Consagrado em Cannes e no Oscar, “Parasita” expressa todo fedor e fúria da luta de classes

por Gisele Toassa e Eduardo Carli de Moraes

 “A história de toda sociedade que até hoje existiu é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre e oficial, em suma, opressores e oprimidos sempre estiveram em constante oposição; empenhados numa luta sem trégua, ora velada, ora aberta.” – MARX E ENGELS, Manifesto Comunista

Representando as novas formas da luta de classes em um contexto high tech, o filme “Parasite” (2019) consagrou-se como uma das mais importantes obras do cinema contemporâneo. Vencendo a Palma de Ouro no Festival de Cannes, o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro, o prêmio do público na 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, além de 4 estatuetas do Oscar (Melhor Diretor, Filme, Roteiro Original e Filme Estrangeiro), dentre outros prêmios. Tudo indica que a obra se tornou um emblema de nossos tempos – e um alerta sobre o porvir.

A trajetória extraordinária do cineasta sul-coreano Bong Joon-Ho culmina com esta obra-prima que expressa todo o fedor e fúria da luta de classes em um planeta de capitalismo globalizado. Na era dos drones, das mídias sociais onipresentes, dos enxames de entregadores de pizza de IFood e motoristas de aplicativos como Uber, em que o Google aparece como a pitonisa esclarecedora de quaisquer dúvidas – a guerra de classes não cessou.

Bong Joon Ho com a estatueta do Oscar no 92º Academy Awards – Los Angeles, USA – 09 / 02 / 2020

Bong vem de uma trajetória marcada por trabalhos que bagunçam as fronteiras entre o cinema de ficção científica e de horror – adicionando a este mix de sci-fi horrífico altas pitadas de comédia e colheradas de impiedosa crítica social. Assim o cineasta construiu uma trajetória recheada de obras-primas, como a sci-fi apocalíptica Snowpiercer (Expresso do Amanhã), o manifesto contra o especismo e a dominação dos humanos sobre os demais animais Okja, a denúncia da monstruosa poluição de recursos hídricos em The Host (O Hospedeiro) etc. Mesmo seus filmes de menor impacto popular – como A Mãe e Memórias de Assassinato – revelam um cineasta cuja força expressiva violenta e intensa evoca o cinema de Scorsese, Glauber Rocha, Hitchcock, Kusturica, dentre outros.

Para Bong, não é problema usar recursos de thriller de entretenimento para mostrar o fedor e azedume da vida dos pobres. Uma lição de sociologia se constrói nos pequenos dados dispersos de Parasita, esclarecendo através do microcosmo fílmico todo um contexto de precarização do trabalho, colapso da consciência de classe e ascensão social trambiqueira. Tudo em um contexto de exacerbada competição inter-individual promovida pela ideologia neoliberal: “Na sociedade capitalista de hoje”, expressou o cineasta, “existem castas que são invisíveis aos olhos. Nós tratamos as hierarquias de classe como uma relíquia do passado, mas a realidade é que ainda existem e não podem ser ultrapassadas.” (UOL)

CRÔNICA DA TRAGICOMÉDIA DO PRECARIADO

Parasita começa leve, evoluindo em uma comédia doméstica sobre a família Ki, composta por um casal de meia-idade e dois filhos adolescentes. Eles moram em um porão cuja janela fica à altura da rua. Logo no início da trama, em meio ao intenso calor, recebem em cheio as espessas nuvens de um fumacê anti-insetos disperso no bairro. Os Ki têm montado embalagens para delivery de pizzas, mas seu trabalho não satisfaz a contratante: caixas com cantos derreados, dobras mal feitas e outros defeitos.

Empilhadas em um canto da apertada casa, parecem ironizar os apólogos das novas formas de geração de renda, no qual trabalho, domesticidade e tempo livre deixaram de se distribuir em diferentes espaços. Ao invés das filas nas portas de fábrica, o mundo urbano se apresenta a esta família integrante do precariado através da janela da cozinha na forma de bêbados a urinarem, sem a vergonha ou outros biombos que costumamos associar à feliz privacidade doméstica.

Como destacou Matheus Pichonelli em seu artigo, nas primeiras cenas do filme:

“Dois irmãos caminham pelos corredores de casa com os celulares apontados para cima. Eles buscam conexão, e só encontram um wi-fi aberto perto da privada do banheiro-puxadinho de uma aberração arquitetônica que não reconhece a fronteira entre a rua e o espaço privado. Aquele porão, no subsolo de uma rua sem saída onde uma enxurrada é pena de morte e os bêbados vão urinar ao fim do dia, é onde vive uma família sem estudo e sem ocupação num país que em 50 anos saiu da pobreza extrema e se tornou uma potência tecnológica — mas, a exemplo de tantas nações, não foi capaz de encurtar as distâncias entre vitoriosos e esfolados.” (PICHONELLI, 2019)

Os Ki mostram precária solidariedade de classe: o pequeno clã familiar, sempre unido na luta pela sobrevivência, vai buscar outro emprego depois do trampo com a pizzaria ter gorado. Para os Ki, não importa quantos de seus semelhantes de classe eles tenham que prejudicar, o importante é ir busca de ascensão social, para longe daquele porão muquifento que fede a mijo e está sempre sob ameaça de inundação.

É o jovem Min, amigo da família, que mudará essa cena, primeiro concedendo como presente uma pedra com supostas qualidades mágicas, um amuleto da prosperidade, que presenteia a Ki-Woo, o filho da família Ki. Além disso, Min pede a seu amigo Ki-Woo para substituí-lo como tutor de inglês de uma adolescente rica, Park-Da-Hye.

Ki-Woo falhara quatro vezes nos exames de admissão à universidade e parecia estar longe de tornar-se um rival de Min no coração de Da-Hye. Porém, com documentos falsificados pela sua irmã Ki-Jung, Ki-Woo ingressa por indicação no mundo dourado da família Park, onde nada lembra bêbados, wifi roubado ou pilhas de caixas imprestáveis. Os patrões são um pote de ouro; além de ricos, são tolos.

Como destacou Pichonelli: “a chegada na mansão é a alegoria perfeita da ascensão social em uma Coreia tão dividida quanto hiperconectada —para estar ali, ele sobe todo tipo de escada.” A genialidade de Bong Joo-Ho, nesta obra, está conectada à sua capacidade de dar concretude à problemática da luta de classes. Esta sai das abstrações do pensamento econômico-político para se encarnar no concreto dos corpos – corpos que fedem e corpos perfumados, corpos que moram em mansões acessíveis só depois de muito subir escadas ou corpos que moram em subterrâneos onde sempre invade a água enlameada das enchentes ferozes.

Como escreveu Bernardo Parreiras no Recanto das Letras:

“Enquanto sua casa fica num subsolo, obrigando-o a descer para poder entrar, a mansão fica no alto, simbolizando o patamar dos vencedores, dos bem-sucedidos. (…) Acerca da disparidade entre a altura das moradias, revelando a desigualdade socioeconômica, ao colocar os ricos no alto e os pobres sempre abaixo, merece destaque a cena em que, sob um temporal, três dos empregados são forçados a fugir da mansão e, a caminho de casa, descem muito, como a água da chuva que escorre para os bueiros, e ao chegarem ao porão este está alagado. Ainda sobre a altura, chama atenção a localização de um objeto específico na casa dos pobres: o vaso sanitário, que fica em um patamar mais próximo do nível da rua, acima dos moradores, reforçando o rebaixamento deles, talvez para o esgoto.” (Fonte)

Em artigo para a Folha De São Paulo, que dedicou a capa da Ilustríssima ao filme, Guilherme Wisnik explorou este tema tão interessante da “arquitetura da opressão”, como eu a chamaria, mostrando as escadas no filme como um emblema da exclusão social. “O conflito de classes se espacializa na oposição entre a família rica, que reside em uma espaçosa e ensolarada casa na parte alta de Seul, e a família pobre, que habita o úmido e malcheiroso porão semienterrado de um edifício nos baixios alagáveis da mesma cidade” (WISNIK, G.)

O filme Parasita, afinal de contas, é uma obra pouquíssimo “imaginária” em contraste com Okja ou Snowpiecer, é quase Bong sendo hiper-realista, pois inspira-se nas vidas reais dos habitantes de porões em Seul (como revelou a reportagem da BBC). O jornal paulista aponta ainda que há mais similaridades entre a Seul de Parasita e Sampa em 2020 do que sonha a vã filosofia dos que passam pano pras núpcias sinistras e sanguinolentas entre neoliberalismo e neofascismo. “São Paulo vive o caos exibido no filme ‘Parasita'”, escreveu Naief Haddad em seu artigo para a mesma Ilustríssima.

A família Ki, em seu processo de tentar a ascensão social pela via dos trambiques, tornam-se uma espécie de precariado fissurado em fake: para subir na vida, é preciso atuar, fingir, vestir máscaras, a fim de enganar a classe que detêm os meios de produção e a capacidade de pagar salários. Assim, a família Ki parte pra cima do patronato, querendo ascensão social a qualquer preço, enquanto os de cima seguem desejando que os de baixo se mantenham servis, obedientes, quietos como ratos dopados em seus porões apertados, satisfeitos com migalhas.

Mostrando experiência digna de artistas do estelionato, em pouco tempo, todos da família Ki se empregam na casa da rica família Park. Ki-Jung torna-se a arte-terapeuta do excêntrico menino dos Park; o pai, motorista da família; e a mãe, governanta da casa. Sem dar pinta de se conhecerem, só têm em comum o cheiro do seu porão, detectado pelo menino Park. Como poderia ter dito Shakespeare, “há algo de podre no reino da Coreia do Sul”.

A riqueza disfarça todo e qualquer mal cheiro, mas a feia vida dos pobres sempre estará à vista. Costuma-se dizer que “a burguesia fede” mas tem grana para comprar perfume. No caso das famílias espelhadas de Parasita, o fedor da luta de classe salta aos olhos. Nesse caso, a cisão de uma sociedade rachada entre privilegiados e desvalidos é facilmente farejável pelo olfato.

OS FÉTIDOS PARASITISMOS DAS RELAÇÕES SOCIAIS CAPITALISTAS

Como escreve Parreiras, Parasita traz desde seu nome a noção de uma analogia entre os seres humanos na sociedade cindida pela luta de classes e fenômenos do domínio da animalidade mais visceral e mais fétida:

“A ideia de mostrar as personagens da trama como animais irracionais (insetos, parasitas), animalizando seres humanos, se faz presente de várias formas, inclusive no uso do olfato como meio de se perceber a diferença entre os ‘bichos’ de diferentes classes. Não é nada comum que pessoas – ainda mais habitantes de cidades grandes – usem o olfato para analisar e (re)conhecer outros indivíduos no convívio social. E é justamente o cheiro e a reação que ele provoca que denuncia as diferenças essenciais entre os núcleos e estabelece o maior conflito exposto na narrativa. Mesmo que camuflados em personagens bem construídos para ludibriar os ricos, os pobres não conseguem disfarçar o ‘fedor’ inerente à sua condição precária e subalterna, nem o vínculo familiar que os une. O cheiro que exalam é igual, segundo constata o filho caçula dos abastados, e o ‘fedor’ do motorista (pai ‘fracassado’) ultrapassa os limites tão caros ao pai bem-sucedido.” (PARREIRAS, op cit)

A família do privilégio, da riqueza ostensiva, da mansão, os winners da sociedade cindida são os Park. Com dinheiro de sobra, e tanto poder que é difícil resistir à tentação do abuso, os Park não se preocupam com o precariado. Demitem quando não gostam do trabalhador, e não se preocupam em nada, depois, com os trabalhadores demitidos. Na sua simplicidade, o ato de demitir não se apresenta como a trágica diferença entre vida e morte dos trabalhadores. Suspeitamos que os Ki tramam ação mais diabólica contra os patrões. Mas suas intenções se reduzem a manter seus novos empregos, em um tempo no qual uma vaga para vigia atrai não menos que 500 candidatos, entre os quais enfileiram-se até universitários.

É nesse humilde universo mental que nos permitirmos rir do patrão, que, muito preocupado com o estado de seus trajes após a demissão da governanta, recebe um cartãozinho do pai-motorista Woo, elogiando certa empresa prestadora de serviços domésticos. Mas, do outro lado da linha, espera Ki-Jung, fazendo-se de consultora sênior que exige suposta comprovação de renda dos contratantes Park, quando, de fato, apenas medeia a admissão da própria mãe.

Os Park confiam nas indicações dos seus empregados, mas engolem com apetite o simulacro de um serviço doméstico exclusivo, ou de credenciais falsas de uma Universidade americana. De pronto torceriam o nariz para esses pobres ratos humanos dos Ki – caso desde o princípio os patrões não tivessem sido conquistados pela encenação. Afinal de contas, o precariado pode até feder, mas de vez em quando descola um troco para comprar um perfume e sentir-se, junto com os ricos, como se estivesse entre os seus – mas logo re-explode a guerra, contradição social pulsando no âmago da cidade cindida. A mímesis que o oprimido opera em relação ao ethos do opressor é o que Parreiras destaca como tema importante do filme:

“Neste processo, é interessante destacar uma estratégia da família pobre que se assemelha ao que alguns insetos fazem para sobreviver na natureza e que pode passar despercebida no filme: a mimetização, que é a capacidade de copiar hábitos, cores ou formas de outro organismo ou ambiente para se proteger; uma espécie de imitação ou camuflagem. E neste ponto, creio que haja uso de metalinguagem, pois os atores representam personagens que fingem ser outras pessoas (com formações, origens e experiências distintas) por meio de atuação, havendo uma cena em que os malandros repassam as falas de um roteiro criado para o pai, num claro ensaio da dramatização arquitetada para enganar os ricos e convencê-los a satisfazer os interesses da trupe teatral.” (PARREIRAS, op cit)

 


LUDIBRIANDO OS RICOS

Como no Brasil, essa modernidade parece epidérmica: os filhos continuam a trabalhar praticamente de graça para os patrões dos pais, enquanto milionários julgam abraçar a meritocracia moderna. O clima é de uma descontraída gincana televisiva, pouco mais que um reality show, e nós, espectadores, temos de admitir: ludibriar tem o seu lado divertido, ainda mais quando os alvos são os ricos. Vencer é bom, ainda mais quando o fazemos por equipes. Abrir nosso próprio caminho é válido, ainda mais quando somos astutos.

A desigualdade das condições dos concorrentes, ou a humilhação dos humilhados ficam fora de cena, como o lixo que produzimos e cujos efeitos sócio ambientais não enxergamos – para lembrar as poderosas meditações de Zygmunt Bauman sobre a indissociável relação entre os planos e os resíduos que eles produzem [ver Vidas Desperdiçadas]. Nós brindamos ao prazer dos sofridos vencedores, que desfrutam da sala de estar dos seus duplos milionários com uma alegria desconhecida em seu medonho porão.

“Os refugiados, os deslocados, as pessoas em busca de asilo, os migrantes, os sans papiers constituem o refugo da globalização. Mas não, em nossos tempos, o único lixo produzido em escala crescente. Há também o lixo tradicional da indústria, que acompanhou desde o início a produção moderna. Sua remoção apresenta problemas não menos formidáveis que a do refugo humano, e de fato ainda mais aterrorizantes – e pelas mesmíssimas razões: o progresso econômico que se espalha pelos mais remotos recantos do nosso planeta “abarrotado”, esmagando em seu caminho todas as formas de vida remanescentes que se apresentem como alternativas à sociedade de consumo. (BAUMAN, 2005, p.76, via Colunas Tortas.)

Esvaziando as garrafas dos Park, eles fazem planos e desfrutam de uma vista esplêndida do gramado através dos janelões de vidro, nessa ex-casa projetada por um famoso arquiteto, onde a luz se infiltra com o desembaraço da mais íntima das amigas, dessas que chegam e se espalham sem precisar de licença nem convite. De olhos abertos, eles se autoenganam. O conforto, a beleza, a segurança daquela mansão os fazem esquecer o seu enorme currículo de subempregos, e a incerteza guardada no porão do seu subúrbio. Edward Thompson, o grande marxista britânico, veria nos Ki exemplares de uma classe trabalhadora que não se apropriou de qualquer consciência de classe (THOMPSON, 1981).

A experiência social da família protagonista de Parasita se faz à margem da consciência política. Sua sobrevivência depende de um sincrético arsenal de estratégias que mistura savoir faire e estelionato, futilidade e saber verdadeiro; a arte de forjar documentos e a de dirigir uma Mercedes.

Julgando pela superfície da convivência doméstica – que se traduz em uma intimidade ilusória para a família Ki – eles consideram que as pessoas ricas seriam ingênuas, inexperientes. Se pensar é resolver problemas, pensará mais e melhor quem os tiver em quantidade – e, neste sentido, poderia afirmar Thompson, como os marinheiros sabem das correntes marítimas, o sapateiro das diferenças do couro, os Ki, que são trabalhadores de uma economia de serviços domésticos, sabem do universo psicossocial da classe que os avalia. O que é tão ou mais importante do que dominar os saberes de suas atividades laborais. Afinal, arte-terapia, área que Ki-Jung apenas finge praticar, pode ser rapidamente aprendida em tutoriais de Internet ao se recorrer ao inestimável auxílio do Google.

Os problemas dos Ki aparecem-lhes como pessoais e não coletivos, como problemas deles como indivíduos e não da classe social a que pertencem. Uma das armadilhas do trabalho doméstico é ser atravessado por uma personalização: importa que a patroa queira os lençóis dobrados à direita ou à esquerda, ou que o patrão aprecie duas ao invés de três colheradas de açúcar em seu café. Neste trabalho, sempre servimos a alguém. Em tom quase culpado, admite o pai que nos patrões “tudo é passado a ferro, sem vincos”.

Conhecendo os vincos e lisuras das calças e das almas dos patrões, parece mais fácil ao trabalhador doméstico se iludir sobre a desumanidade que o mantém como as mãos e pés de uma classe que os torna uma extensão corporal de si mesma. Trata-se de uma opressão menos evidente, e mais complexa, que a dos operários na frieza e monotonia da fábrica; opressão na qual alguns podem ser punidos por dobrar os lençóis à direita e não à esquerda, enquanto as maldades da classe patronal fogem ao nosso texto, por sua extensão e gravidade. A estreiteza de seu saber político fazem os Ki acumular uma amoral experiência social.

O pensar dos Ki frequentemente se reduz a estratégias de sobrevivência a curto prazo. São produtos da reforma do espírito concebida por Thatcher, segundo quem “a sociedade não existe, apenas homens e mulheres individuais” – e, acrescentou depois, suas famílias. Todas as formas de solidariedade social tinham de ser dissolvidas em favor do individualismo” (Harvey, 2014, p. 32).

Os Ki não enxergam horizonte para além de sua existência como família, fora da qual os seus iguais em matéria de classe se apresentam na posição abstrata de competidores a vencer. Mas, a despeito de si mesmos, são percebidos pelos patrões em sua condição social pelo fedor que exalam, o mesmo das multidões no metrô. Que as consequências das faltas éticas dos Ki se mostrem no retorno dramático da velha governanta e seu marido, um pobre-diabo confinado a um porão, o espectador não imaginaria. É então que nossos protagonistas absolvem-se de sua duvidosa conduta moral, pois vemos como não são os únicos a enganar a classe proprietária em prol de uma sobrevivência mínima, mais que aviltada.

No mundo do darwinismo social, as únicas ações passíveis de criminalização são os que delas precisam – os pobres – pois os ricos serão sempre absolvidos, antes mesmo de serem acusados, motivo pelo qual muitos identificam, na reforma do espírito pelo neoliberalismo, o advento de uma razão irremediavelmente cínica.

A governanta e seu marido se apresentam como o espelho negativo dos Ki, ou seja, a imagem do precariado assolado pelo desemprego e pelas dívidas. Sua aparição coloca em risco a teia de mentiras na qual se enredaram.

Pichonelli destaca:

“Em uma cena antológica, uma das personagens ameaça divulgar uma foto comprometedora da família num app de mensagem instantânea. Ela então se autonomeia Kim Jong-il, o ditador da vizinha Coreia do Norte que poderia acabar com a paz apertando um botão vermelho, porque a possibilidade de detonar reputações lhe dá poderes “explosivos”. As vítimas do flagrante ficam com as mãos para cima diante do celular apontado contra elas e prestes a efetuar o “disparo” a qualquer momento. Todos temem o compartilhamento da “verdade”. O que une os lados no país do celular mais vendido do planeta são os aplicativos de comunicação e troca de conhecimento. É ali que se estabelece uma conexão entre as classes, que mal convivem fora de suas bolhas.” (PICHONELLI, op cit)

Parreiras destaca ainda:

“Outro ponto a se destacar é a descoberta de que o marido da ex-governanta vive numa espécie de bunker desprezado pelos ricos, diante da história que revela medo e covardia que levaram à construção do esconderijo, à época valorizado e, atualmente, motivo de vergonha. A trama surpreende ao revelar que a ex-governanta, mostrada como uma empregada muito eficiente e profissional, esconde seu marido dentro da casa dos patrões. Esta surpresa, que poderia unir os trabalhadores pobres e subalternizados, não tem este efeito agregador, que se prendem às diferenças, ainda que irrelevantes, e entram em conflito, demonstrando a divisão e desorganização que esvaziam a possibilidade da ação coletiva de classe capaz de alterar a estrutura do sistema. Mais uma vez prevalece o individualismo, sem dúvida um reflexo do acontece na prática, diante da ideologia capitalista em que as personagens estão imersas.”

Contudo, supomos que pouca ou nenhuma consequência desses “malfeitos” faria diferença aos patrões, não fosse por um fato mais imprevisível e genuíno, a revolta espontânea do pai Ki contra o patrão Park. É um sinal concreto de ódio de classe a emergir no filme logo após trágicos fatos, dos quais destacamos um: a rejeição de Park à familiaridade de uma indagação de seu motorista. O patrão rejeita a reciprocidade de tratar com seu motorista como se essa conversa fosse entre seres singulares, pais de família, e não do patrão que contrata o empregado como força de trabalho a ser paga com horas extras.

O absurdo fantasiar dos oprimidos em viver como os opressores se mostra em uma das mais marcantes cenas do filme, aquela na qual Ki-Jung, impotente demais até para sair do lugar, senta-se na privada e acende um cigarro em meio ao esgoto que brota da banheiro inundado. Sua família é personagem do roteiro ideal do precariado, o de estar todo empregado, mas em uma Coreia neoliberal, após o enfraquecimento dos sindicatos, onde não há sequer garantias de sobrevivência – que dirá de conforto! – a quem trabalha.

Mesmo à base de pleno emprego e horas extras, os Ki não conseguem se garantir e estão condenados à insatisfação laboral, aquilo que ajuda a construir também aquela fúria plebeia que às vezes explode nas ruas em insurreições pontuais e sem horizonte (há muito o que dizer sobre as Jornadas de Junho de 2013 e este precariado despolitizado que visa expressar sua fúria diante do fedor da sociedade capitalista cindida em classes antagônicas).

Seja qual for a tragédia do dia anterior, na manhã seguinte os pobres precisarão pôr um sorriso no rosto e trabalhar pesado para satisfazer aos caprichos dos que moram nos salões iluminados, abafando até mesmo os gemidos de esforço que possam ferir os sensíveis ouvidos dos ricos, para não falar do ofensivo fedor de seus porões. Para a emergência da consciência de classe para os Ki faltou algo mais: o gesto amoroso de solidarizar-se com seus semelhantes mais próximos. De esboçar com eles uma convivência. Esta tende a ser dolorosa por fundar-se não apenas nas imagens de um jardim ensolarado, mas também na teia comum de ofensas e tragédias que, de tempos em tempos, explodem como a base real de uma sociedade fétida, deixando de viver nos porões do esquecimento.

Parasita faz a crônica do espírito deformado pelo neoliberalismo em uma sociedade fétida de que somos contemporâneos – e talvez cúmplices. Aqui, vemos em atividade o que Fritz Perls poderia chamar de um “modo de existir preocupado”, no qual a vigilância é indispensável.

Já os Park precisam de um mundo estendido, multiplicado pelas mãos dos seus muitos prestadores de serviços. O mundo artificial – e monótono – dos Park se apresenta no persistente role play do filho, que, fazendo-se de índio de faroeste, cisma de dormir na barraca montada no gramado, sob a condescendente vigília parental, quando já se acabara o curto período de sonho dos seus duplos.

Diversamente de Dorian Gray, jamais foram obrigados a se olharem no espelho de sua própria classe. Rodeados de segurança; com tempo sobrando para dedicar às ocupações mais tolas, na certeza de que os empregados são coisas, os Park são dessa gente rica que não desconfia de muita coisa, muito menos de que é a opressão encarnada, apesar de suas máscaras de civilidade.


COMO O VÍRUS NEOLIBERAL PARASITA NOSSOS CORPOS E MENTES

A ideologia neoliberal, internalizada pelos sujeitos que a ela aderem sem crítica, acaba se tornando-se uma força psíquica que recalca a consciência de classe e a possibilidade de solidariedade. Reprimindo a jornada do sujeito rumo a ir-além-de-si-mesmo, transcendendo-se na coletividade de que participa, a ideologia individualista e competitivista do neoliberalismo condena à desunião. Se “não há sociedade”, só indivíduos e famílias, como papagueava a papisa neoliberalista Margaret Tatcher, então está tudo “liberado” para o egoísmo reinar sem freios.

Recuperam-se assim as lições de Adam Smith, desenterrando uma lendária Mão Invisível que, na obra de Smith, está tão bem escondidinha que quase não dá o ar de sua graça, Através deste truque circense da providencial Mão-Que-Não-Se-Vê, pode-se pregar a todos: sejam indivíduos liberados para agir com total egoísmo, norteados pelas ambições individuais, pelas cobiças de consumo, pela ânsia de riqueza de que outros estarão privado, pois o novo Deus Todo-Poderoso – a Mão Invisível do Mercado! – irá providenciar a prosperidade geral em uma sociedade em que cada um corre atrás de alimentar o próprio umbigo.

A família nuclear, no caso de Parasita, reduz-se a uma espécie de egoísmo ampliado, de narcisismo compartilhado, servindo como a bolha-das-bolhas. É claro que, socialmente, os membros das famílias integram outras bolhas sociais além da familiar – seja o de colegas de trabalho (a bolha laboral), seja o de outros estudantes com quem compartilhem espaços de ensino (a bolha educacional), seja a das conexões que possuem pelas mídias digitais (a bolha cibernética).

Porém, no panorama que parte do indivíduo e abarca bolhas concêntricas cada vez mais amplas, a família representa a bolha mais estreita e a mais confinante. A ideologia neoliberal, desnudada no dito de Margaret Tatcher, triunfante na prosa pregatória de Ayn Rand, presente em Milton Friedmann e na ditadura Pinochetista-Yankee que ele colaborou em produzir, quer que indivíduo e família reinem supremos, como valores hierárquicos superiores: indivíduo e família são a via para uma vida digna do humano temente à Deus, são o caminho do Bem, aquilo no quê devemos investir. Assim entram em eclipse e corroem sua vitalidade outras formas de pertença social, outras maneiras de fazer parte de outros todos que podemos integrar (não só o partido, o sindicato, o movimento social, a ONG, mas também a banda, a trupe, o projeto transformador coletivo).

Isto dá o que pensar sobre as transformações históricas que culminaram com o advento do capitalismo. O filósofo australiano e fundador da School of Life, Roman Krznaric, propõe um experimento mental muito interessante que culmina com reflexões de Karl Marx sobre o vampirismo do capital. Imagine que você tivesse nascido na Europa medieval; vivendo naquela época, você descobriria que

“a vasta maioria da população era constituída por servos, presos a propriedades rurais e aos caprichos de seus senhores, num sistema feudal de servidão. A Revolução Industrial e a urbanização nos séculos XVIII e XIX proporcionaram uma libertação ambígua da ordem social quase estática do feudalismo. Sim, você fora emancipado da servidão e dos grilhões das guildas, mas agora era um hóspede da ordem burguesa, um ‘vampiro que suga sangue e miolos e os atira no caldeirão de alquimista do capital’, como expressou Karl Marx de maneira tão delicada.” (KRZNARIC, 2013, p. 95)

Ao falar do vampirismo do capitalismo, Marx obviamente se referia aos detentores do capital, mancomunados entre si com o cimento do interesse de classe, que como sanguessugas se apropriam dos frutos do trabalho alheio.

De Marx pra cá, a lógica do sistema capitalista alterou-se num sentido do exacerbamento da taxa de exploração  e do incremento dos efeitos catastróficos do capitalismo no que diz respeito às condições ambientais e laborais. O instituto Tricontinental, por exemplo, calculou a taxa de exploração do Iphone da Apple, emblema deste processo. A ascensão de governos que fundem o neoliberalismo econômico com a repressividade neofascista, como Bolsonaristas no Brasil, revelam o pânico das elites diante das consequências de seu próprio vampirismo parasitário, que gera um incremento tanto das desigualdades e injustiças sociais quanto da degradação ecológica-ambiental.

Isto se deve fundamentalmente às falhas estruturais deste sistema que produz sem cessar o monstro do parasitismo – como melhor exemplificar isto do que falar dos parasitas do mercado financeiro, que nada produzem de efetivo e só ficam impondo opressões enquanto brincam em suas Disneilândia do Cassino-Capitalismo?

Com os capitais que acumularam através do roubo instituído conhecido por extração da mais-valia, os grandes capitalistas globais que hoje investem em ações na Bolsa são o supra-sumo do parasita; assim como a classe rentista, que trabalha sentando na própria bunda e só recebendo a grana dos aluguéis pagos por aqueles desprovidos de propriedade imobiliária.

Os proprietários são os parasitas sociais supremos. O problema – que Parasita de Bong explicita – é que a deformação psíquica disseminada pela hegemonia neoliberal transforma a ânsia de ser proprietário, o desejo de ser rico, o sonho de tornar-se capitalista, em uma espécie de clichê, de fôrma padronizada para a produção em massa de subjetividades individualistas, “familistas” e narcisistas até a doença. Soma-se a isso o colapso de uma educação que formasse a consciência de classe dos estudantes em prol do engajamento em movimentos coletivos de transformação social.

Vivemos em uma era de ascensão do precariado enquanto classe, mas os precários ainda estão bem pouco conscientes de sua força coletiva – apesar de uma ou outra greve que estoura contra a Uberização trabalhista, os McEmpregos e a epidemia dos empregos de merda (fenômenos dos quais o antropólogo anarquista David Graeber é um excelente comentarista).

O mercado de trabalho organizado pelo capitalismo neo-liberal contêm todas os males de origem de uma estrutura carcomida por uma fétida injustiça que se produz e reproduz sem cessar. Pelo menos até que uma classe diga “basta!” e resolva, na encruzilhada histórica que oferece as opções “Socialismo ou Barbárie!”, dar um virada revolucionária para outra realidade possível que não a continuação indefinida da horrenda barbárie capitalista.

A barbárie do vampirismo capitalista só se agrava com a injustiça das barreiras que interpõem-se à ascensão social de mulheres, dos corpos marcados como racialmente inferiores, das pessoas estigmatizadas como criminosos sexuais-afetivos, dos povos colonizados pelo imperialismo escravocrata e seus descendentes etc.

Os “párias do mundo”, os que não são ninguém, a legião dos nadie, a horda imensa dos Nowhere Men de Lennon e McCartney, expõem a olhos vistos que o capitalismo gera exclusão. Para ele, riqueza é privilégio e não bem a ser compartilhado com todos. E assim seguimos em uma realidade onde ser mulher, afrodescendente, homossexual ou imigrante te faz automaticamente ser um pária do sistema, contra quem os parasitas que se apossaram de muito capital levantam as barricadas feitas com suas tropas de choque, com seu gás lacrimogêneo, suas bombas de (d)efeito moral, suas tropas fardadas, suas penitenciárias lotadas, seus atômicos arsenais de weapons of mass destruction.

A coexistência de bilionários e miseráveis é a obscena realidade que se manifesta explicitamente onde quer que o capitalismo neoliberal tente estabelecer seu chocante reinado:

“A pobreza assegura a existência permanente de uma classe mais baixa, cujas escolhas de trabalho estão limitadas a enfadonhos McEmpregos no setor de serviços. (…) O problema foi exacerbado pela erosão do ‘emprego vitalício’, ao longo das últimas três décadas (1990s, 2000s, 2010s), em decorrência do enxugamento das empresas, dos contratos por curto prazo e dos empregos temporários, a pretexto da ‘flexibilização’ do mercado. (…) Levantamentos realizados pela Work Foundation e outros institutos mostram repetidamente que 2/3 dos trabalhadores da Europa hoje estão insatisfeitos com seus empregos e sentem que suas carreiras atuais não correspondem às suas aspirações.” (KRZNARIC, op cit, p. 97-98)

Se Parasita tornou-se um filme emblemático de nossa época, isso se deve ao fato de que Bong Joon-Ho e sua equipe retrataram, na Coréia do Sul, algo que vem ocorrendo globalmente: a corrosão dos empregos vitalícios, a ascensão do precariado, a crescente dominação da ideologia meritocrática, as formas atuais de fusão entre neoliberalismo e neofascismo (representada na América pelos governos de Trump e Bolsonaro).

Sintomático disso é o fato de que, poucos dias antes de Parasita ser consagrado como o grande filme de 2019 na cerimônia da Academia de Cinema em Los Angeles, o Ministro da Economia de Bolsonaro, um fã de Pinochet e dos Chicago Boys, Mr. Paulo Guedes, comparou os funcionários públicos do país a parasitas. Tudo parte de um projeto de privataria generalizada em que o Mercado pretende abocanhar tudo o que antes era gerido pelo Estado.

Banqueiros e rentistas são os verdadeiros parasitas sociais, os maiores sanguessugas do trabalho alheio, que só coçam o saco e contam seus dólares enquanto “o resto” labuta. Guedes, que fez carreira como banqueiro, irmãozinho duma senhora que está entre as privatistas-mor da Educação Pública, é a própria encarnação do parasita da elite predatória. Guedes, xingando os outros de parasitas, é o cúmulo do processo psíquico de projeção, no outro, daquilo que se é. Ele vê um parasita no espelho todos os dias.

Em meio à enxurrada de frases grotescas de políticos desqualificados que proferem horrores em jato contínuo, as fala de Guedes em Davos conseguem sobressair pelo seu absurdo ofensivo e por sua estupidez explícita. É sério que a gente não acordará deste pesadelo, desta surrealidade onírica de ter um Ministro da Economia do desgoverno neofascista soltando coices (me recuso a chamar isto de “argumento”) e xingando todos os servidores públicos de “parasitas”? Dá vontade de mandar Mr. Guedes tomar… uma dose daquele blues, “Before You Accuse Me, Take a Look At Yourself”.

Nós, que trabalhamos como servidores públicos federais da educação, sabemos bem que aquilo que predomina é o trabalho duro, muitas vezes sub-remunerado, na nossa lida cotidiana. Porém, no delírio psicopata dos bozolóides, estamos praticando o parasitismo enquanto eles cuidam do progresso de uma nação-de-Deus onde prosperam os cidadãos-de-bem, devidamente armados com revólveres, bíblias e camisetas “Ustra Vive”.

Seu Jair, que parasitou o Estado por mais de 30 anos sendo um parlamentar pior que inútil (pois nefasto), ao se alçar à presidência em uma eleição fraudada e ilegítima conseguiu se cercar de um séquito de abortos humanitários que estão levando sempre suas declarações a graus ainda mais vis de baixeza. Esta diarréia de que os servidores públicos são todos uns parasitas merece destaque no show de horrores a que já estamos nos acostumando (ainda que não devêssemos nunca nos acostumar a tais níveis de ofensa à nossa dignidade).

O pior de tudo é que não se trata só de falação: os capetões vem aí com a política de Jack o Estripador, inspirados no Pinochetismo e nos Chicaco Boys, pra terminar de estripar as condições dignas de trabalho para servidores públicos – eles nos querem todos precários. E patriotários. A elite parasita sabe que a guerra de classes não acabou – e, como confessou um bilionário, Warren Buffet, “os ricos estão ganhando”. Porém, os dados ainda estão rolando e a única certeza que a vida nos concede, além da morte que é seu horizonte constitutivo, é a de que o tempo está sempre fluindo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, ZygmuntVidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

GRAEBER, DavidA sociedade dos empregos de merda. Site Outras Palavras.

HADDAD, Naief. São Paulo vive o caos exibido no filme ‘Parasita‘. Site da Folha de S. Paulo, 2020.

HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

KRZNARIC, Roman. Sobre a Arte de Viver – Lições da história para uma vida melhor. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

PARREIRAS, BernardoAfinal, quem são os parasitas?Site Recanto das Letras.

PICHONELLI, Mateus. Conectados e alienados: ‘Parasita’ brilha com luta de classe high-tech. Site do UOL.

THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria – Ou um Planetário de Erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

TRICONTINENTAL. O Iphone e a taxa de exploração. Site do Instituto Tricontinental.

WISNIK, Guilherme. Conflito de ‘Parasita’ se revela em casas de ricos e pobres. Folha de S. Paulo, 2020.

 

OUTRAS TRAVESSIAS SUGERIDAS

O Globo -“‘Parasita’ sintetiza décadas de investimentos públicos no mercado audiovisual, que desde os anos 1990 passou a ser visto pela Coreia do Sul como um setor estratégico para o desenvolvimento do país e a conquista de novos mercados, responsável por fenômenos como o K-Pop.”

BAIXAR O FILME (TORRENT) – PARA USUÁRIOS DO FÓRUM MAKING OFF

O OCULTAMENTO DOS MASSACRES NEOLIBERAIS: A Necropolítica do burgofascismo não só mata, ela oculta de nossa consciência suas atrocidades

NA ERA DOS MASSACRES NEOLIBERAIS

“Nem mesmo os mortos estarão a salvo do inimigo caso ele ganhe, e esse inimigo não cessou de ser vitorioso.”
WALTER BENJAMIN, Teses Sobre o Conceito de História

Ilusões ingênuas sobre o “capitalismo com rosto humano” vão colapsando no continente: o capitalismo desumano se desnuda. O Chile insurgente obriga o que resta do sistema Pinochetista a conceder a Constituinte, e o país passará em breve pelo duro processo de parto da Constituição nova em 2020; a Colômbia realiza as maiores greves gerais das últimas décadas, na esteira da vitória do movimento cívico do Equador, que obrigou Lênin Moreno a recuar de seu pacto com o FMI; na Bolívia, após a derrubada do governo do MAS, proliferam as atrocidades cometidas pela “Direita Gospel” que “pôs a Bíblia de novo no Palácio Quemado”.

A derrota eleitoral de Macri na Argentina é outro sinal de que as políticas neoliberais não encontram mais tanto respaldo nas urnas. No Brasil, assim como se deu no Chile a partir do golpe de 1973, após o Golpe de 2016 vimos o exacerbamento das núpcias sinistras entre neoliberalismo e fascismo (tema explorado no novo livro de Wendy Brown). E assim o neoliberalismo vai se mostrando pelo que é: as convulsões de agonia de um sistema moribundo e massacrante.

Os massacres na Bolívia, que a mídia burguesa tenta encobrir, afundam ainda mais na impossibilidade a manutenção da ilusão de que estaríamos lidando com “capitalistas humanitários” – nós estamos é lidando com a barbárie mesmo. Com a selvageria fascista abraçada ao fundamentalismo dos mercados de capitais. Como diria Rosa Luxemburgo, a alternativa básica, nossa encruzilhada elementar, é mesmo a escolha entre Socialismo e Barbárie. Mas como disse depois Daniel Bensaïd, “na luta secular entre o socialismo e a barbárie, a barbárie ganha de longe.” [1]

A palavra Resistência, hoje, só faz sentido se for aquele “freio de emergência” que Walter Benjamin usava como metáfora da revolução. Resistência à barbárie que começa por não permitirmos, por nada, que os tiranos possam nos massacrar impunemente e abafando a própria notícia de seus crimes. Os mortos nos massacres na Bolívia, tanto quanto os mortos nos massacres de Paraisópolis ou dos morros do Rio de Janeiro, precisam ser salvos do esquecimento, do eclipse, do ocultamento debaixo dos tapetes da tirania. Sobre o Massacre em El Alto, no bairro Senkata, em 19 de Novembro de 2019, relata uma reportagem:

Naquele dia, “em que havia muita fumaça e helicópteros” em El Alto, a autoproclamada presidenta Jeanine Áñez determinou uma megaoperação policial-militar para retomar a unidade da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), ocupada por manifestantes contrários ao golpe. Nacionalizada pelo governo de Evo Morales, a estatal é um dos símbolos maiores do orgulho e da autoestima bolivianas, e tem sido central no aporte ao desenvolvimento soberano e à redistribuição de renda. (Fonte: Carta Maior / Outras Palavras).

(…) [Durante o massacre] havia um ódio dirigido especialmente contra as senhoras de pollera (as saias indígenas), que os soldados faziam com que se ajoelhassem. Um senhor mais velho se ajoelhou e abriu os braços suplicando para que o matassem, mas poupassem os seus filhos, os jovens, que tinham muito ainda para viver. Mas os militares os mataram a sangue frio. E foram muitos”. Pergunto sobre os números de vítimas, completamente destoantes das cifras oficiais. Ao que ela responde: “são tantos os desaparecidos, corpos jogados no monte Ilimany, no vale Achocalla e no monte de Villa Ingenio”. “O fato é que todos têm medo de falar, por nada no mundo querem se arriscar, mas o fato é que há muito mais mortos…” [2]

SAIBA MAIS:

Poucos dias antes, o Massacre de Cochabamba, em 15 de novembro, já havia deixado explícito o caráter dos que se apossaram do poder após o golpe de Estado que “pôs a Bíblia de volta no Palácio Quemado” com a posse de uma presidenta auto-proclamada diante de um congresso sem quórum, ungida pelas forças armadas e pelos latifundiários de Santa Cruz de La Sierra. Foram 9 manifestantes assassinados pela repressão brutal de um estado terrorista já apelidado por alguns de Ditadura Gospel, um “recado” escrito em sangue para os que resistem ao golpe.

O massacre, ainda que moralmente repugnante, é utilizado como meio aceitável por uma elite apegada a seus privilégios e temerosa dos movimentos igualitários; o massacre então funciona como estratégia para apavorar a população resistente e submetê-la assim ao pseudo-consentimento dos apavorados. No Democracy Now, encabeçado pela jornalista Amy Goodman, temos uma janela de acesso às notícias sobre a conjuntura na Bolívia após a deposição do governo de Evo Morales e Garcia Linera. Pachamama sangra enquanto aumenta a criminalização das populações indígenas e dos ativistas do MAS. Signos de que estão de novo sangrando aos borbotões as veias abertas da América Latina.

“In Bolivia, at least 23 people have died amid escalating violence since President Evo Morales, the country’s first indigenous president, resigned at the demand of the military last week. Growing unrest quickly turned to violent chaos on Friday outside Cochabamba when military forces opened fire on indigenous pro-Morales demonstrators, killing at least nine people and injuring more than 100. The violence began soon after thousands of protesters — many indigenous coca leaf growers — gathered for a peaceful march in the town of Sacaba and then attempted to cross a military checkpoint into Cochabamba. Amid this escalating violence and reports of widespread anti-indigenous racism, protesters are demanding self-declared interim President Jeanine Áñez step down. Áñez is a right-wing Bolivian legislator who named herself president at a legislative session without quorum last week. She said that exiled socialist President Morales, who fled to Mexico after he was deposed by the military on November 10, would not be allowed to compete in a new round of elections and would face prosecution if he returned to Bolivia, which has a majority indigenous population.” [3]

No Chile, apesar das diferenças em relação à Bolívia no que tange à conjuntura política, as mega-manifestações contra o governo Piñera também sofreram com uma brutal repressão análoga àquela que se derrubou sobre os defensores do governo deposto de Evo Morales e Garcia Linera. Os mortos, feridos e cegados se multiplicam sem que esta estratégia estatal terrorista logre de fato calar os protestos. Em 16 de Novembro de 2019, dados oficiais divulgados pelo governo estimavam 23 mortos nos protestos, um número de feridos acima de 2000 e de presos acima de 6000. São números que indicam bem o tamanho do amor do neoliberalismo pela democracia: zero.

No caso das mobilizações feministas, houve um efeito de viralização internacional do “hit das ruas” que acusa: “O Estado opressor é um macho violador”. Para além das fronteiras chilenas, mulheres de todo o planeta estão replicando a performance-protesto e dizendo aos violadores: “E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como me vestia”.

Um detalhe cruel do processo repressivo perpetrado pelos carabineros chilenos são as balas de borracha disparadas contra os olhos dos manifestantes: calcula-se em mais de 200 pessoas que perderam a visão nos protestos de 2019. Qualquer justificativa de autoridades deste governo que visasse apontar os olhos explodidos como episódios isolados colapsa diante de um número que prova que tais atrocidades são propositais e recorrentes. Segundo o Correio Brasiliense, pelo menos 285 pessoas “sofreram traumas oculares graves, inclusive com a perda de visão, atingidos pelo disparo de balas de borracha e granadas de gás lacrimogêneo.”

Uma das histórias ocultadas e recalcadas pelos neoliberais hoje empoderados diz respeito ao verdadeiro “laboratório” da economia política neoliberal: o Chile de Pinochet. Em seu artigo mais recente em El País, o filósofo Vladimir Safatle rompe com este ocultamento e diz claramente que o neoliberalismo não começa com Reagan e Tatcher, mas sim sob os escombros ensanguentados do governo Allende, deposto num violento golpe militar que trouxe ao poder os milicos amigados com os Chicago Boys. Naomi Klein já contou esta história em minúcias no indispensável A Doutrina do Choque. Safatle, diante da figura pavorosa de Paulo Guedes, ministro da Economia que é fã do Pinochetismo Neoliberal, recupera o vínculo umbilical entre ditadura militar e instalação do neoliberalismo na América Latina:

“A liberdade do mercado só pode ser implementada calando todos os que não acreditam nela, todos os que contestam seus resultados e sua lógica. Para isto, é necessário um estado forte e sem limites em sua sanha para silenciar a sociedade da forma mais violenta. O que nos explica porque o neoliberalismo é, na verdade, o triunfo do estado, e não sua redução ao mínimo.

Que lembrem disso aqueles que ouviram o sr. Paulo Guedes falar em AI-5 nos últimos dias. Isso não foi uma bravata, mas a consequência inelutável e necessária de sua política econômica. Como se costuma dizer, quem quer as causas, quer as consequências. Quem apoia tal política, apoia também as condições ditatoriais para sua implementação. O neoliberalismo não é uma forma de liberdade, mas a expressão de um regime autoritário disposto a utilizar todos os métodos para não ser contestado. Ele não é o coroamento da liberdade, só uma forma mais cínica de tirania.” SAFATLE (El País, 2019) [4]

A cínica tirania Bolsonarista tem em Moro e Guedes duas de suas lideranças mais brutais, que querem o silenciamento pleno do dissenso e da discórdia: que ninguém ouse protestar se não quiser que se instaure um AI-5 versão 2019, e que ninguém ouse lembrar que o Sr. Ministro da Justiça, que influiu criminosamente no processo eleitoral de 2018 ao prender injustamente aquele que seria eleito presidente, está querendo aprovar os “excludentes de ilicitude” que são carta branca para a PM matar geral nas favelas e nos protestos. O ideal desta gente nefasta é mesmo o Chile de Pinochet.

Na ocasião em que o governo da União Popular, eleito em 1970, foi brutalmente golpeado pelas atrocidades militares que marcaram o 11 de Setembro de 1973, para a instalação da ditadura capitalista encabeçada por Pinochet, com seus últimos alentos o presidente socialista Salvador Allende, ciente de estar entrando no panteão dos mártires, pronunciou frases que os chilenos jamais esqueceriam: “Antes do que se pensa, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor.”

Afundando na morte mas não no esquecimento, Allende tentava incentivar, em seu último ato, os que ficavam entre os vivos a permanecerem na luta por tempos menos sórdidos, encarando todos os horrores de uma Santiago ensanguentada. Um ano depois, as últimas palavras de Allende inspirariam uma das mais belas canções do cantor e compositor cubano Pablo Milanés, “Yo pisaré las calles nuevamente” (letra abaixo). Neste videoclipe, as insurreições populares no Chile, em 2019, contra o governo neoliberal e direitista de Piñera, as imagens de Santiago fervilhante de inquietação cívica são acompanhadas pela música de Milanés, evocatórias de Allende, numa bela obra que mescla as conturbações do presente com a lembrança fecunda do passado:

“Yo pisaré las calles nuevamente
de lo que fue Santiago ensangrentada,
y en una hermosa plaza liberada
me detendré a llorar por los ausentes.

Yo vendré del desierto calcinante
y saldré de los bosques y los lagos,
y evocaré en un cerro de Santiago
a mis hermanos que murieron antes.

Yo unido al que hizo mucho y poco
al que quiere la patria liberada
dispararé las primeras balas
más temprano que tarde, sin reposo.

Retornarán los libros, las canciones
que quemaron las manos asesinas.
Renacerá mi pueblo de su ruina
y pagarán su culpa los traidores.

Un niño jugará en una alameda
y cantará con sus amigos nuevos,
y ese canto será el canto del suelo
a una vida segada en La Moneda.

Yo pisaré las calles nuevamente
de lo que fue Santiago ensangrentada,
y en una hermosa plaza liberada
me detendré a llorar por los ausentes.”
Pablo Milanés

A sangrenta repressão que o autoritarismo estatal vem impondo na Bolívia e no Chile evocam episódios históricos semelhantes e que demonstram a constância da brutalidade reacionária. O exemplo mais emblemático disso segue sendo, talvez, a Comuna de Paris, que em 1871 foi brutalmente massacrada pelas forças reacionárias que tinham se exilado em Versalhes, preparando a carnificina contra os communards parisienses. As elites, destronadas, não costumam ter escrúpulos morais em relação ao emprego da violência assassina para que recuperem um poder de que estão sendo alijadas:

“A Comuna de Paris terminou em massacre. Durante a chamada Semana Sangrenta, 35 mil pessoas foram executadas nas ruas da capital francesa, numa repressão sistemática que se configurou em extermínio de massa. Além disso, 10 mil comunardos foram deportados para a Nova Caledônia…” (TRAVERSO, Enzo, 2019, p. 93) [5]

O sangue das 35.000 vítimas da Comuna de Paris não pode ser esquecido por ninguém que queira manter a lucidez em suas decisões de natureza política: logo após a massacrante repressão de maio de 1871, que encerrou o experimento revolucionário comunista em Paris, Marx escreveria, em A Guerra Civil na França, palavras que não permitiam, diante da derrota, o desânimo:

“A sociedade moderna é o solo onde cresce o socialismo, que não pode ser estancado por nenhum massacre, não importa de que dimensão. […] A Paris operária, com sua Comuna, será eternamente lembrada e celebrada como o arauto de uma nova sociedade. Seus mártires estarão consagrados no coração das classes trabalhadoras. A história de seus exterminadores já foi cravada no pelourinho eterno de onde todas as rezas de seus padres não conseguirão jamais redimi-los.” – KARL MARX [6]

Nas ruas de La Paz, em Novembro de 2019, a barbárie ganhou um novo emblema: os caixões dos manifestantes mortos em El Alto foram envolvidos pelas nuvens de gás lacrimogêneo e pelo corre-corre da multidão em dispersão. Não, o capitalismo neoliberal massacrante não quer nem mesmo permitir que choremos nossos mortos. Se deixarmos, enfiarão de novo um monte de esqueletos nos armários. E nos mandarão, aos chutes, para os shopping centers e hipermercados para que continuemos comprando, bestificados e catatônicos.

Sinal da banalidade do mal que ainda é nossa contemporânea, o ocultamento e a normalização dos massacres neoliberais indica que a desumanidade humana ainda tem muito futuro – e que à Resistência antifascista não faltará trabalho nem mártires a chorar. A mídia burguesa irá seguir ocultando, o quanto puder, os massacres de El Alto e de Cochabamba, ou os crimes contra a humanidade cometidos pelos carabineiros chilenos, ou a grave situação humanitária em Altamira, na Amazônia brasileira, onde em 2019 ocorreu o pior massacre carcerário desde o Carandiru.

Se permitirmos, nem mesmo os que morreram ou perderam os olhos na luta contra o Mammon neoliberal estarão a salvo da boçalidade do mal que se manifesta em Bolsonaros, Trumps e Piñeras. A Necropolítica do burgofascismo não só mata, ela oculta de nossa consciência suas atrocidades. É também nossa tarefa, enquanto cidadãos que podem hoje também agir como mídia independente, sacar seus celulares e blogs, mobilizar seus feeds e redes, para impedir que as carnificinas perpetradas pelas classes dominantes – que hoje mesclam neofascismo e neoliberalismo – possa cair na indiferença e no esquecimento.

Carli, Dez. 2019

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] BENSAÏD, D. apud TRAVERSO, Melancolia de Esquerda: Marxismo, História e Memória, 2019, pg. 27.

[2] SEVERO, Leonardo Wexell. Bolívia: o massacre que os neoliberais tentam encobrir. 2019.

[3] DEMOCRACY NOW! Massacre in Cochabamba: Anti-Indigenous Violence Escalates as Mass Protests Denounce Coup in Bolivia. 15/11/2019.

[4] SAFATLE, VladimirA Ditadura do Sr. Guedes. El País, Dez. 2019.

[5] TRAVERSO, Enzo, Melancolia de Esquerda: Marxismo, História e Memória, 2019, p. 93.

[6] MARX, Karl. A Guerra Civil na França, trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011. Apud #1, p. 93.

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SAIBA MAIS:

Venezuela e as guerras híbridas na América Latina – Por Renato Costa em A Casa de Vidro

Venezuela e as guerras híbridas na América Latina é o título do dossier n.17 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, lançado em junho de 2019. O documento, com cerca de 50 páginas, reporta de forma breve e contundente os acontecimentos do primeiro semestre do ano, extremamente turbulentos na política e na vida do povo venezuelano, sem deixar de contextualizar os antecedentes históricos dos conflitos que tiveram lugar no país. 

Em fevereiro deste ano, a fronteira colombiana, nos limites da cidade venezuelana de Cucutá, foi forçada com a prerrogativa da entrada, não autorizada pelas autoridades venezuelanas, de ajuda humanitária dos Estados Unidos, via Colômbia. Dois meses depois, no dia 29 de abril, um levantamento militar foi orquestrado por Juan Guaidó, deputado e ex-presidente da Assembleia Nacional, hoje em desacato à nova constituinte amplamente referendada pelo governo bolivariano. Apesar da intensidade dos ataques à ordem política do país em 2019, a história da intervenção à soberania da Venezuela tem uma passado longínquo. 

Só para tomar-se os governos bolivarianos iniciados em 1999, com a eleição de Hugo Chávez, o intervencionismo dos Estados Unidos, já em 2002, tentou promover uma reação à Lei de Hidrocarbonetos e à Lei de Terras em prol da distribuição de renda e da nacionalização das reservas naturais, prefigurando o que hoje se conhece como Guerra Híbrida (Korybko, 2018). Através da paralisação das atividades produtivas e do desabastecimento programado, os chamados locautes, promovidos por empresários alinhados ao capital extranjeiro e à ingerência imperial, a guerra econômica foi usada como método de desestabilização dos governos populares. 

O documento ainda aponta que ao longo dos anos, um renovado intervencionismo promove uma verdadeira guerra, um conflito permanente que, entretanto, adota métodos não convencionais na doutrina militar, caracterizando-se, por isso, como uma guerra difusa, não-declarada, porém com efeitos devastadores para o povo latino-americano. 

Também chamada de Guerra de Quinta Geração, as novas ofensivas imperiais se caracterizam por uma assimetria de forças em campo e por sua multidimensionalidade, abarcando os planos econômicos, territoriais e até psicológicos, sempre em vista a um domínio total do espectro político dos países alvos do interesse estadunidense em busca da perpetuação de seu frágil hegemonia. Dos liberais ao comunistas, ninguém estaria livre da fraude, da corrupção e do poder de chantagem dos estrategistas militares norte-americanos. 

Ao considerar-se a mudança do eixo de acumulação do capital para a Eurásia, especialmente em seu pólo oriental, na China, pode-se entender a voracidade renovada da ofensiva neoliberal estadunidense que busca reforçar o padrão de acumulação predatória; aprofundar a financeirização e a transnacionalização; e ainda exasperar a competição por territórios ricos em bens naturais, em busca da apropriação dos recursos escassos disputados entre as potências globais. 

Nesse sentido, teóricos como Thomas Barnett definem, sem nenhum pudor, a “América Latina” como área de atenção prioritária do Pentágono, ou ainda, como zona de influência natural. O nível de exploração de minérios, água, biodiversidade e, claro, petróleo na região referenda essa tutela, sendo que mais da metade das exportações destes materiais são destinados aos Estados Unidos, às vezes chegando à 93 por cento, como no caso do estrôncio, um importante material para fabricação de eletrônicos, equipamentos médicos e ligas metálicas de alta resistência. 

Essa visão neocolonial serve à exploração dos limites políticos ao fomentar as oposições com armas e logística operacional; controlar os bens naturais, o mercado produtivo, as rotas de distribuição de insumos, o transporte e até a energia essenciais às populações dos países alvos de intervenção. Na América do Sul, a região amazônica na qual está incluída a Venezuela é alvo de especial cobiça por parte do imperialismo neocolonial. 

A maior floresta tropical do planeta integra nove países, abriga vasta biodiversidade e recursos minerais ainda inexplorados. Certificada como a maior reserva de petróleo do mundo, além de saberes milenares em torno das aplicações médicas de sua flora, a Amazônia venezuelana é a jóia da coroa sob a qual a decadente hegemonia estadunidense busca se apoiar. Por isso o projeto de retomar a Venezuela como “espaço privilegiado de influência” ser orquestrado principalmente pelos executivos das petroleiras Exxon e Chevron, em detrimento do controle estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA), que promove redistribuição de renda no país e teve suas transações bloqueadas para o comércio internacional e sua participação acionária recentemente expropriada em território norte-americano, através da concessionária Citgo. 

Em resposta ao cerco econômico, o governo bolivariano de Nicolás Maduro, continuador de Hugo Chávez, avançou em acordos comerciais com outros países, à revelia do dólar. Desenvolveu uma criptomoeda para comercializar petróleo sem a intermediação financeira, chamada “Petro”, seguindo medidas similares de China, Rússia e Irã, além das intenções correlatas anunciadas pela própria União Europeia, aliada militar dos EUA, de comprar gás da Rússia em euros. Como consequência da política de insubordinação aos bloqueios do norte por parte do bolivarianismo e da guerra comercial entre China e EUA, em 2018 a Venezuela tomou emprestado 5 bilhões de dólares da China e, ao longo dos primeiros meses de 2019, recebeu insumos militares e apoio logístico da Rússia. 

Renato Costa Silveira, estudante de Jornalismo da UFG, criador do blog Maduro Motorista

ACESSE E FAÇA O DOWNLOAD DO DOSSIÊ COMPLETO DA TRICONTINENTAL (55 PGS)

A Ofensiva do MinoTaurus: Austeridade, Armamentismo e Plutocracia || A Casa de Vidro

A OFENSIVA DO MINOTAURUS
Por Renato Costa & Eduardo Carli

O filme de terror que não sai de cartaz no Brasil de 2019 evoca a lembrança do mito grego do Minotauro. Este ser de natureza híbrida entre o humano e o bestial, encerrado dentro do labirinto do rei Minos de Creta, devorava ano a ano jovens atenienses entregues, como tributo em carne viva, ao feroz paladar da besta – até ser chacinado pela expedição de Teseu e Ariadne (saiba mais sobre este mito).

Aquilo que poderíamos chamar de massacre dos inocentes, para lembrar o título de uma obra do sociólogo José de Souza Martins, está funcionando a pleno vapor nesta época de predomínio da extrema-direita. Um símbolo deste predomínio é o monstro papavidas, a besta necrofílica, que aqui cognominamos MinoTaurus.

No Brasil, um dos piores exemplos da Ofensiva do MinoTaurus é a empresa brasileira de armas e munições que, sob a batuta Bolsonarista, está contente de obter lucros estratosféricos com a venda dos instrumentos da morte violenta: a Taurus já é a 4ª empresa no mercado armamentista dos EUA, onde está sendo denunciada e processada por vender armas com defeito (que no Brasil já ocasionaram 50 mortes). Em sua campanha eleitoral, Bolsonaro foi garoto propaganda da Taurus, apesar da fraude internacional de 600 milhões de reais envolvendo os seus controladores.

Uma reportagem do The Intercept Brasil, Um Monopólio Que Mata, destrinchou que “armas defeituosas da Taurus matam impunemente, blindadas pelo lobby e pelo Exército”. Chegando ao poder, Jair Bolsonaro publicou o Decreto Nº 9.785, de 7 de maio de 2019,  que a princípio muito bem recebido pela empresa.Sinal de que o MinoTaurus se assanhou com gozo foi a reação do presidente da empresa armamentista,  Salesio Nuhs, em entrevista ao Correio Brasiliense:

“A Taurus entende que o decreto assinado pelo presidente da República Jair Bolsonaro poderá aumentar de forma relevante a procura por armas de fogo pelos caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) e cidadãos de bem para sua legítima defesa e da propriedade. O Decreto é um marco neste seguimento e a Taurus está pronta para atender todo o aumento de demanda.” Porém, recente reportagem de Brasil de Fato, publicada em 22 de Maio de 2019, traça um quadro das tensões do Bolsonarismo com o monopólio armamentista da Taurus. Seja como for, com a extrema-direita Bolsonarista no poder, estamos claramente diante do triunfo de Tânatos sobre Eros  e da ascensão de uma perversa e nefasta Necropolítica.

O catastrófico crash do capitalismo globalizado em 2008 inaugurou uma era de hegemonia de uma “ideia perigosa”: a austeridade. Segundo o cientista político escocês Mark Blyth, da Brown University, “a austeridade é a penitência – a dor virtuosa após a festa imoral -, mas não vai ser uma dieta que todos partilharemos. Poucos de nós são convidados para a festa, mas pedem-nos a todos que paguemos a conta.” [1] Ao estudar a evolução da perigosa noção de austeridade, desde a época de Locke, David Hume e Adam Smith até chegar nos neoliberais como Hayek e Milton Friedman, o autor tenta provar que a austeridade simplesmente não funciona.

Neste artigo, propomos uma análise da ofensiva desta Besta a partir de três de suas cabeças: a austeridade, o armamentismo e a plutocracia. Três elementos que se explicitam quando atentamos para o noticiário, repleto de notícias sobre cortes no financiamento público de políticas sociais (a exemplo do atual corte de recursos para a rede federal de educação, imposto pelo MEC, e que sofreu a histórica resistência tsunâmica do Maio de 2019); sobre o libera-geral das armas de fogo e da violência policial genocida (sendo que Bolsonaro, Moro e Witzel agem como necro-políticos que fazem a festa dos lucros de empresas como a Taurus); sobre um projeto de reforma da previdência que impõe a vontade da plutocracia e faz com que o Estado brasileiro fortaleça sua insana tendência a ser um Robin Hood às avessas.

VÍDEO RECOMENDADO: Mark Blyth on Austerity

Grande conhecedora da obra de Blyth, e autora do prefácio de seu livro, a economista Laura Carvalho é uma das vozes mais fortes a esclarecer a opinião pública no Brasil sobre um monstro que vem sendo chamado de “Robin Hood às avessas”, outro dos cognomes do nosso “MinoTaurus”.

Em seu livro Valsa Brasileira, Laura Carvalho escreveu:

Em uma sociedade como a nossa, que nunca deixou de estar entre as mais desiguais do mundo, a opção por medidas de redução estrutural da rede de proteção social, em vez da via da tributação mais justa e do fortalecimento do Estado de bem-estar social, reforça uma abordagem exclusivista e punitivista da marginalidade social.

A proteção aos mais vulneráveis sempre pode caber no Orçamento, mas o genocídio jamais caberá na civilização. Enquanto a insustentabilidade do sistema previdenciário em meio à elevação da expectativa de vida for vista pela maioria como mais dramática do que a insustentabilidade de um sistema penitenciário em meio à produção de um número cada vez maior de excluídos, estaremos condenados à barbárie. – CARVALHO, Laura. “Valsa Brasileira – Do Boom Ao Caos Econômico”. Editora todavia, 2018. Pg. 157 a 159. [2]

Na esteira de Blyth, Carvalho dá um excelente exemplo de austeridade à brasileira ao lembrar de uma fala de Michel Temer, uma das piores expressões do capitalismo austero, que em abril de 2017, em defesa da PEC do teto de gastos públicos, disse que  “governos precisam passar a ter maridos” [2].

Ou seja, o governo é aí enxergado pelo viés masculinista: o Estado deve ser controlador como um “patriarca”, um maridão que fala grosso e controla com mão de ferro a economia doméstica fazendo uso de um instrumento supremo: a tesoura. Cortes e cortes e mais cortes nos serviços públicos é o que prega esta governamentalidade neoliberal colonizada pela noção de Estado mínimo. 

Austeridade, conceito de teor moral (e moralista) aplicado ao âmbito da economia capitalista globalizada pós-crise (o crash de 2008 é considerado o pior desde a Grande Depressão iniciada em 1929), é um elogio hipócrita do recato feito por homens que já se esbaldaram até o excesso na ganância e no financeirismo plutocrático.

Austeridade é a máscara de moralidade que visa vestir o capitalismo financeiro: “Em última análise”,  escreveu John Cassidy em The New Yorker, “a economia não pode ser divorciada da moral e da ética. A falha da austeridade não é apenas uma questão de decepção com PIB e déficits. É uma calamidade humana, e uma que poderia ter sido evitada.” [3]

No Brasil, uma das mais importantes iniciativas em prol do debate sobre austeridade são os livros publicados pela Editora Autonomia Literária, em parceria com a Fundação Perseu Abramo e Partido dos Trabalhadores, que integram o selo “ECONOMIA DO COMUM: ANTIAUSTERIDADE”. Após a crise de 2008, uma das piores de toda a história do capitalismo, muitas corporações capitalistas, em especial as financeiras, que colapsaram e quase foram à falência, foram resgatas da bancarrota com dinheiro público…

“A ‘reestatização’ dos bancos aplicou um socialismo ao avesso, onde socializavam os prejuízos nas costas dos 99% enquanto capitalizavam os lucros no bolso do 1%. O aumento da desigualdade, do caos e as desastrosas consequências após o colapso deu fôlego a um novo ciclo de lutas e de ativismo a partir de 2011. (…) Confrontar o amargo remédio da austeridade no labirinto do caos deflagrado pela crise é pensar nas chaves para a construção de uma nova economia, desta vez a serviço dos 99%, do meio-ambiente e do bem-estar – em um momento de franco ataques aos direitos fundamentais aqui e mundo afora.” [4]

O “labirinto do caos” tem em seu centro um devorador MinoTaurus, servidor do 1%. Meio homem, meio touro, este híbrido de humano e bestial é um papa-gente insaciável. Que forças sociais seriam a reencarnação de Teseu e Ariadne? Que novelo de lã poderia nos ajudar a confrontar este monstro, cortar a cabeça medusante das austeridades neoliberais, e depois sairmos vivos do labirinto para seguir o trabalho de reconstrução do mundo?


Em seu livro “O Minotauro Global”, devotado à tarefa de analisar “A Verdadeira Origem Da Crise Financeira E O Futuro Da Economia Global”, o ex-ministro grego das Finanças no governo do Syriza, Yanis Varoufakis, um dos maiores expoentes antiausteridade na Europa, “destrói o mito de que a regulamentação dos bancos é ruim para a saúde econômica.” (Outras Palavras)

O aprofundamento da financeirização da economia global pós-2008 foi matéria de análise de Varoufakis neste seu paradigmático livro. “O Minotauro Global” reporta os efeitos da crise financeira de longo prazo e da consequente estagnação na economia de modo geral. O livro de 2011 já nos preparava para o ciclo de Crise (com c maiúscula, segundo o autor) que se estenderia ao longo desta década que se termina, e adiante, no alvorecer da década de 20, do século XXI.

George F. Watts (1877-86)

Segundo a metáfora proposta por Varoufakis, o mito do ser metade humano, metade touro, fruto híbrido de um adultério adultério mediado por Poseidon, o deus dos terremotos, o Minotauro seria uma forma acabada de se contrapor democracia e austeridade. O personagem labiríntico revelaria a incongruência entre o arrocho fiscal  – ou“teto de gastos” para o contingenciamento de 1 trilhão de reais, em prol do “equilíbrio das contas públicas”, leia-se pagamento da dívida pública, segundo proposta do Ministro das Finança brasileiro, Paulo Guedes – e um sistema político baseado nos direitos humanos.

A tese econômica que guia a metáfora da tributação de guerra exercido “sobre os vencidos” é a inferência de causalidade entre ajuste fiscal e guerra comercial, decorrendo em corrida militar supremacista, todas formas de promover e impor o arrocho das contas públicas em diferentes estados nacionais, invariavelmente plutocráticos, governados pela “elite do dinheiro”, a mando do capital financeiro especulativo.

O sistema de crédito corporativo internacional – representado por Wall Street e a sugestiva estátua do “touro em investida” – teria se transformado, em tempos de Crise, no grande ‘aspirador de pó’ dos excedentes produtivos internacionais que passaram a ser capitalizados através da compra de títulos da dívida pública estadunidense pelos países do mundo que precisam manter suas reservas em moeda forte, principalmente a China.

Entretanto, as mesmas operações que garantem o investimento de ativos à nível global; a supremacia cambial do dólar e o financiamento da dívida pública estadunidense, apesar da estabilidade precária de seus déficits gêmeos, comercial e orçamentário, garantem também que a crescente fome deste Minotauro por excedentes financeiros, promovendo o genocídio de jovens e emergentes empresas e economias nacionais, alimente a maior concentração de poder bélico e informacional jamais visto em uma estratégia totalitária de hegemonia geopolítica.

Essa estratégia teria criado este Minotauro financeiro, artífice de um Poder Global – empoderado pelo arbítrio da Reserva Federal estadunidense, que repassa às mega-corporações os ativos gerados através de créditos hipotecários de alto risco e altíssimo rendimento, as chamadas subprimes.  Altos riscos apenas até que estoure a bolha da inadimplência, o “risco” que é salvaguardado pelo contribuintes estadunidenses legitima a formação de imensas fortunas privadas, em último caso securitizadas pelo déficit fiscal que, por sua vez, é mantido pela dominação militar-financeira internacional. Os déficits gêmeos se retroalimentam: o desenvolvimento inter regional estadunidense se vale do déficit fiscal para promover instalações militares mundo afora, com produção fortemente protecionistas no registro de patentes de alto valor tecnológico vendidas na corrida internacional por armas e reservas em dólar americano.

Notadamente, os próprios títulos da dívida americana servem à equilibrar o déficit comercial crescente, mantido e legitimado pelo poder de arbitragem imperial, criando, assim, um ciclo potencialmente interminável, uma insaciável fome imperial pelos excedentes globais, que irão alimentar a própria dívida interna, a voracidade do Minotauro.

Através das projeções encasteladas de analistas ostentosamente céticos quanto a possibilidade mesma de segurança e arbitragem democrática dos investimentos públicos e da regulação da ganância privada, a fraude está completa e a guerra perpétua legitimada economicamente. Essa verdadeira ‘fraude dos doutos’, promovida  por economistas ‘ortodoxos’ a serviço de uma verdadeira joint-venture imperial, é artífice mitológica de um estado estendido, que entrega a soberania democrática dos povos a interesses econômicos particulares.

No Brasil e em toda parte em que se instala o arbítrio neoliberal das elites nacionais capturadas por sua renitente servidão voluntária, cria-se um simulacro de tragédia com roteiro fornecido não pelos gregos, mas sim pelo do Departamento de Estado dos Estados Unidos, versão armada de democracia-empresarial, anti-nacional, austericida, totalitária e surpreendentemente planetária. Democracias estão sendo abertamente saqueadas por uma política econômica a priori entreguista há muito arbitrada pelas atribuições públicas de Bancos Centrais privatizados que servem a repassar os custos da especulação financeira desenfreada às populações e ao setor produtivo.

   Constituída sua musculatura pela tendência concentradora do ‘imperialismo financeiro’ do dólar e pelo poder de ‘persuasão’ militar dos EUA, a fome da metade superior do Minotauro foi,  finalmente, responsável por suplantar consensos econômicos e políticos a nível planetário e agora metaboliza a excludente ‘democracia de cidadãos proprietários’ [6] que lhe deu suporte em ‘democracia militar’ com vistas ao espectro da total dominação (full-spectrum dominance/superiority); do poder solitário (lonely power) – segundo análise do cientista político brasileiro Moniz Bandeira em seu contundente livro A Desordem Mundial [7] – e prenunciado pelo pretendido excepcionalismo racista do ‘destino manifesto’ e reiterado pelo ‘patrioct act’.  

A versão dessa concentração financeira absolutista no século XX é atualizada pela ‘war on terrorism’, do presidente George W. Bush e de seu vice, o demente-mor, Dick Cheney.

A metade  mítica do touro em investida tem sua cabeça chafurdando na lama de fraudes financeiras de toda sorte. A Crise de 2008 pode ter sido, aponta Varoufakis, o tropeço que precede a grande queda do mundo unipolar há tanto anunciada. Portanto, um mundo multipolar se afirmar a cada investida em falso da ‘besta’ indomada: na tentativa de golpe na Venezuela; na ‘derrota por procuração’ na Síria; na anexação da Crimeia pela Rússia; além da crise diplomática generalizada e da mobilização popular anti-austeridade, crescentes em todas as partes do mundo.

Segundo M. Bandeira, através da Doutrina Monroe, professada pelo presidente Theodore Roosevelt em 1901, a a ‘corolária política’ do Big Stick ( traduzida singelamente como Grande Porrete sobre a mesa) promoveu os interesses estadunidenses na América Latina durante o seu american century (século americano), se valendo do provérbio africano que sugere diálogo com  suavidade, desde que garantida a posse de um grande porrete à mão. No início deste novo século, no país mais poderoso do planeta, reitera-se doutrinas diplomáticas abertamente colonialistas professadas há séculos, mas bizarramente encampadas ainda hoje.

Logo de ditaduras militares tuteladas terem aprofundado a dependência da região, hoje a violência e os traumas da ingerência reverberam no continente americano. A novidade agora é a extensão quase global e a projeção totalitária dessa política, contando agora com mais de 800 bases militares em todo o mundo, a maioria com ogivas nucleares; ciberataques a democracias não-alinhadas; espionagem internacional a líderes soberanos; extermínio de jihadistas e civis através drones, aeronaves não-tripuladas, tudo disposto à guerras comerciais e psicológicas à revelia do Direito Internacional, dos Direitos Humanos e dos escrúpulos éticos.

Uma military democracy orquestrada pela dominação da elite econômica transnacional emerge em solo estadunidense e nas diferentes zonas de influência dessa espécie mitológica de capitalismo financeiro autocrático e absolutista. Esse modelo de sociedade tem ainda, apesar da desterritorialização dos investimentos econômicos, seu centro de controle no complexo industrial-militar e financeiro estadunidense. A financeirização articulada com a indústria cultural-especular hegemônica promove os assédios do poder imperial americano com a ilusão da estabilidade do dólar e o sonho americano de um mundo colonial de consumidores ordeiros e conservadores, ávidos pelas patentes, pela cultura e pela moeda metropolitana.

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VÍDEOS RECOMENDADOS


BIBLIOGRAFIA

[1] BLYTH, Mark. Austeridade: A História de Uma Idéia Perigosa. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

[2] CARVALHO, Laura. Valsa Brasileira – Do Boom Ao Caos Econômico. Editora Todavia, 2018. Pg. 157 a 159. [2]

[3] CASSIDY, John. In: The New Yorker. apud BLYTH, 2017.

[4] AUTONOMIA LITERÁRIA. Apresentação do selo “Economia do Comum.” In: BLYTH, 2017, p. 8.

[5] VAROUFAKIS, Yanis. O minotauro global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia global. Autonomia Literária, São Paulo, 2016.

[6] RAWLS, J. A theory of justice. 2 ed. Cambridge: Belknap Press, 1999.

[7] MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. A desordem mundial: o espectro da total dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

LIBERDADES SUPRIMIDAS: A restrição da renovação é o fruto amargo do “casamento infeliz entre neoliberalismo e conservadorismo moral”, avalia a cientista política Flávia Biroli

“Your silence will not protect you.”
Audre Lorde

Quer você se cale, quer você fale; quer você se abstenha, quer saia à luta; quer seja atuante, quer prefira quedar passivo, no fim das contas vai acabar morto. O teu silêncio, a tua abstenção, a tua passividade, nunca vão te impedir de morrer. Por que não, então, fazer das vísceras coração para falar, lutar, agir, sempre na ciência de que “we were never meant to survive”?

Diante das calamidades triunfais, diante das liberdades suprimidas, diante dos zumbis políticos do ecoapocalipse, diante da restrição da renovação e do amordaçamento das vozes, quem seríamos nós, caso calássemos, senão cúmplices do pior?

Na América Latina se respira luta, como sabe qualquer um que tenha se aventurado a conhecer a história conturbada deste continente. E não há nem sinal no nosso Horizonte Histórico de que isso pare de ser verdade no futuro próximo: seguiremos respirando luta. Na Chiapas zapatista, na Bolívia de Evo, com os Mapuches chilenos, na companhia das resistências indígenas e quilombolas, em toda parte do continente onde se peleja por dias melhores, seguiremos hasteando a bandeira colorida (onde o vermelho e o preto, é claro, sempre terão seus devidos lugares de honra…).

Seguir respirando lutas libertárias: é esta nossa sina e tarefa histórica, a da ação coletiva para construir “um outro mundo possível”, como propôs o Fórum Social Mundial nascido em Porto Alegre na aurora do século 21. Um mundo onde caibam todos os mundos. E cuja construção coletiva inspira-se nas sugestões e utopias de figuras como Eduardo Galeano, Noam Chomsky, Naomi Klein, Leonardo Boff, Vandana Shiva, Raj Patel, Arundhati Roy, Boaventura dos Santos, dentre tantos outros.

O Sistema que temos a missão de fazer colapsar, no mesmo processo em que o substituímos por um melhor, é aquele que degrada a Teia da Vida, submetendo-a ao deus Lucro, esse devorador Mammon que conspurca tudo.

Historiadores do futuro talvez se debrucem sobre a época que atualmente atravessamos com o interesse de compreender como se deu esta bizarra fusão, que ora nos desgoverna, do capitalismo neoliberal “selvagem” (a doutrina de que nenhum Estado deve controlar a economia, tudo deve ser entregue ao livre jogo da mão invisível do deus Mercado…) com um neofascismo todo calcado em conservadorismo moral.

Revista Piauí – Ilustração: Roberto Negreiros. Matéria de Marcos Nobre, “O Caos Como Método”.

Sabemos que vivemos, de novo, em uma era de liberdades proibidas, de direitos interrompidos, de regressões à barbárie. E que de nós depende a pulsão de primavera que possa fazer irromper, de novo, a biophilia perdida, a solidariedade estilhaçada, a rota reencontrada da reconstrução de um projeto coletivo norteado pelo bem comum. Isso exigirá que a gente se embrenhe no labirinto dos fascismos, nele agindo como libertários destruidores-construtivos, aqueles que, como Nietzsche ensina, só destroem pois são criadores e só aniquilam aquilo que superam.

Ajudemos os historiadores do porvir, fazendo uma espécie de relato histórico a quente das últimas ocorrências no cabaré incendiado chamado Brasil – e compartilhando algumas reflexões sobre todos os pertinentes movimentos sociais e ativismos cívicos que tem contribuído no sentido de alargar os limites da democracia (falha, de baixa intensidade, sempre restringida por elites contrárias à renovação).

“O golpe de 2016 encerra um ciclo que se iniciou com a Constituição de 1988”, avalia a cientista política Flávia Biroli, professora da UnB e autora de vários livros publicados pela Ed. Boitempo (dentre outros). O encerramento de ciclo que o golpeachment instaura se deu após a ruptura constitucional operada com a meta da deposição de Dilma Rousseff. Hoje, a dita Constituição Cidadã se encontra em frangalhos, sangrando na UTI.

“A Constituição de 1988 é o resultado de disputas e pactos”, lembra Biroli. Todo o processo Constituinte (vejam isso em minúcias na obra de Florestan Fernandes, deputado constituinte pelo PT, em seus artigos e livros da época) ocorreu um confronto de forças opostas, numa espécie de cabo-de-guerra entre a Ditadura debatendo-se por sua vida e a Democracia em seu ímpeto de renascença: opuseram-se naquela época “ações de elites políticas bem posicionadas no regime de 1964, que foram capazes de manter o controle sobre recursos econômicos e políticos no processo de democratização, e as reivindicações que partiram de outros grupos e públicos, com agendas alternativas e conflitivas.”

“O predomínio de setores religiosos conservadores, de interesses empresariais, de proprietários de terra e de empresas de comunicação, em um ambiente internacional de ascensão da agenda neoliberal, barrou a possibilidade de que o processo democrático alargasse as condições para uma igualdade mais substantiva, para o controle popular sobre a economia e para a igual cidadania das mulheres e da população negra.” (BIROLI, In: Tem Saída?, Ed. Zouk, Porto Alegre, 2017. p. 17)

Estes movimentos cívicos que se envolveram na luta pela Constituição de 1988 – “luta pelos direitos humanos, pela igualdade de gênero e racial, pelo direito à saúde e à moradia, pela universalização do acesso à educação, pelo direito à terra” – não podem ser enxergadas pelo viés apequenador das batalhas já ganhas. Mas muito menos como batalhas perdidas. São ainda as nossas batalhas, e sempre haverá na América Latina lutadora – aquela de Martí, de Zapata,  Bolívar, de Fidel, de Guevara, de Sandino… – quem siga em levante contra o tropel triunfante das injustiças multiformes.

Vivemos, no Brasil, numa espécie de híbrido entre Ditadura militar e Democracia liberal, uma simbiótica cooperação entre Estado e Mercado para que o primeiro seja o punho visível do Leviatã que garante, a partir de seu poder policial e encarcerador, um grau mínimo de ordenação social para que a mão invisível do Deus Mammon possa fazer seu traquinice peralta mais recorrente: Robin Hood às avessas, rouba dos pobres pra dar aos ricos.

A despeito de ter quase a mesma carga tributária que países como o Reino Unido, por exemplo, o Brasil é um dos países mais ineficazes na redução da desigualdade de renda, beneficiando mais a camada mais rica da população.

É o que conclui um estudo da Seae (Secretaria de Acompanhamento Econômico), do Ministério da Fazenda, publicado nesta sexta-feira (8), que classifica o país como um “Robin Hood às avessas”.

“Em vez de tributar os mais ricos para distribuir para os mais pobres, [o Brasil] termina tributando a todos para distribuir via transferência monetária, em especial aposentadorias e pensões, para a metade mais rica da população”, afirma o levantamento.

De acordo com o documento, o país gasta cerca de 12% do PIB (Produto Interno Bruto) com programas de transferência de renda, o que inclui aposentadorias (que representam 83% do total) e programas sociais como seguro-desemprego e Bolsa Família.

Apesar disso, a diferença entre a carga tributária e essas transferências contribui para reduzir o índice de Gini, indicador que mede a desigualdade, em apenas 17%.

É a metade da média dos países da OCDE, onde esse percentual é de 34%.

“Fica evidente que, no caso do sistema fiscal brasileiro, o impacto redistributivo mais fraco não resulta de uma baixa arrecadação tributária, mas sim da forma que o Estado brasileiro devolve os recursos arrecadados para a sociedade”, afirma o levantamento. “Só o México e o Chile apresentam desigualdade no mesmo patamar do Brasil depois das transferências e tributos.”

MAELI PRADO
Folha de S. Paulo
08/12/2017

Enquanto esta mentalidade obcecada por lucros e ganhos financeiros for hegemônica, seguirá acarretando a lamentável e epidêmica degradação da vida em que estamos imersos até o pescoço. Degradação das condições dignas de trabalho – nossos celulares, por ex., sujos com o sangue das crianças africanas que são escravizadas nas minas de cobalto do Congo. Degradação dos ecossistemas e biomas, antes repletos de biodioversidade, hoje áreas com jeitão de Chernobyl (vide as tragédias socioambientais em Minas Gerais, Mariana e Sobradinho…).

Degradação de todos os mecanismos de participação política efetiva, corrosão das portas e pontes abertas para a real manifestação da soberania popular. Em canetada palaciana, Jair Bolsonaro extinguiu boa parte dos conselhos destinados a intermediar a relação entre representantes e população. Uma das muitas sabotagens ao processo democrático que estão sendo feitas.

É como se os dois regimes pós-Golpe – ou seja, os governos encabeçados pelos presidentes Temer e Bolsonaro – estivessem devotados a revogar a Constituição de 1988 de modo análogo ao que fez a Ditadura promulgando, em 1967, uma Constituição que reforçou a censura e a repressão:  “a dura política repressiva que se instalara com o AI-5”, a partir de Dezembro de 1968, já havia sido prenunciada pelo reforço dado, no ano anterior, à Divisão de Censura de Diversões Públicas. A liberdade de expressão era cada vez mais duramente cerceada e combatida, como mostra, para o caso da literatura brasileira, a obra da Sandra Reimão, Repressão e Resistência: censura a livros na ditadura militar.

Autores como Darcy Ribeiro, Rubem Fonseca, Caio Prado Jr., Inácio de Loyola Brandão, Cassandra Rios e Rose Marie Muraro foram alguns dos alvos do amordaçamento. Entre os editores, foram atacadas figuras como Ênio Silveira, dono da editora Civilização Brasileira, que teve sua sede invadida, livros confiscados e enxurradas de processos provindos da lawfare ditatorial.

Na MPB, como é bem sabido, a repressão também desceu com seu porrete amedrontador sobre vários artistas, e um caso emblemático é o espetáculo de Gal Costa, Gal a Todo Valor, em 1971.

Segundo Eduardo Jardim, podemos ler todo o contexto histórico ou zeitgeist em canções de Caetano que Gal interpreta, a exemplo de “Como 2 e 2”. No Teatro Teresa Raquel, em Copabacana, “o público que lotava o teatro” entendia a palavra DESERTO, no verso “TUDO EM VOLTA ESTÁ DESERTO”, com significados profundos que remetiam ao estrangulamento das liberdades, da supressão dos ímpetos libertários pela ditadura militar:

“Quando você me ouvir cantar
Venha, não creia, eu não corro perigo!
Digo, não digo, não ligo, deixo no ar.
Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar…

Tudo vai mal, tudo!
Tudo é igual quando eu canto e sou mudo
Mas eu não minto, não minto
Estou longe e perto
Sinto alegrias tristezas e brinco

Meu amor
Tudo em volta está deserto, tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco.

Quando você me ouvir chorar
Tente, não cante, não conte comigo
Falo, não calo, não falo, deixo sangrar
Algumas lágrimas bastam pra consolar…

Tudo vai mal, tudo!
Tudo mudou, não me iludo e contudo:
A mesma porta sem trinco, o mesmo teto
E a mesma lua a furar nosso zinco…

Meu amor
Tudo em volta está deserto, tudo certo.
Tudo certo como dois e dois são cinco…”

“Aqueles jovens apinhados em uma sala fechada, em um estado de forte emoção , sabiam que, fora dali, tudo era mesmo um deserto e tudo estava tão errado como a matemática da canção. O público era basicamente de estudantes e jovens artistas, os quais, de algum modo, tinham sido atingidos pela dura política repressiva que se instalara com o AI-5.

O governo avaliava com razão que os quadros das organizações armadas, que contestavam o regime, eram recrutados no meio universitário. Por este motivo baixou o decreto 477, em fevereiro de 1969, que punia com a expulsão da universidade e impedia o reingresso nela, por 3 anos, de todos os que participassem de atividades consideradas subversivas, como convocação de greves, organização de passeatas, produção ou porte de material de propaganda política, uso das dependências escolares para fins de subversão ou prática de ‘ato considerado imoral ou contrário à ordem pública’.

Além de dificultar a arregimentação de quadros para os grupos armados, outro objetivo do decreto foi impedir que o movimento estudantil se reorganizasse e voltasse a promover manifestações como as ocorridas nos anos anteriores.”

JARDIM, Eduardo. Tudo em volta está deserto: Encontros com a literatura e a música no tempo da ditadura.

Este desvio pela arte tropicalista nos tempos da ditadura não é à toa: é pra lembrar que, na Ditadura, as inovações estéticas e comportamentais sugeridas pelos artistas da Tropicália foram duramente reprimidas e silenciadas. E que foi justamente a Constituição de 1988, aquela da “redemocratização”, que enfim derrubou a censura às artes e aos meios de comunicação:

As obras de pensadores como Flávia Biroli, Márcia Tiburi, Luis Felipe Miguel, Vladimir Safatle, Edson Telles, Maria Rita Kehl, Rubens Casara, Débora Diniz, para citar apenas alguns dos mais ilustres, são cruciais para que questionemos a fundo se está viva e saudável, ou se está moribunda e agonizante, a dita Constituição Cidadã e a chamada “Redemocratização”.

Os governos Temer e Bolsonaro mostram toda a fúria destrutiva da Elite do Atraso que não deixa dúvidas: Cultura e Educação não apenas estão longe de serem prioridades, mas também merecem todo o ímpeto de desmonte e destruição que ora presenciamos, com a extinção do MinC e com cortes brutais nos investimentos na rede federal de educação.

Bolsonaro é o cadáver insepulto da Ditadura que ressurge da tumba. Um zumbi que vem para nos relembrar de nosso mal enterrado passado de violências de Estado impunes. A velha face de uma elite brutal que perpetra opressões e impunemente se deleita com as inúmeras degradações da dignidade humana dos mais vulneráveis que impõe.

Lembremos que o regime nascido do golpe de Estado de 1964, exatamente como o regime de Bolsonaro em 2019, usava instrumentos repressivos “contra os professores das universidades”: durante o domínio dos milicos que golpearam o governo Jango em 1964, “foram feitas listas de docentes que deveriam ser demitidos” e “houve casos em que estas medidas foram devastadoras, como no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ”.

Ali, rememora Edu Jardim, estavam reunidos os cursos de Filosofia, Ciências Sociais e História – velhos inimigos jurados dos regimes totalitários e dos autocratas que os encabeçam. Choveu repressão, mordaça e expurgo patrocinados pela Ditadura, e “com o esvaziamento do quadro docente, professores tinham que improvisar aulas das mais diferentes disciplinas e agentes infiltrado da polícia, chamados de assessores pedagógicos, circulavam pelos corredores da antiga Escola de Engenharia, no Largo de São Francisco, no centro do Rio de Janeiro. Lembro-me de um casal de namorados sendo admoestado, a mando de um professor, pelo fato de a moça estar com a cabeça reclinada no ombro do rapaz.” (JARDIM, op cit, p. 59)

Hoje não estamos muito melhor: Bolsonaro não difere tanto de um Médici; Paulo Guedes é admirador do regime ditatorial que Pinochet instalou no Chile, para testar a doutrina neoliberal burgofascista dos Chicago Boys; Sérgio Moro é uma figura meio Torquemada, meio Grande Inquisidor, que fede um pouco à jurisprudência medieval (aquela história de quem acha que, para condenar e aprisionar, não são necessárias provas, bastam as convicções); já no MEC e no Itamaraty, temos sectários Olavetes que não tem muito a propor senão despautérios imbecilóides como “o nazismo com certeza foi um movimento de esquerda” e “aquecimento global é uma fraude inventada pelos marxistas”…

Diante da restrição à renovação, renovação que é essencial ao avanço coletivo rumo a uma realidade alternativa menos injusta e menos sofrida, não nos resta caminho a não ser “sacar a voz”, como recomendam Anita Tijoux e Jorge Drexler, e irmos à luta. Até o Patriarcado cair, até a cleptocracia rodar, até o fascismo vazar, até tudo reflorescer – pois se o inverno é deles, a primavera pode ser nossa.

Resta saber se você é cúmplice do gelo, ou aliado da flor. Sabendo sempre que o silêncio nunca vai te proteger e no final, na certa, você vai morrer. Com o risco supremo: no momento fatal, olhando de cara para silêncios, passividades, obediências e inações, aí se concentre todo o fardo pesado do arrependimento. Pela vida não vivida, pela luta não lutada.

“Your silence will not protect you!”

É TEMPO DE SEMEAR A LUTA & FLORESCER POR MARIELLE

VÍDEOS RECOMENDADOS:

O FLORESCER DA VOZ, de Jaime Leigh Gianopoulos

O FEMINISMO DA REPRODUÇÃO SOCIAL, por Flávia Biroli

Filósofa Marilena Chauí explica como o ódio político decorre do neoliberalismo e do conceito de meritocracia

Acima: Palestra na Fundação Perseu Abramo (28 min)

 

“Fernando Haddad​ é marcado pela excelência, foi um dos alunos mais brilhantes que eu já tive”, afirmou a filósofa Marilena Chauí​. Em palestra recente na Fundação Perseu Abramo​, a professora da USP – Universidade de São Paulo​ explicou que, em sua avaliação, vivemos um momento trágico da história do Brasil e que o ódio político decorre do neoliberalismo e do conceito de meritocracia. O capitalismo teria entrado, em sua fase neoliberal, em uma fase totalitária, protofascista, com a imposição da forma “empresa” a todas as instituições sociais. Assista (28 min).

Sobre o candidato do PT – Partido dos Trabalhadores à Presidência da República (com Manuela D’Ávila vice), Chauí lembra-nos que Haddad inventou os CEUs (Centros de Artes e Esportes Unificados): “A ideia foi dele: visitou as periferias de São Paulo e depois propôs os CEUs. Depois, foi Ministro da Educação, e com Haddad nunca houve uma coisa igual: não só pelos programas de inclusão, da alfabetização de adultos e jovens, da imensa expansão da rede de educação pública federal, mas também através do ENEM, que confrontou a Indústria do Vestibular.”

A filósofa também revelou os laços de amizade entre ela e o candidato do PT à Presidência da República: “Também conheço Haddad como meu amigo. Leal, sincero, de coração puro e uma cabeça nova. Haddad tem uma proposta civilizatória, inclusiva, solidária e justa. Isto é o novo; o novo não é o rosto, o novo é a idéia, a proposta.”

Chauí também elogia a capacidade de Haddad em manter-se fiel ao princípio político essencial da modernidade iluminista, a laicidade do Estado. Ele é o oposto da demagogia teocrática de Malafaias, Felicianos e Bolsonaros. Segundo a filósofa, é alguém que respeita a separação entre Estado e Igrejas, um inovador secular sem medo de ousar na construção de uma sociedade mais inclusiva, justa e solidária.

Assistas aos vídeos:

#LulaLivre#HaddadPresidente#ManuNoJaburu

O esforço lúcido de Vladimir Safatle para esclarecer o imbróglio brasileiro, fornecer balizas para a refundação da esquerda e propor vias para a democracia real

Vladimir Pinheiro Safatle, “Só Mais Um Esforço”
(Três Estrelas, 2017, 144 pgs)
Disponível na livraria A Casa de Vidro: http://bit.ly/2hPuW97

Após a consumação do golpe parlamentar que expulsou Dilma Rousseff da presidência da república, em Abril de 2016, Vladimir Safatle publicou em sua coluna na Folha de S.Paulo um artigo-manifesto chamado “Nós Acusamos”. Nele, evocando Émile Zola no Caso Dreyfus, Safatle fazia uma série de acusações contra os cleptocratas que usurparam o poder: “Nós acusamos”, bradava em tom jacobino, “os representantes deste governo interino de seres personagens de um outro tempo, zumbis de um passado que teima em não morrer. Eles não são a solução da crise política, mas são a própria crise política no poder.”

Neste livro de intervenção, “Só Mais Um Esforço”, o professor de filosofia da USP – Universidade de São Paulo dá sequência à sua obra anterior “A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome”, publicando no calor da hora, à luz das ruas que queimam, palavras urgentes e contundentes numa espécie de amálgama de manifestos. São textos mais acessíveis ao grande público do que suas complexas análises de Hegel, Lacan, Adorno, Derrida, Butler, dentre outros pensadores, que marcam sua trajetória intelectual.

Na imprensa, em debates públicos, em entrevistas midiáticas e em livros como este, Safatle revela-se “um pensador comprometido com a causa dos oprimidos e explorados, um homem de esquerda autêntico, que usa sua pluma para denunciar os crimes e as injustiças do sistema capitalista e para propor alternativas radicais” – como escreve Michael Löwy no prefácio, .

Sem esconder sua admiração pelo governo de Salvador Allende no Chile (1970-1973), experimento de socialismo democrático rico em legados para o futuro da práxis utópica latino-americana, Safatle também se empolga com as insurreições recentes, pelo mundo afora, desde a Primavera Árabe e o Occupy Wall St. às Jornadas de Junho de 2013 no Brasil:


“Nada que se refere ao destino e às dificuldades da esquerda brasileira pode ser compreendido sem uma meditação a respeito das manifestações de Junho de 2013. Tais manifestações são certamente o conjunto mais importante de revoltas populares da história brasileira recente, não por aquilo que produziram, mas por aquilo que elas destruíram. A partir delas, todo o edifício da Nova República entrou paulatinamente em colapso. Mas, além disso, algo mais terminou: a primeira parte da longa história da esquerda brasileira chegou ao fim.” (p. 107)

Safatle lembra que 2013 foi o ano com “o maior número de greves desde o fim da ditadura, ou seja, 2.050 greves, sendo 1.106 apenas no setor privado. Tal fenômeno era sintomático: tratava-se de trabalhadores que não reconheciam mais suas ‘representações’ e que procuravam deixar claras sua insatisfação e precariedade.” (p. 108) A ascensão da insurreição popular que se viu em 2013, e que culminou nas mega-manifestações de Junho, manifesta o que Ruy Braga chamou de “A Revolta do Precariado”, uma insatisfação imensa da classe trabalhadora diante das condições de trabalho impostas pela hegemonia capitalista neoliberal globalizada, aquilo que Viviane Forrester – em livro traduzido pelo próprio Safatle e lançado pela Editora Unesp – chamou de “Uma Estranha Ditadura”.

Ora, Junho de 2013 foi uma “revolta que pegou a esquerda desprevenida, enfraquecida e acomodada à ilusão de perpetuação infinita no poder”, analisa Safatle. “Por isso, uma parte da esquerda preferiu abraçar o discurso da desqualificação da revolta, o que a livraria de ter de encarar sua própria obsolescência e envelhecimento.” (p. 53)

Safatle provoca-nos dizendo que, “em vista da paralisia completa do governo diante de tais revoltas e da incapacidade de todo o setor da esquerda de se constituir como intérprete qualificado das novas demandas, foi a direita que soube captar o momento, absorvendo de vez o discurso anti-institucional. Pela primeira vez desde 1984, a direita voltava às ruas, procurando mobilizar a força anti-institucional da política, enquanto a esquerda brasileira havia se transformado no mais novo partido da ordem. Com tal força, a direita, mesmo não tendo ganhado as eleições de 2014, impôs uma dinâmica acelerada de desabamento do governo e de incitação a um golpe parlamentar travestido de legalidade…” (p. 155)

Como a Revolta do Precariado e as insurreições vinculadas às demandas por um transporte público mais digno – capitaneadas pelo Movimento Passe Livre – MPL – puderam ser “colonizadas” pelas forças da Direita? O que explica que, ao fim de Junho, os “coxinhas” tivessem tomado a cena, mobilizados pela grande mídia corporativa e por entidades patronais como a Fiesp? A resposta, para Safatle, encontra-se no “circuito dos afetos”, em especial na mobilização que as forças reacionárias fizeram do medo. É o medo da desordem e da “anarquia” – brandido pelos mass media a todo momento através das imagens de vandalismo e descontrole – que permite a ascensão proto-fascista de uma ideologia que prega o autoritarismo truculento para resolver os conflitos sociais.

Em um dos capítulos mais interessantes de “Só Mais Um Esforço”, Safatle discute três fotografias emblemáticas: Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura militar brasileira aos 37 anos de idade; o ex-presidente Lula com as mãos sujas de petróleo; e manifestantes que depredam o Palácio Itamaratyem um episódio de clímax das Jornadas de Junho. Sinais de um país que, através da anistia, deixou praticamente impunes os torturadores e assassinos do Estado de Exceção inaugurado pelo golpe militar de 1964; que não soube propor modelos de desenvolvimento alternativos à civilização industrial devoradora de combustíveis fósseis e geradora de uma hecatombe ecológica global; e que não sabe lidar com a emergência de uma contestação bruta senão mobilizando a força repressiva de um Estado ainda militarizado e que tem na PM um dos piores legados de seu passado mal enterrado.

“A foto do Palácio do Itamaraty em chamas tem sua ironia”, explica Safatle. Pouco antes, a massa estivera enfurecida diante do Congresso Nacional do Brasil, ameaçando quebrá-lo. A Polícia Militar tentou impedir, mas não conseguiu fazer nada melhor do que empurrar a massa para o lado, fazendo com que sua fúria destruísse o primeiro edifício público à frente…. A foto mostra a destruição de um substituto. Para salvar o Congresso com seus oligarcas, outro objeto é oferecido para ser sacrificado em um ritual de expiação da revolta. Essa estratégia será utilizada uma segunda vez, de maneira simbólica e bem-sucedida, no golpe de 2016.

Mas essa imagem não será apenas a expressão de uma armadilha criada de forma astuta por uma oligarquia exímia na arte de se perpetuar. Ela será o eixo dos últimos anos da história brasileira em um outro sentido, mais forte. Pois a fúria popular contra o Itamaraty era a encarnação do verdadeiro medo que sempre assombrou este país, a saber, o medo da insurreição de uma massa amorfa e descontrolada, de força negadora bruta, que encarnaria todas as décadas e séculos de revolta muda e surda. Uma força que não se submeteria mais ao poder do Estado, à lógica de suas representações. ” (p. 53)

É “o povo que diz não” subindo à cena política. “Essa insurgência, com sua negação bruta, que pareceu ser uma ferida aberta que poderia não mais parar de sangrar, foi o motor que levou parcelas da população brasileira, depois de 2013, a reagir e a abraçar de forma cada vez mais descomplexada os discursos protofascistas de ordem e de justificação da violência estatal. Pode parecer paradoxal esse resultado, mas não será a primeira vez na história que as latências de uma revolta popular dão espaço à emergência de um sujeito reativo.” (p. 55)

Junho de 2013, longe de ter tido efeitos libertários de longo prazo, causou um assanhamento das forças reacionárias e fascistas no Brasil, com o cenário preocupante que se desenha para 2018: a da candidatura, apoiada por milhões, do racista, misógino, homofóbico, militarista – amálgama de toda a estupidez desavergonhada do fascismo brazzzileiro – Jair Messias Bolsonaro. São sinais claros de que o Brasil fracassou em lidar com seu passado, que volta a assombrá-lo como um espectro horrendo:

“Nenhum outro país protegeu tanto seus torturadores, permitiu tanto que as Forças Armadas conservassem seu discurso de salvação através do porrete, integrou tanto o núcleo civil da ditadura aos novos tempos de redemocratização quanto o Brasil. Há de se lembrar que o Brasil é o único país da América Latina onde os casos de tortura aumentaram em relação à ditadura militar. Por isso, nenhum outro país latino-americano teve um colapso tão brutal de sua ‘democracia’ como o nosso, com uma polícia militar que age como manada solta de porcos contra a própria população que paga seus salários. Nenhum outro país latino-americano precisa conviver com um setor proto-fascista da classe média a clamar nas ruas por ‘intervenção militar’, a ponto de invadir o plenário do Congresso Nacional com suas bandeiras. Tudo isso demonstra algo claro: a ditadura brasileira venceu. Como um corpo latente sob um corpo manifesto, ela se conservou e a qualquer momento pode novamente emergir.” (p. 65)

É o que estamos vendo na era Michel Temer: uma cleptocracia escrota que vem massacrando sem dó os direitos trabalhistas, que vem impondo medidas de austeridade altamente impopulares, que vem enfiando-nos goela abaixo as intragáveis PECs do Fim do Mundo que ameaçam precarizar escolas e hospitais pelos próximos 20 anos – e quem protesta contra isso é considerado um inimigo público digno só do porrete, do spray de pimenta, das bombas de gás lacrimogêneo.

“Diante desse cenário, a tendência brasileira agora é a desagregação. Com uma casta política que bloqueou todo processo de renovação, com uma paralisia em relação à compreensão de processos de emergências de novas modalidades de corpos políticos, o país tende a se deslocar paulatinamente para um modelo cada vez mais autoritário e desprovido de qualquer legitimidade. Os sistemas de pactos ruíram e não é mais possível reeditá-los. Todas as ‘reformas’ apresentadas em 2016 e 2017 visam à destruição das defesas trabalhistas e ao fortalecimento das dinâmicas de produção da desigualdade, no pior dos pesadelos neoliberais.

Nesse cenário, não é surpreendente que, diante do crescimento da resistência contra a espoliação, a elite dirigente brasileira jogue todas as suas forças na brutalização do discurso social, na criminalização da oposição e no uso recorrente de seu braço armado para gerir conflitos.” (p. 117-118)

As alternativas radicais propostas por Safatle para sairmos do atual cenário catastrófico envolvem medidas que deixam nossas elites com a pulga atrás da orelha: taxação de grandes fortunas e heranças; instauração do salário máximo; restrição do direito à propriedade privada etc. O leitor atento pode ficar estarrecido com certas omissões: o filósofo não menciona em lugar algum do livro a reforma agrária, a demarcação de terras indígenas, a luta contra o agronegócio e os agrotóxicos, nem menciona movimentos sociais como o MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e o MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, tão esforçados na instauração de uma outra realidade, menos injusta e hedionda do que a que vivemos.

O outro mundo possível que hoje demanda nosso esforço e nossa luta também exige a refundação radical da esquerda e a construção coletiva de uma autêntica democracia direta, onde o povo não delegue sua soberania a ninguém, e onde o Estado se utilize de todas as ferramentas das novas tecnologias digitais para a instauração de uma “ágora virtual” onde proliferariam os plebiscitos e assembléias populares.

“Temos atualmente todas as condições técnicas para criar uma sociedade de deliberação contínua baseada em uma democracia digital”, opina Safatle (p. 128), propondo inovações políticas nos processos decisórios através de uma “ágora virtual” (noção contestada por Luis Felipe Miguel, cientista político e professor da UnB – Universidade de Brasília, neste artigo em Justificando).

Longe de decretar que o marxismo ficou obsoleto, Safatle busca re-avivar a chama de Karl Marx eEngels para nossos tempos, dizendo que “a teoria marxista da revolução é, mais do que uma teoria das crises, uma teoria da emergência de sujeitos políticos com força revolucionária. No caso de Marx, tais sujeitos têm nome: proletários.” (p. 102)

Safatle insiste que o conceito de proletário no pensamento marxista não é apenas uma “categoria sociológica dos trabalhadores que têm somente sua força de trabalho”, mas sim uma “categoria ontológica que diz respeito a certo modo de existência com grande força revolucionária, é um modo que depõe regimes de existência baseados na propriedade, no individualismo possessivo e na identidade, com seus sistemas defensivos e projetivos.

O século XIX conheceu uma sequência impressionante de revoltas, movimentos e insatisfação social oriundos de crises econômicas profundas em todos os lados da Europa. Tal como agora, as ruas queimaram em sequência. Mineiros da Silésia, operários ingleses, tecelões franceses: todos pararam fábricas, quebraram máquinas, montaram barricadas, desafiaram a ordem instituída. No entanto, essa multiplicidade de revoltas só se transformou em um fantasma que assombrava aquele tempo quando todas as ruas em chamas foram vistas como a expressão de um só corpo político, um só sujeito em marcha compacta pelo desabamento de um mundo que teimava em não cair.

Um sujeito político só emergiu quando os mineiros deixaram de ser mineiros, os tecelões deixaram de ser tecelões e se viram como um nome genérico, a saber, ‘proletários’, a descrição de quem é totalmente despossuído, de quem é ninguém. Foi quando a multiplicidade das vozes apareceu como a expressão da univocidade de um sujeito presente em todos os lugares, mas com a consciência de sua ausência radical de lugar, que a revolta deixou de ser apenas revolta. Pois essa força de síntese de outra ordem que aparece através da univocidade da nomeação era a condição para que a imaginação política entrasse em operação, permitindo a emergência de um novo sujeito. De certa forma, é isto que nos falta: precisamos ser, mais uma vez, proletários.” (p. 103)

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Por Eduardo Carli de Moraes
 www.acasadevidro.com

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Leia também:

ESTILHAÇOS DE INDIGNAÇÃO E ESPERANÇA – UMA SOCIOLOGIA À ALTURA DE JUNHO, POR RUY BRAGA EM “A PULSÃO PLEBÉIA” (ALAMEDA/FFLCH-USP)

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Alguns vídeos:



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15M: Um milhão de pessoas tomam as ruas em protesto contra o Pacote de Maldades do regime golpista

Cerca de 1 milhão de brasileiros, segundo Brasil de Fato (http://bit.ly/2mCf6vQ), tomaram as ruas neste 15 de Março de 2017. A maré torrencial de participação contestatória deu-se em protesto contra a avalanche de retrocessos propostas pelo (des)governo instaurado após o golpeachment.

A cidadania insurgente manifestou-se em um dia histórico de greve e mobilização nacional, com foco no repúdio à Reforma da Previdência. Parte do “Pacote de Maldades” proposto pelo regime golpista de Michel Temer, a (D)eforma Previdenciária propõe aquilo que o humorista José Simão chamou de “aposentadoria póstuma”: morra primeiro, aposente depois.

Caso o Congresso Nacional aprove a medida, para ter direito à aposentaria integral o trabalhador precisará de 49 anos de contribuição ininterrupta e idade mínima de 65 anos, tanto para homens quanto para mulheres. Sobre o tema, o filósofo Vladimir Safatle escreveu com clareza na Folha de S. Paulo: “Como em várias regiões do Brasil a expectativa de vida não chega a 65 anos, a contribuição previdenciária será, para boa parte das pessoas, uma pura e simples forma de espoliação de seus rendimentos, já que elas morrerão antes de se aposentar.”

O argumento é ecoado em um vídeo, que viralizou nas redes, bolado pela frente Povo Sem Medo em parceria com o ator Wagner Moura. Neste vídeo, critica-se com sarcasmo: “Vão transformar o INSS em uma funerária: as pessoas vão se aposentar no caixão.”

Em ato que reuniu mais de 200.000 mil pessoas na Avenida Paulista (e não mereceu uma mísera linha ou foto no jornal Estadão, que realizou uma omissão criminosa e suína que o faz merecedor da alcunha de membro do P.I.G.), o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou: “está ficando cada vez mais claro que o golpe dado neste país não foi só contra a [ex-presidenta] Dilma Rousseff e os partidos de esquerda, mas para colocar um cidadão sem nenhuma legitimidade para acabar com os direitos trabalhistas e com a Previdência Social” (http://bit.ly/2mQgmMV).

Goiânia, 15M

ASSISTA: A MARÉ: Goiânia, 15 de Março de 2017
(Documentário, Curta-metragem, 14 minutos.)

Neste documentário curta-metragem A Maré, de 14 minutos, confiram um pouco dos agitos nas ruas da capital de Goiás neste 15M, quando uma significativa manifestação popular tomou conta do centro da cidade. Estima-se que mais de 15 mil goianienses participaram do ato, que reuniu ativistas de vários movimentos sociais e centrais sindicais, além de estudantes secundaristas e universitários, professores e servidores da educação pública, funcionários dos Correios e de empresas públicas como a CELG, com forte presença do Povo Sem Medo que têm resistido ao golpe e seu séquito de retrocessos.

Diante de uma corja golpista e corrupta de cleptocratas elitistas, a população do Brasil vê-se diante da necessidade histórica de levantar-se contra o tsunami de retrocessos que pretendem, para lembrar a boutade de Millôr Fernandes, perpetuar nosso status de país “com um longo passado pela frente”. Ou, como disse o humorista André Dahmer, permitiremos a instalação da grotesca Ponte Para O Futuro: “imaginem quantos pobres vão morar debaixo dela!”

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“A Maré” é um filme de Eduardo Carli de Moraes; uma produção independente d’A Casa de Vidro – Livraria e Produtora Cultural [http://www.acasadevidro.com]. Com falas de Renato Costa, Pedro Henrique Melo Albernaz, Lucas Nunes, Jules Groucho Maigret, Davi Maciel, dentre outros. Trechos musicais de Paulinho da Viola e Anita Tijoux (nenhuma violação dos direitos autorais das obras musicais esteve entre nossas intenções; trechos das canções foram utilizados para ilustrar as imagens de modo lúdico e sugestivo e esta obra audiovisual não tem nenhum fim lucrativo).

Se preferir, assista também no Youtube:

Leia também uma boa análise de conjuntura: “O Que Não Te Contaram Sobre A Reforma Da Previdência”

O GOLPISMO PLUTOCRÁTICO E O ÓDIO À DEMOCRACIA: Reflexões na companhia de Jessé Souza, David Graeber e Jacques Rancière

I. UM CONTO DE FADAS PARA ADULTOS

Os crimes cometidos e as catástrofes causadas pelas corporações capitalistas saltam aos olhos: da Monsanto à Shell, da Volkswagen à Vale, não faltam exemplos de corrupção, fraude, enriquecimento ilícito, danos socioambientais irreversíveis, etnocídio e genocídio, dentre outros malefícios acarretados pelo comportamento – psicótico e cotidianizado – de muitas megaempresas transnacionais nesta nossa era de hegemonia do ultraliberalismo.

 As corporações capEtalistas são capazes de contaminar o meio ambiente de modo irreversível, como prova o assassinato do Rio Doce, pior tragédia ambiental da história do Brasil (2015), ou o desastre de Bophal na Índia (1984) e da British Petroleum no Golfo do México (2010). As corporações também podem mentir descaradamente para a sociedade sobre os impactos negativos de seus produtos, como fez a Volkswagen: como revelou-se recentemente em escândalo que ocasionou a queda de seu presidente, a empresa fraudou cerca de 11 milhões de motores automotivos no intento de desinformar a sociedade sobre a quantidade de poluentes e gases de efeito estufa que lançavam à atmosfera.

Tudo isso torna The Corporation, aliás, um dos documentários mais cruciais para compreender nossa época em que há um poderio sem precedentes destes grandes conglomerados capitalistas privados, que sequestram o Estado, tornam obsoleta a noção de bem público, tratam o lucro como Deus e não enxergam nas devastações que ocasionam nada além de “externalidades”. Não, não é possível rimar democracia com o capitalismo desenfreado nos moldes atuais. O que vemos, hoje, é triunfo da plutocracia, o (des)governo dos ricos.

Em meio aos intensos alarmes que soam mundo afora, alardeados pela comunidade científica internacional, sobre o colapso civilizacional que será acarretado pela intensificação do aquecimento global, as empresas petrolíferas ligam o “foda-se” para as mudanças climáticas e esforçam-se para avançar sobre as jazidas de petróleo, querendo drillar até no Ártico (caso daquela famosa empresa – Shell From Hell – já agraciada com o “prêmio” de pior empresa do planeta pelo Public Eye Awards).

É de fato uma imensa coleção de vergonhas, que pode encher um vasto livro, todos os malefícios ecológicos, econômicos e políticos causados por corporações capitalistas privadas – que muitas vezes gastam milhões de dólares em campanhas de desinformação, como as empresas de cigarros que fazem campanhas para provar que não há nenhuma conexão entre os produtos que vendem e o câncer de pulmão (são os Merchants of Doubt, ou Mercadores da Dúvida, de que fala em seu livro a Naomi Oreskes).

As principais destas corporações, campeãs da infâmia e da barbárie, estão reunidas neste Hall of Shame em que marcam presença Chevron, Gap, Wal Mart, Walt Disney, Dow Chemicals, dentre outros agentes de Satanás. Podemos agora adicionar à lista a Besta Encarnada na fusão Monsanto e Bayer…

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Nas trevas das fábricas, nos sweatshops onde a violação dos direitos humanos é cotidiana, muitas destas empresas exploram trabalho como se o escravismo ainda fosse legalizado; fazem lobby junto a políticos como se suborno e propina fosse algo respeitável e digno de institucionalização; põe milhões em publicidade para divulgar álcool e cigarros, hambúrgueres e remédios, mas nada publicam na mídia vendida sobre a grana em paraísos fiscais e a sonegação-monstro (vide os Panama Papers).

Para não falar na obscenidade grotesca que é a indústria bélica – que viverá dias de glória na Era Donald Trump… – e que literalmente lucra com a morte e a destruição. Para não falar, tampouco, das petroleiras transnacionais que financiam guerras imperialistas para tomar conta do “ouro negro”, seja através do belicismo interventor no Oriente Médio, seja através dos golpes de Estado latino-americanos, vide os casos de Hugo Chávez e de Dilma Rousseff, residentes legítimos que acabaram entrando na mira do golpismo imperial desejoso de instalar regimes-fantoche e vende-pátria.

Na Bolívia, quando o Estado nacional fez-se servil aos interesses das corporações capitalistas que desejavam privatizar a água, lançando milhares de pessoas na miséria da sede e da desidratação, a fúria das rebeldias justas estourou na insurreição popular de Cochabamba, evento essencial à posterior eleição de Evo Morales para a presidência do país. Eis um ícone da batalha de Pachamama contra a barbárie neoliberal. (Saiba mais no artigo que fiz sobre o filme Hasta La Llúvia, estrelado por Gael Garcia Bernal: Uma Viagem Com Mais Náufragos Que Navegantes).

Na Índia, dezenas de milhares de camponeses empobrecidos já se suicidaram – o método mais comum: beber o agrotóxico venenoso que os desgraçou a vida. A onda de suicídios é decorrência do cruel Monsantismo e do devastador agrobiz que tomou conta do país e que ocasionou, como resistência, a emergência das guerrilhas maoístas. Sobre estas, Arundhati Roy escreveu algumas obras-primas do jornalismo literário contemporâneo, como Walking With The Comrades, além do livro magistral Broken Republic. 

aRUNDHATI

Já em Chiapas, no México, o levante zapatista iniciado em 1994 é emblemático da encarniçada e trágica batalha dos povos originários deste continente contra os horrores propiciados pela ditadura do capitalismo sem freios que recebe o cognome eufemístico de “neoliberalismo”. Considero o Subcomandante Marcos, misterioso líder zapatista que se oculta atrás da máscara, como um dos pensadores políticos mais fundamentais do nosso tempo:

CddeMexico

“To kill oblivion with a little memory,
we cover our chests with lead and hope.”

SUBCOMANDANTE MARCOS, Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN).
In: ‘Our Word is Our Weapon: Selected Writings’,
Published by Seven Stories Press (New York, 2003, Pg. 100.)

“Marcos is gay in San Francisco, Black in South Africa, an Asian in Europe, a Chicano in San Isidro, an anarchist in Spain, a Palestinian in Israel, a Mayan Indian in the streets of San Cristobal, a Jew in Germany, a Gypsy in Poland, a Mohawk in Quebec, a pacifist in Bosnia, a single woman on the Metro at 10 pm, a peasant without land, a gang member in the slums, an unemployed worker, an unhappy student and, of course, a Zapatista in the mountains. Marcos is all the exploited, oppressed minorities resisting and saying ‘Enough’. He is every minority who is now begining to speak and every majority that must shut up and listen. He makes the good consciences of those in power uncomfortable – this is Marcos.”  – Subcomandante Insurgente Marcos, EZLN – People’s Global Action 2002 (Read Awestruck Wanderer’s posts about the Zapatistas)

 Que muitos não percebam a podridão inerente à atual hegemonia global das multinacionais e dos Estados a elas servis é mais um sinal do poderio não só econômico, mas cultural e midiático, que a elite planetária – o 1% da cúpula financeira – adquiriu sobre corações e mentes. Através das poderosas e prepotentes mídias-de-massa privadas, controladas por magnatas cheios da bufunfa, podem-se disseminar ideologias que pregam as benesses do Livre Mercado, o que milhares de evidências empíricas e estatísticas, contemporâneas e históricas, provam ser mentirosas.

Este me parece um dos argumentos mais claros e recorrentes na argumentação do sociólogo brasileiro Jessé Souza: estamos sendo feitos de otários por um conto-de-fadas para adultos, a noção extravagante e absurda de que a corrupção é um problema que aflige exclusivamente o Estado (o poder público), não envolvendo de modo algum o puro e imaculado Mercado (o poder privado).

Que ainda se encontrem crédulos desta lorota na América Latina é estarrecedor, considerada a nossa história colonial repleta de saques imperiais das riquezas locais, rapinas promovidas por poderes de mentalidade privatista, lucrocêntrica, excludente.  Este enredo infantil de bandido e mocinho – algo como “o capitalismo é gente-fina, o problema é este bando de políticos sujos!” – é o conto da carochinha que é destroçado pela argumentação de Jessé, sociólogo brasileiro que não teme criticar e bater de frente contra as ideias consagradas por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ou R. Faoro.

Professor de ciência política da UFF (RJ) e ex-presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) – exonerado do cargo quando Temer assumiu a função de presidente interino após a grotesca sessão na Câmara conduzida por Eduardo Cunha – Jessé Souza tem um bocado a ensinar ao Brasil em seus contundentes A Tolice da Inteligência Brasileira (Ed. Leya, 2015, 271 pgs) e A Radiografia do Golpe (Ed. Leya, 2016, 142 pgs).

Em uma das sociedades mais perversamente desiguais do planeta – tanto que já fomos apelidados de “Belíndia”, uma mistura caótica de Bélgica com Índia – nada mais urgente do que desmontar o conto-de-fadas que tece louvores ao mercado, supostamente virtuoso e angelical – e que muitos pregam que deveria ser deixado em paz e sem freios para que floresçam a prosperidade e a felicidade gerais que seriam orquestradas pela Divindade secularizada, a “mão invisível” de Adam Smith.

Esta noção interesseira, propagada pelos demagogos neoliberais, de que o mercado deve ser desregulado e não pode ser atrapalhado por um Estado corrupto e ineficiente, é contestada por Jessé numa argumentação calcada em autores clássicos da sociologia como Florestan Fernandes e Pierre Bourdieu. Os argumentos de Jessé somam-se ao arsenal reunido em livros clássicos como As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, ou A Doutrina do Choque, de Naomi Klein, obras que mostram claramente que não foi pela via democrática que instalou-se no Chile ou no Brasil este nosso capitalismo-da-barbárie hoje vigente.

O neoliberalismo faz sua entrada triunfal por aqui como imposição autoritária (ninguém votou em prol das doutrinas dos Chicago Boys no Chile!). Obviamente o imperialismo não trabalha sozinho, mas tem seus aliados entre as elites locais, colonizadas até o osso e que idolatram de modo acrítico o Tio Sam (e o Tio Patinhas!), tomando como modelo de sucesso, paradigma de excelência a serem imitados, um regime que lança na miséria e na sub-humanidade imensas proporções da população, para o bem da mísera minoria de milionários no tope.

Bem antes de Ronald Reagan e Margareth Tatcher conduzirem o mundo anglo-saxão para a era neoliberal, foi ao Sul do Equador – no Brasil, no Chile, na Argentina, lançados às trevas de ditaduras militares – que testou-se a fórmula do Estado mínimo (ainda que máximo no que tange à repressão, à vigilância policial, ao encarceramento em massa). Foi através de um totalitarismo belicista militarizado, de um Estado policial-penal, que Pinochets e Geisels defenderam com punho de ferro um mercado dito “livre” – leia-se: um regime onde os interesses privados estão livres para praticar seus vandalismos sociais, lançando muita gente às margens, pauperizada e esfomeada por um status quo excludente e de flagrantes injustiças, praticante impenitente de um  autêntico apartheid tropical baseado na miséria planificada. Para lembrar Rodolfo Walsh:

rodolfo-walsh-periodismo-revolucionario

Em 1977, em sua “Carta Aberta à Junta Militar” da Argentina, o valente jornalista Rodolfo Walsh denunciou a repressão desse regime, uma ditadura que organizou o assassinato e a desaparição de mais de 30 mil pessoas. “Não obstante, esses acontecimentos que comovem a consciência do mundo civilizado, não constituem o maior sofrimento infligido ao povo argentino, tampouco a pior violação dos direitos humanos que vocês já cometeram”, escreveu Walsh a respeito da tortura e dos assassinatos. “É na política econômica deste governo onde se percebe não só a explicação dos crimes, mas também uma gigantesca atrocidade que castiga a milhões de seres humanos: a miséria planificada…  Basta dar uma volta de algumas horas pela Grande Buenos Aires para comprovar a rapidez com que essa política transformou a cidade numa favela de dez milhões de pessoas”. (BENJAMIN DANGLR em CARTA MAIOR)

Se o golpismo de hoje não é lá muito diferente do golpismo de outrora, é pois em ambos os casos quem chega para tratorar a democracia são justamente os interesses dos capitalistas mais empedernidos, dos plutocratas mais desavergonhados na defesa dos próprios privilégios injustos. Aqueles que não tem pudor de fazerem valer seus interesses com o auxílio da força bruta ou das conspirações corporativo-parlamentars. Como ensinava Galeano, o 1% pode até ser de uma criminalidade absolutamente mortífera, ou mesmo genocida, mas raramente vai em cana pois são os caras que mandaram construir as prisões e que detem as chaves dos cárceres e os acessos aos botões nucleares.

Diante de uma Justiça vendida, exercida por aqueles que vendem-se como prostitutos de luxo no mercado das indulgências compráveis, o rico criminoso adquire sua impunidade, financiando aqueles que se prestam ao serviço de fazerem vistas grossas à barbárie e permitirem a corrupção cotidianizada de corporações e empresários – a Elite do Poder, de que falava C. Wright Mills, e que, em seus efeitos sociais, são como tsunamis devastadores ou nuvens de gafanhotos que arrasam plantações.

Este modelo de capitalismo plutocrático, oligárquico, autoritário, que o Golpe político-corporativo-jurídico em curso no Brasil em 2016 pretende forçar-nos goela abaixo, instaurando um regime de austeridade para o povo regalias para o tope, é irmão próximo daquele capitalismo made in U.S.A. e defendido pela força militar, instalado por aqui pelos coup d’états, teleguiados lá de Washington, que puseram a Ditadura no lugar do “Janguismo” (a partir de 1964) e que comemoraram o triunfo de Pinochet sobre o cadáver do regime de Salvador Allende em 1973.

Nestes casos extremos, que vivenciaram na pele os brasileiros e chilenos durante as respectivas ditaduras, o que ocorreu foi apropriação do Estado por parte dos interesses mercadológicos e empresariais. Um Estado policial somado a um Mercado a quem se permitia que a lei da selva vigorasse, ou seja, a competição dita “livre”, que na verdade só liberta os mega-capitalistas para faturarem lucros sobre as lágrimas de labor exaustivo extraídas das classes oprimidas e espoliadas.

“A única questão razoável é saber se o Estado é apropriado por uma pequena minoria privilegiada ou se pelo interesse da maioria”, escreve Jessé Souza. “Como se pensar, por exemplo, que o Estado norte-americano – o paraíso na terra para os liberais brasileiros colonizados até o osso – depois da guerra do Iraque quando o interesse de companhias petrolíferas saqueou e provocou a morte de milhões, inclusive de norte-americanos, com base em mentiras para obter lucros; ou depois das fraudes da crise de 2008 operada pelo mercado financeiro – como ‘Estado público’ e não apropriado por uma minoria?” (SOUZA: A Tolice… p. 67)

Ainda carecemos superar o complexo de vira-latas de achar que o Brasil é inferior, é sub, está por baixo, babando ovo pra Yankee como se os EUA fossem o ideal que devemos almejar. Só quem está dormindo – ou midiotizado pela lavagem cerebral da imprensa corporativa! – pode acreditar ainda no “Sonho Americano” diante de uma sociedade tão perversa e injusta quanto os Estados Unidos. Como disse George Carlin, ele se chama sonho americano pois é preciso estar dormindo para acreditar nele.

Nos EUA, por exemplo, milhares de cidadãos são largados para morrer à míngua de qualquer auxílio por não terem condições econômicas de pagar o sistema de saúde vastamente privatizado e elitista (revejam Sicko de Michal Moore). Pergunte sobre o American Dream aos negros e latinos, pergunte aos imigrantes árabes, pergunte aos que estão presos em Guantánamo… eles te apresentarão ao pesadelo americano!

Os livros de Jessé Souza devotam-se a criticar esta ideologia, simplista e maniqueísta, que pinta com atributos angelicais os empresários, os banqueiros, as mega-corporações, supostamente livres do vício da corrupção que contaminaria tão somente o governo – ou mesmo, para cúmulo da tolice, um único partido, como sustentam muitos acéfalos e esbravejantes moralistas de ocasião em sua cruzada anti-petista.

Idealizar o Mercado e demonizar o Estado equivale a não enxergar com clareza que a raiz do problema da corrupção está nas relações entre estas duas instâncias: quase inexiste um político comprovadamente corrupto que não possua corruptores no setor financeiro ou empresarial. Por que não se diz claramente que o crime organizado é também praticado por Odebrechts e Globos, por Ambevs e Volkswagens, e não somente por políticos?

Contra as falácias dos apologistas do Estado Mínimo e do Mercado Livre, é preciso sublinhar, como faz Jessé Souza, que o “lucrocentrismo” que domina nosso capitalismo selvagem e concentrador é  corrupção institucionalizada, um fenômeno que só se agrava quando a economia torna-se desregulada – como explicam, em épocas diferentes, Karl Polanyi, Stiglitz, Piketty. Cabe a nós colocar os pontos de interrogação bem no fundo e perguntar: será que o capitalismo não é intrinsecamente corruptor? Não tende sempre a agravar a concentração de capitais e poderes nas mãos da aquela minúscula elite que o movimento Occupy Wall Street cognominou, com justeza, o “1%”?

A Tolice da Inteligência Brasileira

“Esse ‘conto de fadas para adultos’, como todo conto de fadas, infantiliza, distorce o mundo e nos faz de tolos por não termos mais 5 anos de idade. A simples ideia da separação entre mercado e Estado é absurda. Os dois formam, afinal, um complexo único, dependente um do outro. Não existem, por exemplo, contratos válidos no mercado – e todos os atos do mercado são contratuais – sem que o Estado forneça o aparato de Justiça e de repressão para obrigar o cumprimento contratual. Por outro lado, o Estado depende da produtividade do mercado para sua receita fiscal. Um não existe sem o outro. Antes de tudo, não há corrupção sistemática no Estado sem que seja provocada por interesses de mercado. Aqui não tem ‘santinho’ nem ‘virtuoso’.

(…) É vontade dos ‘endinheirados’ que todas as dimensões da vida social fiquem à mercê do interesse de lucro. É para isso que serve o conto de fadas do mercado virtuoso e do Estado corrupto e ineficiente. Assim, podem-se concentrar fatia desproporcional do PIB brasileiro em ganhos de capital, cuja parte do leão vai para o bolso dos endinheirados que perfazem menos de 1% da população, ficando uma pequena parte para a enorme maioria da população que vive de salários.

Na verdade, o mercado capitalista, aqui e em qualquer lugar, sempre foi uma forma de ‘corrupção organizada’, começando com o controle dos mais ricos acerca da própria definição de crime: criminosos passa a ser o funcionário do Estado ou o batedor de carteiras pobre enquanto o especulador de Wall Street – a matriz da avenida Paulista – que frauda balanços de empresas e países e arruína o acionista minoritário, embolsa, hoje mais que antes da crise, bônus milionários. Enquanto os primeiros vão para a cadeia, o segundo, que às vezes arrasa a economia de países inteiros, ganha foto na capa da revista The Economist como financista do ano.” (SOUZA: 2015, p. 244-247)

Dentre os contos de fada para adultos mais famosos, para além das religiões instituídas no mercado das crendices, há o famoso “mito nacional”. Não importa se é verdadeiro ou ilusório o mito nacional, ele foi forjado para ter uma eficácia prática, produzir uma certa solidariedade social, forjando uma unidade entre aqueles que, no nosso caso, calharam de nascer neste território que historicamente foi delimitado e batizado Brasil, o mais gigantesco Estado Nacional da América Latina.

O mito nacional, inspirador dos sentimentos de nacionalismo (que se manifesta também como narcisismo nacionalista ferido, por exemplo quando nos sentimos humilhados como nação ao apanhar de 7 a 1 da Alemanha na Copa de 2014), não cessa de ser mobilizado hoje em dia. E esta velharia mofada que é Ordem e Progresso, mote positivista de Augusto Comte, salta da tumba como merchandising (por sinal, péssimo!) do governo golpista de Temer e seus consortes.

“O mito nacional não se reduz ao seu valor como verdade”, explica Jessé. “Ao contrário, fundamental é seu papel produtor de solidariedades que permitem que sociedades concretas enfrentem guerras, crises e até guerras civis sem se destruir como nação, e até saiam fortificadas desses desastres. A virtude da identidade nacional é, portanto, pragmática, pois serve a uma função fundamental como conto de fadas para adultos, cumprindo papel semelhante ao das antigas religiões mundiais.” (SOUZA: p. 45)

Lendo isso, não pude evitar que surgissem na memória algumas cenas recentes da história do país, em que viu-se a Avenida Paulista tomada por dezenas de milhares de manifestantes, vestidos de verde-e-amarelo (camisetas da corruptíssima CPF!), portando bandeirolas do Brasil, muitos dos quais talvez acreditassem piamente que estavam prestando um serviço cívico à nação ao apoiarem o impeachment de Dilma Rousseff, como se a derrubada da presidenta, mesmo sem crime de responsabilidade e através de golpe parlamentar, fosse a panacéia para o lodaçal em que nos encontramos nesta interminável crise política. Agora descobrem, caso não sejam completamente tapados e vidiotas, que a dinossáurica elite plutocrática é quem está assaltando o poder e golpeando-nos (“nós, os 99%”!).

Concretizado o afastamento da presidenta após as votações na Câmara e no Senado, estas massas de “coxinhas”, especialistas em papaguear a indignação seletiva da mídia interesseira cognominada P.I.G. (apelido suíno que faz plena justiça a seus serviços porcos de emporcalhar democracia!), calaram-se com suas panelas nas varandas gourmet. Estas massas de manobra da nossa Direita golpista e interesseira simplesmente sumiram das ruas, ainda que os escândalos de corrupção só tenham se multiplicado desde que Temer virou o interino e depois o presidente (apesar de ficha-suja e inelegível por 8 anos, é bom lembrar).

Para além da cusparada cheia de catarro que foi dada sobre a imensa maioria da população brasileira com a escolha de seu Sinistério – que não representa as mulheres, os jovens, os negros, os índios, os gays (não representa ninguém senão homens brancos, velhos e endinheirados!) – o golpismo temerário logo explicitou seu desejo de prosseguir com o plano da privataria, a começar pela Petrobras e pelo pré-sal. Entreguismo pouco é bobagem. Deu facadas no coração do SUS, do Bolsa Família, do MinC, do Mais Médicos. Arreganhou os dentes de seu fascismo, de sua oposição a qualquer projeto de país mais utópico onde tivessem lugar a democratização da dignidade e uma inclusão social ampla e solidária. Como “cereja” de seu bolo – ou melhor, como bomba atômica de sua blitzkrieg – preparou a PEC 241 / 55, verdadeiro genocídio planificado, que com o congelamento de investimentos públicos na saúde e na educação pretende bombardear a qualidade de vida, já muito abaixo da dignidade, daqueles que no Brasil são os milhões de pessoas mais vulneráveis e oprimidas.

Na mesma época em que até o FMI admite que o neoliberalismo foi um fracasso e que preparam-se novas edições dos laboratórios de outros-mundos possíveis (como o Fórum Social Mundial, ocorrido em Agosto de 2016 em Montréal, Québec), estes dinossauros da política institucionalmente corrompida querem impor-nos a Doutrina do Choque sobre os escombros de uma democracia achincalhada. Uma democracia atingida no peito pelos atentados conjuntos perpetrados pelo empresariado (o pato da Fiesp é um psicopata!), pelos magnatas do  P.I.G. e suas marionetes, pelos partidos plutocráticos como o PMDB, o PSDB e o DEM, pela Bancada BBBB (Boi, Bíblia, Bala, Banco), para não falar da “base social” do Golpe, seus apoiadores na sociedade civil, uma gente que não compreenderemos  bem só por termos apelidado de coxinhas.

 Jessé Souza fornece pistas importantes para compreender o papel das chamadas classes médias em nossa atual desventura coletiva, explanando um pouco a “genealogia do Coxinato”, este setor proto-fascista das classes médias e altas que desempenha papel chave no Golpe. Se compreendi bem, o sociólogo estabelece distinções, na pirâmide social do Brasil, entre pelo menos 4 “estamentos”: na base da pirâmide está a “ralé”, os excluídos e marginalizados, aquilo que alguns chamam de lumpen ou de subproletariado; mais acima estão aqueles trabalhadores que, apesar de pobres, são apelidados por Jessé como “batalhadores”, aqueles que cumprem devidamente suas funções sociais em seus empregos assalariados e que a duras penas ascendem socialmente ainda que não tenham nascido com privilégios de berço; subindo mais alguns degraus, encontraríamos a tal classe média oficial, a velha classe média; por cima dela (literalmente) amacaca-se no tope a famigerada elite, plutocrática, golpista, proto-fascista (aquela que, nas pesquisas de intenção de voto, tem predileção por Jair Bolsonaro…).

É que o Brasil mudou um bocado desde a eleição de Lula e os 13 anos de PT na presidência geraram um fenômeno sociológico que estarrece – e que teve na obra de André Singer, Os Sentidos do Lulismo, uma das mais importantes contribuições à compreensão: falo da  ascensão social de mais de 40 milhões de pessoas, que teriam formado uma suposta nova classe média (tanto Jessé Souza quanto Marilena Chauí irão contestar a nomenclatura, sem negar a efetiva ascensão de classe):

“Essa suposta nova classe média, como foi apelidada no discurso oficial triunfalista do governo e da mídia brasileiros, refere-se à efetiva ascensão social de cerca de 40 milhões de brasileiros, que não só tiveram um aumento de renda, mas também levou a que cerca de metade deles entrasse no mercado formal, com proteção de leis trabalhistas, previdenciárias e sociais. Esta foi, sem qualquer dúvida, a melhor notícia dos 10 anos de elevado crescimento econômico do Brasil entre 2002 e 2012. Pela primeira vez em muitas décadas, o crescimento econômico beneficiou também os setores populares da sociedade brasileira. Políticas redistributivas, como o Bolsa Família, que beneficia mais de 46 milhões de pessoas, aliadas ao aumento real do salário mínimo em cerca de 70%, a políticas de microcrédito e de facilidades ao crédito de modo geral, além de políticas tópicas de acesso à educação superior para a população mais pobre, fortaleceram a base da pirâmide social brasileira e operaram importantes mudanças morfológicas na estrutura de classes da sociedade brasileira contemporânea. Isso comprova que não existe classe condenada para sempre e que condições econômicas e políticas favoráveis podem desempenhar papel decisivo.

A confusão implicada na denominação desta classe como ‘nova classe média’ reflete a influência dos discursos liberais que confundem ‘classe social’ com ‘faixa de renda’. Na realidade esta ‘nova classe média’ não possui quaisquer dos privilégios de nascimento das classes médias e altas. Ao contrário, seus membros típicos tem que trabalhar desde cedo, frequentemente já aos 11 ou 12 anos, e conciliar escola e trabalho. Muitos são também super-explorados com jornadas de trabalho de até 14 ou 15 horas por dia, acumulando mais de um emprego e fazendo ‘bicos’ de fim de semana… As condições de trabalho e de exploração dessa mão de obra a aproximam muito do patamar de uma classe trabalhadora precarizada, típica da fase atual do capitalismo sob hegemonia do capital financeiro.” (SOUZA: p. 209)

Esta distinção me parece interessante: existe uma velha classe média, com privilégios de berço, convivendo com estes cerca de 40 milhões de pessoas da classe trabalhadora e da ralé que vivenciaram a efetiva ascensão social propiciada pelos programas sociais do governo Lula, que até seus mais encarniçados detratores admitem que foi capaz de gerar “expansão do emprego formal com carteira assinada, potencial de mobilidade ascendente acompanhado de inclusão no mercado de bens de consumo e diminuição da abissal desigualdade brasileira”, com “ganhos de salário real e aumento real do salário mínimo, por um lado, e o sucesso do Bolsa Família e do microcrédito, por outro, compreendidos como elementos decisivos.” (p. 222)

Apesar do avanço conservador e golpista, ilude-se quem pensa no lulismo como força histórica derrotada, muito pelo contrário: todas as pesquisas de intenção de voto colocam Lula como franco favorito para uma hipotética eleição em 2018, sinal de que há ainda uma base social enorme fiel a este projeto de inclusão social que logrou, se confiarmos no Instituto Lula, transformar a pirâmide social em um losango.

* * * * *

II. FALÁCIAS DA MERITOCRACIA E ÓDIO À DEMOCRACIA

Mas engana-se quem pensa que a velha classe média simplesmente acolheu de braços abertos, e com jovial hospitalidade, os recém-chegados “batalhadores” das classes trabalhadores que lograram ascender socialmente: uma fração considerável da velha classe média permanece aferrada à sua arrogância e seu elitismo, desejando ver-se novamente separada da ralé por um abismo de desigualdade. Esta classe média reacionária, que flerta com o fascismo, que aplaude Fleurys, que votaria em Bolsonaro, que apoiou o Golpe quando este tinha em seu leme delinquentes como Eduardo Cunha e Aécio Neves, tem como uma de suas ideologias de estimação a meritocracia. 

A meritocracia, ou ideologia do mérito individual, prega que cada um está onde merece na pirâmide social. Trata-se de uma construção falsificadora que procura fazer com “que o privilégio apareça como merecido” e é “a forma especificamente capitalista e moderna de legitimação da desigualdade social” (p. 228), como diz Jessé. A velha classe média apega-se a este ídolo da meritocracia para poder esquecer, ou cegar-se voluntariamente, quanto à exploração bárbara da ralé que sustenta toda a estrutura de privilégios injustos de que gozam as classes possidentes:

“A ralé – ainda que as fronteiras entre as diversas classes populares na realidade concreta sejam na imensa maioria dos casos muito fluida – pode ser definida, para fins analíticos, como a classe ‘abaixo’ da clase trabalhadora. Isso não significa, obviamente, que esta classe também não seja explorada. Ela o é de modo inclusive muito mais cruel, já que é jogada nas ‘franjas do mercado competitivo’, condenada a exercer todos os trabalhos mais duros, humilhantes, sujos, pesados e perigosos. As classes do privilégio exploram esse exército de pessoas disponíveis a fazer quase de tudo. O motoboy que entrega pizza, o lavador de carros, o trabalhador que carrega a mudança nas costas, a prostituta pobre que vende o corpo para sobreviver, ou o exército de serviçais domésticos que fazem a comida e cuidam dos filhos das classes média e alta, que, assim, podem se dedicar a estudos ou trabalhos mais rentáveis.

É este tempo ‘roubado’ de outra classe que permite reproduzir e eternizar uma relação de exploração que condena uma classe inteira ao abandono e à humilhação, enquanto garante a reprodução no tempo das classes do privilégio. Luta de classes não é apenas a greve sindical ou a revolução sangrenta nas ruas que todos percebem. Ela é, antes de tudo, o exercício silencioso da exploração construída e consentida socialmente. (…) A noção superficial e triunfalista de ‘nova classe média’, ao reduzir as classes à sua renda, simplesmente esquece o principal: as relações de dominação que fazem com que alguns monopolizem todos os privilégios enquanto outros são excluídos.  Procuramos, sem deixar de reconhecer as conquistas e a ascensão social de tantos, mostrar o sofrimentos e a luta diária de quem ascende sem possuir qualquer dos privilégios de nascimento da verdadeira classe média.

As classes médias são classes do privilégio no mundo todo. Como toda classe privilegiada, a classe média tem interesse em esconder as causas do privilégio injusto. Ao contrário da classe dos ‘endinheirados’, acima dela, cujo prestígio se baseia no monopólio do capital econômico, o privilégio da classe média se baseia na apropriação de capital cultural altamente valorizado e indispensável para a reprodução de mercado e Estado. Este tipo de capital se materializa, por exemplo, no conhecimento oferecido nos cursos universitários de prestígio, nas pós-graduações, no conhecimento de línguas estrangeiras etc.  Mais importante ainda é perceber que o capital cultural não é formado apenas por títulos escolares, mas, antes de tudo, pelo aprendizado na socialização familiar, desde tenra idade, de certas ‘disposições invisíveis para o comportamento competitivo’. (…) A classe média tende a se acreditar como a classe do milagre do mérito individual, conquistado pelo esforço, e não por privilégios de nascimento. A classe média é a classe da meritocracia por excelência, retirando dessa falácia sua ‘dignidade’ específica.

Max Weber percebia claramente que todas as classes dominantes em todo lugar e em todas as épocas não querem apenas usufruir os privilégios que são a base de sua felicidade, querem também saber que ‘têm direito aos privilégios’. Assim, é necessário tornar invisíveis todos os privilégios de nascimento… garante-se a boa consciência do privilegiado, que passa a achar que tem ‘direito’ a prestígio, reconhecimento e melhores salários e a culpar as vítimas, de um processo social que torna invisível a injustiça, por sua própria miséria e sofrimento, como se fosse possível ‘escolher’ ser humilhado e pobre.” (SOUZA: p. 232-233-240-241)

A ideologia da meritocracia é uma falácia que serve para justificar e naturalizar o apartheid social e a desigualdade obscena, que são produtos históricos e não ditames divinos ou fatalidades inexoráveis. Aquele que procura justificar sua posição de classe privilegiada apelando para seu mérito pessoal está ocultando as raízes sociais que produzem e reproduzem sistematicamente as desigualdades ao instituírem, por exemplo, os acessos diferenciais à apropriação do capital cultural (conceito desenvolvido com maestria por Bourdieu).

Não se trata somente de mérito individual quando alguém já nascido nas classes médias ou alta “conquista” um lugar ao sol – digamos: uns 25.000 reais de salário mensal, com muita sombra e água fresca – pois tem doutorado, pHd e Lattes bombadão – esta “história de sucesso” decorre de privilégios de nascimento, de acessos à formação de que vastos contingentes da população estão excluídos, de caminhos que só puderam ser trilhados pois outros trabalhadores, da chamada ralé, laboravam duramente em trampos braçais e mecânicos para que os supostamente meritórios membros da elite cultural pudessem, de bundas confortavelmente sentadas na cadeira, estudar e se diplomar, conquistando os prestígios decorrentes da apropriação bem-sucedida dos capitais culturais valorizados no mercado.

“Afinal, tanto no Brasil quanto na Alemanha ou na França a naturalização da desigualdade é possível pela sutil violência da ideologia da meritocracia. (…) Como explica Bourdieu, a ideologia da meritocracia esconde sistematicamente a produção social dos desempenhos diferenciais entre os indivíduos, tornando possível que o desempenho diferencial apareça como diferença de talentos inatos. Na sociedade moderna os indivíduos creem em uma igualdade de oportunidades para quem ‘realmente quer vencer na vida’, mas também isso é, na enorme maioria dos casos, já pré-decidido por vantagens acumuladas desde o berço. A ideologia da meritocracia, que resulta desta crença ingênua, transforma constantemente privilégio social em ‘talento individual’. ” (SOUZA: p. 154-197)

A obra de Jessé Souza tem o poder de desvelar os mecanismos da ideologia da meritocracia como violência simbólica praticada pelos privilegiados contra os despossuídos e explorados. Trata-se de esconder o processo de produção dos privilégios injustos para que estes apareçam, ilusoriamente, como méritos meramente individuais – algo muito próximo da doutrina yankee do self-made man, famosa entre nós também sob o nome de “empreendedorismo”. O grande problema da falácia meritocrática é que ela tende a culpar as vítimas da desigualdade social institucionalizada e a estigmatizar aqueles que são desprovidos de capital econômico como indignos, como subgente, processo que Jessé analisa em outra de suas obras, A Construção Social da Subcidadania.

A ideologia meritocrática pode conduzir a um “racismo de classe”, ou seja, a noção elitista e egocêntrica, nutrida por classes privilegiadas, de que elas são melhores, mais competentes, mais inteligentes, mais humanas, do que a ralé ignorante, preguiçosa, que bem merece viver em favelas, em comunidades sem saneamento básico, com acesso precário (ou nulo) à saúde e educação de qualidade. O defensor da meritocracia é normalmente aquele sujeito que, dentro de seu BMW ou Mercedes Benz blindado, dirige pelas ruas de uma metrópole achando-se superior ao povão que está, segundo o ricaço, justamente condenado a ficar espremido no busão e a receber salários de fome ainda que levante às 5 da manhã e volte pra casa só às 10 da noite.

Intimamente conectada à ideologia maniqueísta e simplista que presume um Livre Mercado (virtuoso) oposto a um Estado do Mal (ineficiente, corrupto, que deveria simplesmente privatizar tudo e entregar a gestão social aos empresários e aos consumidores!), a meritocracia é um desses contos-de-fada para adultos que dissemina cegueira e nos impede de enfrentar os desafios para uma efetiva democratização da dignidade. Demonizar o Estado de nada nos serve, já que ele é a única instância institucional com capacidade de regular, controlar, coibir e punir os excessos criminosos, as corrupções lesivas ao bem público, cometidas em tenebrosas transações mercadológico-políticas.

Tampouco o ingênuo anarquismo que pretende aniquilar totalmente o Estado parece-me realista: os sistemas públicos de saúde e educação, por exemplo, devem ser extintos? Os programas sociais de redistribuição de renda devem ser abolidos simplesmente pois são estatais? Um certo anarquismo aproxima-se perigosamente do neoliberalismo em seu anti-estatismo radical, que corre o risco de fazer o jogo que interessa aos anarco-capitalistas, os que desejam o lucrocentrismo sem freios.

O Estado pode ser inclusivo ou excludente; pode trabalhar em prol do bem comum da comunidade e todos seus membros, ou praticar alianças plutocráticas que favoreçam somente certas classes do privilégio. Que a tendência do Estado seja transformar-se, de modo recorrente, em instrumento de dominação de classes e balcão de negócios da burguesia, não me parece justificar a defesa de uma destruição total da utopia de um Estado como gestor do bem público, devotado ao bem comum.

Vivemos, porém, em tempos sombrios, em que parece que a democracia é mais um valor ou utopia do que realidade efetiva. Tempos que, para lembrar o título de um livro de Jacques Rancière, são de Ódio à Democracia. A aristocracia odeia a democracia direta e a participação política; mas a esquerda também às vezes odeia a democracia e prega a liderança das vanguardas iluminadas que conduzem o povo a um melhor amanhã (um dirigismo que ameaça aniquilar autonomia e manter o coletivo na servidão). O poderio dos mais ricos – oligarquia – procura travestir-se com as nobres vestes do mérito, o que veio dar no aristocratismo da meritocracia de que falamos há pouco. Sobre isto, Rancière escreveu palavras que eu subscrevo:

“Em 1963, Hannah Arendt ainda via na forma revolucionária dos conselhos o verdadeiro poder do povo, na qual se constituía a única elite política efetiva, a elite autosselecionada no território daqueles que se sentem felizes em se preocupar com a coisa pública. (…) A democracia, longe de ser a forma de vida dos indivíduos empenhados em sua felicidade privada, é o processo de luta contra essa privatização, o processo de ampliação dessa esfera. Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o chamado discurso liberal, exigir a intervenção crescente do Estado na sociedade. Significa lutar contra a divisão do público e do privado que garante a dupla dominação da oligarquia no Estado e na sociedade.” (RANCIÈRE, Boitempo:2014, p.69- 72)

A luta de classe, longe de ter sido abolida pelo propugnado mas nunca acontecido Paraíso Capitalista e “fim da História”, a luta de classes na real está pegando fogo, mundo afora (vejam a França e o Nuit Debout!), agora em escala global: Plutocracia vs Precariado vão digladiar num planeta que talvez possamos mudar de nome, conforme os termômetros esquentam (e não haverá Papa que os pare!), fazendo recurso a Mike Davis – que chamou-o de Planet of Slums ou Planeta Favela. Ou então podemos apelas a um re-batismo poético: que tal nos inspirarmos em T. S. Eliot e mudar o nome do planeta de Earth para Wasteland? Bem-vindos à Devastolândia (tradução de Leminski para a Wasteland de Eliot…)!

Rio Doce

“O fotógrafo Gabriel Lordêllo, parceiro do Instituto Últimos Refúgios, sobrevoou o Rio Doce 7 mêses após o início da tragédia causada pelo rompimento da barragem da Samarco em Bento Rodrigues/MG. O objetivo era registrar como está a situação atual deste que foi um dos maiores crimes ambientais da história do país. O sobrevoo começou em um trecho de Linhares/ES e foi até Governador Valadares/MG. Ainda é possível observar rejeitos descendo o rio.”

III. DEMOCRACIA NA UTI

Um sinal de que a democracia, ainda que esteja na UTI, ainda não foi mandada ao cemitério de vez, é o fato de que no Brasil ainda exista uma certa margem de liberdade de expressão e de imprensa que permite que um vozerio se erga, nas redes e nas ruas, para denunciar o ataque à democracia. Nada seria mais enganador que supor que a democracia é um valor universalmente louvado, isto é, que todo mundo tem consenso sobre a democracia ser o melhor sistema de governo – ou ao menos o menos pior.

A instauração do regime militar após o coup d’État de 1964 acarretou um tal sufocamento da democracia que, para denunciar a ditadura e permanecer livre da tortura ou do presídio, artistas tinham que recorrer a sutis subterfúgios poéticos. É Chico Buarque não ousando dizer o “cale-se” em aberto, mas referindo-se à cultura do autoritarismo silenciador em sua “Cálice”. Ou é aquela famosa “tarde que caía feito um viaduto”, em O Bêbado e a Equilibrista de Aldir Blanc e João Bosco, célebre na voz de Elis Regina, que era metáfora “para falar de uma obra super faturada, com material inferior, que desabou.” (KARNAL, Leandro)

Sintoma de que a ditadura ainda não voltou de vez é que possamos, ao menos na blogosfera e nas redes sociais, ao menos em comícios e passeatas, marchas e assembleias, denunciar o processo, a meu ver justamente cognominado O Golpe, em curso neste país que ainda não soube tirar a sabedoria necessária de seus trágicos erros do passado (um exemplo: a Comissão Nacional da Verdade ficou longe de tornar-se comoção nacional ou oportunidade para aprendizado coletivo sobre os rumos passados e potencialidades futuras deste território que chamamos Brasil).

O autoritarismo das elites manifesta-se em 2016 com a voracidade e a fúria de que já demonstrou-se tão capaz em outras oportunidades históricas, tudo em prol da instauração de um regime que é benesse pra privilegiado austeridade para o resto. O 1%, camaradas, está escarrando em nossa cara. E chocando o ovo de serpente do fascismo redivivo.

Um livro que adorei ler recentemente, e que me parece preciosa contribuição aos debates contemporâneos sobre a democracia, é de David Graeber: no capítulo A História oculta da democracia, o antropólogo estadunidense e ativista do movimento Occupy Wall Street revela o quanto a democracia já foi demonizada, vista como inimiga, temida como um pesadelo, através da História, em especial pelas classes dominantes ciosas de defender sua posição no status quo:

democracyproject

“A maior parte da população desconhece o fato de que a Declaração de Independência e a Constituição [dos EUA] não mencionam que os Estados Unidos sejam uma democracia. (…) A maioria dos Pais fundadores aprendeu tudo o que sabia sobre o tema da democracia por meio da tradução de Thomas Hobbes para o inglês da História, de Tucídides, um relato sobre a Guerra do Peloponeso. A tradução pretendia ser um alerta de Hobbes sobre os perigos da democracia… Os Fundadores usavam a palavra no sentido grego antigo, que é o de autogoverno comunitário por meio de assembleias populares. Era o que hoje chamaríamos de ‘democracia direta’.” (GRAEBER: Um Projeto de Democracia. Paz e Terra: 2015, p. 160.)

Graeber na sequência explica que os EUA não nasce como democracia, mas sim como um república de molde emprestado à Roma Antiga e que os norte-americanos herdaram dos britânicos colonizadores. Trata-se de um sistema político que funciona pelo sistema da representação: “na Inglaterra remontava, pelo menos, ao século XIII. Por volta do século XV, tornou-se uma prática padrão que os homens com posses escolhessem seus representantes parlamentares mandado seus votos ao xerife.” (p. 161)

Quando se diz “homens de posses”, deve-se atentar para o princípio de exclusão que aí se manifesta: não é permitida a participação de mulheres, nem de pobres. Quem assistiu ao filme Sufraggette sabe que o voto feminino é uma dura conquista que só virá no Reino Unido ao raiar do século XX. As eleições eram portanto, no berço da democracia anglo-saxã de inspiração romana,

“consideradas uma extensão do sistema de governo monárquico, já que os representantes não tinham poderes para governar. Eles não governavam nada, coletiva ou individualmente; seu papel era falar em nome (‘representar’ os habitantes de seu distrito diante do poder soberano do rei, para oferecer conselhos, expressar queixas e, acima de tudo, entregar os impostos de sua região). (…) A ideia, que nasceu nos Estados Unidos, de dizer que o povo pode exercer poder soberano – o poder antes exercido por reis – votando em representantes com real poder para governar, foi uma invenção reconhecidamente inovadora.” (p. 161)

 A democracia representativa, que só permite que sejam eleitos aqueles com dinheiro, poder e prestígio, restringe a atuação política às classes privilegiadas, detentoras de capital econômico ou cultural. Esta pseudo-democracia, mais próxima de uma oligarquia, sempre teve pavor da democracia direta, ou seja, do poder popular ou comunitário. O medo da democracia, a noção de que é muito perigoso permitir às maiorias que tenham voz e vez, é muito bem exemplificada por Graeber a partir de John Adams, que argumentou:

“Se tudo fosse decidido pelo voto da maioria, os 8 ou 9 milhões de pessoas que não têm propriedades não pensariam em usurpar os direitos dos 1 ou 2 milhões de pessoas que têm? (…) A primeira coisa seria a extinção das dívidas; depois, pesados impostos recairiam sobre os ricos e absolutamente nenhum sobre os demais; e, finalmente, uma divisão absolutamente igual seria exigida e votada. Qual seria a consequência disso? O ocioso, o vicioso, o destemperado não perderia tempo em adotar uma vida de indulgência plena, venderia e gastaria todo o seu quinhão, e logo exigiria uma nova divisão… No momento em que ideia de que a propriedade não é tão sagrada quanto as leis de Deus e de que há uma força de lei e uma justiça pública capazes de protegê-la é admitida na sociedade, a anarquia e a tirania se iniciam.” (apud GRABER: p. 168)

A democracia, longe de ser amada e idolatrada, costuma ser desprezada, temida, evitada, vilipendiada e obstaculizada por classes privilegiadas que a retratam como caos, falta de ordem, turbulento reinado da turba ignara. Tanto que o cientista político canadense Francis Dupuis-Déri (da UQAM-Montréal)

“mapeou cuidadosamente o modo como a palavra ‘democracia’ foi usada por grandes figuras políticas nos Estados Unidos, na França e no Canadá durante os séculos XVIII e XIX, e descobriu, em todos os casos, exatamente o mesmo padrão. Quando a palavra começou a ser usada com alguma frequência, entre 1770 e 1800, foi empregada quase exclusivamente em sentido vexatório e ofensivo… era vista como anarquia, falta de governo e caos sem controle.” (p. 169)

democratie-siteSAIBA MAIS: LEIA O LIVRO, DISPONÍVEL EM EBOOK:
De Francis Dupuis-Déri

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Na sequência, convido a todos que leiam um trecho de UM PROJETO DE DEMOCRACIA – de David Graeber (Baixe o scan do livro em PDF, 30 mb:http://bit.ly/1OXbpNB)

“No mesmo dia do bloqueio da ponte do Brooklyn, em 2 de outubro de 2012, o Occupy Wall Street recebeu uma mensagem assinada por 50 intelectuais e ativistas chineses:

‘A erupção da Revolução de Wall Street no coração do império financeiro do mundo mostra que 99% das pessoas do planeta continuam a ser exploradas e oprimidas – independentemente de seres de países desenvolvidos ou em desenvolvimento. Pessoas de todo o mundo têm sua riqueza saqueada e seus direitos confiscados. A polarização econômica é hoje uma ameça comum a todos nós. O conflito entre o poder popular e o poder da elite está presente em todos os países. Agora, no entanto, a revolução democrática popular encontra repressão não só por parte de sua própria classe dominante, mas também da elite mundial que se formou com a globalização. As brasas da revolta estão espalhadas entre todos nós, esperando para queimar com a mais leve brisa. A grande era da democracia popular, que vai mudar a história, está entre nós novamente!’

Os intelectuais chineses dissidentes, assim como a maioria das pessoas no mundo, encararam o que aconteceu no Parque Zuccotti como parte de uma onda de resistência que varria o planeta. Estava muito claro que o aparato financeiro global, e todo o sistema de poder sobre o qual foi construído, estava cambaleando desde seu quase colapso em 2007-2008. Todos esperavam a reação popular. As revoltas na Tunísia e no Egito foram o início? Ou tratava-se de situações estritamente locais ou regionais? Então elas começaram a se espalhar. Quando a onda atingiu o ‘coração do império financeiro mundial’ ninguém mais podia duvidar de que algo memorável estava acontecendo.

O Occupy foi e continua a ser em sua essência um movimento de jovens voltados para o futuro, mas que ficaram completamente paralisados pela dívida. Agiram conforme as regras e assistiram à classe financeira desobedecê-las por completo, destruir a economia mundial com especulação fraudulenta, depois ser salva pela imediata e maciça intervenção governamental e, como resultado, exercer um poder ainda maior e ser ainda mais reverenciada do que antes. Enquanto isso, eles ficaram relegados a uma vida de permanente humilhação.

Especialistas em contrainsurgência dos Estados Unidos sempre souberam que o prenúncio mais provável de efervescência revolucionária em qualquer país é o crescimento da população universitária desempregada e empobrecida, ou seja, jovens cheios de energia, com muito tempo disponível, com acesso a toda a história do pensamento radical e com todos os motivos do mundo para estarem furiosos.”

DAVID GRAEBER é um ativista norte-americano, professor de antropologia da London School of Economics, e este é um trecho de seu livro “Um Projeto de Democracia – Uma História, Uma Crise, Um Movimento” (Rio: Paz e Terra, 2013, pg. 78, 84-85)

 Eduardo Carli de Moraes – Goiânia, 2016
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“É O PETRÓLEO, ESTÚPIDO!” – ASSISTA À ENTREVISTA COM O JORNALISTA INVESTIGATIVO PEPE ESCOBAR (40 MINUTOS)

patopatinhas1ASSISTA À ENTREVISTA COM O JORNALISTA INVESTIGATIVO
PEPE ESCOBAR (40 MINUTOS):

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O BRASIL NO EPICENTRO DA GUERRA HÍBRIDA @ Outras Palavras
por Pepe Escobar

PepeRevoluções coloridas nunca são demais. Os Estados Unidos, ou o Excepcionalistão, estão sempre atrás de atualizações de suas estratégias para perpetuar a hegemonia do seu Império do Caos.

A matriz ideológica e o modus operandi das revoluções coloridas já são, a essa altura, de domínio público. Nem tanto, ainda, o conceito de Guerra Não-Convencional (UW, na sigla em inglês).

Esse conceito surgiu em 2010, derivado do Manual para Guerras Não-Convencionais das Forças Especiais. Eis a citação-chave: “O objetivo dos esforços dos EUA nesse tipo de guerra é explorar as vulnerabilidades políticas, militares, econômicas e psicológicas de potências hostis, desenvolvendo e apoiando forças de resistência para atingir os objetivos estratégicos dos Estados Unidos. […] Num futuro previsível, as forças dos EUA se engajarão predominantemente em operações de guerras irregulares (IW, na sigla em inglês)”.

“Potências hostis” são entendidas aqui não apenas no sentido militar; qualquer país que ouse desafiar um fundamento da “ordem” mundial centrada em Washington pode ser rotulado como “hostil” – do Sudão à Argentina.

As ligações perigosas entre as revoluções coloridas e o conceito de Guerra Não-Convencional já desabrocharam, transformando-se em Guerra Híbrida; caso perverso de Flores do Mal. Revolução colorida nada mais é que o primeiro estágio daquilo que se tornará a Guerra Híbrida. E Guerra Híbrida pode ser interpretada essencialmente como a Teoria do Caos armada – um conceito absoluto queridinho dos militares norte-americanos (“a política é a continuidade da guerra por meios linguísticos”). Meu livro Império do Caos, de 2014, trata essencialmente de rastrear uma miríade de suas ramificações.

Essa bem fundamentada tese em três partes esclarece o objetivo central por trás de uma Guerra Híbrida em larga escala: “destruir projetos conectados transnacionais multipolares por meio de conflitos provocados externamente (étnicos, religiosos, políticos etc.) dentro de um país alvo”.

Os países do BRICS (Brasil Rússia, Índia, China e África do Sul) – uma sigla/conceito amaldiçoada no eixo Casa Branca-Wall Street – só tinham de ser os primeiros alvos da Guerra Híbrida. Por uma miríade de razões, entre elas: o plano de realizar comércio e negócios em suas próprias moedas, evitando o dólar norte-americano; a criação do banco de desenvolvimento dos BRICS; a declarada intenção de aumentar a integração na Eurásia, simbolizada pela hoje convergente “Rota da Seda”, liderada pela China – Um Cinturão, Uma Estrada (OBOR, na sigla em inglês), na terminologia oficial – e pela União Econômica da Eurásia, liderada pela Rússia (EEU, na sigla em inglês).

Isso implica em que, mais cedo do que tarde, a Guerra Híbrida atingirá a Ásia Central; o Quirguistão é o candidato ideal a primeiro laboratório para as experiências tipo revolução colorida dos Estados Unidos, ou o Excepcionalistão.

No estágio atual, a Guerra Híbrida está muito ativa nas fronteiras ocidentais da Rússia (Ucrânia), mas ainda embrionária em Xinjiang, oeste longínquo da China, que Pequim microgerencia como um falcão. A Guerra Híbrida também já está sendo aplicada para evitar o estratagema da construção de um oleoduto crucial, a construção do Ramo da Turquia. E será também totalmente aplicada para interromper a Rota da Seda nos Bálcãs – vital para a integração comercial da China com a Europa Oriental.

Uma vez que os BRICS são a única e verdadeira força em contraposição ao Excepcionalistão, foi necessário desenvolver uma estratégia para cada um de seus principais personagens. O jogo foi pesado contra a Rússia – de sanções à completa demonização, passando por um ataque frontal a sua moeda, uma guerra de preços do petróleo e até mesmo uma (patética) tentativa de iniciar uma revolução colorida nas ruas de Moscou. Para um membro mais fraco dos BRICS foi preciso utilizar uma estratégia mais sutil, o que nos leva à complexidade da Guerra Híbrida aplicada à atual, maciça desestabilização política e econômica do Brasil.

No manual da Guerra Híbrida, a percepção da influência de uma vasta “classe média não-engajada” é essencial para chegar ao sucesso, de forma que esses não-engajados tornem-se, mais cedo ou mais tarde, contrários a seus líderes políticos. O processo inclui tudo, de “apoio à insurgência” (como na Síria) a “ampliação do descontentamento por meio de propaganda e esforços políticos e psicológicos para desacreditar o governo” (como no Brasil). E conforme cresce a insurreição, cresce também a “intensificação da propaganda; e a preparação psicológica da população para a rebelião.” Esse, em resumo, tem sido o caso brasileiro.

Precisamos do nosso próprio Saddam

Um dos maiores objetivos estratégicos do Excepcionalistão é em geral um mix de revolução colorida e Guerra Híbrida. Mas a sociedade brasileira e sua vibrante democracia eram muito sofisticadas para métodos tipo hard, tais como sanções ou a “responsabilidade de proteger” (R2P, na sigla em inglês).

Não por acaso, São Paulo tornou-seo epicentro da Guerra Híbrida contra o Brasil. Capital do estado mais rico do Brasil e também capital econômico-financeira da América Latina, São Paulo é o nódulo central de uma estrutura de poder interconectada nacional e internacionalmente.

O sistema financeiro global centrado em Wall Street – que domina virtualmente o Ocidente inteiro – não podia simplesmente aceitar a soberania nacional, em sua completa expressão, de um ator regional da importância do Brasil.

A “Primavera Brasileira” foi virtualmente invisível, no início, um fenômeno exclusivo das mídias sociais – tal qual a Síria, no começo de 2011.

Foi quando, em junho de 2013, Edward Snowden revelou as famosas práticas de espionagem da NSA. No Brasil, a questão era espionar a Petrobras. E então, num passe de mágica, um juiz regional de primeira instância, Sérgio Moro, com base numa única fonte – um doleiro, operador de câmbio no mercado negro – teve acesso a um grande volume de documentos sobre a Petrobras. Até o momento, a investigação de dois anos da Lava Jato não revelou como eles conseguiram saber tanto sobre o que chamaram de “célula criminosa” que agia dentro da Petrobras.

O importante é que o modus operandi da revolução colorida – a luta contra a corrupção e “em defesa da democracia” – já estava sendo colocada em prática. Aquele era o primeiro passo da Guerra Híbrida.

Como cunhado pelos Excepcionalistas, há “bons” e “maus” terroristas causando estragos em toda a “Siraq”; no Brasil há uma explosão das figuras do corrupto “bom” e do corrupto “ruim”.

O Wikileaks revelou também como os Excepcionalistas duvidaram da capacidade do Brasil de projetar um submarino nuclear – uma questão de segurança nacional. Como a construtora Odebrecht tornava-se global. Como a Petrobras desenvolveu, por conta própria, a tecnologia para explorar depósitos do pré sal – a maior descoberta de petróleo deste jovem século 21, da qual as Grandes Petrolíferas dos EUA foram excluidas por ninguém menos que Lula.

Então, como resultado das revelações de Snowden, a administração Roussef exigiu que todas as agências do governo usassem empresas estatais em seus serviços de tecnologia. Isso poderia significar que as companhias norte-americanas perderiam até US$ 35 bilhões de receita em dois anos, ao ser excluídos de negociar na 7ª maior economia do mundo – como descobriu o grupo de pesquisa Fundação para a Informação, Tecnologia & Inovação (Information Technology & Innovation Foundation).

O futuro acontece agora

A marcha em direção à Guerra Híbrida no Brasil teve pouco a ver com as tendências políticas de direita ou esquerda. Foi basicamente sobre a mobilização de algumas famílias ultra ricas que governam de fato o país; da compra de grandes parcelas do Congresso; do controle dos meios de comunicação; do comportamento de donos de escravos do século 19 (a escravidão ainda permeia todas as relações sociais no Brasil); e de legitimar tudo isso por meio de uma robusta, embora espúria tradição intelectual.

Eles dariam o sinal para a mobilização da classe média. O sociólogo Jesse de Souza identificou uma freudiana “gratificação substitutiva”, fenômeno pelo qual a classe média brasileira – grande parte da qual clama agora pela mudança do regime – imita os poucos ultra ricos, embora seja impiedosamente explorada por eles, através de um monte de impostos e altíssimas taxas de juros.

Os 0,0001% ultra ricos e as classes médias precisavam de um Outro para demonizar – no estilo Excepcionalista. E nada poderia ser mais perfeito para o velho complexo da elite judicial-policial-midiática do que a figura de um Saddam Hussein tropical: o ex-presidente Lula.

“Movimentos” de ultra direita financiados pelos nefastos Irmãos Kock pipocaram repentinamente nas redes sociais e nos protestos de rua. O procurador geral de justiça do Brasil visitou o Império do Caos chefiando uma equipe da Lava Jato para distribuir informações sobre a Petrobras que poderiam sustentar acusações do Ministério da Justiça. A Lava Jato e o – imensamente corrupto – Congresso brasileiro, que irá agora deliberar sobre o possível impeachment da presidente Roussef, revelaram-se uma coisa só.

Àquela altura, os roteiristas estavar seguros de que a infra-estrutura social para a mudança de regime já havia produzido uma massa crítica anti-governo, permitindo assim o pleno florescimento da revolução colorida. O caminho para um golpe soft estava pavimentado – sem ter sequer de recorrer ao mortal terrorismo urbano (como na Ucrânia). O problema era que, se o golpe soft falhasse – como parece ser pelo menos possível, agora – seria muito difícil desencadear um golpe duro, estilo Pinochet, através da UW, contra a administração sitiada de Roussef; ou seja, executando finalmente a Guerra Híbrida Total.

No nível socioeconômico, a Lava Jato seria um “sucesso” total somente se fosse espelhada por um abrandamento das leis brasileiras que regulam a exploração do petróleo, abrindo-a para as Grandes Petrolíferas dos EUA. Paralelamente, todos os investimentos em programas sociais teriam de ser esmagados.

Ao contrário, o que está acontecendo agora é a mobilização progressiva da sociedade civil brasileira contra o cenário de golpe branco/golpe soft/mudança de regime. Atores cruciais da sociedade brasileira estão se posicionando firmemente contra o impeachment da presidente Rousseff, da igreja católica aos evangélicos; professores universitários do primeiro escalão; ao menos 15 governadores estaduais; massas de trabalhadores sindicalizados e trabalhadores da “economia informal”; artistas; intelectuais de destaque; juristas; a grande maioria dos advogados; e por último, mas não menos importante, o “Brasil profundo” que elegeu Rousseff legalmente, com 54,5 milhões de votos.

A disputa não chegará ao fim até que se ouça o canto de algum homem gordo do Supremo Tribunal Federal. Certo é que os acadêmicos brasileiros independentes já estão lançando as bases para pesquisar a Lava Jato não como uma operação anti-corrupção simples e maciça; mas como estudo de caso final da estratégia geopolítica dos Excepcionalistas, aplicada a um ambiente globalizado sofisticado, dominado por tecnologia da informação e redes sociais. Todo o mundo em desenvolvimento deveria ficar inteiramente alerta – e aprender as relevantes lições, já que o Brasil está fadado a ser visto como último caso da Soft Guerra Híbrida.

PEPE ESCOBAR