a sugestiva estátua do “touro em investida” – teria se transformado, em tempos de Crise, no grande ‘aspirador de pó’ dos excedentes produtivos internacionais que passaram a ser capitalizados através da compra de títulos da dívida pública estadunidense pelos países do mundo que precisam manter suas reservas em moeda forte, principalmente a China.
Entretanto, as mesmas operações que garantem o investimento de ativos à nível global; a supremacia cambial do dólar e o financiamento da dívida pública estadunidense, apesar da estabilidade precária de seus déficits gêmeos, comercial e orçamentário, garantem também que a crescente fome deste Minotauro por excedentes financeiros, promovendo o genocídio de jovens e emergentes empresas e economias nacionais, alimente a maior concentração de poder bélico e informacional jamais visto em uma estratégia totalitária de hegemonia geopolítica.
Essa estratégia teria criado este Minotauro financeiro, artífice de um Poder Global – empoderado pelo arbítrio da Reserva Federal estadunidense, que repassa às mega-corporações os ativos gerados através de créditos hipotecários de alto risco e altíssimo rendimento, as chamadas subprimes. Altos riscos apenas até que estoure a bolha da inadimplência, o “risco” que é salvaguardado pelo contribuintes estadunidenses legitima a formação de imensas fortunas privadas, em último caso securitizadas pelo déficit fiscal que, por sua vez, é mantido pela dominação militar-financeira internacional. Os déficitsgêmeos se retroalimentam: o desenvolvimento inter regional estadunidense se vale do déficit fiscal para promover instalações militares mundo afora, com produção fortemente protecionistas no registro de patentes de alto valor tecnológico vendidas na corrida internacional por armas e reservas em dólar americano.
Notadamente, os próprios títulos da dívida americana servem à equilibrar o déficit comercial crescente, mantido e legitimado pelo poder de arbitragem imperial, criando, assim, um ciclo potencialmente interminável, uma insaciável fome imperial pelos excedentes globais, que irão alimentar a própria dívida interna, a voracidade do Minotauro.
Através das projeções encasteladas de analistas ostentosamente céticos quanto a possibilidade mesma de segurança e arbitragem democrática dos investimentos públicos e da regulação da ganância privada, a fraude está completa e a guerra perpétua legitimada economicamente. Essa verdadeira ‘fraude dos doutos’, promovida por economistas ‘ortodoxos’ a serviço de uma verdadeira joint-venture imperial, é artífice mitológica de um estado estendido, que entrega a soberania democrática dos povos a interesses econômicos particulares.
No Brasil e em toda parte em que se instala o arbítrio neoliberal das elites nacionais capturadas por sua renitente servidão voluntária, cria-se um simulacro de tragédia com roteiro fornecido não pelos gregos, mas sim pelo do Departamento de Estado dos Estados Unidos, versão armada de democracia-empresarial, anti-nacional, austericida, totalitária e surpreendentemente planetária. Democracias estão sendo abertamente saqueadas por uma política econômica a priori entreguista há muito arbitrada pelas atribuições públicas de Bancos Centrais privatizados que servem a repassar os custos da especulação financeira desenfreada às populações e ao setor produtivo.
Constituída sua musculatura pela tendência concentradora do ‘imperialismo financeiro’ do dólar e pelo poder de ‘persuasão’ militar dos EUA, a fome da metade superior do Minotauro foi, finalmente, responsável por suplantar consensos econômicos e políticos a nível planetário e agora metaboliza a excludente ‘democracia de cidadãos proprietários’ [6] que lhe deu suporte em ‘democracia militar’ com vistas ao espectro da total dominação (full-spectrum dominance/superiority); do poder solitário (lonely power) – segundo análise do cientista político brasileiro Moniz Bandeira em seu contundente livro A Desordem Mundial [7] – e prenunciado pelo pretendido excepcionalismo racista do ‘destino manifesto’ e reiterado pelo ‘patrioct act’.
A versão dessa concentração financeira absolutista no século XX é atualizada pela ‘war on terrorism’, do presidente George W. Bush e de seu vice, o demente-mor, Dick Cheney.
A metade mítica do touro em investida tem sua cabeça chafurdando na lama de fraudes financeiras de toda sorte. A Crise de 2008 pode ter sido, aponta Varoufakis, o tropeço que precede a grande queda do mundo unipolar há tanto anunciada. Portanto, um mundo multipolar se afirmar a cada investida em falso da ‘besta’ indomada: na tentativa de golpe na Venezuela; na ‘derrota por procuração’ na Síria; na anexação da Crimeia pela Rússia; além da crise diplomática generalizada e da mobilização popular anti-austeridade, crescentes em todas as partes do mundo.
Segundo M. Bandeira, através da Doutrina Monroe, professada pelo presidente Theodore Roosevelt em 1901, a a ‘corolária política’ do Big Stick ( traduzida singelamente como Grande Porrete sobre a mesa) promoveu os interesses estadunidenses na América Latina durante o seu american century (século americano), se valendo do provérbio africano que sugere diálogo com suavidade, desde que garantida a posse de um grande porrete à mão. No início deste novo século, no país mais poderoso do planeta, reitera-se doutrinas diplomáticas abertamente colonialistas professadas há séculos, mas bizarramente encampadas ainda hoje.
Logo de ditaduras militares tuteladas terem aprofundado a dependência da região, hoje a violência e os traumas da ingerência reverberam no continente americano. A novidade agora é a extensão quase global e a projeção totalitária dessa política, contando agora com mais de 800 bases militares em todo o mundo, a maioria com ogivas nucleares; ciberataques a democracias não-alinhadas; espionagem internacional a líderes soberanos; extermínio de jihadistas e civis através drones, aeronaves não-tripuladas, tudo disposto à guerras comerciais e psicológicas à revelia do Direito Internacional, dos Direitos Humanos e dos escrúpulos éticos.
Uma military democracy orquestrada pela dominação da elite econômica transnacionalemerge em solo estadunidense e nas diferentes zonas de influência dessa espécie mitológica de capitalismo financeiro autocrático e absolutista. Esse modelo de sociedade tem ainda, apesar da desterritorialização dos investimentos econômicos, seu centro de controle no complexo industrial-militar e financeiro estadunidense. A financeirização articulada com a indústria cultural-especular hegemônica promove os assédios do poder imperial americano com a ilusão da estabilidade do dólar e o sonho americano de um mundo colonial de consumidores ordeiros e conservadores, ávidos pelas patentes, pela cultura e pela moeda metropolitana.
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VÍDEOS RECOMENDADOS
BIBLIOGRAFIA
[1] BLYTH, Mark. Austeridade: A História de Uma Idéia Perigosa. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
[2] CARVALHO, Laura. Valsa Brasileira – Do Boom Ao Caos Econômico. Editora Todavia, 2018. Pg. 157 a 159. [2]
[3] CASSIDY, John. In: The New Yorker. apud BLYTH, 2017.
[4] AUTONOMIA LITERÁRIA. Apresentação do selo “Economia do Comum.” In: BLYTH, 2017, p. 8.
[5] VAROUFAKIS, Yanis. O minotauro global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia global. Autonomia Literária, São Paulo, 2016.
[6] RAWLS, J. A theory of justice. 2 ed. Cambridge: Belknap Press, 1999.
[7] MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. A desordem mundial: o espectro da total dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
Foram três as grandes “feridas narcísicas” sofridas pela Humanidade, segundo Sigmund Freud. A primeira ferida: a perda de nossa ilusão de estarmos em um planeta imóvel que estaria no centro do cosmos, fantasia geocêntrica destroçada pelas descobertas de Copérnico (e também de Bruno, Galileu e Kepler), que ocasionou o reconhecimento pleno do heliocentrismo (apesar de tantos cientistas e suas obras terem perecido nas fogueiras da Inquisição). A segunda ferida: a “degradante” descoberta Darwiniana da evolução das espécies pela seleção natural, que deu a nosso narcisismo a má notíci” de que não somos criaturas saídas já prontas das mãos de um deus (como rezava o mito de Adão e Eva), mas meros descendentes dos primatas, macacos melhorados. A terceira ferida seria a própria psicanálise Freudiana, que mostrou que “o ego não é rei em sua própria casa” e escancarou o quanto o comportamento humano é guiado mais por impulsos inconscientes e pulsões biológicas e libidinais do que por princípios racionais.
Mas as feridas narcísicas que Freud surgiu para infligir talvez sejam mais profundas e amplas do que ele mesmo previu: sua teoria a respeito da religião e das raízes da necessidade psicológica da fé também representam ferimentos severos à auto-imagem de todos os Narcisos que gostariam de continuar a crer que são os “favoritos da Criação”. Colapsa, para quem concorda com Freud, qualquer noção de que haveria um “plano divino” dedicado a construir a excepcionalidade do homo sapiens como animal predileto por seu Criador – que estaria, no fundo, devotado a premiar com a beatitude eterna os bem-comportados humanos de seu divino rebanho. Ao contrário destas fantasias neuróticas e infantilóides que costumeiramente passam pelo normal da fé, diz Freud numa frase inesquecível, dum pessimismo à laSchopenhauer: “somos tentados a pensar que não entrou no plano da ‘Criação’ a idéia de que o homem fosse feliz”.
A Natureza, para um ateu de lucidez tão implacável como era Freud, jamais foi vista através da névoa distorcedora do idealismo ou do antropomorfismo. A Natureza, para o Pai da Psicanálise, evidentemente não é criação de um Deus Onipotente, Bom e Sábio. Não é algo que esteja aí para nos “agradar”, nos deleitar, nos receber calidamente em seu seio. Nem está “do nosso lado”, pronta a atender nossos desejos e preces. Seria uma ilusão humanizá-la, sentimentalizá-la, “encantá-la” e supor nela intenções, desejos, desígnios e vontades. Para Freud, a Natureza, na verdade, é um imenso aglomerado de Forças e Energias que, em sua totalidade, escapa totalmente ao nosso controle. “Ela nos destrói, fria, cruel e incansavelmente”, aponta ele, antes de enveredar por exemplos ilustrativos:
“Os elementos parecem escarnecer de qualquer controle humano; a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que se lhes antepõe; as doenças, que só recentemente identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos, e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização.” (O Futuro de Uma Ilusão, pg. 96)
Jacques Lacan, em seu Discurso aos Católicos, sublinhou que o pensamento de Freud, como já começamos a suspeitar, não concebe uma Natureza que possua “desvelos humanistas” ou que seja “sensível” aos sofrimentos e aos prazeres humanos, ela é indiferente:
“Não, a reflexão de Freud não é humanista. Nada permite aplicar-lhe esse termo” (pg. 34), afirma Lacan. “A realidade física é totalmente inumana. (…) Sabemos o que cabe à terra e ao céu, ambos são vazios de Deus…” (pg. 40) Lacan sugere mesmo que à Freud “a própria dor parece-lhe inútil. Para ele, o mal-estar da civilização resume-se nisto: tanto sofrimento para um resultado cujas estruturas terminais são antes agravantes…” (pg. 34) [LACAN, O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos. RJ: Jorge Zahar, 2005.]
Não importa o quanto a Civilização avance, pois, com seu séquito de novos conhecimentos científicos e novas tecnologias; a Natureza “inumana” está sempre presente como um poder superior e ameaçador, desencadeando tempestades, terremotos, tsunamis e chuvas de cometa capazes de, por vezes, reduzir à pó milênios de árduo trabalho humano ou mesmo extinguindo espécies inteiras de animais. Descobrir-se em meio a um mundo natural tão hostil certamente gera tormentos psíquicos e crises de valor, como Freud aponta: “A auto-estima do homem, seriamente ameaçada, exige consolação; a vida e o universo devem ser despidos de seus terrores; ademais, sua curiosidade pede uma resposta.” (O Futuro de Uma Ilusão, Em: Os Pensadores, pg. 96)
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TRÍPLICE MISSÃO
A religião teria sido inventada, pois, com uma tríplice missão: “exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs.” A psicanálise, portanto, reduz à religião a um mero “cabedal de idéias”, “nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana” (O Futuro de Uma Ilusão, pg. 98). Testemunho mais de nossa fraqueza que de nossa força, mais de nossa fragilidade que de nossa indestrutibilidade, mais de nossa angústia que de nossa felicidade, a religião é, de fato, como Marx depois dirá, “o suspiro da criatura oprimida” – e, como Freud sugere, a tentativa delirante de suplantar essa opressão das forças naturais, da morte e da repressão cultural.
As idéias religiosas, pois, não descem do Céu para a Terra como um graça ou uma revelação, como um dom dos deuses para os pobres mortais, mas são germinadas no vaso fértil e imaginativo do crânio humano: é aí, na cachola atormentada do homo sapiens, que nascem e morrem todos os deuses.
“As idéias religiosas, proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados da experiência ou resultados finais de pensamentos: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 107).
A psicanalista Julia Kristeva define a posição freudiana em relação à religião nos seguintes termos:
“É como uma ilusão que a religião aparece precisamente a Freud, ilusão gloriosa porém, já que ele a entendia no sentido do equívoco de Cristóvão Colombo ou dos alquimistas. Como estas experiências pré-científicas, que vão dar, no entanto, origem à geografia moderna e à química, a religião seria uma construção de pouca realidade do desejo de seus sujeitos. (…) Notando a dificuldade que têm os seres humanos de suportar o desmoronamento de seus fantasmas e o fracasso de seu desejo, sem substitui-los por novas ilusões das quais não percebem nem a pouca realidade nem a desrazão, Freud tenta precisar o benefício secundário que comporta precisamente esta ilusão.” (No Príncípio Era O Amor – Psicanálise E Fé, pgs. 21-22)
Kristeva, na esteira de Freud, destaca o fato que as crenças servem justamente para “gratificar o indivíduo em seu cerne narcísico” (pg. 36), “reparar nossos transtornos de Narcisos feridos” (pg. 37) e nos ofertar a “certeza da remuneração” (pg. 42). Além disso, um certo anseio amoroso está na base do impulso para a fé: o desejo de ser amado por Deus é um dos motores que lança o crente à sua crença. “Deus vos amou primeiro”, “Deus é amor”, são os postulados que asseguram ao crente a permanência da generosidade e da graça. É-lhe feito o dom de um amor de que não terá sido merecedor de antemão, mesmo que, certamente, a questão venha a se colocar ulteriormente, com uma exigência de ascese e de aperfeiçoamento”. (op cit, pg. 37)
A religião, pois, é entendida no universo freudiano como uma invenção humana destinada a remediar um desamparo existencial que perdura, após a infância, na vida madura. A religião procura “mitigar nosso temor dos perigos da vida” com a imaginação do suposto “governo benevolente de uma Providência divina; e procura ainda ser uma “resposta aos enigmas que tentam a curiosidade do homem” (resposta obviamente fictícia). Enfim, representa um “alívio enorme para a psique humana” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 107) e uma das mais tenazes ilusões que manteve a humanidade cativa através dos milênios.
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DESEJO E ILUSÃO
Em Moisés e O Monoteísmo, Freud já dizia:
“Não foi possível demonstrar (…) que o intelecto humano possua um faro particularmente bom para a verdade, ou que a mente humana demonstre qualquer inclinação especial para reconhecê-la. Encontramos antes, pelo contrário, que nosso intelecto facilmente se extravia sem qualquer aviso, e que nada é mais facilmente acreditado por nós do que aquilo que, sem referência à verdade, vem ao encontro de nossas ilusões carregadas de desejo.” (pg. 153 – edição Standard das Obras Psicológicas Completas, volume 23 [1937-1939], trad. Jayme Salomão.)
Os crentes, pois, iludem-se acreditando no Paraíso, na alma imortal e no Bom Governo de um Papai dos Céus Benevolente pois estão completamente cegados pelo desejo. Pois o procedimento do religioso consiste em, ao invés de fazer uma admissão sincera de um desejo (“seria muito bom se Deus existisse, gostaria muito que ninguém morresse…”), saltar para uma abusiva anunciação sobre uma suposta realidade (“existe um Deus, ninguém morre, iremos para o Paraíso se fizermos o Bem…”). O crente faz do que desejaríamos que fosse real a afirmação de que é real – ou, para usar uma expressão de Sponville, o crente “toma seus desejos pela realidade”.
Em certos casos, a cegueira é tamanha que atinge o nível de um delírio – como Richard Dawkins quis sublinhar quando entitulou seu livro. Freud também considera que as ilusões extremadas saltam para este outro nível de alienação da realidade: “algumas são tão improváveis, tão incompatíveis com tudo que laboriosamente descobrimos sobre a realidade do mundo, que poderíamos compará-las à delírios” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 108).
Tudo o que a religião nos conta é uma cantilena de ninar, um conto-de-fadas kitsch, um conjunto de idéias feito sob medida para dar de mamar aos desejos humanos mais profundos e infantis: o desejo de proteção, de amparo, de sentido, de êxtase, de paz, de imortalidade etc. A religião nos diz justamente o que mais queremos ouvir, e por isso é de se suspeitar que a tenhamos inventado interesseiramente, com o único objetivo de nos convercermos, através de ficções e delírios, de que a vida é como desejaríamos que fosse. É o que Freud aponta no irônico trecho abaixo, onde narra as consolações que nos tentam inculcar os monoteísmos ocidentais:
“Tudo o que acontece neste mundo constitui expressão das intenções de uma inteligência superior para conosco, inteligência que (…) ordena tudo para o melhor. (…) Sobre cada um de nós vela uma Providência benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza. A própria morte não é uma extinção, não constitui um retorno ao inanimado orgânico, mas o começo de um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo mais elevado. (…) Ao final, todo o bem é recompensado, e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de vida, pelo menos em existências posteriores que se iniciam após a morte. Assim, todos os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a se desfazer…” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 98)
Não se nega que as religiões possam ser, em certas sociedades, “prezadas como o mais precioso bem da civilização, como a coisa mais preciosa que ela tem a oferecer a seus participantes” (99). Mas Freud coloca a questão de saber se religião é de fato bem sucedida em dissipar, como pretende, os “terrores, sofrimentos e asperezas da vida” – algo que não só não está provado, como é questionável, duvidoso e em muitos casos absolutamente implausível. Ainda assim, Freud não se engana: “As pessoas sentem que a vida não seria tolerável” sem a religião (99) – e é isso que explica sua força.
A religião, este cabedal de idéias que é transmitido culturalmente, inculcada na nova geração pela educação, pelo sermão e pela catequisação, não tem nada de “natural” ou de “fruto da graça ou da revelação”, é claro. É “a civilização que fornece ao indivíduo essas idéias”; “são-lhe presenteadas já prontas, e ele não seria capaz de descobri-las por si mesmo. Aquilo em que ele está ingressando constitui a herança de muitas gerações, e ele a assume tal como faz com a tabuada de multiplicar, a geometria e outras coisas semelhantes”. A religião, sublinha Freud, não é verdade eterna, mas invenção humana, histórica, mutante, na estrada da civilização.
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O COMPLEXO PATERNO E A CRENÇA EM DEUS-PAI
Além disso, a idéia de Deus tem, para a psicanálise freudiana, um protótipo infantil: a imagem do Pai. O paralelo entre o desamparo infantil frente ao Pai e o desamparo do homem crescido frente à Natureza (hostil) é a base do raciocínio de Freud: “Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de desamparo: como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razão para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos que conhecíamos.” (97) Na vida adulta, re-experimentamos o desamparo e fragilidade da primeira infância frente à colossal e esmagadora maquinaria dos cosmos, de modo que esperamos de um Deus-Pai proteção e consolo. Ao mesmo tempo, “transformamos as forças da natureza” “lhes concedendo o caráter de um pai”, ou seja, “transformando-as em deuses” (97).
Isso porque, no fundo, uma certa dose de desamparo é incurável e inelutável. “Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai” (102).
Em suma, como ele aponta em Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci (Paris, Gallimard, 1987, p. 156):
“A psicanálise nos fez conhecer a relação íntima entre o complexo paterno e a crença em Deus, nos mostrou que o Deus pessoal, psicologicamente, não passa de um pai levado às nuvens, e nos apresenta cotidianamente o espetáculo de jovens que perdem a fé a partir do momento em que sobre eles desaba a autoridade do pai. É portanto no complexo parental que reconhecemos a raiz da necessidade religiosa.”
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ILUSÃO BENIGNA?
Em “O Futuro De Uma Ilusão” é também posto em xeque um dos argumentos que julga-se dos mais fortes na defesa da religião: já que as grandes questões metafísicas são insolúveis para a razão humana, e já que a crença religiosa oferece tamanhas consolações e “cura” o homem de tantas angústias, trazendo tanto “alívio” psíquico, por que não aceitá-la e acolhê-la como uma espécie de ilusão benigna, de cegueira que faz bem?
Freud, é claro, não se deixa convencer por uma raciocínio desses, que denigre sem dó como “desculpa esfarrapada”: a religião de modo algum pode ser vista como algo que traz saúde psíquica! “Os crentes devotos são em alto grau salvaguardados de certas enfermidades neuróticas”, Freud o admite, mas é porque “sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar uma neurose pessoal” (118)! Poucas vezes ele foi mais cáustico, mais irônico e mais iconoclástico do que aqui: possuir uma religião é possuir uma neurose coletiva, uma cegueira compartilhada por muitos, um delírio da imaginação profundamente alienante, e nada de benigno pode sair daí:
“Ignorância é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo pode ser derivado dela. Em outros assuntos, nenhuma pessoa sensata se comportaria tão irresponsavelmente ou se contentaria com fundamentos tão débeis para suas opiniões e para a posição que assume. É apenas nas coisas mais elevadas e sagradas que se permite fazê-lo” (pg. 109). Além do mais, “as verdades contidas nas doutrinas religiosas são, afinal de contas, tão deformadas e sistematicamente disfarçadas que a massa da humanidade não pode identificá-las como verdade. O caso é semelhante ao que acontece quando dizemos a uma criança que os recém-nascidos são trazidos pela cegonha.” (118)
Freud, sem dúvida, espera que a humanidade seja capaz de um heroísmo de lucidez que ele próprio testemunhou com seu pensamento e que tanto nos empolga e ilumina. E nos conclama a uma atitude de desdém e de abandono em relação aos “contos de fada da religião” (106):
“Os críticos insistem em descrever como ‘profundamente religioso’ qualquer um que admita uma sensação de insignificância ou impotência do homem diante do universo, embora o que constitua a essência da atitude religiosa não seja essa sensação, mas o passo seguinte, a reação que busca um remédio para ela. O homem que não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra.” (109)
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MORALIDADE E IRRELIGIÃO
Também a espinhosa questão moral Freud enfrenta de frente. Há por parte dos religiosos um intenso temor, quase um pavor, de que um caos social e ético se instalaria caso caísse o império da religião. Freud se imagina um opositor que lhe confronta com este argumento: “Caso se ensine às pessoas que não existe um Deus todo-poderoso e justo, nem ordem mundial divina, nem vida futura, os homens se sentirão isentos de toda e qualquer obrigação de obedecer aos preceitos da civilização” (110). Ou seja: se as pessoas não tiverem fé, acharão que “tudo é permitido”, e nunca mais agirão de modo ético e responsável, de modo que, “no interesse da preservação de todos nós”, ainda que essas idéias sejam reconhecidas pelas lúcidos como ilusões e delírios, a religião deveria ser mantida, ainda que a título de “cimento social” e impulso para o agir moral.
Freud obviamente discorda. “A civilização corre um risco muito maior se mantivermos nossa atual atitude para com a religião do que se a abandonarmos” (111), diz ele, como um profeta ateu que garante que viveríamos melhor abandonando de vez a quimera de Deus. A religião já “dominou a sociedade humana por muitos milhares de anos e teve tempo para demonstrar o que pode alcançar”, ou seja, o planeta Terra já foi por séculos demais o laboratório à céu aberto onde os padres e papas usaram os humanos como cobaias para suas ideologias religiosas. “Se houvesse conseguido tornar feliz a maioria da humanidade, confortá-la, reconciliá-la com a vida, e transformá-la em veículo de civilização, ninguém sonharia em alterar as condições existentes. Mas, em vez disso, o que vemos? Vemos que um número estarrecedoramente grande de pessoas se mostram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a como um jugo do qual gostariam de se libertar” (113).
Portanto, é francamente falsa ou altamente implausível a tese de que a religião faria os homens mais felizes e mais bondosos – por que não, como a História nos dá tamanhas provas, não os tornaria mais culpados, atormentados, angustiados, sectários, intolerantes e sanguinários? “É duvidoso que os homens tenham sido em geral mais felizes na época em que as doutrinas religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais certamente não foram”. Sem falar que, como comenta Freud com ironia, “o pecado é indispensável à fruição de todas as bênçãos da graça divina”. Não se esqueçam, irmãos, que estas noções de “pecado”, “culpa” e “inferno” são criações de crentes e não de ateus!
Apesar de não conceber nenhum perigo de “queda moral” na passagem da fé para o ateísmo nas “pessoas instruídas”, Freud chega a dar um pouco de razão àqueles que temem o caos social que se seguiria à derrocada da religião, especialmente se quem perdesse a fé fosse “a grande massa dos não instruídos e oprimidos, que possuem todos os motivos para serem inimigos da civilização” (114). Os proprietários, os dominadores, os poderosos, têm razão de tremerem pelo seu tão querido status quo se as massas despertarem de seu sono teológico e quebrarem as correntes!
Mas será que só um estado policial e repressor seria capaz de conter, pela força, as massas irreligiosas? É uma hipótese que Freud considera: “Se a única razão pela qual não se deve matar o próximo é porque Deus proibiu e nos punirá severamente por isso nesta vida ou na vida futura, então, quando descobrirmos que não existe Deus e que não precisamos temer Seu Castigo, certamente mataremos o próximo sem hesitação e só poderemos ser impedidos de fazê-lo pela força terrena” (114). No caso desta proibição – de matar o próximo – nós “revestimos a proibição cultural de uma solenidade muito especial, mas, ao mesmo tempo, nos arriscamos a tornar sua observância dependente da crença em Deus” (116).
Para Freud, as proibições culturais não precisam ficar nesta dependência em relação à religião.
“Constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua pretensa santidade, esses mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e imutabilidade. As pessoas compreenderiam que são elaborados, não tanto para dominá-las, mas, pelo contrário, para servir a seus interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com eles e, em vez de visarem à sua abolição, visariam unicamente à sua melhoria” (116).
Diríamos, por exemplo, que não se deve matar o próximo, não porque Deus assim o proibiu, mas porque se isto se tornasse “moda” os homens acabariam se exterminando mutuamente. Um motivo racional no lugar de um motivo religioso.
Freud, como bom racionalista, afirma a “impossibilidade de provar a verdade das doutrinas religiosas”, o que ele mesmo reconhece ser uma idéia que nada tem de novo: “Isso já foi sentido em todas as épocas e, indubitavelmente, também pelos ancestrais que nos transmitiram esse legado. Muitos deles provavelmente nutriram as mesmas dúvidas que nós, mas a pressão a eles imposta foi forte demais para que se atrevessem a expressá-las. E, visto que incontáveis pessoas foram atormentadas por dúvidas semelhantes e se esforçaram por reprimi-las, por acharem que era seu dever acreditar, muitos intelectos brilhantes sucumbiram a esse conflito” (105 – grifo meu).
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A FÉ ASFIXIANDO O PENSAMENTO
A obrigação de crer, sustentada por séculos através das ameaças de fogueira e excomunhão, sufocou e asfixiou o vôo do pensamento e as vitórias do saber. Quem há de contar os infinitos prejuízos e danos causados à progressão da sabedoria humana por esta cruel engrenagem de estraçalhar intelectos brilhantes que foi a religião ortodoxa e fanática, que reprimia a dúvida e a investigação e fazia apologia do dogmatismo e da fé cega e sem provas? E quem há de calcular o quanto se deforma e se impede o desenvolvimento intelectual de uma criança através de uma pedagogia alicerçada na religião?
“Pode um antropólogo fornecer o índice craniano de um povo cujo costume é deformar a cabeça das crianças enrolando-as com ataduras desde os primeiros anos? Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e os débeis poderes intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é exatamente a educação religiosa que tem grande parte da culpa por essa relativa atrofia? Penso que seria necessário muito tempo para que uma criança, que não fosse influenciada, começasse a se preocupar com Deus e com as coisas do outro mundo. Talvez seus pensamentos sobre esses assuntos tomassem então os mesmos caminhos que os de seus antepassados. Mas não esperamos por um desenvolvimento desse tipo; introduzimo-la às doutrinas da religião numa idade em que nem está interessada nelas nem é capaz de apreender sua significação. Não é verdade que os dois principais pontos do programa de educação infantil atualmente consistem no retardamento do desenvolvimento sexual e na influência religiosa prematura? Dessa maneira, à época em que o intelecto da criança desperta, as doutrinas da religião já se tornaram inexpugnáveis. Mas acha você que é algo conducente ao fortalecimento da função intelectual o fato de um campo tão importante lhe ser fechado pela ameaça do fogo do Inferno? Quando outrora um homem se permitia aceitar sem crítica todos os absurdos que as doutrinas religiosas punham à sua frente, e até mesmo desprezar as contradições existentes entre elas, não precisamos ficar muito surpresos com a debilidade de seu intelecto. Não dispomos, porém, de outros meios de controlar nossa natureza instintual, exceto nossa inteligência. Como podemos esperar que pessoas que estão sob domínio de proibições de pensamento atinjam o ideal psicológico, o primado da inteligência?” (F.I, p. 121)
Freud, pois, manifesta-se claramente favorável a um pedagogia irreligiosa e conclama os homens a assumirem sem covardia a lucidez implacável que ele, Freud, tão bem exercitou e exemplificou. Quanto mais cultos, inteligentes e lúcidos nos tornamos, quanto mais cresce em nós a capacidade de pensar de modo preciso e coerente, mais nos afastamos das quimeras delirantes da religião, sugere: “Quanto maior é o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa” (113). Este afastamento em relação às crenças religiosas abre os horizontes humanos para uma reflexão sobre o quanto nossas existências são transitórias e qual sabedoria poderia ser aprendida e vivida a partir do pleno reconhecimento desta transiência, tema de um dos mais belos escritos de Freud:
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SOBRE A TRANSITORIEDADE
“Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.
A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.
Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.
Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vida, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda a vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.
Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhe estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.
O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, e até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.
Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.
Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso para muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.”
(Sigmund Freud. Obras Completas Volume 14, ed. Imago.)
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REFERÊNCIAS
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FREUD, S. O Futuro de Uma Ilusão. In: Os Pensadores. Ed. Abril Cultural.
FREUD, S. Moisés e o Monoteísmo. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas, volume 23 [1937-1939], trad. Jayme Salomão.
FREUD, S. Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci. Paris, Gallimard, 1987, p. 156.
FREUD, S.Sobre a Transitoriedade. Em: Obras Completas Volume 14, ed. Imago.
KRISTEVA, Julia. No Princípio Era o Amor – Psicanálise e Fé. Ed. Brasiliense, 1987.
LACAN, Jacques. O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos. RJ: Jorge Zahar, 2005.
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