A CORAGEM DA VERDADE: A relevância da arte-de-viver de Diógenes, o “Cão”, segundo Michel Foucault, Emil Cioran e Luis Navia

Jean-Léon_Gérôme_-_Diogenes_-_Walters_37131

Diógenes de Sínope (413 – 323 a.C.), Pintura de Jean-Léon Gérôme

Se viver é uma arte, Diógenes certamente merece ser reconhecido como um dos mais radicais experimentadores neste campo, o da estética da existência.

 

O lendário filósofo que morava em um tonel e confrontava todos os valores vigentes com atitudes excêntricas e bizarras tornou-se uma das figuras mais memoráveis da cultura grega no período posterior à execução de Sócrates. É o tataravô de todos os hippies, de todos os punks, de todos os anarquistas, de toda sorte de comportamentos e doutrinas contraculturais, que vão na contracorrente de seu tempo, expandindo os limites do que é possível realizar com nossas liberdades.

Conta-se que “a ideia de um tonel como residência ocorreu-lhe depois de observar caracóis carregando suas casas – as conchas – nas costas”, como lembra Navia em seu livro Diógenes – O Cínico (Ed. Odysseus, p. 49). Célebre por seu despojamento material que o tornava parecido com um mendigo seminu, que mendigava seu sustento, Diógenes tornou-se famigerado por praticar tudo às claras, sem pudor algum, inclusive aquilo que o comum das gentes já faz nos recessos escondidos de um banheiro ou quarto.

Ao aliviar-se em público dos seus dejetos corporais, foi comparado com os cães, que não tem pudicícia alguma em mijar e cagar em público; ao invés de sentir-se ofendido com a designação de cão, assumiu o termo como apelido. Teria se apresentado ao próprio Alexandre o Grande como “Diógenes, o cão”, deixando sempre claro que não tinha nenhuma subserviência diante dos poderosos deste mundo, nem tinha a demência da ganância desenfreada por riqueza ou poder. Só queria que os imperadores deste mundo deixassem-no em paz, banhando-se ao sol do universo do qual sentia-se parte e cidadão. O primeiro dos cosmopolitas, costumava perambular pela pólis com sua lanterna, em busca de um ser humano de verdade – mas sem sucesso.

Autores como Foucault, Cioran e Luis E. Navia esforçaram-se por reavaliar sua relevância, às vezes menosprezada, inserindo-o em lugar de destaque entre aqueles que pensaram e praticaram uma ética com um radicalismo e uma coerência que puderam fazer de sua vida uma autêntica obra-de-arte – e das mais polêmicas. Representante máximo da escola filosófica cínica, Diógenes foi discípulo de Antístenes de Atenas e seria o mestre de Crates de Tebas, tríade que constitui o cerne mais importante do cinismo clássico, ainda muito pouco estudado em contraste com as montanhas de atenção devotadas ao platonismo, ao estoicismo e ao epicurismo.

Seria um equívoco querer reduzir Diógenes a um homem que buscou reduzir tudo ao elementar, um primitivista que teria assumido o compromisso de retroceder até a animalidade e à preocupação única com a subsistência. Retrato falso, que ignora o quanto Diógenes buscou agir movido por intentos didáticos, apesar da bizarria de seus métodos de ensino. Com ele, a sabedoria (sophia) ganha novos contornos, aparece transfigurada em algo inovador e desafiador. Para Diógenes, parece-me claro, existir é mais que sobreviver: é dar estilo e valor a este fluxo que nos arrasta do útero ao túmulo, é fabricar um sentido imanente para esta teia vital em que estamos visceralmente implicados.

Ao transformar a própria vida em obra-de-arte, aberta às discussões e mesmo aos deboches, o que ele fez foi abolir o abismo entre teoria e práxis, unir em indissolúvel aliança o pensar e o fazer, propondo um ethos onde a liberdade de expressão mais extrema (a parrhesía que tanto interessou a Foucault) e as noções de soberania, autonomia, autarquia e cosmopolitismo ganham o primeiro plano. Vejamos com mais vagar e detalhe o que Diógenes propôs com sua existência-obra, hoje transformada em lenda, e que a tantos de nós pode servir de espelho: mirem-se no exemplo do mendigo-rei e reflitam: o que ele nos reflete sobre nós mesmos? Do que nos acusa? Que chamado nos faz? Que metamorfoses nos propõe?

“Diógenes e sua Lanterna”, pintura de Jacob Jordaens,
1593 – 1678

“O cinismo clássico, cujo melhor representante é Diógenes, é um fascinante fenômeno filosófico e cultural dos tempos da Grécia e de Roma. Por mais de 800 anos, os filósofos que se autodenominavam cínicos (em sua língua, literalmente “cães” [kýnikos]), pregaram e praticaram um conjunto de convicções e um estilo de vida que desafiou, muitas vezes de modo estarrecedor, as normas e convenções de sua sociedade. Do ponto de vista deles, o mundo dos homens estava em um estado de bancarrota moral e vacuidade intelectual que requeria uma desfiguração sistemática de seus valores.

(…) Alguns têm visto nele, mais do que em qualquer outro filósofo do mundo ocidental, o epítome de uma longa lista de dons e traços intelectuais e de personalidade dignos de louvor: um comprometimento absoluto com a honestidade, uma notável independência de julgamento, uma inquebrantável decisão de viver uma vida simples e despojada, uma devoção afincada à autossuficiência, um vínculo sem paralelos com a liberdade de expressão, um desdém saudável pela estupidez e pelo obscurantismo humanos, um nível incomum de lucidez intelectual e, acima de tudo, uma tremenda coragem de viver segundo suas convicções. Desse ponto de vista, Diógenes emerge como um gigante na história da humanidade em geral… ” (NAVIA: 2009, p. 10-18).

A filosofia tem de suas figuras heróicas e lendárias, cujas vidas reais hoje estão envoltas pela névoa mistificante dos discursos tecidos pró contra eles. Cultuado e defenestrado de maneira igualmente exacerbada, Diógenes de Sínope tornou-se uma dessas emblemáticas vidas que parecem propor um perene desafio ao pensamento e à ação. Lucidez, coragem e liberdade:  eis os valores que ela pede que se exerçam com a energia que Héracles devotou a seus 12 Trabalhos.

Depois de Diógenes, a filosofia possui sempre um cão vigilante que rosna e late quando, tirando os pés do chão, alienando-se do concreto, desvinculando-se do ontológico, dando asas à fantasia para os vôos metafísicos e religiosos, perdem-se os pensadores nas nuvens confusas e falaciosas de suas próprias abstrações.

Foi o que Foucault viu tão bem, dedicando tanta atenção ao estudo do cinismo clássico em seu último curso no Collège de France, no ano de sua morte (1984), publicado como A Coragem da Verdade (Editora Martins Fontes):

“Desde a origem da filosofia, o Ocidente sempre admitiu que a filosofia não é dissociável de uma existência filosófica, que a prática filosófica deve sempre ser uma espécie de exercício de vida. É nisso que a filosofia se distingue da ciência. Mas ao mesmo tempo que coloca com estardalhaço, em seu princípio, que filosofar não é simplesmente uma forma de discurso, mas também uma modalidade de vida, a filosofia ocidental – essa foi sua história e talvez seu destino – eliminou progressivamente, ou pelo menos negligenciou e manteve sob tutela, o problema da vida filosófica em seu vínculo essencial com a prática do dizer-a-verdade (parrhesía). ” (FOUCAULT, pg. 206)

Se Diógenes é tão essencial para a análise de Foucault sobre as figuras históricas da parrhesía, da coragem de dizer tudo o que acreditamos ser verdade, é pois o filósofo originário de Sínope (atual Turquia) pôs-se em risco e perigo para desempenhar sua missão de veridicção. Se a expressão daquilo que acreditamos ser a verdade demanda do sujeito tanta coragem é porque implica que nos coloquemos como alvos, no espaço público, de críticas, reproches e ofensas – ou algo pior. No limite, aquele que fala demais, em especial se ousa meter o bedelho nas práticas e doutrinas  das autoridades e sumidades públicas, arrisca-se a tornar-se vítima de processos de marginalização, estigmatização ou aniquilação.

A filosofia, quando se torna força crítica e contestatória, cria muita inimizade para seu praticante, pois não faltam forças sociais que não desejam que suas vidas e decisões políticas sejam objeto de diálogo, muito menos de contestação. O língua-solta pode acabar a vida como tagarela decepado, com a cabeça numa bandeja… A língua de Sócrates, demasiado impertinente, que agia como o ferrão de uma abelha irritante e que morde seus concidadãos para despertar o pensamento de sua letargia, acabou sendo calada com a cicuta.

Diógenes, por sua vez, conquista com sua fala franca uma considerável fama, que não pereceu nestes 23 séculos transcorridos desde sua morte, mas esta fama é em vasta medida constituída também pela infâmia. Diógenes foi alvo da peçonha furibunda de vários detratores, como Hegel, que xingava os cínicos de “porcalhões” e coisas piores. Hegel, ao propor em sua História da Filosofia, que não havia sequer razão para desperdiçar tempo com o estudo de Diógenes e dos cínicos, talvez tenha cometido um de seus equívocos mais crassos, devidamente retificado por Foucault, um dos pensadores do século XX que, na companhia de Emil Cioran, fez para re-avaliar a relevância de Diógenes na história da ética e no panorama das artes de existir:

Waterhouse

“O cinismo pode se relacionar à questão das práticas e das artes da existência, pois foi a forma ao mesmo tempo mais rudimentar e mais radical na qual se colocou a questão dessa forma particular de vida que é a vida filosófica… Diógenes se espantava com ver os gramáticos estudar tanto os modos de Ulisses e negligenciar os próprios, ver os músicos afinar tão bem sua lira e esquecer a afinação da própria alma, ver os matemáticos estudar o sol e a lua e esquecer o que têm sob os pés, ver os oradores cheios de zelo pelo bem falar mas nunca preocupados com o bem fazer… Segundo Diógenes Laércio, Diógenes o Cínico criticava as pessoas que desprezam as riquezas mas invejam os ricos, criticava os que oferecem sacrifícios aos deuses para obter saúde mas se entopem de porcarias… Só pode haver verdadeiro cuidado de si se os princípios formulados como princípios verdadeiros foram ao mesmo tempo garantidos e autenticados pela maneira como se vive.” (FOUCAULT, pgs. 208 – 210.)

Faz parte da lenda de Diógenes a sua contestação rebelde às figuras de autoridade, como o imperador Alexandre, e aos signos de poder das classes imperantes. O dinheiro, por exemplo, é aquilo que Diógenes, na maturidade, acaba por rejeitar em bloco, pulando fora de uma vida que tivesse a grana como deus supremo ao qual sacrificamos nosso tempo.

Em Sínope, tendo na sua mocidade participado,  em conluio com o pai, de práticas de adulteração das moedas, provavelmente o filósofo foi expulso da sua terra natal. As informações históricas não nos permitem concluir se Diógenes era um falsificador de dinheiro que visava o enriquecimento próprio, ou se tinha outras intenções, como a sabotagem do mercado financeiro, através de suas ações.

Sabe-se que, partindo para o exílio, refugia-se em Atenas e em Corinto, mas não deixa o seu passado totalmente para trás: o subversor da moeda vigente em Sínope, ainda que agora não esteja mais em um cargo que o permita seguir falsificando moeda, torna-se um super-mendigo que tratará de continuar seu trabalho de subversão. Expulso de Sínope por crimes contra os nómisma, as moedas, Diógenes tratará de seguir em lida transgressora, desta vez atacando um sentido mais amplo da palavra nómisma,  o de “costumes”, “instituições”, “valores aceitos”:

Nómisma indica a moeda física tanto quanto costumes e valores. Diógenes, então, despojou-se do primeiro destes significados e agarrou-se ao último. Concluiu que o oráculo o orientava a transfigurar ou desprestigiar os valores em vista dos quais as pessoas vivem… Fica claro que houve dois estágios em sua vida: um em que foi como a maior parte das pessoas (ganancioso, desajuizado e pleno de confusão) e outro em que, tendo rompido com o mundo dos valores ordinários, não mais precisaria adulterar ou falsificar o dinheiro que, na forma de moedas, circula entre as pessoas.” (NAVIA, p. 42)

Diógenes, sinônimo subversão. O que Nietzsche chamaria de transvaloração de todos os valores têm em Diógenes um de seus precursores mais importantes. Esta forma-de-vida que Diógenes encarna será vista por Foucault como algo que prenuncia certas formas da ascese cristã – “os franciscanos, com seu despojamento, sua errância, sua pobreza, sua mendicidade, são até certo ponto os cínicos da cristandade medieval” (p. 160) -, mas que ao mesmo tempo inspira a “prática revolucionária e as formas assumidas pelos movimentos revolucionários ao longo do século XIX” através da “ideia de um modo de vida que seria a manifestação irruptiva, violenta, escandalosa, de verdade” (p. 161).

Cioran (1911 – 1995) enxergou muito bem a afronta que a existência de Diógenes representou, celebrizando-o nas páginas de Breviário da Decomposição como um “cão celestial” e um “santo da chacota”:

“Diógenes, o homem que enfrentou Alexandre e Platão, que se masturbava em praça pública (“Quem dera que bastasse também esfregar a barriga para não ter mais fome!”), o homem do célebre tonel e da famosa lanterna, e que em sua juventude foi falsificador de moeda (há dignidade mais bela para um cínico?), que experiência teve de seus semelhantes? O homem foi o único tema de sua reflexão e de seu desprezo. Sem sofrer as falsificações de nenhuma moral nem de nenhuma metafísica, dedicou-se a desnudá-lo para nos mostrá-lo mais despojado e mais abominável do que o fizeram as comédias e os apocalipses.

‘Sócrates enlouquecido’, chamava-o Platão. ‘Sócrates sincero’, é assim que devia tê-lo chamado. Sócrates renunciando ao Bem, às fórmulas e à Cidade, transformado, enfim, unicamente em psicólogo. Mas Sócrates – mesmo sublime – ainda é convencional; permanece sendo mestre, modelo edificante. Só Diógenes não propõe nada; o fundo de sua atitude – e a essência do cinismo – está determinado por um horror testicular do ridículo de ser homem…” (CIORAN, Breviário de Decomposição)

Não é incomum que se associe Diógenes a Schopenhauer: ambos seriam os campeões do pessimismo na história da filosofia. Não faltam evidências de Diógenes como alguém que, de fato, beirava a misantropia, aconselhando boa porte de seus concidadãos a praticarem um benefício ao universo: o de enforcarem-se. O mais estranho de tudo é que também não é incomum que se atribua a Diógenes uma atitude de filantropia, um desejo sincero de melhorar o próximo através de uma espécie de bizarra intervenção médica e psicoterapêutica, que utiliza-se de métodos às vezes estranhos e bizarros – como faz o Mestre Zen do budismo heterodoxo-criativo.

Quanto mais me informo sobre Diógenes, parece-me que ele está longe de ser um niilista, alguém que nega a existência de qualquer valor; o que ele deseja é uma transvaloração dos valores que não deixa de evocar a todo momento a figura de Nietzsche e seu Zaratustra. Uma das evidências mais translúcidas de que Diógenes tinha ideais alternativos, que não era meramente um demolidor das moedas e valores vigentes, mas o propositor de outro mundo possível, de uma vida outra, está em seu cosmopolitismo. 

A própria palavra cosmopolita [kosmopolítes], segundo o professor Luis Navia, possivelmente foi criada por Diógenes, que viveu como praticante deste ideal do  cidadão-do-cosmo, desplugado de qualquer tóxico apego ao nacionalismo ou ao etnocentrismo. Segundo Dión Crisóstomo, Diógenes “passava todo o seu tempo em lugares públicos e nos templos de deuses, e a terra inteira foi sua morada – a terra, isto é, a morada e a fonte de alimentos para todos os seres humanos.” (apud Navia, p. 48) É neste sentido que deve-se interpretar sua decisão de morar em um tonel, nunca demasiado escondido do cosmos, sempre capaz de mudar facilmente seu local de residência, abdicando do espaço privado e cheio de segredos onde vicejam as pragas que são os idiotes (indivíduos que fecham-se no âmbito dos interesses privados estreitos).

Diógenes, ao observar os caracóis que carregavam suas casas nas costas, decidiu imitá-los e viver uma vida com bagagem leve, aberta às aventuras da errância e da movência. Segundo São Jerônimo, “seu lar eram os arcos e os pórticos da cidade, e quando se esgueirava para fora de seu tonel, ria-se do que chamava sua casa móvel, porquanto ela se adaptava às estações; quando o tempo estava frio, podia mover a boca do tonel para o sul e, se quente, para o norte e, assim, para qual fosse a direção em que o sol calhasse de estar, o palácio de Diógenes o encararia.” (p. 49)

Esta residência móvel e adaptável consistia em um grande vaso de cerâmica, que podia ter serventia como lugar de abrigo contra as intempéries do clima, e não era assim tão incomum na época: “tonéis grandes eram usados como morada para pessoas refugiadas ou deslocadas durante a Guerra do Peloponeso” (Navia, p. 49). Diógenes pode ser lido nesta chave: a do exilado, do refugiado, que rejeita todo e qualquer nacionalismo, que recusa-se a ser súdito de qualquer Estado. Quando é expulso de Sínope pelo crime de falsificar moeda, conta-se que disse: “Não são vocês que me condenam a ir embora, sou eu que condeno vocês a ficar!”

Diógenes ficou famoso também por dizer àqueles que o acusavam de ser louco que tinha apenas uma cabeça diferente da deles. Esta diferença existencial, este jeito-de-ser alternativo, fica evidente em seu atitudes em que demonstra imenso desdém por aquilo que as pessoas julgam, iludidas por falsos valores e ideologias, serem as necessidades da vida. Este cidadão do mundo

“se concebia como pertencente a qualquer lugar em que calhasse de estar num momento qualquer, um cidadão de cidade nenhuma, nem ateniense, nem coríntio, nem sinopense, nem tampouco grego, um homem sujeito ao engajamento de país nenhum e rejeitando a simples ideia de nacionalidade – apenas um ser humano. Essa independência vinha, em parte, de sua condição de exilado, forçado a viver em solo estrangeiro, e, em parte, de sua convicção de que as coisas que uma pessoa precisa para sobreviver são bem poucas… O apreço de Diógenes por independência e autossuficiência foi muito bem compreendido por Máximo de Tiro, que nos traçou este retrato dele:

‘o homem despiu-se de todas as coisas desnecessárias, partiu em pedaços os grilhões que dantes lhe haviam aprisionado o espírito e se dedicou a uma erradia vida de liberdade, ao modo de um pássaro, sem medo de tiranos ou governantes, nem constrangido por nenhuma lei humana, nem perturbado por política, livre do estorvo de filhos ou de uma esposa, sem disposição para trabalhar os frutos da terra no campo, rejeitando até mesmo o pensamento de servir o exército e desdenhoso das atividades mercantis que absorvem a maior parte das pessoas.’

A descrição inclui as notáveis características associadas a Diógenes: um completo abandono do supérfluo; um inquebrantável compromisso em rebentar os ferros que, sob a forma de convenções e normas, acorrentam e incapacitam os seres humanos; uma inextinguível sede de liberdade; coragem para desprezar governos e governantes; relutância em servir de peão nas guerras forjadas e manipuladas pelas oligarquias…” (NAVIA, p. 51)

Pode-se ler Diógenes como precursor do anarquismo, com atitudes que evocam uma figura como Max Stirner (1806 – 1856), autor de O Único e Sua Propriedade, debatido de maneira acirrada por Marx e Engels em A Ideologia Alemã. Diógenes também é um emblemático filósofo da práxis que, através de várias anedotas, pôs em questão a luta de classes que o Manifesto Comunista (1848) anunciava com trombetas como aquilo que havia movido a História desde tempos imemoriais.

Cioran rememora anedotas contadas por D. Laércio que tornam Diógenes o autêntico protótipo tanto do Bob Cuspe de Angeli quanto da persona punk espevitada de Johnny Rotten nos Sex Pistols:

“Um dia um homem o fez entrar em uma casa ricamente mobiliada e disse-lhe: ‘Principalmente não cuspa no chão’. Diógenes, que tinha vontade de cuspir, jogou-lhe o cuspe na cara, gritando-lhe que era o único lugar sujo que havia encontrado para poder fazê-lo.” (Diógenes Laércio)

Quem, depois de haver sido recebido por um rico, não lamentou não dispor de oceanos de saliva para derramá-los sobre todos os proprietários da terra? E quem não tornou a engolir seu cuspezinho por medo de lançá-lo na cara de um ladrão respeitado e barrigudo? Somos todos ridiculamente prudentes e tímidos…” (CIORAN, Breviário de Decomposição)

Há quem hoje faça de Diógenes, pois, um inovador crítico de um capitalismo avant la lettre. Diógenes teria tecido uma transgressora denúncia do que viria a ser a sociedade de consumo, repleta de vitrines que ostentam mercadorias supérfluas, desnecessárias, mas que escravizam aqueles que se deixam enfeitiçar pelas iscas da propaganda. Uma civilização, ademais, cada vez mais afogada no lodaçal de seus detritos ecocidas, incapaz de libertar-se de uma doutrina tóxica que detona com a phýsis em nome de um nómos demencial. Nestor Luis Cordero, em seu livro A Invenção da Filosofia, escreve:

“Os cínicos representam fielmente o sentido que teve a filosofia desde suas origens: assentar as bases de um modo de vida. Privilegiando uma didática provocativa, o cínico quer despertar a consciência da massa globalizada vítima de necessidades impostas por falsos valores. O credo cínico proclamava: necessário é aquilo que satisfaz a vida do ser humano; o supérfluo, ao contrário, faz dele um escravo que destrói a natureza e que termina por acabar com os recursos naturais.” (CORDERO)

A mais famosa anedota que serve de emblema para o levante de Diógenes contra as mercadorias supérfluas conta que ele teria lançado fora sua única peça de louça, uma pequena cuia para líquidos, ao testemunhar um garoto que, num riacho, bebia água com as próprias mãos em concha.

“A pobreza voluntária de Diógenes e de vários outros cínicos procurava sempre novos despojamentos possíveis. É uma pobreza que sempre se esforça por alcançar novos limites, até atingir o chão do absolutamente indispensável. Temos sobre esse tema uma série de anedotas, a mais célebre é esta: Diógenes, que tinha como única louça uma cuia, uma tigelinha em que tomava água, vê perto de uma fonte um garotinho que junta as mãos em forma de cuia e bebe nelas. Nesse momento Diógenes joga fora sua cuia, dizendo que é uma riqueza inútil.”MICHEL FOUCAULT, 1984 – A Coragem da Verdade, p. 228

despojamento de Diógenes, vinculado ao valores éticos da frugalidade, da temperança, do auto-controle, serve para pensar sobre figuras políticas e eminências éticas como Mahatma Gandhi ou José Pepe Mujica, além de ser relevante para a análise dos protagonistas de obras da literatura e do cinema, como Into the Wild – Na Natureza Selvagem (livro-reportagem de Krakauer filmado por Sean Penn) e Capitão Fantástico (filme estrelado por Viggo Mortensen). Diógenes e seu estilo-de-vida também faz pensar em certos ensinamentos do guru indiano Krishnamurti, famoso por dizer que “não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente.”

Na história da filosofia, Diógenes é normalmente classificado como discípulo de Antístenes de Atenas, que por sua vez foi discípulo de Sócrates. O cinismo, portanto, pode ser considerado como nascido da árvore socrática, constituindo-se como uma espécie de fruto proibido desta, em contraste com o fruto oficial e hegemônico que é o platonismo. Platão acusa Diógenes de ser um “Sócrates ensandecido”, tentando assim denegri-lo, mas Diógenes pode ser visto como alguém que radicaliza o projeto socrático e que contesta as vias errôneas tomadas por Platão com seu idealismo metafísico. 

“Na Academia, depois que Platão chegou a definir o homem como um bípede sem plumas, Diógenes acorreu com uma galinha depenada, bradando: ‘Eis o homem de Platão! Eis o homem de Platão!’ Depois de uma preleção sobre as idéias, disse: ‘A mesa e a taça de vinho eu vejo, Platão, mas tua mesidade e tacidade não vejo de forma alguma!'” (SANTORO, p. 71). Constrangido com a intervenção do antagonista, conta-se que Platão teria melhorado sua definição geral de homem para: um bípede sem plumas, dotado de unhas…

Diógenes rejeita a torre de marfim em que pretende viver o filósofo-acadêmico no sistema de aristocratismo elitista de Platão. Diógenes escolhe o convívio aberto com a diversidade humana e com a alteridade natural, como legítimo cosmopolita e livre-pensador busca fazer de sua existência uma encarnação de seu pensamento e seus valores. Ao invés de esconder-se detrás de um palácio, vive a céu aberto, debaixo de Sol e estrelas, sempre entre-outros. Para os gregos, a pessoa que fechava-se em seu espaço privado e só tinha interesses pessoais era chamada de idiotes, e é esta idiotia que Diógenes rejeita, como Foucault viu tão bem. O cínico faz a escolha de viver diante do olhar dos outros, numa sem-vergonhice extremada, morando simbolicamente numa casa de vidro. Trata-se de uma “vida não dissimulada, fisicamente pública”:

“Diógenes não tem casa, ou seja, o lugar do segredo, do isolamento, da proteção ao olhar dos outros. Ausência até mesmo de roupas: o cínico Diógenes está quase nu. Diógenes escolhe ir com frequência a Corinto, grande cidade em que se podia viver em público e encontrar nas esquinas e nos templos os marinheiros, viajantes, gente vinda de todos os cantos do mundo. É diante desse olhar que Diógenes havia decidido viver… É preciso viver sem ter de se envergonhar do que se faz, viver por conseguinte diante do olhar dos outros e sob a caução da presença destes… A vida cínica pôs pelo ares o código de pudor, é a vida impudica, desavergonhada, libera de todos os princípios convencionais…” – FOUCAULT, 223-224.

Diógenes e Alexandre, por Edwin Henry

Uma das anedotas mais célebres evoca o encontro – ou deveríamos dizer o the clash? – entre Diógenes, o auto-denominado “cão”, e Alexandre, imperador da Macedônia, aluno de Aristóteles, lendário domador do cavalo Bucéfalo. Diógenes, nesta ocasião, demonstrou toda a sua irreverência, impertinência e insubmissão. Primeiro, ao ser acordado a pontapés por Alexandre, retruca que ele pode até ser um conquistador de cidades temível,  mas que no fundo mais se parece com um asno que dá coices:

– A conquista de cidades não pode ser usada contra os reis, mas dar coices como um asno, sim! – disse Diógenes ao ser despertado pelo jovem imperador com um pontapé. (Navia, p. 170)

Conta a lenda, referendada por Plutarco nas Vidas Paralelas (livro Alexandre e César), que este encontro se passou de fato e ocorre em um período histórico em que as cidades-Estado grega perdem sua relativa independência e estão no processo de serem engolfadas pelo império macedônico. Em um belo dia estava Diógenes, dormindo em seu barril, totalmente despreocupado em relação aos seus trajes (ou falta deles), andrajoso e negligente com sua aparência a ponto de ter o visual de um velho mendigo pulguento, quando recebe a visita do super-poderoso imperador Alexandre.

O filho do rei Felipe da Macedônia aparece ricamente paramentado, bem-vestido e bem perfumado, acompanhado pelos soldados de sua guarda pessoal, na pompa e na pose alguém que caminha sobre o mundo na empáfia de quem deseja Império Universal. Segundo Navia,

“sustenta-se frequentemente que a derradeira meta das campanhas de Alexandre incluía a criação de um Estado Universal, que açambarcaria todas as nações e raças sob um governo e minimizaria, se não obliterasse, as distinções de raça ou étnicas. Submeter a espécie humana inteira a um processo de homogeneização (homonóia) era a diretriz que o motivava quando marchou com suas falanges gregas e macedônias através do Egito e da Pérsia até o interior da Índia, e o resultado de sua empresa hercúlea era a emergência do Homem Universal…

Não haveria nem atenienses, nem espartanos, nem egípcios, nem judeus, nem persas, nem indianos, mas apenas seres humanos falando a mesma linguagem e conservando as mesmas leis… Que desígnio colossal e ambicioso! (…) Alexandre em suas campanhas como jovem imperador pilhava cidade após cidade, crucificando e passando no fio da espada tantas miríades de pessoas, firmando desse modo um exemplo para incontáveis governantes, ditadores e políticos de épocas posteriores…” (Navia, p. 181)

O todo-poderosismo de Alexandre, que age na arrogância excessiva de um autêntico genocida, a todo momento rompendo os limites legítimos através de sua hýbris guerreira, não podia de modo algum ser reverenciada ou respeitada por Diógenes. A pompa e a pose de Alexandre é logo reduzido a escombros por Diógenes e seu soberano desdém. Conta-se que, quando o imperador lhe oferece como iscas um cargo político importante, repleto de honras e riquezas, o filósofo-cão teria respondido: tudo o que quero, senhor, é que você saia da frente do meu sol.

Para além da anedota, que é memorável, o encontro destas figuras tão antagônicas mostra Diógenes no papel de outcast outsider, de exilado e refugiado, que utiliza seu cosmopolitismo como arma de resistência contra o avanço do imperialismo alexandrino. Segundo Navia,

“seu cosmopolitismo é, no limite, uma reação negativa ao espetáculo tétrico que via à sua roda: nações em guerra umas com as outras, cidades destruindo cidades, monarquias e oligarquias satisfazendo seus caprichos às expensas das massas, gente comum permitindo-se tapear por ideologias e slogans políticos e nacionalistas, leis criadas e impostas apenas em favor dos poderosos, filósofos e teólogos trançando, a partir de suas cabeças perturbadas e perturbadoras, teias de especulação e fantasia arquitetadas para entorpecer e mistificar as massas, geralmente vivendo de acordo com as demandas de seus desejos ou paixões: em uma palavra, a atmosfera manicomial que em toda parte discernia.” (Navia, p. 187)

Há algo de similar na atitude de Sócrates, talvez: sua agressão constante contra os sofistas estava baseada numa convicção de que eles eram nada menos do que agentes da demagogia, ou seja, vendiam as técnicas retóricas capazes de fazer com que certos discursos falsos ganhassem poder de convencimento na ágora; Sócrates não quis ser, em Atenas, ser uma figura pública como um Sólon ou um Péricles. Porém, não se trata, nem no caso de Sócrates, nem naquele de Diógenes, de uma recusa completa da política, mas sim de modos diferentes de agir politicamente.

Sócrates não quer escrever livros complexos e ser lido apenas pela minoria minúscula de aristocratas letrados; pelo contrário, Sócrates é um filósofo da fala, um tagarela incansável, um questionador oral, agindo na cidade como a também lendária “mosca” que irrita os cidadãos, picando-os com o ferrão de sua crítica e assim acordando-os para a tarefa mais importante da vida: o cuidado de si, compreendido como indissoluvelmente ligado a uma ética ascética, onde a busca da verdade e a prática das virtudes devem ter primazia sobre a ânsia de ir atrás dos objetos de nossos desejos carnais.

Decerto que há como ingrediente essencial, na arte-de-viver como a compreendem Sócrates e Diógenes, a ascese [askesis], compreendida como um exercício-sobre-si que envolve também uma auto-vigilância constante. A ascese de Diógenes, porém, não repete ou imita a socrática. Diógenes abre os caminhos que depois serão seguidos por filósofos estóicos, como Zenon, Epiteto ou Sêneca. Mas também é visto como precursor de um certo modus vivendi comum a revolucionários e livre-pensadores como Henry David Thoreau (1817-1872), autor de Walden A Desobediência Civil. 

Por sua proverbial capacidade de lidar com o infortúnio de um modo criativo e contestatório, exuberante em sua audácia de cão que late verdades inconvenientes aos poderosos e abastados do mundo, “Diógenes tem sido visto como o precursor do espírito revolucionário que mais de 2.000 anos depois teria ocasionado o levante e a revolução do proletariado no mundo ocidental”, como explora Luis Navia:

“Tem sido sugerido que, como um Espártaco da filosofia (o gladiador trácio que conduziu, em 73 a.C., um exército de escravos contra o poderio militar romano), também Diógenes ergueu a bandeira da revolta em favor das multidões escamoteadas e privadas de seus direitos – escravos, estrangeiros, bastardos, homens pobres -, que constituíam a maior parte da população do período clássico. Não com as espadas e os escudos do exército de Espártaco, mas com palavras condenatórias e bufonarias chocantes (“o Exército do Cão”, como chamou Luciano o séquito de Diógenes), lutou contra a injustiça e a crueldade das oligarquias governantes… Desse ponto de vista, a ideologia e as preocupações de Diógenes têm sido interpretadas como a antecipação da ideologia e das preocupações do comunismo moderno. Diógenes, um proscrito desafortunado, viu-se lançado em meio ao tumulto da vida ateniense, em que as restrições e limitações impostas pela lei e pelas convenções eram designadas para manter excêntricos e pobres à margem da sociedade…” (NAVIA, p. 117)

Pensador outsider, Diógenes seria um daqueles merecedor de figurar nas galerias de O Homem Revoltado, de Albert Camus, como alguém que denunciou sem cessar tudo o que julgava errôneo, ilusório e nefasto no comportamento daqueles com quem convivia. Usando às vezes de uma retórica exacerbada, agressiva, repleta de teatralidade, fez de seu próprio corpo o quadro-negro onde visava ensinar, através de comportamentos destinados à condição de emblemas, o que significa viver às claras, com o máximo de clarividência e lucidez, sem um pingo de subserviência aos abastados e poderosos Alexandrasnos deste mundo.

Após termos sido ensinados, por Hannah Arendt e seu conceito de banalidade do mal, por Stanley Milgram e suas pesquisas empíricas sobre a psicologia da obediência à autoridade, por Theodor Adorno e seus alertas para a construção de uma educação após Auschwitz, podemos voltar a Diógenes para re-aprender com ele o valor ético da desobediência lúcida aos ditames e imposições de indignas e criminosas autoridades políticas, civis, religiosas etc.

Este filósofo-cão, ladrando e mordendo contra um mundo que lhe parece um imenso manicômio gerido por idiotas e sacripantas, é essencial a todos os séculos, como sugeriu o iluminista francês D’Alembert: “Todo século precisa da figura de um Diógenes”. A lendária lanterna, com a qual Diógenes ia em busca de um ser humano de verdade sem nunca encontrá-lo, talvez não esteja tão longe assim da Luz com que forjou seus ideais o Iluminismo…

Os estudos atualmente disponíveis sobre Diógenes e sobre o cinismo clássico não nos permitem mais menosprezar a importância destes pensadores para a história da filosofia, em especial no que tange às artes-de-viver de que Foucault tanto falou. Segundo Navia,

Michel Foucault

“o retorno de Foucault a Diógenes manifesta a necessidade dos que por si atingiram um certo grau de lucidez intelectual, que têm fome de honestidade existencial a ponto de ressuscitarem o homem que insistia em chamar as coisas por seu nome correto e que praticou de modo tão inabalável a arte de dizer tudo, a qual recebeu o nome de parrhesía, um conceito fundamental para o cinismo… Afinal de contas, em Diógenes, teoria e prática estavam intimamente imbricadas e eram quase indissociáveis.” (Navia, p. 155)

Em Diógenes, deparamos não com um demônio irracional que em seu niilismo deseja demolir todos os valores e ideais, mas, pelo contrário, estamos diante de alguém que inova no debate sobre a felicidade, a eudaimonia, sugerindo caminhos diferentes daqueles procurados tanto pela turbulenta massa popular quanto pelos abastados tiranos, ambos vítimas da hýbris. Segundo Sêneca, o ethos de despojamento e de pobreza voluntária de Diógenes estava sim vinculado a uma sabedoria efetiva: “É preciso considerar quão menos doloroso é não ter nada a perder e é preciso compreender que o pobre terá menos a sofrer se tiver menos a perder.” (SÊNECA, Da Tranquilidade da Alma, 8)

Atribui-se a Diógenes também a noção de que a liberdade significa “não ter mais nada a perder”, o que tem tudo a ver com aquele hino da Geração Hippie, composto por K. Kristofferson e que ganhou expressão sublime na voz de Janis Joplin, onde ouve-se que “freedom’s just a word for nothing left to lose”. As expressões da sabedoria de Diógenes na música também incluem figuras como Tom Zé (“quem perde o telhado, em troca ganha as estrelas” é um verso que poderia ter sido cantado pelo filósofo de Sínope) e John Lennon (famoso por dizer que “vivemos em um mundo onde as pessoas se escondem para fazer amor, enquanto a guerra e a violência são cometidas explicitamente in broad daylight”).

“We live in a world where we have to hide to make love, while violence is practiced in broad daylight.” ― John Lennon

Brincando de tecer um discurso como se fosse o próprio Diógenes, Luis Navia oferece uma súmula das atitudes e convicções do filósofo que, com sua vida transformada em obra pública e aberta ao debate infindável, teria sido como um cantor que, no coro trágico, entoa a nota mais alta possível, convidando o resto do coro a afinar-se segundo seu modelo:

Estátua em Sínope

“Olhai-me, seus tolos e salafrários, sou um homem que parece ter abandonado a natureza humana e a capacidade de raciocinar e que, a propósito, parece ter-se tornado um cão. O que pensais de mim agora? Vós, que afirmais serdes humanos, sois piores que bichos, já que também vós abandonastes vossa natureza humana, mas de uma maneira muito mais formidável e real do que eu. Vós permitistes que vossas mentes se tornassem atrofiadas e debilitadas pelo fumo produzido em vossa diligência em serdes algo que, por natureza, não sois. Eu vos observei por muitos anos, dia após dia, e tenho sido testemunha de vossas depravações, enganos, idiotices e falta de juízo.  Vi como cada um de vós  cuida em obter vantagens uns dos outros e o quanto estais escravizados por vossos desejos e apetites antinaturais. Vi como vossos monarcas e governos usam e abusam do povo e como isso que chamais de Estado funciona apenas em favor dos ricos e poderosos.

Contemplei o triste espetáculo de vosso acúmulo de bens e vossa cobiça de fama, como se essas coisas vos adicionassem ao menos um mínimo de dignidade humana. A natureza vos deu um par de pés que bem podeis proteger com um par de sandálias, porém, ainda assim, alguns dentre vós pareceis não estar felizes sem seus próprios três mil pares de sapatos. Com efeito, que tristeza! Em vão busquei entre vós um ser humano, um ser humano de verdade, mas encontrei apenas patifes e salafrários… Por tudo isso, não mais vos falo, lato.

Talvez, pensei, chocando-vos com minha sem-vergonhice, enxovalhando de lama o capacho dos opulentos e pretensiosos, convertendo-me a mim mesmo em um clown intolerável que se autodenomina cão e está sempre disposto a tudo dizer, possais vós, enfim, verdes em que vos tornastes, a saber, lamentáveis negações do que a natureza vos destinara a ser. Por isso, também, vive em meio a vós como uma refutação ambulante de praticamente tudo quanto sois… Agindo como o líder de um coro, entoei a nota tão alta quanto possível, esperando que, eventualmente, alguns dentre vós pudesse atingir a nota correta, já que tenho me agarrado à convicção de que não sois nenhuma matéria assim tão estúpida e opaca…” (Navia, p. 170 – 171)

Se Foucault fascina-se tanto com Diógenes, é pois ele encarna à perfeição o que significa a parrhésia, a coragem da verdade. O filósofo, assim, emerge como alguém cujo estilo-de-vida manifesta sua convicção de que, no âmbito das artes-de-viver, há valor e mérito, há virtude e excelência, há potência e felicidade, na atitude daquele que busca a expressão de tudo “sem ambiguidades, sem eufemismos, sem significados ocultos, sem nuances de linguagem enganadoras e, sobretudo, sem a intenção de velar linguisticamente o jeito de as coisas serem”. A própria palavra parrhésia é composta por pas, que significa tudo, rhêsis, que significa fala ou expressão. “Como afirmou certa feita um cínico, pela parrhésia vomitamos a verdade…” (Navia, p. 209)

É bastante significativo que Foucault, nos derradeiros momentos de sua existência, já no processo de ser vencido pelo vírus HIV, tenha se devotado tanto a Diógenes. Como posfácio ao livro A Coragem da Verdade, Frédéric Gros, professor de filosofia política na universidade de Paris, escreveu que, para Foucault, o fascínio de Diógenes estava no escândalo de uma verdadeira vida, de uma vida outra, “em posição de ruptura com todas as formas habituais de existência”, uma “vida inquietante, uma vida outra, imediatamente rejeitada, marginalizada”:

“A ascese pela qual o cínico força sua vida à exposição permanente, ao despojamento radical, à animalidade selvagem e à soberania ilimitada não tem vocação a simplesmente garantir uma tranquilidade interior que constitui um fim em si, ao mesmo tempo que permanece edificante. O cínico se esforça para a verdadeira vida a fim de provocar os outros a ouvir que se enganam, se extraviam, e de detonar a hipocrisia dos valores recebidos. Por essa irrupção dissonante da verdadeira vida no meio do concerto das mentiras e das falsas aparências, das injustiças aceitas e das iniquidades dissimuladas, o cínico faz surgir o horizonte de um ‘mundo outro’, cujo advento suporia a transformação do mundo presente. Essa crítica, supondo um trabalho contínuo sobre si e uma intimação insistente dos outros, deve ser interpretada como uma tarefa política. E essa ‘militância filosófica’, como Foucault a chamou, constitui inclusive a mais nobre e mais elevada das políticas.” (GROS, p. 311 – 312)

 

Por Eduardo Carli de Moraes
Professor de Filosofia do IFG – Câmpus Anápolis
Escrito em Goiânia, Julho de 2017
Compartilhar artigo no FacebookTumblrTwitter – Instagram

BIBLIOGRAFIA

CIORAN, Emil. Breviário de Decomposição. 

CORDERO, Nestor Luis. A Invenção da Filosofia. São Paulo: Odysseus.

GROS, Frederich. Posfácio à A Coragem da Verdade de Foucault.

LAÉRCIO, Diógenes. Vida Dos Filósofos Ilustres. 

FOUCAULT, Michel. A Coragem da Verdade (Curso no Collège de France, 1984). São Paulo, Martins Fontes.

NAVIA, Luis E. Diógenes, O Cínico. São Paulo: Odysseus, 2009.

SANTORO, Fernado. Arqueologia dos Prazeres. 

SÊNECA, Da Tranquilidade da Alma.

LEIA TAMBÉM EM A CASA DE VIDRO:

BAIXE EBOOKS COMPLETOS:

“Antisthenes of Athens: Setting the World Aright” [DOWNLOAD]

“Classical Cynicism – A Critical Study” [DOWNLOAD]

“Diogenes” – Luis E. Navia (Praeger, 1998) [DOWNLOAD]

[Cinephilia Compulsiva] – O faroeste dark de Alejandro Gonzalez Iñarritu, estrelado por DiCaprio e indicado a 12 Oscars

THE REVENANT (O REGRESSO)
de Alejandro Gonzalez Iñarritu

A ultra-violência é cult. De Laranja Mecânica a Quentin Tarantino, de Cronenberg a Chan Wook Park, os filmes digladiam entre si pelo troféu da violência melhor estilizada. Alguns travestem a carniceria com glamour e deixam-na quase chique (Guy Ritchie?), outros pretendem-se bíblicos ao realizarem filmes-açougue de pregação evangélica (Mel Gibson e seu A Paixão de Cristo). O novo filme do badalado cineasta mexicano Iñarritu (Amores Brutos, 21 Gramas, Babel, Birdman) investe numa espécie de faroeste dark que flerta com uma estética à la Sam Peckinpah. É um filme “sangue nos olhos” e que contêm algumas cenas altamente GORE – inclusive uma treta-com-urso de uma verossimilhança tão impressionante que deixa o espectador louco pra ver o making off e descobrir como aquilo foi filmado (realmente não fica parecendo que o bicho é feito de CGI…).

Alejandro González Iñarritu

Alejandro González Iñarritu


Para o espectador médio, The Revenant  é só um filme de aventura na natureza selvagem, cheio de correrias, pancadarias e conflitos territoriais, e que tem algo das técnicas narrativas grandiloquentes de um Ridley Scott. É uma obra que destoa da filmografia de Iñarritu, que tornou-se célebre pelos filmes de temporalidade picotada como “21 gramas”, onde o fluxo temporal passado-presente-futuro é totalmente subvertido em prol de outras (des)orientações no tempo. “The Revenant”, apesar de seus eventuais flashbacks e delírios, é uma saga bastante linear. Centra-se na luta pela sobrevivência nas condições mais adversas, a ponto de às vezes parecer que faltou criatividade ao roteiro, que parece apostar na fórmula: “bóra espancar Di Caprio até estraçalhá-lo e depois fazê-lo erguer-se heroicamente de cada surra!”

Aquiles lamenta a morte de Pátroclo; em sua fúria vingativa, em breve matará Heitor (Cenas da epopéia homérica "Ilíada")

Aquiles lamenta a morte de Pátroclo; em sua fúria vingativa, em breve matará Heitor (Cenas da epopéia homérica “Ilíada”)


O filme é veículo de uma ideologia um tanto homérica, um ethos do guerreiro viril e perseverante, sendo que o personagem de Di Caprio parece talhado à imagem e semelhança de Aquiles. A fúria de Aquiles diante da morte de Pátroclo, na Ilíada de Homero, é muito similar à fúria do protagonista de “The Revenant” em sua epopéia vingativa contra Fitzgerald, assassino de seu filho. O que resulta é uma obra com testosterona em excesso e com um certo fedor patriarcal – um filme que se enquadra naquela categoria, de gosto duvidoso, do “filme pra machão”. É uma espécie de “Duro de Matar” com pretensão a filme cult – com a ressalva de que DiCaprio é muito melhor ator que Bruce Willis.

Into the WIldEm comparação com outros filmes de temática semelhante, “The Revenant” soa raso em sua escassez de boas idéias: Into The Wild – Na Natureza Selvagem, de Sean Penn, adaptação do livro de Krakauer, é imensamente mais eloquente e instigante em sua discussão sobre a dualidade Civilização x Selvageria: a saga de Chris McCandless serve para colocar em questão os valores hegemônicos da ideologia capitalista neoliberal através da Contracultura Encarnada em Chris McCandless.

Já “The Revenant” tem idéia de menos e estilização demais: os personagens parecem desprovidos de maior densidade psicológica para além do conatus mais cru, de modo que o ser humano aparece um tanto animalizado e bestializado – algo que fica explícito na cena hardcore em que DiCaprio relaciona-se intimamente com as entranhas de um cavalo morto. É verdade que esta cena grotesca tem a coragem de ir aos extremos como um bom terror do cinema dito B – parece uma cena de filme do Zé do Caixão… – mas de todo modo parece veicular a noção de um “vale tudo para a sobrevivência” que, num filme de mais de 2h30min, acaba por soar repetitivo, como uma tese demasiado reiterada.

Se há algumas lições a serem aprendidas do filme, talvez elas digam respeito às patologias da masculinidade que desde tempos arcaicos são celebradas em obras de arte que se pretendem “alta cultura”. Transformar em heroísmo a suposta virtude da virilidade, pregar a areté do macho fisicamente forte e perseverante, talvez só coloque mais lenha no lamentável machismo do patriarcado ainda triunfante.

The Revenant ambiciona ser um épico e realmente flerta com a estética da epopéia homérica de modo aberto – inclusive usando como recurso uma espécie de “Helena indígena”, sequestrada pelos branquelos gananciosos que estão colonizando aquela região por causa das peles cheia de “fur” dos bichos peludos (que evoluíram corpos adaptados às friacas e nevascas). Porém, o filme desenvolve mal as interações étnicas e mestiçagens interculturais que poderiam ter deixado a obra interessante do ponto de vista antropológico.

Novo MundoIñarritu fez um filme anti-romântico e supostamente realista – um faroeste “in the wild” onde, na hora do aperto, a comida é carne crua e ensanguentada das feras. Só que, como retrato histórico ou reflexão política, parece-me bem inferior a filmes como O Novo Mundo de Terence Malick e A Missão de Roland Joffe. Estes, sim, desvelam diante de nossos olhos um quadro impressionante sobre o que foi a colonização da América e os múltiplos “encontros” – nem todos violentos – que aconteceram então naquele “choque de civilizações” que o filme de Iñarritu minimiza em prol do duelo entre indivíduos (flertando, de modo que beira o plágio, com o filme de estréia de Ridley Scott, Os Duelistas, adaptação do romance de Joseph Conrad).

De todo modo, é notável que o establishment do cinema norte-americano esteja, nos últimos anos, sendo “hackeado” por cineastas mexicanos cujas obras andam impactando o cenário e papando prêmios de um modo sem precedentes: Alfonso Cuarón (Gravidade, Filhos da Esperança, E Tua Mãe Também) e González Iñarritu já pularam o muro vergonhoso de La Migra e tomaram Hollywood de assalto (ainda que o tenham feito se adaptando parcialmente à “estética hegemônica”) – faturaram os dois últimos Oscar de Melhor Diretor. Os cineastas brasileiros – apesar das empreitadas de Fernando Meirelles (Ensaio Sobre a Cegueira), José Padilha (Robocop) e Walter Salles (Diários de Motocicleta) – ainda não conseguiram o mesmo grau de “penetração” na indústria cinematográfica dos U.S.A. Os cineastas México tem dado aos EUA algumas aulas-magnas de cinema que ajudam a demolir o mito supremacista dos yankees e, para além dos Oscarizáveis, o México é responsável por uma das mais brilhantes sátiras políticas dos últimos anos: “A Ditadura Perfeita”, de Luis Estrada.

 

(Carli, 23/01)
COMPARTILHAR

Resenha crítica de “Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas – Uma Investigação Sobre Valores”, de Robert M. Pirsig (1974)

Pirsig3

ZEN AND THE ART OF MOTORCYCLE MAINTENANCE
 – AN INQUIRY INTO VALUES

Robert M. Pirsig (1974)

(Ed. Harper Torch Philosophy, New York, 1999, 540 pgs.)

[1]

KerouacOs tensos e intensos anos 1960 já haviam passado mas ainda eram visíveis no espelho retrovisor quando Robert M. Pirsig publicou Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas em 1974.

Após ter sido recusado por 121 editores, este “romance filosófico” e quase auto-biográfico impactou de modo marcante a literatura norte-americana dos anos 70, vendendo mais de 5 milhões de cópias mundo afora.

Mas este não era só um best seller a ser esquecido no próximo verão como uma modinha passageira, mas também um livro que seria considerado por boa parte da crítica literária como uma obra definidora de época.

Talvez não seja exagero sugerir que Zen representou para os anos 70 algo de similar ao que significou para os anos 1950 o fenômeno On The Road – Na Estrada, que Jack Kerouac publicou em 1957 e que logo se tornou uma grande inspiração para a chamada Geração Beat.

Apesar de não ser nada parecido com um panfleto celebratório do ideário hippie, a discussão sobre a herança, as contradições e os sonhos da contra-cultura nos crazy sixties é algo que marca as páginas de Robert M. Pirsig. 

Sem ser um livro rotulável como hippie ou beatnik, ainda assim sente-se a presença de um diálogo com as várias vertentes contra-a-corrente que marcaram o pós-2ª Guerra. Uma tentativa de diagnosticar os males de seu tempo e sugerir estradas de melhor qualidade norteia como uma bússola esta viagem de motocicleta que realizam pai e filho através dos EUA.

Todo o agito utópico, psicodélico e lúdico da Geração Hippie já parecia em maré baixa em 1974, quando o livro foi publicado e tornou-se um estouro editorial. Mas as questões levantadas durante os anos 1960 continuavam prementes e urgentes, assim como os ideais de vida alternativa que foram propostos por aqueles que se revoltaram contra o Sistema yankee na época – fim dos anos 1960 e começo dos 1970 – em que este derramava bombas e napalm sobre o Vietnã, apoiava e financiava ditaduras militares na América Latina e prosseguia lobotomizando mentes com propaganda anti-comunista em um contexto de Guerra Fria.

Easy RiderO plot narrativo do livro de Pirsig parece prestar tributo a certos road movies libertários como Easy Rider – Sem Destino (1969), de Dennis Hopper, hoje consagrado como um clássico do cinema sessentista. Há no protagonista de Pirsig algo daquela atitude “Born To Be Wild” que se encarna nos motoqueiros interpretados por Hopper e Peter Fonda.

Também o protagonista de Zen é descrito como uma espécie de rolling stone, mais interessado em ir do que em chegar, devorando quilômetros sem olhar para trás, com seu filho Chris na garupa e frequentemente às lágrimas com tanto nomadismo selvagem. 

Mas há em Zen também algo de proustiano, uma busca pelo tempo perdido: o livro relata a jornada que realiza o protagonista para recuperar seu passado – que lhe foi em parte roubado pelos eletrochoques a que foi submetido. Estamos diante de um narrador que tem que lidar com um evento psíquico traumático, o shock treatment pelo qual passou, contra sua vontade, e através do qual procurou-se exterminar sua antiga personalidade. 

Em busca das raízes da “insanidade” daquele Phaedrus que ele foi um dia, e cuja memória foi parcialmente dizimada pelo shock treatment, o narrador tenta refazer sua vida pregressa como professor de inglês e de retórica, como estudioso de religiões orientais na Índia, como aluno de um curso de filosofia em Chicago. E assim vai comunicando aos leitores, em uma série de chautaquas, sua filosofia-de-vida, lentamente reconstruída conforme as páginas progridem e os quilômetros são atravessados sobre duas rodas.

Pirsig procede sem pressa pois julga que uma das doenças do século 20 é justamente a impaciência, o corre-corre, a ansiedade, a incapacidade de estar com a mente quieta e o coração tranquilo. A sociedade ultra-tecnológica de racionalidade triunfante, longe de ter-nos conduzido a uma civilização sábia, com sujeitos capazes de meditação atenta e reflexão profunda, levou-nos aos labirintos de cimento e poluição destas selvas-de-pedra que chamados de metrópoles, polvilhadas por massas de frenéticas “formigas que trafegam sem porquê” (como cantarola Raul Seixas em “S.O.S”).

Phaedrus tem consciência de ser alguém que saiu dos trilhos da normalidade, tornando-se um perigoso questionador de autoridades e sistemas: “he was released from any felt obligation to think along institutional lines and his thoughts were already independent to a degree few people are familiar with. He felt that institutions such as schools, churches, governments and political organizations of every sort all tended to direct thought for ends other than truth, for the perpetuation of their own funcions, and for the control of individuals in the service of these functions.” (148)

A grande viagem que Pirsig nos descreve não é apenas através das estradas, rumo ao topo de montanhas, às margens dos rios, mas também a viagem interior de um personagem em busca da verdade sobre si mesmo. Uma busca inseparável de seu esforço de decifração do grande enigma do mundo.

Sua motocicleta não flui apenas sobre terra e asfalto, levantando poeira física, mas flui também pelos trilhos da lembrança, a-trippin’ down the memory lane… Ele tenta encontrar seu caminho em meios aos escombros, tentando colar os cacos de passado e de memória que restaram no filme um tanto desconexo e confuso de sua consciência.

Neste sentido, Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas lembra, em alguns de seus temas e episódios, outro clássico da literatura norte-americana da segunda metade do século XX: Um Estranho no Ninho, de Ken Kesey, que também traz vívidas e impressionantes descrições sobre as sequelas deixadas por certos bárbaros processos psiquiátricos, como a terapia-de-choque e a lobotomia.

Ken Kesey

Uma das primeiras teses que o livro apresenta ao leitor é de uma tendência, naqueles que foram chamados de hippies (e, uma geração antes, de beatniks), de revolta contra a massificação e a tecnologia. Em boa parte da trip, o narrador e seu filho Chris são acompanhados pelos amigos John e Sylvia, o casal Sutherland, descritos como um par de rebeldes radicalmente “anti-tecnológicos” e “anti-sistema”. É como um modo de escapar de uma sociedade tecnocrática, desumanizadora e mortífera que John e Sylvia sobem em suas motocicletas e aderem a um estilo de vida de outsiders.

Mas Pirsig logo aponta o paradoxo na atitude daqueles que pensam protestar contra a tecnologia, mas sentados numa BMW de duas rodas e motor possante. A imagem um tanto caricatural do hippie como uma criatura natureba, abraçadora de árvores, com flores nos cabelos, que só aprecia cenários idílicos, que nunca come nada industrializado, que tem seu próprio pomar e horta, é posta em questão pelo livro de Pirsig. Zen nos faz pôr em dúvida se existiu de fato na história cultural da América do Norte nos 1960 qualquer real movimento, disseminado e significativo, que questionasse as raízes do projeto tecno-científico ocidental.

KrakauerA revolta contra a massificação, o consumismo, o individualismo, os valores do capitalismo selvagem, muitas vezes se dá através de um radical virar às costas a “tudo isso que está aí”, ao Sistema como um todo – podemos pensar, por exemplo, em Chris McCandless, vulgo Alexander Supertramp, cuja vida-viagem foi descrita com tanta vivacidade e brilhantismo tanto no livro-reportagem de Jon Krakauer quanto no filme de Sean Penn, Into the Wild – Na Natureza Selvagem.

McCandless queima todo seu dinheiro, abandona seu carro e adere a um estilo-de-vida nômade como andarilho e caroneiro, até que enfim parte para o Alaska para ficar em meio à natureza selvagem. Mas também neste caso a situação de McCandless é paradoxal: se, por um lado, como fiel seguidor de Thoreau, ele vai em busca de um lugar que possa chamar de Walden, ele ao mesmo tempo não consegue recusar completamente toda a vida civilizada: lembremos que ele constrói seu refúgio contra a friaca em um ônibus abandonado, que leva consigo manuais de botânica que o auxiliam na escolha dos alimentos, além de carregar consigo seus livros prediletos. Trata-se claramente, portanto, de uma recusa de certos aspectos da civilização, enquanto outros continuam sendo valorizados como benesses muitas vezes essenciais para a sobrevivência.

Em sua obra Pirsig está constantemente mostrando estas contradições daqueles que se colocam na contra-corrente das tendências culturais hegemônicas – como os hippies e beatnikes. A leitura de Zen me fez pensar naqueles que estiveram envolvidos nos eventos que mais marcaram época na era Flower Power.

Tudo bem que durante os dias que durou a lendária festa de Woodstock em 1969 era o maior barato tomar banho pelado no rio, rolar na grama molhada pelo orvalho da madrugada ou brincar de guerrinha de lama. No interior do estado de Nova York, redescobria-se um cenário onde a natureza ainda não havia sido tão transformada (e poluída) pelo engenho humano – em contraste, por exemplo, ao corredor polonês de arranha-céus em Manhattan.

woodstockcrowd3

Mas a maior parte daqueles que estiveram no festival ali chegaram em automóveis e motocicletas, com o desejo expresso de curtir música amplificada em mega altofalantes, e poucos dias depois estariam talvez em suas casas com ar condicionado, bebendo cerveja enlatada, guardando comida industrializada no freezer…

Em suma: é quase impossível ser um hippie que defende fanaticamente um estilo-de-vida arcaico e roots, condenatório da tecnologia, e ao mesmo tempo estar em êxtase com o LSD e ouvindo a guitarra elétrica de Jimi Hendrix. Pois estas experiências psicodélicas e estéticas são inimagináveis sem os avanços tecnológicos precedentes. O próprio Albert Hoffmann não criou sua “poção mágica”, tão celebrada pelos hippies, enquanto trabalhava para a indústria farmacêutica em um laboratório high-tech? E seria concebível toda a apologia do “amor livre” sem que antes houvesse surgido e se disseminado outro rebento farmacológico do início dos anos 60, a pílula anti-concepcional?

Eis portanto um dos “problemas” que Pirsig persegue em seu livro: aqueles que se dizem anti-sistema, contra-cultura, críticos da tecnologia, são os mesmos que louvam motocicletas, guitarras elétricas e drogas sintéticas, ou seja, “produtos” da racionalidade tecno-científica ocidental que supostamente estava em questão para os movimentos sociais norte-americanos nos anos 60.

O que Pirsig investiga a fundo neste seu romance-viagem, sem mencionar Adorno e Horkheimer, é algo semelhante ao que os autores da Escola de Frankfurt chamavam de Razão Instrumental. Zen procura decifrar o enigma do porquê o século XX tornou-se um pesadelo – resumível em nomes como Hiroshima, Auschwitz, Chernobyl… – e quais os possíveis caminhos para uma vida mais zen.

* * * * *Pirsig

[2]

O que a manutenção de motocicletas tem a ver com tudo isso? Seria muito demorado repassar todos os argumentos de Pirsig livro afora, então aqui intento uma modesta tentativa de síntese, com as minhas próprias palavras, da defesa entusiasmada que faz o narrador de um sujeito que não é só o piloto de sua motoca, mas também o seu mecânico.

Em meio à reflexão sobre a racionalidade científica e seus produtos tecnológicos, a motocicleta que carrega os personagens através da América selvagem aparece como digna da atenção do filósofo – e não só por ter se tornado uma espécie de símbolo libertário, pelo menos de acordo com grupos como os Hell’s Angels (vide o livro de Hunter S. Thompson) e todos os “asseclas” do estilo-de-vida Easy Rider.

A motocicleta, que pode ser considerada uma bicicleta motorizada e complexificada, é ao mesmo tempo o resultado histórico de um processo de avanço tecnológico indissociável da tecno-ciência ocidental. O século XX tem uma de suas peculiaridades justamente no fato de ser o primeiro século com produção em massa de novos meios de transporte individual, veículos movidos por motores de combustão interna e que queimam combustíveis fósseis…

O livro de Pirsig silencia quase completamente sobre os subprodutos ecológicos destes inventos – como a poluição que recobre tantas das metrópoles globais, repletas de carangas que são junkies de gasolina e peidam pelos escapamentos densas nuvens de CO2…

Ele prefere se deter sobre um fenômeno que analisa detidamente e que ele chama pelo nome de “dualismo sujeito-objeto”: este fenômeno é “encarnado” por seu amigo John Sutherland, aquele sujeito que só quer saber de pilotar sua motoca e curtir sua viagem, mas não entende bulhufas sobre a mecânica e o funcionamento interno do objeto que possui. Sempre que a joça enguiça, John precisa sair correndo em busca da ajuda salvífica de um especialista.

Já o narrador é o entusiástico defensor da tese: “seja você seu próprio mecânico” – o que exige um conhecimento técnico dos processos envolvidos no funcionamento de uma motocicleta que a grande maioria dos usuários nunca se preocupa em adquirir.

Isso lembra um pouco o modo como lidamos com outros produtos tecnológicos, como telefones celulares ou aviões. A grande maioria dos usuários de celular não compreende o processo histórico através do qual as tecnologias de comunicação foram mutando e se transformando. Julgam desnecessário compreender o longo caminho trilhado desde os tempos de Graham Bell até a era do Skype, dos smartphones, da telefonia via satélite.

De modo similar, quase todos os passageiros de um grande avião seriam incapazes de explicar em detalhes como é possível que um jumbo de milhares de toneladas possa planar no ar como uma águia, assim como desconhecem a história das evoluções que separam os primeiros experimentos de Santos Dumont e dos irmãos Wright dos atuais boeings 737 ultra hi-tech.

Pirsig2Lidamos com os bens tecnológicos, via de regra, como meros usuários de um serviço, ou possuidores de um objeto que foi inventado por outros, sendo que deixamos a uma casta de especialistas o trabalho de criar, compreender, ajustar e operar aquilo que não temos paciência ou interesse para tentar compreender.

Para o narrador do romance de Pirsig, realizar a manutenção da própria motocicleta aparece como um meio de superar essa cisão entre o usuário e o especialista. Trata-se de compreender intimamente a motocicleta não como um punhado “morto” de matéria, mas como resultado de um longo processo através do qual o engenho humano foi compreendendo e transformando a natureza, aprendendo a controlar suas forças e dar direção às suas energias.

Além disso, realizar uma constante manutenção da motoca é acreditar em sua durabilidade, na possibilidade de tê-la como possante companheira de jornada por toda uma vida, o que é um antídoto contra a mentalidade descartista típica de tempos de obsolescência programada – aquele tipo de ideologia que tenta nos convencer que só seremos pessoas plenas caso tenhamos o “carro do ano” e que devemos trocar de moto a cada 5 anos (ou menos…).

A cultura consumista e descartista é claramente descrita por Pirsig como junk, como um estilo-de-vida de baixa qualidade. E, como o próprio título do livro já aponta, alguns dos remédios possíveis para curar as tendências estúpidas e destrutivas do capitalismo ocidental estão… no Oriente.

Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas reitera aquela apologia das sabedorias orientais tão recorrente na contra-cultura dos anos 50 e 60  – é só lembrar, por exemplo, de George Harrison e sua adesão ao hare krishna, sua paixão pelas cítaras, suas canções (especialmente na carreira solo) recheadas com mantras, sua admiração pelo guru Maharishi, ou em John Lennon indo buscar inspiração para “Tomorrow Never Knows”, canção que encerra Revolver, no Livro Tibetano dos Mortos.

O fato dos Beatles – influência imensuravelmente impactante sobre a cultura dos sixties – terem passado um tempo morando na Índia, na época do White Album, é apenas um dentre centenas de outros casos de orientalização manifestada na era Hippie.

Beatles e o Maharishi

Os Beatles na Índia com o Maharishi em 1968

Os principais conceitos do sistema filosófico de Phaedrus (o personagem de Pirsig antes do eletro-choque) têm confessas similaridades com noções do zen budismo, do hinduísmo, do taoísmo. É como se Pirsig estivesse tentando traduzir para um público ocidental o que significa, por exemplo, o Tao ou o Zen. Mas não há nada no livro que cheire à pregação dogmática ou fanática – e o trecho do livro que descreve o período do personagem na Índia, quando ele estuda misticismo e religiões orientais em Benares, mostra bem as contradições irreconciliáveis entre uma mente formada nos rigores do racionalismo ocidental e uma mente mística que busca o completo silenciamento dos raciocinamentos em prol de uma intuição a-intelectual.

No fundo, Phaedrus está muito mais “ancorado”, conhece muito mais profundamente, tem uma carga de leitura muito maior, no racionalismo filosófico ocidental – e os diálogos-com-pensadores de maior envergadura do livro de Pirsig se dão em relação a Platão, Sócrates, Aristóteles, Kant…

O Oriente, longe de “impregnar” o texto, faz aparições esporádicas, um tanto fragmentárias, e sempre em contraponto com a exacerbada valorização do racional que caracteriza o galho socrático da história da filosofia. Pirsig tem plena consciência de que o zen budismo está longe de valorizar a razão tanto assim – e que um grande mestre zen budista, através de seus ditos misteriosos ou de enigmáticos e indecifráveis koans, pretende conduzir a mente a um dilema insolúvel que a faça desesperar dos poderes racionais.

O zen budismo está todo organizado como um sistema de atentados contra a megalomania da razão; deseja a todo momento pôr a razão em maus lençóis, mostrar a razão em toda sua pequenez e todo seu ridículo; o mestre fica contente quando a mente do discípulo atinge um estado que Pirsig descreve como stuck, tradutível como “travado”, “estacionado”, “estagnado”.

Eis uma grande oposição entre dois sistemas de pensamento: de um lado, o racionalismo científico ocidental, que se orgulha pelos avanços tecnológicos imensos e variados que possibilitou, e que aponta como panacéia uma tentativa de compreensão de mundo neutra, objetiva, desapaixonada, “puramente racional”; de outro, as milenares doutrinas orientais, que valorizam a meditação, a serenidade, a paz de espírito, a busca pelo nirvana, a harmonização entre o humano e a natureza a que pertencemos, com a valorização da intuição pré-intelectual e da abertura de consciência (awareness)…

Se Phaedrus acaba lançado no turbilhão da insanidade, talvez seja pois seu corpo parece estar no centro de um cabo-de-guerra entre o Ocidente e o Oriente, sendo que ele ouve o chamado tanto das motocicletas quanto dos monastérios. E todo esse livro-viagem parece animado pelo desejo de reconciliar o que antes era pensado como oposição, unir aquilo que a compreensão dualista separa.

Pirsig retrata um pensamento acostumado a operar com oposições dualistas – Phaedrus adora dividir o mundo entre a mentalidade clássica e a romântica, entre as pessoas hip e os squares, entre o ocidente e o oriente… – ao mesmo tempo que vai progressivamente descobrindo uma doutrina, muito próxima do taoísmo e do monismo spinozista, e que procura demolir todo tipo de oposição dual. Não mais a razão contra a emoção, não mais o espírito contra a matéria, mas uma compreensão mais plena que abrace ambos os pólos da oposição e toda a imensidão que há entre eles e fora deles.

No fundo, talvez não haja ilusão maior do que a de se pensar que se compreende a vida por inteiro, que é possível dominá-la com a razão; talvez não haja megalomania mais perniciosa do que pensar que qualquer linguagem inventada por humanos possa dar conta de descrever o espetáculo inominável do universo. No fim das contas, a viagem da vida talvez não valha tanto pelo ponto de chegada, que para todos nós é o túmulo, mas pela própria jornada por estes caminhos tão estranhos, polvilhados de beleza e de mistério. A jornada é a recompensa.

“Sábio é quem se contenta com o espetáculo do mundo”, escreveu Fernando Pessoa. E este espetáculo é tão maior que a linguagem e a razão! Não conheço frase que melhor sintetize essa sabedoria que transcende a razão do que o sarcástico e sagaz ditado zen: “quando o sábio aponta para a Lua, o idiota fica olhando para o dedo…”

Pirsig4

Na sequência, uma seleção de alguns dos trechos do livro que mais me impressionaram:

“Clichés and stereotypes such as ‘beatnik’ or ‘hippie’ have been invented for the antitechnologists, the antisystem people, and will continue to be. But one does not convert individuals into mass people with the simple coining of a mass term. John and Sylvia are not mass people and neither are most of the others going their way. It is against being a mass person that they seem to be revolting.” (21)

* * * * *

“…to tear down a factory or to revolt against a government or to avoid repair of a motorcycle because it is a system is to attack effects rather than causes; and as long as the attack is upon effects only, no change is possible. The true system, the real system, is our present construction of systematic tought itself, rationality itself, and if a factory is torn down but the rationality which produced it is left standing, then that rationality will simply produce another factory. If a revolution destroys a systematic government, but the systematic patterns of thought that produced that government are left intact, then those patterns will repeat themselves in the suceeding government…” (122)

* * * * *

“It’s sometimes argued that there’s no real progress; that a civilization that kills multitudes in mass warfare, that pollutes the land and oceans with ever larger quantities of debris, that destroys the dignity of individuals by subjecting them to a forced mechanized existence can hardly be called an advance over the simpler hunting and gathering and agricultural existence of prehistoric times. But this argument, though romantically appealing, doesn’t hold up. The primitive tribes permiteed far less individual freedom than does modern society. Ancient wars were committed with far less moral justification than modern ones. A technology that produces debris can find, and is finding, ways of disposing of it without ecological upset. And the schoolbook pictures of primitive man sometimes omit some of the detractions of his primitive life – the pain, the disease, famine, the hard labor needed just to stay alive. From that agony of bare existence to modern life can be soberly described only as upward progress, and the sole agent for this progress is quite clearly reason itself.” (157)

* * * * *

“No one is fanatically shouting that the sun is going to rise tomorrow. They know it’s going to rise tomorrow. When people are fanatically dedicated to political or religious faiths or any other kinds of dogmas or goals, it’s always because these dogmas or goals are in doubt. The militancy of the Jesuits he somewhat resembled is a case in point. Historically their zeal stems not from the strenght of the Catholic Church but from its weakness in the face of the Reformation. It was Phaedrus lack of faith in reason that made him such a fanatic teacher. (…) He was telling them you have to have faith in reason because there isn’t anything eles. But it was a faith he didn’t have himself.” (190)

* * * * *

“What was behind this smug presumption that what pleased you was bad, or at least unimportant in comparison to other things? It seemed the quintessence of the squareness he was fighting. Little children were trained not to do ‘just what they liked’ but… but what?… Of course! What others liked. And which others? Parents, teachers, supervisors, policemen, judges, officials, kings, dictators. All authorities. When you are trained to despise ‘just what you like’ then, of course, you become a much more obedient servant of others – a good slave. When you learn not to do ‘just what you like’ then the System loves you. But suppose you do just what you like? Does that mean you’re going to go out and shoot heroin, rob banks and rape old ladies? (…) Soon he saw there was much more to this than he had been aware of. When people said, ‘Don’t do just what you like’, they didn’t just mean, ‘Obey authority’. They also meant something else. This ‘something eles’ opened up into a huge area of classic scientific belief which stated that ‘what you like’ is unimportant because it’s all composed of irrational emotions within yourself.” (297)

* * * * *

“…at the cutting edge of time, before an object could be distinguished, there must be a kind of nonintellectual awareness, which he called awareness of Quality. You can’t be aware that you’ve seen a tree until after you’ve seen the tree, and between the instant of vision and instant of awareness there must be a time lag. We sometimes think of that time lag as unimportant. But there’s no justification for thinking that the time lag is unimportant – none whatsoever. The past exists only in our memories, the future only in our plans. The present is our only reality. The tree that you are aware of intellectually, because of that small time laf, is always in the past and therefore is always unreal. Any intellectually conceived object is always in the past and therefore unreal. Reality is always the moment of vision before the intellectualization takes place. There is no other reality. The preintellectual reality is what Phaedrus felt he had properly identified as Quality. (…) He showed a way by which reason may be expanded to include elements that have previously been unassimilable and thus have been considered irrational. I think it’s the overwhelming presence of these irrational elements crying for assimilation that creates the present bad quality, the chaotic, disconnect spirit of the 20th century.” (315 – 327)

* * * * *

“One thing about pioneers that you don’t hear mentioned is that they are invariably, by their nature, mess-makers. They go forging ahead, seeing only their noble, distant goal, and never notice any of the crud and debris they leave behind them. Someone else gets to clean that up and it’s not a very glamorous or interesting job.” (326)

* * * * *

“Reality is, in its essential nature, not static but dynamic. And when you really understand dynamic reality you never get stuck. It has forms but the forms are capable of change.” (364)

NA NATUREZA SELVAGEM – “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente.” (Krishnamurti)


“…prefiro o céu salpicado de estrelas a um teto,
a trilha obscura e difícil, levando ao desconhecido,
a qualquer estrada pavimentada…”

Última carta de Everett Ruess
(11 de Novembro de 1934)

in:
 Jon Krakauer
 “Na Natureza Selvagem”
(Ed. Cia das Letras, pg. 97)

NA NATUREZA SELVAGEM
Reflexões De Rédeas Soltas

Decerto que há os conformados e que eles formam imensas manadas. Raul Seixas quiçá diria deles: são “pedras que choram sozinhas no mesmo lugar“. Morrem de medo da chuva. Gente que quer imitar o reino mineral ao invés de assumir o risco de aventurar-se a ser humano, isto é, uma metamorfose ambulante em busca sempiterna de ser-mais.

Há criaturas com propensão para a estagnação e que sonham ser montanha ao invés de rios a fluir. Apegam-se às suas “identidades”, agarrados a um dogma que formaram sobre aquilo que são e devem ser, e seguem pelas vias estreitas de um mundo domado. Seguras em suas fortalezas, detrás de seus muros e grades, protegidos pelo arame farpado ou pelo carro blindado, dizem em suas melancolias, com sorrisos forçados:

“Pois não é verdade que se deve adorar as benesses da civilização? Ó estradas e pontes, edifícios de concreto e fortalezas de metal! Aleluias à riqueza material que nos permite viver no conforto, no Sacrossanto Conforto! Tudo isso não merece ser glorificado, ó Deusa Tecnologia, ó Deidade Engenharia, como algo que nos torna a vida mais fácil e confortável?” Eis a ladainha dos tempos.

Em contraste com esta “roda morta” da “manada dos normais”, como canta Sérgio Sampaio, na contracorrente desta gente adormecida na crença de que a melhor vida é aquela “fácil e confortável”, há uma série de seres humanos bem mais turbulentos, inquietos, inconformados. É a eles que o mundo deve alguns dos maiores exemplos de heroísmo, subversão da ordem, revolução de costumes e obras de arte de impacto.

Alguns restringem seu heroísmo ao “mundo do espírito”: inventam histórias de gente que realiza as proezas que eles nunca fizeram ou farão. Há desses pretendentes à Jack London que ficam, seguros em suas casas, de cachecol diante da lareira, escrevendo sobre aventuras na neve e confrontos com lobos… Mas há outros para quem o único heroísmo que conta é a ação real sobre o palco do planeta. Como não trepidar e não se excitar ao ler a descrição que faz Jon Krakauer, por exemplo, desses humanos intrépidos que ousam encarar a natureza selvagem?

Eles, os born to be wild da canção antológica do Steppenwolf, atravessam a história, audazmente contrahegemônicos. Dinamietzsches, Blakeanos, Tolstoístas, Thoreauastas, Supertramps, Hippies… todos aqueles que preferem o destino de nuvens ciganas e pedras que rolam. São mendigos iluminados, malucos-beleza transbordantes de lucidez, xamãs involuntários de uma sociedade doente. “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente”, diz Krishnamurti. Eles concordam.

Buscam estradas heróicas frequentemente sob a influência fascinante de algum herói prévio que idealizam. O heróico para Nietzsche, por exemplo, parece ser uma mescla de Diógenes e Heráclito, Sófocles e Dionísio… um “espírito livre”, desafiador de todas as convenções e convicções aprisionantes, que é sátiro e dançarino, que prefere usar a coroa de flores de Zaratustra à coroa de espinhos de Cristo, que conhece as tragédias mas sabe afirmar a vida, não foge do sofrimento mas aprende com ele, sabe-se descendo a corredeira do Tempo mas medita sobre os ciclos e os retornos…

A figura das montanhas altaneiras, escaladas por um audaz “espírito livre” sem temor de enxergar mais longe e mais fundo do que o comum dos mortais, que suporta com o máximo de júbilo possível o seu fardo de solidão e clarividência, desenha uma auréola de heroísmo em torno de Nietzsche que talvez explique, ao menos em parte, sua “popularidade” póstuma.

O Capitão Nemo, protagonista de Vinte Mil Léguas Submarinas (Júlio Verne), personagem que “foge da civilização e corta todos os laços com a terra”, foi uma das inspirações do andarilho-alpinista infatigável Everett Ruess. Só que, ao invés de descer às profundezas do Oceano, Ruess preferiu lançar-se sem muitos escudos em meio à indomada Natureza. “Duas vezes quase fui morto pelos chifres de um touro selvagem; escapei por pouco de cascavéis e do desmoronamento de rochas; fui atacado por abelhas selvagens e algumas ferroadas a mais poderiam ter sido fatais para mim…”

De relatos de proezas assim está repleto o relato de Everett Ruess que Krakauer reproduz. O que será isso: vontade de fazer disparar no sangue a adrenalina? É ser um junkie de excitações orgânicas? Ou será mero gosto pela bravata? Uma espécie de desejo de auto-glorificação ao buscar experiências de alto risco? Vive-se para vivê-las ou para contá-las?

O caso de Christoppher McCandless é para mim outro fascínio intenso. Muito por causa do impacto do filme Into the Wild – Na Natureza Selvagem, uma das obras que me são mais queridas no cinema deste jovem século. Sean Penn, em sua adaptação cinematográfica do livro-reportagem de Krakauer, soube “heroicizar” a figura de McCandless (vulgo Alexander Supertramp) ao invés de reduzi-lo através da “psico-patologização”.

Em outras palavras: tratou McCandless/Supertramp não como um biruta qualquer, um cara com parafusos a menos, um vicioso “desajustado social”, mas sim revelando tudo que havia de romântico, idealista, rebelde, subversivo, doce e ambíguo neste destino tão heróico – e tão trágico.


DESPOJAMENTO & ABERTURA
Alexander Supertramp rumo à Natureza Selvagem

“Ele se chama Sonho Americano
pois você precisa estar dormindo
para acreditar nele.”

George Carlin

Christopher McCandless, no começo da Década Grunge, era um rapaz de uma abastada família americana de Washington, D.C. Excelente aluno, atleta de elite, tinha um Datsun que adorava e uma poupança pançuda. Ou seja: todos os ingredientes de um futuro “garantido”. McCandless se encontrava no que alguns veriam como uma situação privilegiada “invejável”, pronto para ajustar-se perfeitamente ao Sistemão Norte-Americano.

Ao invés, porém, de seguir obediente nos trilhos do american way e sonhar de olhos abertos, junto com a manada dos normais, o Sonho Americano, McCandless, “no verão de 1990, logo após formar-se com distinção na Universidade, sumiu de vista. Mudou de nome, doou os 24 mil dólares que tinha de poupança a uma instituição de caridade, abandonou seu carro e a maioria de seus pertences, queimou todo o dinheiro que tinha na carteira” (Krakauer, pg. 9).

Até daria para dizer que aí já está presente um certo “elemento Tyler Durden”. Tyler Durden, me parece, é outro dos símbolos da época, de estandartes do zeitgeist, de retrato da nossa disgrama. “As coisas que você possui acabam por te possuir”, diz Brad Pitt a Edward Norton em um momento da obra de David Fincher em que ainda nem suspeitamos que está rolando uma alucinada conversação entre um funcionário do mundo corporativo e seu amigo-imaginário, Tyler Durden, o subversivo, o terrorista, o incendiário. Conforme a civilização nos EUA foi degringolando para um anarco-capitalismo cada vez mais irracional em sua fome de lucros e em sua ideologia kitsch em prol do Conforto, mais e mais pipocaram rebeldias, terrorismos, contra-culturas – e heroísmos.

Não se trata, porém, de “idealizar” o heroísmo, dizer que ele é a solução para o planeta e lançar toda uma carga positiva pra cima da idéia de um estilo-de-vida heróico. Com certeza muitos crimes e injustiças podem ser cometidos por gente que acredita estar agindo “heroicamente”. Reflitamos um pouco no fato de que, na perspectiva dos sujeitos que realizaram o Atentado do 11 de Setembro, eles estavam cometendo um ato de heroísmo religioso, um digníssimo e elogiável martírio (sem dúvida comemorado por muitos em Kabul ou Bagdá como se comemora, no Brasil, uma vitória na Copa do Mundo…).

Derrubar um dos símbolos da arrogância capitalista da América, trazer abaixo o Templo onde os ímpios, esquecidos de Deus, cultuam o Bezerro de Ouro, tudo isso representava “missão”, “destino”, possibilidade de ascensão ao Paraíso. Enfim: Alá aprova e glorifica os que destroem a mundana ganância cega da América…

 Porém, não é este o único meio – explodir prédios comerciais com aviões sequestrados numa hecatombe de milhares de mortos – para protestar contra o sistema econômico-político. Chris McCandless é uma figura tão instrutiva pois ele procura escapar das garras deste Capitalismo Neo-Liberal Ecocida que está aí por outras vias: segue o exemplo de Tolstói, Thoreau e Jack London, buscando a independência em relação às obsessões consumistas e às neuroses urbanas de que estão repletas as nossas metrópoles e os nossos subúrbios.

Inteligente, bem-informado, sensível aos problemas alheios, mesmo aqueles de países distantes, McCandless é um desses que desperta para o fato óbvio de que o Capitalismo não está funcionando, que gera concentração imensa de capital nas mãos de pouca gente, gerando efeitos colaterais terríveis em termos de fome, miséria, doença, poluição, destruição ambiental – em suma: o Capitalismo é a desgraça de bilhões, ainda que seja a maravilha de alguns. No planeta Capitalista, é “normal” que 2 bilhões morram de fome para que uns 2 mil possam ter seus palácios, mansões e carrões onde possam sofrer de indigestão e obesidade.

McCandless, impregnado por um ideário ético que valoriza o vivenciar e não o possuir, o despojamento ao invés do conforto, a abertura de consciência contra o auto-aprisionamento em convenções, doa tudo o que tem para ajudar os necessitados – a Oxfoam recebe 100% de sua poupança – e parte para a aventura de ser um SuperMendigo, cuca-fresca e cabeça-aberta, que sabe que neste mundo, de onde nada se leva, quem perde o teto em troca ganha as estrelas.

Vade retro, Superman!!!

PREFERINDO O DIFÍCIL

“Eu queria movimento e não um curso calmo de existência.
Queria excitação e perigo e a oportunidade de sacrificar-me por meu amor.
Sentia em mim uma superabundância de energia que não encontrava escoadouro em nossa vida tranquila.” 

Léon Tolstói
Felicidade Conjugal”
Trecho sublimado em um dos livros encontrados com o cadáver de Chris McCandless

 

Eddie Vedder, nas canções que compôs e cantou sobre a inspiradora figura de Chris McCandless, destaca com frequência o fato de Alex Supertramp ter nascido de um desejo de sumir, desaparecer, vazar: ir pra bem longe da “sociedade” como a conhecia. “Society, you’re a crazy breed… hope you’re not lonely without me…” 

Estamos falando, é claro, daquela sociedade yuppie dos EUA, que celebrizou-se por criações como Walt Disney, Hollywood, McDonalds, Mickey Mouse, Tio Patinhas… As crianças que crescem sob tais influências sonham desde o berço em possuir a beleza de Barbies, ainda que a custo de plásticas, lipos e anorexias; obcecam com viagens maravilhosas à Disneylândia; com um imenso apetite por milk-shakes, marshmallows e Big Macs… O “ideal de vida” que por lá é vendido convida a todos a perceber a felicidade exatamente igual à maneira como um pato imbecil a concebia: aspirantes a Tios Patinhas, eles têm fantasias colonizadas pelo sonho de um dia nadarem em uma imensa piscina de moedinhas de ouro – e 18 quilates!…

“It’s a mystery to me:  we have a greed with which we have agreed. You think you have to want more than you need. Until you have it all you won’t be free.” Em três versos riquíssimos (das riquezas que contam, do “ouro de dentro”, como diria Hilda Hilst), Vedder sintetiza a ópera: há um acordo tácito em relação à ganância; todos pensam que precisam ter mais e mais, esquecidos de suas verdadeiras necessidades; e é crença geral que só existe liberdade no possuir, no “have it all”. Uma imensa catarata sobre os olhos de milhões causa essa miopia epidêmica: só conseguir imaginar a felicidade sob a perspectiva do consumo e da posse. “Para ser feliz, é preciso comprar e comprar, possuir e possuir!” – assim prossegue a ladainha dos tempos…

Jon Krakauer insiste, em vários pontos de seu livro, no fato de Chris McCandless ser uma pessoa “extremamente ética” que “se impunha padrões bastante elevados” (pg. 30) e com “traços de idealismo obstinado que não combinavam facilmente com a existência moderna” (pg. 10). Krakauer relembra-nos com recorrência do culto que McCandless prestava ao escritor russo Tolstói: caroneiro atravessando milhares de quilômetros da América que está fora dos cartões-postais, McCandless costumava recomendar a seus companheiros de jornada a leitura de Guerra e Paz.

 Entre a dúzia de livros encontrados junto a seu cadáver no busão abandonado no Alasca, estavam livros de Tolstói e Thoreau, duas figuras que ele parecia enxergar como “paradigmas” éticos, modelos a serem imitados, “sábios” à cuja aprovação ele aspirava. “Cativado há muito tempo pela leitura de Tolstoi, admirava em particular como o grande romancista tinha abandonado uma vida de riqueza e privilégios para vagar entre os miseráveis” (pg. 10). Krakauer conta também dos cursos que McCandless frequentou sobre o problema racial na África do Sul do apartheid, de seu veemente interesse e preocupação em relação ao problema da fome no mundo e sua “intensa aversão ao governo” (pg. 204).


“Não é nada incomum para um homem jovem ser atraído para uma atividade considerada imprudente pelos mais velhos; o comportamento de risco é um rito de passagem em nossa cultura. O perigo sempre exerceu um certo fascínio. É em larga medida por isso que muitos adolescentes dirigem depressa demais, bebem demais e tomam drogas demais, e que sempre foi fácil para as nações recrutar jovens para a guerra. […] Chris McCandless  tinha necessidade de se testar em questões, como gostava de dizer, “que importavam”. Possuía grandiosas ambições espirituais. Conforme o absolutismo moral que caracterizava as crenças de McCandless, um desafio em que o sucesso está garantido não é desafio nenhum. […] O significado que ele tirava da existência estava longe do caminho confortável: ele não confiava no valor das coisas que vêm facilmente.”

JON KRAKAUER (pg. 192)

Alexander Supertramp, que tem nome de imperador mas aspirações a “mendigo iluminado”, é a encarnação de uma prática rebelde em relação ao estilo-de-vida dominante. Decerto que existem muitos exemplos na História de homens ricos que renunciam à sua fortuna: é uma estória tão velha quanto… Buda. Não se conta que Sidarta Gautama também abdicou de todo o luxo do palácio para se procurar a iluminação em andrajos pelos campos e debaixo de árvores?

McCandless é um dos poucos norte-americanos que, tomando consciência mais plena dos rumos de sua pátria, decide pular do barco, procurar uma via própria, longe das estradas pavimentadas. O dinheiro não lhe interessa – não mais. Uma vida fácil e confortável, rodeada de consumos e simulacros, lhe enoja. Prefere estar ao ar livre, sujando as botas na lama dos caminhos que ainda não foram trilhados, escalando montanhas rumo a cumes por poucos pisados. Não quer manter a Natureza à uma distância segura, só saber dela através dos livros ou dos vidros. Quer sentir a brisa na face e dormir sob um céu salpicado de indecifráveis estrelas.

A facilidade é insossa, a busca por conforto é neurótica, a AmériKKKa está louca! E é assim que Chris McCandless larga tudo, aventura-se na Natureza Selvagem, como se seguisse o conselho que Rilke deu ao Jovem Poeta: “Prefira sempre o difícil; desse modo, sua vida não cessará de expandir-se.”

 

Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro


“É realmente indispensável para o homem possuir desde sua primeira infância certas convicções imutáveis, preparadas de antemão e que devem valer por toda a sua existência? Na minha opinião, isso não tem nada de indispensável. O homem vive e a vida lhe ensina um bocado de coisas. Aquele que atinge sua velhice sem nada ter aprendido de novo não conquistará nosso respeito, mas muito mais nosso assombro por sua insensibilidade. […] As convicções recebidas de outrem, já prontas, têm menos valor do que aquelas que elaboramos nós mesmos sob a ação de nossa própria experiência e dos desafios enfrentados.”

León CHESTOV (1866-1938)
A Filosofia da Tragédia: Dostoiévski e Nietzsche
(Paris, Editions de la Pléiade, 1926)

* * * * *


Eddie Vedder – Into The Wild [OST] [full album]
(Baita disco lindo…)

1. Setting Forth – 0 to 1:30
2. No Ceiling – 1:30 to 2:57
3. Far Behind – 2:57 to 5:03
4. Rise – 5:03 to 7:38
5. Long Nights – 7:38 to 10:07
6. Tuolumne – 10:07 to 11:10
7. Hard Sun – 11:10 to 16:25
8. Society – 16:25 to 20:15
9. The Wolf – 20:15 to 21:49
10. End of the road – 21:49 to 25:01
11. Guaranteed – 25:01 to 32:16
12. No More – 32:16 to 35:52
13. Photograph – 35:52 to 36:55

Ser pai de três bloguitos dá um trampo do danado.  Mas encaro de bom grado, feliz da vida de ter uma grande ninhada na blogosfera.  E tenho feito o possível pra manter a filharada toda bem alimentada. Em breve, pretendo criar um “Portal Depredando”, mais profissa e menos ilícito, ponto-com e tudo — mas sobre isto falo mais outro dia, quando a coisa for mais concreta. Por hora, quero convidar a meia-dúzia de hóspedes desta Casa de Vidro a darem um pulo no Depredando o Cinema, blog irmão d’Orelhão, onde venho me exercitando na crítica de cinema (ou “filosofagem viajandona em cima de filmes”) desde o começo do ano. Estes dias me debrucei sobre Into The Wild – Na Natureza Selvagem, filme queridíssimo pra mim, que narra a vida de Chris McCandless, vulgo Alexander Supertramp, rebelde-aventureiro-hippongo que embarcou numa jornada espiritual-filosófica-geográfica das mais inusitadas e comoventes. Pra mim, é o maior de todos os road movies (Easy Rider que me perdoe!) e dá pano pra muita manga filosófica… Colem lá, confiram e digam o que acharam! Abs.

:: Rousseau (um trampo acadêmico chatonildo…)


A CIVILIZAÇÃO NO BANCO DOS RÉUS

breve passeio pelas idéias de Jean Jacques Rousseau

“Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais…”. É o que escreveu o poeta francês Paul Válery, de certo modo ecoando um trecho de Rousseau (C.S., Livro 1, XI) no qual este nos lembra que a vida dos Estados e das civilizações é transitória e passageira: o império da mortalidade não se estende somente a nossas existências individuais, mas engloba também os corpos políticos.

“Se Esparta e Roma pereceram, qual o Estado que pode esperar durar eternamente? Se quisermos constituir um estabelecimento durável, não pensemos em absoluto em fazê-lo eterno. Para sermos bem-sucedidos, não devemos tentar o impossível, nem nos vangloriarmos de dar à obra dos homens uma solidez que as coisas humanas não comportam”. (C.S., pg. 90). Em outro trecho de sua obra, põe ainda a questão crucial de “saber se mais importa aos impérios serem brilhantes ou fugazes, ou virtuosos e duráveis” (D.C.A., pg. 222).

É preciso, pois, estudar aquilo que conduz os corpos políticos à degeneração e à decrepitude, de modo semelhante a um médico que diagnostica e procura remediar e curar os males que acometem um organismo. Do mesmo modo que o indivíduo possui fases sucessivas – de fraqueza e dependência, de maturação e crescimento, de ápice de vigor físico e mental, de decadência e de velhice etc. – também os Estados passam por sucessivas “idades”, imensamente variadas em relação às eras e aos espaços. Para Rousseau, porém, os povos muitas vezes  iludem-se ao pensar que estão indo rumo ao melhor, trilhando a rota do progresso, quando caminham, na verdade, rumo à barbárie, ainda que esta se oculte sob um véu de adornos, riquezas e polidez…

É bem conhecido, quase senso-comum, o “Mito do Bom Selvagem” de Rousseau — que sintetiza de modo muito eloquente todas as críticas e suspeitas que o filósofo dirigia à figura da Civilização.  J.J.Rousseau,  numa otimista perspectiva sobre a natureza humana, sustentava a tese de que haveria uma “bondade natural” no ser humano não-civilizado e que seria a sociedade (com seus vícios, desigualdades, discórdias, desarmonias, ganâncias, luxos, futilidades, duelos de propriedade etc.) que corromperia este idílio primevo. Contrapondo-se à Hobbes, que em seu Leviatã pinta com cores sombrias o “estado de natureza”, em que vige a “guerra de todos contra todos” e os humanos vivem apavorados, sob constante ameaça de violência, Rousseau descreve o “estado de natureza” como algo que beira o “idílico”.

Romantismo datado e obsoleto? Pelo contrário! Pensemos num exemplo altamente contemporâneo onde uma mentalidade “rousseauísta” mostra-se viva e atuante: em Into The Wild – Na Natureza Selvagem (livro de Jon Krakaeur recentemente adaptado para o cinema, com direção de Sean Penn), o personagem principal revolta-se contra as iniquidades e os luxos supérfluos da sociedade-de-consumo capitalista, corta as amarras que o prendem à esta civilização, e lança-se a uma existência mais autêntica e livre em meio à natureza indomada, como um Robinson Crusoé voluntário, colhendo em sua jornada muitas sabedorias e epifanias…

O que Rousseau está pondo em cheque, bem antes de Freud versar sobre o “mal-estar na civilização” (que decorreria, segundo este, da repressão de nossos instintos naturais que seria necessária ao processo civilizatório), é a “possibilidade da felicidade” no estado civilizado. É como se Rousseau estivesse perguntando à humanidade: não seríamos mais felizes se levássemos uma vida mais aparentada àqueles que chamamos de “selvagens”, se nos livrássemos da obsessão com a propriedade privada, se nos desfizéssemos das quinquilharias e bugigangas da civilização…? Sugestão profundamente atual, já que, p. ex., nossa sociedade consumista nos persuade, dia a dia, pela propaganda explícita ou subliminar, dos êxtases que teremos comprando e possuindo itens que são, de resto, absolutamente supérfluos…

“Eu pergunto”, diz Rousseau, “qual é a vida, civil ou natural, mais sujeita a se tornar insuportável aos que dela desfrutam. Vemos à nossa volta quase que apenas gente a lastimar-se da existência, e mesmo inúmeras criaturas que dela se privam… Eu pergunto se alguma vez se ouviu dizer que um selvagem em liberdade haja apenas sonhado em queixar-se da vida ou matar-se…” (D.O.D., p. 164).

Indo na contra-mão da noção comum de que um “selvagem” é bestial, cruel, sanguinário e “sem coração”, como se não tivesse nenhuma consciência moral ou super-ego, Rousseau sustenta que a empatia/identificação existe em alto grau já no estado de natureza e que o “selvagem” possui uma “repugnância inata de ver sofrer o semelhante”, tendência que encontramos também nos animais e que é o princípio das outras virtudes (como a generosidade, a clemência, a humanidade).

Só após a instituição da propriedade privada e a abolição do estado natural é que o “vício moral” surgiria. É uma tese que Freud, mais pessimista, irá recusar: “A agressividade não foi criada pela propriedade”, escreve ele em “O Mal-Estar na Civilização”. “Reinou quase sem limites nos tempos primitivos, quando a propriedade ainda era muito escassa…” (FREUD, pg. 168).

Contrário a esta noção de uma “agressividade sem limites” dos selvagens e dos indígenas, Rousseau destaca que esta comiseração de que fala é anterior à toda reflexão: não é por pensar na dor do semelhante que nos compadecemos dela, mas é por sentirmos que ele padece, por identificação e empatia, pela imaginação e pela sensibilidade, que nasce em nós, a despeito da razão, este sentimento natural de piedade.

Há, pois, um sentimento espontâneo de compaixão que serve como fundamento da moral, idéia que encontra-se também em ancestrais filosofias orientais: como em Mêncio, na China Antiga, o que François Jullien bem apontou em seu livro Fundar a Moral, onde procura estabelecer um diálogo entre a ancestral sabedoria chinesa e a filosofia das Luzes:

“qualquer um que vê uma criança quase caindo num poço é tomado por um temor violento e se precipita para salvá-la. Ora, não se faz isto para obter as boas graças dos pais da criança, nem para atrair os elogios dos vizinhos ou dos amigos, nem mesmo para evitar uma má reputação. O que caracteriza este sentimento do insuportável, diante da infelicidade do outro, é que ele não procede de nenhum cálculo, não é objeto de nenhuma reflexão, e a reação é espontânea” (JULLIEN, pg. 11).

Em Rousseau sugere-se que o “desenvolvimento da razão”, no homem-civilizado, apresenta-se concomitante com um certo “refreamento” de sua capacidade de empatia e de um exacerbamento de uma tendência “individualista”, atitude que consiste num “tapar os ouvidos” aos lamentos alheios. Já o selvagem, segundo ele, vive num estado de consciência muito mais apto à identificação e à compaixão com os outros, e é “visto a entregar-se atordoadamente ao primeiro sentimento humanitário” (D.O.D., 168).

Visão “otimista” e “idílica” da natureza humana, certamente, que considera uma “repugnância de praticar o mal” que é “experimentada por todos os homens, independentemente das máximas da educação” (D.O.D., pg. 169). Contra a visão socrática de que a virtude só decorre do trabalho racional, de que o fazer-o-bem é decorrência do conhecer-o-bem, Rousseau destaca que há uma espécie de “bondade natural” que antecede a razão, e sem a qual “o gênero humano já de há muito não existiria” (D.O.D., 169). Mas ele faz a ressalva importante, no Emílio, de que “para impedir a piedade de degenerar em fraqueza” é essencial que só nos entreguemos a ela “na medida em que estiver de acordo com a justiça”; ademais, mais vale “ter piedade com a nossa espécie do que com nosso próximo” (Em, p. 303).

A piedade, pois, não é “ensinada” – e o “ensino civilizado” talvez somente a resfrie e amaine, ao invés de exaltá-la e expandi-la. A civilização, de certo modo, engendra o egoísmo e o isolamento dos eus, fabrica homens presos ao seu amor-próprio, que perderam contato com as genuínas manifestações de empatia e piedade pelo próximo que os que chamamos de “selvagens” manifestam de modo tão espontâneo. Isto é que, no estado natural, “faz as vezes de lei, de costumes e de virtude, com a vantagem de que ninguém intenta desobedecer-lhe a doce voz” (D.O.D., pg. 168).

* * * * *

De Prometeu a Fausto, os mitos se multiplicam alertando a raça humana sobre as ciladas da ciência, do excesso de saber, da busca incontida por conhecimento. Rousseau cita, no início da 2a parte do D.C.A., uma curiosa “tradição”, “passada do Egito à Grécia”, que conta ter sido um “deus inimigo do repouso dos homens” quem inventou a ciência (pg. 219)! O próprio Nietzsche, logo em sua primeira obra, A Origem da Tragédia, polemizava com Sócrates, o “primeiro dos homens teóricos”, questionando se esta “fome de ciência” não teria consequências funestas, se suas pretensões de verdade não seriam descabidas e se não haveria um mal em reprimir as tendências dionisíacas, sentimentais e ancestrais de nossos espíritos…

Pode-se dizer, portanto, que Rousseau foi um autor que “soou os alarmas” contra os “excessos da civilização” (com sua obsessão pela propriedade privada, pelo progresso técnico, visto quase como um fim em si, e pela “ciência instrumentalizada”) ressaltando tudo o que perdíamos e deixávamos para trás ao abandonar a “naturalidade”. Rousseau possui uma obra repleta do que os ingleses chamariam de cautionary tales, ou seja, contos que recomendam prudência e cautela – como ele mesmo sublinha na carta ao senhor Philopolis, ele procurou alertar os homens contra o “perigo de ir tão depressa” e contra “as misérias de uma condição que tomam como a perfeição da espécie.”

Como Sócrates fazia na Atenas de sua época, Rousseau desconfia da “eloquência frívola”, da “presunção” ao saber, dos “letrados ociosos”, dos “vãos e fúteis declamadores”, dos doutos cheios de títulos que pretendem ter atingido a verdade última sobre as coisas… Vê nisso sinais de decadência, ou seja, de “envelhecimento” do corpo político. Em vários momentos de seu Discurso Sobre as Ciências e As Artes, manifesta seu ceticismo em relação à suposta progressão simultânea e proporcional do conhecimento e da virtude. Para ele, os “homens-de-bem” se “eclipsaram” em sociedades em que as ciências e as artes alçaram-se alto demais. O trecho a seguir é bem representativo da radical crítica que Rousseau realiza contra aqueles que põe as vãs ciências acima das virtudes, e as honrarias mais alto que o bem:

“Não mais se pergunta a um homem se possui probidade, mas sim se tem talento; nem de um livro se indaga se é útil, mas se está bem escrito. As recompensas são prodigalizadas às belezas do espírito, e permanece a virtude desprovida de honrarias. Há milhares de prêmios para os belos discursos, nenhum para as belas ações.” (D.C.A., pg. 226).

Se na ética platônica o bem é decorrência de uma percepção racional do Bem em Si, de uma “ascensão” que vá além do domínio da sensibilidade e erga-se até às essências imutáveis do domínio inteligível, em Rousseau aparece uma certa disjunção desta duas ordens, o saber e a virtude. Ele, por exemplo, elogia Esparta, “cidade tão célebre por sua feliz ignorância”, onde as inúteis doutrinas eram devidamente desdenhadas, enquanto suspeita de Atenas, “residência da polidez e do bom gosto, país dos oradores e dos filósofos” (D.C.A., pg. 215).

Para Rousseau, “as almas se foram corrompendo à medida que nossas ciências e nossas artes avançaram para a perfeição” (D.C.A., pg. 213). Do mesmo modo que o homem foi tornando-se cada vez mais corrupto e depravado ao afastar-se do estado natural, sendo a sociedade civil aquilo que engendra as desigualdades e as guerras, a “virtude” também foi sendo escamoteada pelas ciências vãs e pelas artes frívolas. A polidez, a aparência, a pompa, a futilidade, a vã curiosidade, o ornamento, a presunção de saber, a pseudo-sabedoria etc. tomaram o lugar do “bom coração” e da virtude “simples” do homem natural.

Rousseau não cinde o homem em dois domínios, o racional e o sensível, estabelecendo uma hierarquia de valor entre ambos, à maneira platônica-cristã, mas considera que a razão e as paixões são fenômenos correlatos, que aparecem e se desenvolvem “mesclados”, sendo impossível conceber o funcionamento de um “independente” do de outro.

“Digam o que quiserem os moralistas, o entendimento humano muito deve às paixões, as quais, de comum aprovação, também muito lhe devem. É graças à sua atividade que a nossa razão se aperfeiçoa. Procuramos conhecer por desejarmos desfrutar. E não é possível conceber por que se dará ao trabalho de raciocinar quem não tiver nem desejos nem receios.” (D.O.D., 155)

Não faz, portanto, um elogio de uma “razão” que fosse “fria”, neutra, desprovida de quereres, empenhada num conhecimento no qual não se imiscuísse nenhum desejo, mas aponta a necessidade crucial de concentrar esforços não somente em empreendimentos racionais, científicos, artísticos (em suma: civilizatórios), mas atentar para a virtude e para o bem. Pois o bem-fazer é mais importante que o bem-dizer. E o cultivo das virtudes é um valor superior à aquisição de eloquência ou vãos saberes.

“Ó virtude! Ciência sublime das almas simples!”, diz ele ao fim do Discurso Sobre as Ciências e as Artes, tomado por um certo lirismo romântico. “Não estão teus princípios gravados em todos os corações? E não é o bastante, para aprender tuas leis, entrar em si mesmo e ouvir a voz da própria consciência no silêncio das paixões?” Ele mesmo responde pela afirmativa: “Eis aí a verdadeira filosofia; saibamos contentar-nos com ela.” (D.C.A., p. 231).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
————————————————

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Trad. De José Octávio de Aguiar Abreu. Em Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

HOBBES, Thomas. Leviatã – ou Matéria, Forma E Poder De Uma Republica. São Paulo: Martins Fontes.

JULLIEN, François. Fundar a Moral – Diálogo de Mêncio com um filósofo das Luzes. Trad. Maria das Graças de Souza. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. A Origem da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social; Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens; Discurso Sobre as Ciências e as Artes. Trad. Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix.

——————————–. Émile, ou de l’éducation. Paris, Garnier, 1961.

VÁLERY, Paul. A Crise do Espírito.

* * * * *

SIGLAS UTILIZADAS:

C.S. = Contrato Social
D.C.A. = Discurso Sobre as Ciências e as Artes
D.O.D. = Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens
Em = Emílio ou a Educação