A Esperança Equilibrista Despencou no Abismo na Noite do Brasil || In Memoriam: Aldir Blanc (1946 – 2020)

“Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos

A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco… louco!

O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil

Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete

Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar.”

João Bosco e Aldir Blanc
“O Bêbado e a Equilibrista”

HENFIL

Perdendo o equilíbrio ao tentar atravessar a corda bamba sobre o abismo, “a esperança equilibrista” de Aldir Blanc se precipitou, em queda livre, para “morrer na contramão atrapalhando o tráfego” (para citar outro célebre cancionista). Eliane Brum, em artigo para o El País, assim lamentou a perda:

“O Brasil abriu a semana com a morte de Aldir Blanc, o poeta que, em uma das canções mais pungentes contra a ditadura militar, escreveu: ‘a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar’. Morto aos 73 anos por covid-19, o show de Aldir Blanc não pôde continuar. A esperança já não consegue se equilibrar no Brasil e deslizou para o abismo. O país de Aldir Blanc e todo o seu imaginário foram mortos pelo perverso Jair Bolsonaro que se embriaga com a própria boçalidade, espirra e aperta com dedos lambuzados as mãos de seus seguidores. E então diz, diante das milhares de vítimas da pandemia e de sua irresponsabilidade: “E daí?”. A morte do poeta oficializa que o Brasil continental perdeu seu continente ― sua carne, sua alma e seus contornos ― e a poesia já não nasce.”

João Bosco, no dia em que perdeu o parceiro de tantos botecos e canções, escreveu o seguinte relato comovido:

 “Peço desculpas aos que têm me procurado hoje. Não tenho condições de falar. Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos despedido na madrugada anterior. Desde então, voltamos a nos falar ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos. Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. Não existe João sem Aldir. Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu cantá-las. Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Meu coração está com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio.”

José Miguel Wisnik, professor da FFLCH / USP e também ele cancionista, aproveitou a ocasião para nos conceder uma bela exploração da canção “De Frente Pro Crime”:

“Olhei o corpo no chão e fechei / minha janela de frente pro crime”. A letra de Aldir Blanc nesse samba com João Bosco tem a cadência de um miniconto. Parece que é simplesmente a narrativa impessoal, a crônica de uma cena de rua em torno de um cadáver estendido que tem “em vez de rosto a foto de um gol”. Populares passam, entre pragas perdidas e silêncio anônimo, o ambiente em volta se agita, o bar se enche (“malandro junto com trabalhador”). Na confusão, algum oportunista bêbado, de cima da mesa, se lança candidato a vereador, um comércio parasita floresce num frenesi de camelô, anel, cordão, perfume barato, baiana, pastel, churrasco de gato. Fim de noite, fim de festa, baixa ainda “um santo na porta-bandeira” enquanto o ajuntamento se dispersa. O morto continua lá, no ponto cego do transbordamento de vida que suscitou, e que se dissipa. Só então ficamos sabendo que tudo isso se passa aos olhos de alguém que vê de fora, de outro lugar, de trás de uma janela que agora se fecha, voyeur da vida e da morte, do crime sem rosto e sem nome, como nós. Assim como “Incompatibilidade de gênios”, da mesma dupla, “De frente pro crime” acontece no ritmo do pulo do gato, e é uma pérola da junção do sublime com o banal, sempre na veia do mundo popular carioca. É bonito vê-los, Aldir e João, malandros trabalhadores da canção, trocando uma ideia na porta do Café Capital. (Me pergunto quem terá feito essa foto linda.) (WISNIK, em sua página no Facebook)

Já o Enzo Banzo, da banda mineira Porcas Borboletas, publicou o seguinte artigo no Diário de Uberlândia:

Para celebrar a trajetória e a obra de Aldir Blanc, após concluir sua jornada pela estrada-só-de-ida da vida (como gosta de dizer o espírito livre Diego Mascate)A Casa de Vidro recupera, a seguir, um pungente texto de Aldir escrito para celebrar a criação da C.N.V. pelo governo da Dilma. Além disso, decidimos exercitar um pouco da boa e velha pirataria construtiva e disponibilizar, para download gratuito, em MP3 de qualidade, vários álbuns que permitem conhecer mais a fundo a obra deste grande poeta e compositor popular que foi Aldir Blanc. Baixe sem dó e aprecie sem moderação!

Texto de Aldir Blanc na época da criação da Comissão Nacional da Verdade no governo Dilma Rousseff.

“Não sou historiador nem sociólogo. Não consultei nenhum livro para escrever o texto abaixo. Minha memória está se movendo como estilhaços do amado caleidoscópio que perdi, menino, em Vila Isabel.

Viva a Comissão da Verdade para que nunca mais coloquem uma grávida nua sobre um tijolo, atingida por jatos d’água, com ameaça: “Se cair vai ser pior”;

Para que senhoras que fazem seu honrado trabalho não sejam despedaçadas por cartas bombas;

Para que um covarde que bote a boca de um homem torturado no escapamento de uma viatura militar não passe por homem de bem onde mora;

Para que orangotangos que se tornaram políticos asquerosos não babem sua raiva na internet: “Nosso erro foi torturar demais e matar de menos”;

Para que presos em pânico não sofram ataques de jacarés açulados por antropóides;

Para que nunca mais teatros e livrarias sejam vandalizados e queimados;

Para que um estudante de psiquiatria não seja obrigado a passar por sentinelas de baioneta calada para ouvir um coronel médico dizer que “histeria é preguiça”;

Para que os brasileiros possam homenagear um autêntico herói nacional, João Cândido, com um monumento, sem que surjam energúmenos prometendo “voltar a explodir tudo se isso apontar para o Colégio Naval”;

Para que a nossa Força Aérea, que nos deu tanto orgulho na Itália, com seus valentes pilotos de caça, não atire pessoas, como se fossem sacos de lixo, no mar;

Para que um pai, ao se recusar a cumprir a ordem de manter o caixão lacrado, não se depare com o corpo destruído do filho, jogado lá dentro feito um animal;

Para que militares honrados não sintam “constrangimento” na busca de Justiça; para que cavalos ( aqueles de quatro patas, montados por outros) não pisoteiem um garoto com a camisa pegando fogo por estilhaço de bomba, na Lapa;

Para que torturadores não recebam como “prêmio” cargos em embaixada no exterior;

Para que uma estudante não desmaie num consultório médico ao falar sobre as queimaduras do pai, feitas com tocha de acetileno;

Para que esquartejadores não substituam Tiradentes por Silvério dos Reis;

Para que inúmeros Pilatos ainda trambicando naquela casa de tolerância do Planalto vejam que suas mãos continuam cheias de sangue e excremento;

Para que nunca mais na vida de uma jovem idealista – o queixo firme, olhos faiscantes de revolta, com a expressão da minha Suburbana no 3X4 que guardo na carteira – seja ceifada por encapuzados. Uma delas, quem sabe?, pode chegar a Presidência da Republica e enquadrar a récua de canalhas.”

Não podemos nos calar!”

Aldir Blanc

DISCOS PRA BAIXAR:

 

CONTESTASOM – Censura à Música durante as Ditaduras no Brasil [Projeto de Pesquisa]

Outdoor

CONTESTASOM

Grupo de Pesquisa do IFG (Instituto Federal de Goiás), câmpus Anápolis, que investiga a Censura à Música durante as Ditaduras brasileiras: Estado Novo na Era Vargas (1937 – 1945) e Ditadura Civil-Militar (1964 – 1985)

 

APRESENTAÇÃO & JUSTIFICATIVA

Muitas vezes já foi dito e repetido: “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”. Na certeza de que a investigação e o estudo sobre o nosso passado é imprescindível para que não voltemos a cometer velhos equívocos, criamos o grupo de pesquisa Contestasom, projeto que foca sua atenção nas músicas brasileiras que sofreram censura durante dois períodos históricos em que estavam vigentes no país regimes autoritários e ditatoriais: o Estado Novo da Era Vargas (1937 – 1945) e a Ditadura Civil-Militar (1964 – 1985).

Uma significativa nota publicada pelos membros da Comissão Nacional da Verdade, em Março de 2014, no marco histórico dos 50 anos do golpe de 1964, destacava: “82 milhões de brasileiros nasceram sob o regime democrático (após 1985). Mais de 80% da população brasileira nasceu depois do golpe militar (após 1964). O Brasil que se confronta com o trágico legado de 64, passados 50 anos, é literalmente outro. O país se renovou, progrediu e busca redefinir o seu lugar no concerto das nações democráticas. Não há por que hesitar em incorporar a esta marcha para adiante a revisão de seu passado e a reparação das injustiças cometidas.” (CNV: Vol. 1, 2014)

Após 30 meses de trabalhos, entre os anos de 2012 e 2014, a CNV publicou seu relatório final, em 3 volumes, onde também demonstrou “preocupação com o ensino de história e promoção dos direitos humanos nas escolas, estabelecendo seus parâmetros educacionais” (BAUER: 2017, p. 212), em que recomenda-se que “sejam incluídos, nas disciplinas em que couberem, conteúdos que contemplem a história política recente do país e incentivem o respeito à democracia, à institucionalidade constitucional, aos direitos humanos e à diversidade cultural.” (Relatório da CNV, v. 1, p. 970).

Compartilhamos desta apreciação que destaca a importância, para as gerações atuais e vindouras, do aprendizado com a história do país, aí inclusas as manifestações culturais e artísticas de nosso povo, em uma perspectiva de denúncia do autoritarismo e da ditadura que violaram os direitos humanos e amordaçaram a diversidade cultural no Brasil. Visando propiciar aos alunos envolvidos neste projeto de pesquisa um contato aprofundado com o passado ditatorial brasileiro, acreditamos que possamos contribuir para a elucidação e o esclarecimento da realidade histórica em que vivemos atualmente e oferecer avanços significativos no que diz respeito a uma pedagogia marcada pela criticidade e pela análise aprofundada das conjunturas e problemáticas em questão.

A música popular sempre teve um papel fundamental na cultura brasileira e é possível abordá-la através de um enfoque transdisciplinar. Nosso grupo trabalha na perspectiva de que é preciso analisar a obra de arte tanto em sua forma e conteúdo, o que torna propícios os saberes das áreas como Letras, Linguística e Semiótica, quanto a conjuntura social, política, econômica e cultural em que se insere, o que também torna indispensável uma interface com os conhecimentos da Sociologia, da Economia, da Ciência Política, da História Sócio-Cultural etc.

Esta pesquisa visa esclarecer questões pertinentes, assim formuladas por José D’Assunção Barros: “De que forma essas duas ditaduras procuraram exercer domínio sobre a Música, e que formas de resistência essa mesma Música encontrou para resistir aos poderes instituídos, cumprindo, através de alguns compositores mais engajados, a missão de enfrentar o poder estatal concretizado nos mecanismos repressores da Censura? Como se deu, no contexto da repressão, a possibilidade dos compositores desenvolverem uma crítica social arguta de modo a contribuir para uma maior conscientização social que, a seu tempo, foi fundamental para a própria possibilidade de superação de cada um desses regimes de exceção?” (BARROS: apud Moby, p. 10)

O grupo de pesquisa irá de debruçar não apenas sobre a produção musical que foi censurada nos tempos de repressão, mas no próprio contexto histórico onde as canções foram vetadas, de maneira a elucidar as similitudes e diferenças entre estes dois períodos de autoritarismo explícito do Estado brasileiro. O pesquisador Alberto Moby, em seu livro Sinal Fechado, aponta importantes caminhos a seguir:

“As conjunturas, apesar das muitas semelhanças, comportam também inúmeras diferenças, dentre as quais destaco o estágio dos meios de comunicação de massas nos anos 30-40 e o grande avanço que sofreram nos anos 70 do século passado. Por outro lado, é imprescindível nos remetermos ao quadro político internacional, da Segunda Guerra Mundial, no primeiro caso, e da ampla hegemonia norte-americana, difusora da Guerra Fria e da ideologia da segurança nacional, no segundo.” (SILVA, p. 34)

Como exemplos das conjunturas sócio-históricas que iremos investigar a fundo, cabe mencionar que o Estado Novo Varguista colocava seu trabalhismo como dogma inescapável e todos os sujeitos sociais que fossem considerados improdutivos eram estigmatizados como “vagabundos”, e criminalizáveis enquanto tal. No emblemático samba “Bonde de São Januário”, de Wilson Batista, o compositor tratava de um protagonista descrito como “sócio otário” que viaja no Bonde, indo ao trabalho. E depois o sambista fazia alarde de sua “gandaia” cantando: “só eu não vou trabalhar”. O DIP determinou que a letra fosse modificada: “sócio otário” deveria ser substituída por “operário”, e “só eu não vou trabalhar” por “sou eu que vou trabalhar”.

Havia, portanto, uma tendência do Estado Novo a proibir todo conteúdo cultural considerado como violador do valor ético das ações produtivas no mundo do trabalho, em detrimento das práticas estigmatizadas como inúteis e improdutivas, de modo que a censura incidia sobretudo contra canções que faziam apologia da boemia, da preguiça, da gandaia, da “vida de artista” (para lembrar uma música de Itamar Assumpção) em contraste com a vida do trabalhador. Teixeira Coelho foi ao cerne do problema ao dizer:

“para a direita sempre interessou o controle do prazer em benefício da produtividade capaz de gerar sempre lucros e mais lucros. Pretende-se sempre fazer crer que o trabalho dignifica, que o trabalho é o veículo da ascensão, que o trabalho é a salvação… Nesse quadro pintado pela direita, o prazer – sob sua forma diminuída: a diversão – só é admitido esporadicamente (feriados, férias) e mesmo assim apenas como elemento reforçador do trabalho (na medida em que recompõe as forças do trabalhador, permitindo a continuidade da exploração destas.” (COELHO, 1988, p. 14).

Já a Ditadura civil-militar instaurada pelo Golpe de 1964 irá praticar a censura contra artistas tidos como subversivos ou transgressores, com destaque para Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gonzaguinha, Taiguara, dentre muitos outros. Canções emblemáticas da época, como “Cálice” (de Gil e Chico), “Para Não Dizer Que Não Falei de Flores” (de Geraldo Vandré) e “Menino” (de Milton Nascimento) são capazes de revelar elementos essenciais do tempo histórico e da ação dos artistas diante do Estado ditatorial.

Através da pesquisa sobre estas músicas, iremos revelar detalhes sobre um Brasil que, por 21 anos, esteve imerso nas trevas da tortura, dos desaparecimentos, dos exílios e da censura aos meios de comunicação e às artes.

É preciso também destacar que as canções em questão estão envolvidas em um sistema produtivo, a indústria do álbum musical, que é marcada pelas mutações das tecnologias de áudio, de modo que, se na Era Vargas há ampla hegemonia do meio de comunicação rádio, na Ditadura dos anos 1960 e 1970 vemos a entrada massiva no cenário dos LPs e das fitas K7:

“entre 1967 e 1980, a venda de toca-discos cresce em 813%. A indústria do disco cresceu, em faturamento, entre 1970 e 1976, em 1.375%. Ao mesmo tempo, a venda de discos, no mesmo período, aumento de 25 milhões de unidades para 66 milhões de unidades por ano. A produção de fitas cassete, uma novidade no Brasil, cresceu de 1 milhão, em 1972, para 8,5 milhões em 1979.” (SILVA, p. 48).

Neste momento histórico onde estamos há exatos 50 anos desde o ano emblemático de 1968, esta pesquisa visa trazer à tona este passado submerso, parcialmente esquecido, ou mesmo nunca de fato apropriado como conhecimento pelas novas gerações, sobre a produção cultural naqueles períodos conturbados. A redescoberta das histórias por trás dessas canções, além do próprio poder estético e comunicacional das obras, pode revelar o potencial crítico e transformador de nossa produção artística. No contexto da Ditadura pós AI-5, como argumenta Frederico Coelho em seu livro Eu, Brasileiro, Confesso Minha Culpa Meu Pecado, a música popular foi capaz de articular e debater tópicos importantíssimos de nossa vivência social:

“Temas como banditismo, armas de fogo, enfrentamentos armados entre policiais e estudantes, desagregação de valores da classe média brasileira, grupos marginalizados da sociedade, entre outros, passam a fazer parte do universo temático das canções tropicalistas a partir da segunda metade de 1968. Canções como “Enquanto Seu Lobo Não Vem” (Caetano Veloso), “Divino Maravilhoso” (Caetano e Gilberto Gil), “É Proibido Proibir” (Caetano), “Marginália II” (Torquato e Gil) ou “Deus vos salve esta casa santa” (Torquato e Caetano) eram emblemáticas para esse momento de radicalização. São canções que tratam de ‘bombas’ e de ‘botas’, de não ter tempo para ‘temer a morte’, das pichações dos jovens de maio de 1968 em Paris, de ‘pânico e glória’ e de ‘laço e cadeia’.” (COELHO: 2010, p. 116)

No que diz respeito à atualidade do tema central deste projeto de pesquisa, destacamos que há em 2018 o marco histórico dos 50 anos desde o ano emblemático de 1968, onde o mundo estava convulsionado por grandes eventos sócio-políticos, como as greves e manifestações de Maio em Paris, o massacre que precedeu o início das Olimpíadas do México e o conflito conhecido como Primavera de Praga (com a invasão soviética da Tchecoeslováquia). No Brasil, o ano é marcado, em Março, pelo assassinato do estudante secundarista Edson Luis, pela Marcha dos Cem Mil que se seguiu a isso, e, no fim de 1968, pela promulgação do AI-5, pelo regime Costa e Silva, que instauraria uma ditadura linha dura e inauguraria os chamados “anos de chumbo”.

Meio século depois, é urgente e necessário relembrar os eventos daqueles tempos, e julgamos que a contribuição pode ser imensa se tomarmos as músicas censuradas como fio condutor para que possamos refletir coletivamente sobre a importância essencial de uma sociedade democrática, que respeite os direitos humanos, a liberdade de expressão e a diversidade cultural.

MATERIAL E METODOLOGIA

Pela natureza desta pesquisa, que lida com a produção cultural no Brasil em períodos ditatoriais, os materiais a serem analisados são tanto os produtos culturais em si mesmos (isto é, as canções, os álbuns, os shows dos artistas-compositores em questão), quanto a produção acadêmica e documental sobre eles (o que inclui produções audiovisuais, livros historiográficos, teses nas áreas de antropologia cultural, filosofia da arte, performances culturais, jornalismo de cultura etc.)

Ainda que o tema da pesquisa especifique que, no amplo âmbito das artes, interessa-nos sobretudo a música, é preciso frisar que raramente a música aparece desvinculada das outras expressões artísticas, de modo que deve ser privilegiado um modus operandi que conecte a produção musical com aquela do cinema, do teatro, da literatura etc.

A necessidade incontornável de um método que explore a música como parcela integrante de um complexo cultural mais amplo pode ser ilustrada por dois exemplos: um dos mais célebres casos de censura durante a Ditadura Militar (1964 – 1985) foi Roda Viva, peça escrita por Chico Buarque de Hollanda, encenada pelo Teatro Oficina, com direção do José Celso Martinez Côrrea, exemplar da confluência entre Música e Artes Cênicas; já os criadores da Tropicália, entre eles Caetano Veloso e Gilberto Gil, jamais esconderam o impacto que teve sobre seus ideários estéticos e políticos, ou seja, para a gênese do movimento tropicalista, a fruição de obras cinematográficas, como Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe de Glauber Rocha, além de performances no âmbito das artes visuais e performáticas, como aquelas de Hélio Oiticica.

Jamais se compreenderá a censura contra Chico Buarque focando apenas em sua produção musical, já que também suas obras teatrais – como Calabar, Gota D’Água e o supracitado Roda Viva – sofreram com os vetos do regime. Similarmente, a Tropicália, que foi “abatida em pleno vôo pelo AI-5”, como diz Tárik de Souza, não estabelecia a música como seu único espaço de expressão.

Na capa do disco manifesto “Tropicalia ou Panis et Circenses”, é explícita a confluência entre a cultura popular (de que Tom Zé e Gilberto Gil eram inventivos representantes) e a cultura mais erudita (ali representada pelo maestro Rogério Duprat, que na capa do álbum parece tomar chá em um penico, o que é referência à obra de Marcel Duchamp). Ali também está clara a confluência entre a literatura e a música, com a presença do poeta e jornalista Torquato Neto (também um dos mais brilhantes letristas de nossa MPB) e do poeta José Carlos Capinam (representado em fotografia emoldurada que seu parceiro Gil carrega como porta-estandarte).

A pesquisa terá como materiais a serem investigados: jornais e revistas da época; acervos digitais disponíveis na Internet; visitas guiadas a instituições dedicadas à conservação da memória sócio-cultural brasileira (como o Arquivo Nacional de Brasília); obras escritas por críticos musicais, jornalistas, historiadores, artistas; documentários e filmes de ficção produzidos sobre as épocas históricas em questão.

Pesquisadores como Ridenti e Moby, dentre outros, já vem se dedicando a investigações similares nos últimos anos, utilizando uma metodologia em que se unem disciplinas em colaboração, como a sociologia, a história do Brasil, a crítica de arte, a historiografia cultural, e até mesmo o campo da Economia e do Direito (aí inclusos os pensadores do tema Direitos Humanos, tal como Celso Lafer e Pedro Serrano).

Nossa metodologia será inter-disciplinar, pois a pesquisa utiliza-se de conhecimentos da História, mas também necessita mobilizar conceitos que remetem à análise crítica dos aparelhos midiáticos de massa e da Indústria Cultural a eles conexa – análises fornecidas em correntes acadêmicas díspares como a Teoria Crítica Frankfurtiana (Adorno, Horkheimer, Marcuse, Benjamin) e a Midialogia (criação do pensador francês Régis Débray).

Os materiais a nossa disposição são vastos e justificam os esforços de uma equipe de pesquisa: todo um amplo campo acadêmico concorda, como diz Ridenti, que “a censura foi o principal mecanismo repressor no mundo artístico, que sofreu ainda processos judiciais, episódios de tortura, exílio forçado e até mesmo assassinato, como o de Heleny Guariba” e que a “ditadura baseou-se em leis para justificar seus atos censórios” (RIDENTI: 2014, o. 333). O mesmo autor frisa algo importantíssimo para a determinação dos métodos e materiais desta pesquisa, pois aponta para a enorme magnitude dos mecanismos estatais mobilizados para censurar e sublinha o quanto são necessários esforços multidisciplinares para um correto conhecimento da produção musical censurada nas épocas históricas em estudo:

“O trabalho dos censores exigia uma considerável organização burocrática no âmbito do Ministério da Justiça e da Polícia Federal. Por exemplo, o relatório da Divisão de Censura de Diversões Públicas do ano de 1978 indicava que havia 45 técnicos de censura, além de 36 servidores lotados na parte administrativa, que foram responsáveis naquele ano pelo exame de 2648 peças de teatro, 9.553 filmes (longas e curtas-metragens), 1996 capítulos de telenovela, 86 programas de TV, 859 capítulos de radionovelas, 167 programas radiofônicos, 47475 letras de canções… Para se ter uma ideia da abrangência da censura, foram proibidos naquele ano de 1978: 79 peças de teatro, 24 filmes, 462 letras musicais… Apreenderam-se 226.641 exemplares de livros e 9494 de revistas, entre outros resultados da produtividade do trabalho da Divisão de Censura de Diversões Públicas.” (RIDENTI: 2014, p. 333)

Dada a magnitude e a diversidade das obras censuradas, cremos justificada uma metodologia que seja multi-disciplinar, atenta à leitura das conjunturas sócio-históricas, e que não deixe nunca de lado uma análise da própria experiência estética envolvida no contato do cidadão com as canções em questão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUER, Caroline Silveira. Como Será o Passado? História, Historiadores e a Comissão Nacional da Verdade. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2017.

COELHO, Frederico. Eu, Brasileiro, Confesso Minha Culpa e Meu Pecado – Cultura Marginal no Brasil das Décadas de 1960 e 1970. Civilização Brasileira & Paz e Terra, 2010, p. 116.

COELHO, Teixeira. O Que é Indústria Cultural. 11ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 14.

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE – Relatório da CNV, 2014, v. 1.

RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro – Artistas da Revolução, do CPC à Era da TV. Ed. Unesp, 2014.

SILVA, Alberto Moby Ribeiro. Sinal Fechado: Música Popular Brasileira Sob Censura (1934-45 / 1969-78). Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.

SOUZA, Tárik. Tem Mais Samba – Das Raízes à Eletrônica. Ed. 34, 2010.

EQUIPE

Este grupo de pesquisa está sediado no câmpus Anápolis do IFG e é integrado por:

  • Professor Responsável: Eduardo Carli de Moraes (Filosofia / Prof. Efetivo)

Alunos-Pesquisadores da Graduação / Licenciatura em Ciências Sociais:

  • Glauciene Marcella Batista Reis
  • Lucas Vilaça Gonçalves
  • Rafael Martins de Oliveira
  • Thailane Santos Moura

Alunos-pesquisadores do Ensino Médio Técnico-Integrado:

  • Claudsom
  • Gabriel Victor de Castro Chaveiro
  • Kathlyn Jullie Silva Mata
  • Júlia Rodovalho

PRÓXIMO EVENTO: CINE-DEBATE “CANÇÕES DO EXÍLIO” – 15 DE JUNHO DE 2018, 17h30

Canções do Exílio: A Labareda que Lambeu Tudo

#Mixtape: POLIFONIA DE PINDORAMA – Março de 2016 – 14 canções brasileiras: Emicida, Liniker, Buhr, Conká, Chá de Boldo, Passo Torto, Itamar Assumpção etc.

Como lava de um vulcão, entra agora em erupção a nova edição da coletânea Polifonia de Pindorama. Mensalmente, A Casa de Vidro seleciona e põe na roda uma caprichada seleção com 1 hora com um bocadinho do que de melhor tem rolado na música brasileira. Baixe já a 3ª edição de 2016 com alguns dos artistas que tem encantado nossos tímpanos. Aumente o volume e aprecie sem moderação!

O download é gratuito e você pode compartilhar esta mixtape pelo Facebook, pelo Twitter ou pelo Tumblr.

POLIFONIA DE PINDORAMA – MARÇO DE 2016

  1. Emicida – Samba do fim do mundo (Feat. Juçara Marçal e Fabiana Cozza) (3:39)
  2. Tássia Reis – Meu Rap Jazz (3:06)
  3. Abayomy Afrobeat Orquestra e Otto – Mundo Sem Memoria (4:16)
  4. Karol Conká – Bate a Poeira (3:33)
  5. Liniker – Zero (6:04)
  6. Zulumbi feat Elo Da Corrente – Sob o signo do insano (2:12)
  7. Alice Caymmi – Arco da aliança (3:19)
  8. Passo Torto – Helena (2:31)
  9. Trupe Chá de Boldo – Na Garrafa (3:25)
  10. Karina Buhr – Selvática (5:44)
  11. Itamar Assumpção – Porque não pensei nisso antes (5:18)
  12. Riachão, Batatinha e Panela – Inventor Do Trabalho (3:07)
  13. Metá Metá feat Tony Allen – Alakoro (4:24)
  14. El Efecto – O encontro de Lampião com Eike Batista (8:23)

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Acesse as edições anteriores: JaneiroFevereiro.

VIDA DE ARTISTA – de Itamar Assumpção (De “Pretobras I”, 1998)

VIDA DE ARTISTA
de Itamar Assumpção

(De Pretobras I, 1998)

Na vida sou passageiro
Eu sou também motorista
Fui trocador, motorneiro
Antes de ascensorista
Tenho dom pra costureiro
Para datiloscopista
Com queda pra macumbeiro
Talento pra adventista
Agora sou mensageiro
Além de pára-quedista
Às vezes mezzo engenheiro
Mezzo psicanalista
Trejeito de batuqueiro
A veia de repentista
Já fui peão boiadeiro
Fui até tropicalista
Outrora fui bom goleiro
Hoje sou equilibrista
De dia sou cozinheiro
À noite sou massagista
Sou galo no meu terreiro
Nos outros abaixo a crista
Me calo feito mineiro
No mais, vida de artista.

POLIFONIA DE PINDORAMA – FEVEREIRO/2016: Coletânea de Música Brasileira rumo ao Bloco do Evoé!

Janis in Rio

O dia em que Janis Joplin (1943-1970) caiu no samba: desfile de carnaval do Rio, fevereiro de 1970. Janis foi ciceroneada na Cidade Maravilhosa pelo fotógrafo Ricky Ferreira e pelo cantor Serguei. Fez um obscuro show num inferninho de Copacabana, foi expulsa de um hotel e quase foi presa na praia por fazer topless. Em outubro daquele ano, Janis Joplin morreu aos 27 anos.

 

Na coletânea de música brasileira deste mês (ouça a de Janeiro!), propiciamos mais uma travessia sonora por algumas pérolas de nossa música popular. Tem excelentes cantoras homenageando grandes compositores (Cássia Eller canta Chico Buarque, Clara Nunes manda um Paulinho da Viola). Tem Jackson do Pandeiro hibridizando os gêneros musicais e tirando onda com o Tio Sam. Tem Dorival Caymmi, sincopado e dengoso, ritmando os encantos da nega baiana. Tem João Nogueira profetizando a vitória das forças da natureza sobre as ruínas da civilização. Relembro também uma canção épica de Paulo Vanzolini, cuja narrativa poética tem um certo sabor de Cabral de Melo Neto em Morte e Vida Severina, e um chamado à luta de Gonzaguinha (“Eu acredito é na rapaziada que segue em frente e segura o rojão / Eu ponho fé é na fé da moçada que não foge da fera, enfrenta o leão / Eu vou à luta com essa juventude que não corre da raia a troco de nada / Eu vou no bloco dessa mocidade que não tá na saudade e constrói a manhã desejada”).

Dentre os contemporâneos, compartilho o groove denso e ousado do Aláfia, que realizou em “Preto Cismado” um manifesto anti-racista que está entre as melhores músicas lançadas em 2015 e que afirma em seu memorável refrão: “Não posso acreditar num deus que feche com a segregação!” Dentre as instrumentais, destaco duas composições de Pixinguinha, em lépidas performances de Altamiro Carrilho & Carlos Poyares, e duas incursões de Quincy Jones num mélange de bossa nova com jazz ao estilo big band. Tem ainda o Geraldo Babão contando vantagem sobre sua viola (que é de madeira-de-lei, num é qualquer qualidade de pau!), além de uma panorâmica do duelo entre Wilson Batista e Noel Rosa, que trocaram rajadas de sambas como se estivessem numa briga de faroeste (destaco quatro destas canções, na interpretação de Jorge Veiga e Roberto Paiva, intercaladas como rajadas de balas). Subam o volume e apreciem sem moderação!

Carli, 08/02/16

OUÇA JÁ ou FAÇA O DOWNLOAD

Eis o cardápio:

01) Jackson do Pandeiro, “Chiclete com Banana”
02) Dorival Caymmi, “O Dengo Que A Nega Tem”
03) João Nogueira, “As Forças da Natureza”
04) Altamiro Carrilho & Carlos Poyares, “Recordações” e “A Vida é um Buraco” (de Pixinguinha)
05) Cássia Eller canta Chico Buarque, “Partido Alto” (Acústico MTV)
06) Aláfia, “Preto Cismado”
07) Gonzaguinha, “E Vamos à Luta”
08) Paulo Vanzolini, “Capoeira do Arnaldo”
09) Quincy Jones e a Bossa Nova, “Desafinado” e “Samba de uma Nota Só”
10) Clara Nunes canta Paulinho da Viola, “Coração Leviano”
11) Geraldo Babão, “Viola de Massaranduba”
12) Duelo Noel Rosa vs Wilson Batista:

  • Jorge Veiga canta “Frankenstein” (W. Batista)
  • Roberto Paiva canta “Vitória” (N. Rosa)
  • Jorge Veiga canta “Mocinho da Vila” (W. Batista)
  • Roberto Paiva canta “Palpite Infeliz” (N. Rosa)

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P.S. – Nesta terça-feira de carnaval, 09/02, a partir das 17 horas, estarei discotecando estas e outras canções – só as brazuquices-brasa! – em um dos espaços culturais mais bacanas de Goiânia, a Evoé Café Com Livros (Rua 91, Setor Sul). O show ficará a cargo do quarteto Diabo à Quatro: excelentes instrumentistas que vão apresentar o melhor do choro e do samba em primorosas versões instrumentais. Bóra lá?

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Bloco do Evoé [Página do Evento]

PÓ DE SER: “A DANÇA DA CANÇÃO INCERTA” – Conheça um dos álbuns de estréia mais incríveis da música brasileira em 2015

A DANÇA DA CANÇÃO INCERTA

Comprar o CD na Livraria A Casa de Vidro em Estante Virtual:
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por Eduardo Carli de Moraes

“A vida é mais bela quando a surpresa a espreita.”
PÓ DE SER

Do pó viemos e ao pó retornaremos, não há escapatória. Porém, nesse meio tempo, estes seres incandescentes que provisoriamente somos têm na ARTE uma das aliadas mais preciosas para que o viver, ainda que efêmero e repleto de incertezas, valha a pena. Neste ano de 2015, repleto de sensacionais lançamentos na música brasileira (Elza Soares, Bixiga 70, Cidadão Instigado, Lenine, Karina Buhr, Emicida, Siba, Mari Aydar, Rodrigo Campos, Boogarins, BNegão, Los Porongas, dentre outros) – uma bandaça de Goiânia, o Pó De Ser, lançou um belíssimo disco de estréia, A Dança da Canção Incerta (2015, 54 minutos, baixe já). Abrir-se ao influxo destas canções tão cheias de vida, deixar-se penetras por estas músicas que parecem ter sangue quente correndo em suas veias de som, leva a dar razão a Nietzsche: de fato, “sem música a vida seria um erro!” 

Pó de Ser

Gravado no Rocklab Produções Fonográficas e produzido pelo “Mestre” Gustavo Vazquez (responsável por premiados trabalhos com Macaco Bong, Black Drawing Chalks, Violins, Overfuzz, dentre outros), o disco da Pó de Ser é uma viagem estética exuberante, que expande os horizontes da Canção ao explorar suas múltiplas potencialidades sonoras e poéticas. Segundo a libertária concepção do Pó De Ser, a canção tem vocação pra ser de tudo: reflexão filosófica, confissão existencial, crítica social, crônica do cotidiano, retrato da metrópole, balada erótica, lisergia surreal, exercício de ufologia… Em suma: “tudo pode ser”.

Por ser uma banda sem ortodoxia e que não se agarra a nenhum gênero específico, a Pó de Ser escapa de ser capturada por qualquer rótulo. Tanto que a tarefa de encontrar uma etiqueta se torna uma divertida pilhéria: “Pó de Ser é vintage futurista, vanguarda ‘dodecafona’, pop experimental, cultbrega, regional intergaláctico”, arrisca Kleuber Garcez.

As letras de Diego de Moraes e Kleuber Garcez – dupla de parceiros responsáveis pelas composições – são repletas de referências e citações, mas nem por isso deixam de soar originais e autênticas, mesmo quando a tática posta em prática é a do pot-pourri. Em “Cuidado”, por exemplo, eles amarram as idéias através de menções a clássicos da música popular brasileira: “Iracema”, de Adoniran Barbosa; “Chão de Estrelas”, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa (já gravada pelos Mutantes); “Na Terra Como No Céu”, de Geraldo Vandré; e “Nego Dito”, de Itamar Assumpção (uma figura idolatrada pelos integrantes da banda e que mereceu ainda uma releitura de sua canção “Leonor”).

Uma das virtudes mais evidentes da banda está em seu esmero poético e em seu lirismo multifacetado. Da utopia antropofágica de Oswald de Andrade às renovações estéticas do Tropicalismo, dos poetas marginais da geração mimeógrafo (Torquato Neto, Waly Salomão, Capinan, Leminski, Nicolas Behr etc.) aos compositores-cantores “malditos” (Sérgio Sampaio, Jards Macalé, Itamar Assumpção…), tudo entra no liquidificador linguístico da banda, onde as palavras pegam fogo e ganham inusitados sentidos. “Afina a viola e vai tocar o seu destino!”, cantam logo nos primeiros minutos do disco, na ousada “Pode Apostar”, que conta com participação guitarrística de Fernando Catatau, do Cidadão Instigado, que toca também na faixa de encerramento, “Pó de Ser”.

Fernando Catatau, do Cidadão Instigado, é um dos convidados especiais do Pó de Ser: o músico toca guitarra na primeira e na última faixa de "A Dança da Canção Incerta"

Fernando Catatau, do Cidadão Instigado, é um dos convidados especiais do Pó de Ser: o músico toca guitarra na primeira e na última faixa de “A Dança da Canção Incerta”

A brasilidade é explícita pelo disco afora – que por vezes remete também à obra de Raul Seixas, Luiz Tatit, Odair José ou André Abujamra – mas isso não impede o Pó de Ser de dialogar também com a (contra)cultura gringa, em especial hippies, beatniks e gurus da psicodelia. Em “Venha Ver O Sol”, por exemplo, eles saúdam os Beatles com uma canção que parece misturar a vibe de “Here Comes The Sun” (de George HarrisonAbbey Road) e “Lucy In The Sky With Diamonds” (de Lennon e McCartney @ Sgt. Peppers), mas que acolhe também menções ao clássico de Bob Dylan (“Like a Rolling Stone”), ao James Dean de Juventude Transviada, ao romance de Kerouac On The Road, e por aí vai.

O disco estabelece uma densa teia sônica e poética que enreda o ouvinte, carregando-o numa montanha-russa que mais parece uma viagem de LSD por uma Goiânia Cósmica e Alucinógena. Somando forças a Diego e Kleuber estão as guitarras certeiras de Fernando Cipó, os batuques groovados de Danilo Rosolem (com participação de Fred Valle), além de belos teclados e flautas por Hermes Soares: com intrincado entrosamento, os músicos constroem um lindo sonho delirante, um fluxo musical delicioso, que recompensa repetidas audições. Essa é uma daquelas raras “bolachas” já que vai revelando novos encantos a cada nova “orelhada”.

Um certo tom satírico e humorístico marca presença em canções como “Refrão dos Diabos” – comentário irônico sobre os refrões que, por piores que sejam, grudam na memória feito chiclete – e “Captou?” – um lúdico e ca(p)tivante experimento que lembra o trabalho magistral de Diego & o Sindicato, Parte de Nós. Várias das músicas do Pó de Ser tem uma irreverência e uma jovialidade que têm tudo para agradar aos que curtem “etc.

Já em “Fantasia ao Pé do Ouvido” é uma balada erótica que enraíza o amor na corporalidade (“gosto do seu gosto e do seu cheiro, gosto do seu gozo por inteiro”) e traz o Pó de Ser mostrando que também sabe ser sexy, com a ajuda dos vocais de Bebel Roriz. Outra cantora goiana formidável, Cristiane Perné, faz dueto com Diego na faixa-título, “A Dança da Canção Incerta”, um verdadeiro tratado existencialista em formato canção.

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“O risco é a conta que eu pago por ser vivo”, cantam eles nesta canção que parece ecoar Guimarães Rosa e seu “viver é perigoso”. Assumir os riscos todos que a vida nos lança ao caminho, e abrir-se às surpresas que estão à nossa espreita, é a parte essencial da filosofia de vida de uma banda que, a golpes de batuques e melodias, demole qualquer tendência inércia e conformismo. Por isso é tão inspirador deixar-se influenciar por esta atitude exploratória e nômade destes humanos que encaram, tendo instrumentos e vozes como armas, todos os riscos – da bala perdida ao rastro de cobra no mato.

Já “Bicho Urbano” merece decerto o troféu de uma das obras-primas musicais já escritas sobre Goiânia. O eu-lírico assume uma postura ambivalente diante de uma cidade que percebe como “bela e medonha”, como mescla de rural e de urbano, como coexistência de cosmopolitismo e provincianismo. Longe do tom celebratório, o eu-lírico canta a partir de uma posição marginal (“ninguém me socorre nessa capital / que me deixa à margem… marginal!”), descrevendo-se como “mais um louco na multidão” que inclui putas, camelôs, hippies, fiéis; é um “mosaico de nós a se desatar”.

Goiânia atravessa um prisma poético e reaparece mais exuberante e bizarra do que nunca. Com “Bicho Urbano”, a Pó de Ser alçou-se ao nível do comentário sociológico de alto nível, proeza também realizada pelo Carne Doce em “Sertão Urbano”. Na canção do Pó de Ser, alguns dos locais mais célebres da capital de Goiás são evocados por alguém que “rumina a cidade em seu pensamento”, numa atitude de “antropofagia” com o Eixo Anhanguera, o Cererê, a Praça Tamandaré… Soma-se a isso a peraltice da menção aos onipresentes propagandistas  ambulantes de pamonha (“quentinha, caseira, é o puro creme do milho verde!”), tudo misturado, sem pudor, a referências à contaminação radioativa com Césio 137, que tornou a cidade uma espécie de “Chernobyl Brasileira” em 1987.

Encarte 1

Sem pudor de botar viola no rock and roll, de tecer elos entre brasilidade e estrangeirismo, de aliar o trágico e o cômico, o Pó De Ser consegue a proeza de ser, a um só tempo, altamente experimental e saborosamente palatável. Há todo um “microcosmo” escondido dentro dessa minigaláxia chamada “A Dança Da Canção Incerta”, uma obra-de-arte que chega com força para fazer parte do “cânone” da MPB goiana, merecendo até ser caracterizado por aquele delicioso paradoxo: o do “clássico instantâneo”. Figuras como Juraildes da Cruz, Umbando, Cristiane Perné, Carlos Brandão, Gustavo Veiga Jardim, dentre outros artistas seminais do cenário, devem estar felizes, saudando a aterrissagem entre nós desta preciosa música, que vem para deixar nossas vidas mais belas e poéticas, mais surpreendentes e pulsantes, mais delirantes e diferentes…

Como escreveu Cristiano Bastos, o disco é “uma poção sonora cuja alquimia vai além da música e derrama-se em fartas doses de cinema, literatura, poesia, cultura popular e tantas outras linguagens artísticas presentes na louca infusão sonora.” Eis uma banda que, mesmo tropeçando nos astros, siderada por estar de olhos postos nos OVNIs, não perde nunca a harmonia, o ritmo, o groove, o lirismo, o ímpeto aventureiro e exploratório. Mergulhe de cabeça na dança da canção incerta sem medo de overdose: esta música é, para lembrar Manoel de Barros, um baita “esticador de horizontes”. Corra o risco! 

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OUÇA JÁ!

PÓ DE SER
A Dança Da Canção Incerta (2015)

01. PODE APOSTAR
02. CUIDADO
03. A DANÇA DA CANÇÃO INCERTA
04. BICHO URBANO
05. FANTASIA AO PÉ DO OUVIDO
06. VOU NÃO VOU
07. REFRÃO DOS DIABOS
08. LEONOR
09. PRISMA
10. CAPTOU
11. VENHA VER O SOL
12. PÓ DE SER

Comprar o CD na Livraria A Casa de Vidro em Estante Virtual:
https://www.estantevirtual.com.br/mod_perl/info.cgi?livro=1139842315

Faça o download do álbum completo:
http://migre.me/siavg

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Ouça o primeiro EP da banda:
http://soundcloud.com/podeser

Integram a banda Pó de Ser: Diego De Moraes, Kleuber Amora GarcezFernando Assis, Hermes Soares Dos Santos, Danilo RosolemO álbum inclui ainda participações especiais de Fernando Catatau (do Cidadão Instigado), Cristiane Perné, Bebel Roriz, Frederico Valle, Leo Pereira (Terrorista da Palavra), dentre outros convidados. A arte da capa é de arte de Natália MastrelaNo vídeo abaixo, confira trechos da faixa-título e da canção “Bicho Urbano”, além de cenas das gravações do álbum no Rocklab de Pirenópolis (GO). O vídeo foi bolado para a divulgação da première do álbum, que rolou na Evoé Café Com Livros, em Goiânia.

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Confira também, na sequência, “De Repente” e “Ypsilone”, ambas canções do EP de estréia do Pó De Ser, Tudo Torto Em Linha Reta:

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Ouça também os álbuns de Diego de Moraes, Parte de Nós e Diego Mascate. Confira também seus clipes para “Dia Bonito”, “O Show Vai Continuar” e “Todo Dia”.


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P.S. A Casa de Vidro também tem a alegria de anunciar que o Diego de Moraes é o mais novo colunista do site e escreverá por aqui no ano de 2016. Aguardem!!!

SÓ BOTO BE-BOP NO MEU SAMBA… – “Jackson do Pandeiro: A Brasa do Norte” (Um Clipe de Ivan Cardoso, 1977 / 2012)

“A BRASA DO NORTE”
Estrelando JACKSON DO PANDEIRO
Direção IVAN CARDOSO

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"Baile Popular", Di Cavalcanti

“Baile Popular”, Di Cavalcanti

CHICLETE COM BANANA

“Eu só boto bebop no meu samba
Quando Tio Sam tocar um tamborim
Quando ele pegar
No pandeiro e no zabumba.
Quando ele aprender
Que o samba não é rumba.
Aí eu vou misturar
Miami com Copacabana.
Chiclete eu misturo com banana,
E o meu samba vai ficar assim:

Tururururururi bop-bebop-bebop
Tururururururi bop-bebop-bebop
Tururururururi bop-bebop-bebop
Eu quero ver a confusão

Tururururururi bop-bebop-bebop
Tururururururi bop-bebop-bebop
Tururururururi bop-bebop-bebop
Olha aí o samba-rock, meu irmão!

É, mas em compensação,
Eu quero ver um boogie-woogie
De pandeiro e violão.
Eu quero ver o Tio Sam
De frigideira
Numa batucada brasileira.”

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Ouça também:
Lenine, “Jack Soul Brasileiro”

Adoniran Barbosa e Elis Regina – Ao vivo – 1978 (Vídeo Completo – 10 min)

Encontro de Adoniran Barbosa e Elis Regina. Músicas: “Iracema”, “Um samba no Bexiga” e “Saudosa Maloca”. Bar da Carmela. Bairro: Bexiga. Cidade: São Paulo. Ano: 1978.

Relembre também:

CLARA NUNES (1942-1983): Ouça 8 álbuns completos e assista um documentário sobre a diva do samba brazuca

Clara Nunes

CLARA NUNES (1942-1983)

“Um lamento triste sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro e de lá cantou.

Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
no Quilombo dos Palmares,
Onde se refugiou

Fora a luta dos Inconfidentes
pela quebra das correntes.
Nada adiantou.

E de guerra em paz, de paz em guerra
todo o povo desta terra quando pode cantar
Canta de dor…”

“Canto Das Três Raças”
Composição de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte

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OUÇA OS ÁLBUNS COMPLETOS:








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ASSISTA O DOCUMENTÁRIO COMPLETO [50 MIN]:

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Leia também:
Revista Rolling Stone Brasil elege Clara Nunes na 9ª posição entre as 100 Maiores Vozes da Música Brasileira (texto por Paulinho da Viola)

BLOCO DO EVOÉ – VOLUME 03: Uma compilação de música brasileira [18 canções de Tim Maia, Chico Buarque, Raul Seixas, Sergio Sampaio, Tom Zé, Luiz Tatit etc.]

BLOCO DO EVOÉ – VOLUME 03
Uma compilação de música brasileira

AUMENTE O VOLUME E BOA VIAGEM!

01. TIM MAIA, Não Quero Dinheiro (Só Quero Amar)
02. CHICO BUARQUE, Apesar de Você
03. SERGIO SAMPAIO, Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua
04. RAUL SEIXAS, Eu Vou Botar Pra Ferver
05. RITA LEE, Ando Jururu
06. LUIZ TATIT, Baião de 4 Toques
07. TOM ZÉ,
08. GILBERTO GIL CANTA TORQUATO NETO, Geléia Geral
09. MARVIN GAYE, Sexual Healing (Brazilian Remix)
10. LENINE, O Homem dos Olhos de Raio X
11. LULA CÔRTES, Lua Viva
12. RAUL SEIXAS, Cidade de Cabeça Pra Baixo
13. GILBERTO GIL, Cérebro Eletrônico
14.  MULHERES NEGRAS, Xarope
15. CÁSSIA ELLER, Blues da Piedade
16. SERGIO SAMPAIO, Que Loucura
17. TOM ZÉ, Menina Amanhã De Manhã
18. CHICO BUARQUE, A Banda

OUÇA TAMBÉM: BLOCO DO EVOÉ VOLUME 01 e VOLUME 02