A Esperança Equilibrista Despencou no Abismo na Noite do Brasil || In Memoriam: Aldir Blanc (1946 – 2020)

“Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos

A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco… louco!

O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil

Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete

Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar.”

João Bosco e Aldir Blanc
“O Bêbado e a Equilibrista”

HENFIL

Perdendo o equilíbrio ao tentar atravessar a corda bamba sobre o abismo, “a esperança equilibrista” de Aldir Blanc se precipitou, em queda livre, para “morrer na contramão atrapalhando o tráfego” (para citar outro célebre cancionista). Eliane Brum, em artigo para o El País, assim lamentou a perda:

“O Brasil abriu a semana com a morte de Aldir Blanc, o poeta que, em uma das canções mais pungentes contra a ditadura militar, escreveu: ‘a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar’. Morto aos 73 anos por covid-19, o show de Aldir Blanc não pôde continuar. A esperança já não consegue se equilibrar no Brasil e deslizou para o abismo. O país de Aldir Blanc e todo o seu imaginário foram mortos pelo perverso Jair Bolsonaro que se embriaga com a própria boçalidade, espirra e aperta com dedos lambuzados as mãos de seus seguidores. E então diz, diante das milhares de vítimas da pandemia e de sua irresponsabilidade: “E daí?”. A morte do poeta oficializa que o Brasil continental perdeu seu continente ― sua carne, sua alma e seus contornos ― e a poesia já não nasce.”

João Bosco, no dia em que perdeu o parceiro de tantos botecos e canções, escreveu o seguinte relato comovido:

 “Peço desculpas aos que têm me procurado hoje. Não tenho condições de falar. Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos despedido na madrugada anterior. Desde então, voltamos a nos falar ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos. Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. Não existe João sem Aldir. Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu cantá-las. Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Meu coração está com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio.”

José Miguel Wisnik, professor da FFLCH / USP e também ele cancionista, aproveitou a ocasião para nos conceder uma bela exploração da canção “De Frente Pro Crime”:

“Olhei o corpo no chão e fechei / minha janela de frente pro crime”. A letra de Aldir Blanc nesse samba com João Bosco tem a cadência de um miniconto. Parece que é simplesmente a narrativa impessoal, a crônica de uma cena de rua em torno de um cadáver estendido que tem “em vez de rosto a foto de um gol”. Populares passam, entre pragas perdidas e silêncio anônimo, o ambiente em volta se agita, o bar se enche (“malandro junto com trabalhador”). Na confusão, algum oportunista bêbado, de cima da mesa, se lança candidato a vereador, um comércio parasita floresce num frenesi de camelô, anel, cordão, perfume barato, baiana, pastel, churrasco de gato. Fim de noite, fim de festa, baixa ainda “um santo na porta-bandeira” enquanto o ajuntamento se dispersa. O morto continua lá, no ponto cego do transbordamento de vida que suscitou, e que se dissipa. Só então ficamos sabendo que tudo isso se passa aos olhos de alguém que vê de fora, de outro lugar, de trás de uma janela que agora se fecha, voyeur da vida e da morte, do crime sem rosto e sem nome, como nós. Assim como “Incompatibilidade de gênios”, da mesma dupla, “De frente pro crime” acontece no ritmo do pulo do gato, e é uma pérola da junção do sublime com o banal, sempre na veia do mundo popular carioca. É bonito vê-los, Aldir e João, malandros trabalhadores da canção, trocando uma ideia na porta do Café Capital. (Me pergunto quem terá feito essa foto linda.) (WISNIK, em sua página no Facebook)

Já o Enzo Banzo, da banda mineira Porcas Borboletas, publicou o seguinte artigo no Diário de Uberlândia:

Para celebrar a trajetória e a obra de Aldir Blanc, após concluir sua jornada pela estrada-só-de-ida da vida (como gosta de dizer o espírito livre Diego Mascate)A Casa de Vidro recupera, a seguir, um pungente texto de Aldir escrito para celebrar a criação da C.N.V. pelo governo da Dilma. Além disso, decidimos exercitar um pouco da boa e velha pirataria construtiva e disponibilizar, para download gratuito, em MP3 de qualidade, vários álbuns que permitem conhecer mais a fundo a obra deste grande poeta e compositor popular que foi Aldir Blanc. Baixe sem dó e aprecie sem moderação!

Texto de Aldir Blanc na época da criação da Comissão Nacional da Verdade no governo Dilma Rousseff.

“Não sou historiador nem sociólogo. Não consultei nenhum livro para escrever o texto abaixo. Minha memória está se movendo como estilhaços do amado caleidoscópio que perdi, menino, em Vila Isabel.

Viva a Comissão da Verdade para que nunca mais coloquem uma grávida nua sobre um tijolo, atingida por jatos d’água, com ameaça: “Se cair vai ser pior”;

Para que senhoras que fazem seu honrado trabalho não sejam despedaçadas por cartas bombas;

Para que um covarde que bote a boca de um homem torturado no escapamento de uma viatura militar não passe por homem de bem onde mora;

Para que orangotangos que se tornaram políticos asquerosos não babem sua raiva na internet: “Nosso erro foi torturar demais e matar de menos”;

Para que presos em pânico não sofram ataques de jacarés açulados por antropóides;

Para que nunca mais teatros e livrarias sejam vandalizados e queimados;

Para que um estudante de psiquiatria não seja obrigado a passar por sentinelas de baioneta calada para ouvir um coronel médico dizer que “histeria é preguiça”;

Para que os brasileiros possam homenagear um autêntico herói nacional, João Cândido, com um monumento, sem que surjam energúmenos prometendo “voltar a explodir tudo se isso apontar para o Colégio Naval”;

Para que a nossa Força Aérea, que nos deu tanto orgulho na Itália, com seus valentes pilotos de caça, não atire pessoas, como se fossem sacos de lixo, no mar;

Para que um pai, ao se recusar a cumprir a ordem de manter o caixão lacrado, não se depare com o corpo destruído do filho, jogado lá dentro feito um animal;

Para que militares honrados não sintam “constrangimento” na busca de Justiça; para que cavalos ( aqueles de quatro patas, montados por outros) não pisoteiem um garoto com a camisa pegando fogo por estilhaço de bomba, na Lapa;

Para que torturadores não recebam como “prêmio” cargos em embaixada no exterior;

Para que uma estudante não desmaie num consultório médico ao falar sobre as queimaduras do pai, feitas com tocha de acetileno;

Para que esquartejadores não substituam Tiradentes por Silvério dos Reis;

Para que inúmeros Pilatos ainda trambicando naquela casa de tolerância do Planalto vejam que suas mãos continuam cheias de sangue e excremento;

Para que nunca mais na vida de uma jovem idealista – o queixo firme, olhos faiscantes de revolta, com a expressão da minha Suburbana no 3X4 que guardo na carteira – seja ceifada por encapuzados. Uma delas, quem sabe?, pode chegar a Presidência da Republica e enquadrar a récua de canalhas.”

Não podemos nos calar!”

Aldir Blanc

DISCOS PRA BAIXAR:

 

A Esperança Equilibrista na Noite do Brasil

“Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos

A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco… louco!

O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil

Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete

Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar.”

João Bosco e Aldir Blanc

O bêbado e a equilibrista: em 1979, Elis Regina deu voz ao Hino da Anistia

Portal EBC

“Além de classificar a composição como o casamento perfeito da dupla João e Aldir, Elis acreditava que a canção era o retrato do Brasil de então.“Grande parcela da população anseia encontrar um Carlitos desses e sonha não ver mais nem Marias nem Clarices chorando”, defendia ao citar versos do samba que podem fazer referência a Clarisse Herzog, mulher do jornalista Vladimir Herzog, morto por maus-tratos nas dependências do DOI-Codi em 1975.”

home_internaA volta do irmão do Henfil – Betinho voltou ao Brasil em setembro de 79, após oito anos de exílio. O ativista deixou o país em 71 e permaneceu dois anos no Chile, onde atuou como assessor do então presidente Salvador Allende. Com o golpe militar que levou o general Augusto Pinochet ao poder, Betinho procurou asilo no Panamá e, posteriormente, no Canadá e no México. No seu retorno, havia ainda dúvidas se Betinho seria preso ou não. Henfil descreve a chegada:

– Todas as pessoas levaram um gravador com a fita da música. Era uma tocação de “O bêbado e a equilibrista. Até os policiais ficaram tocados. No mesmo dia levei meu irmão ao Anhembi para o show da Elis.

Confira a charge do cartunista inspirada na canção:

HENFIL

Click para ver maior.

FILMES RECOMENDADOS:

BETINHO – A ESPERANÇA EQUILIBRISTA

TRÊS IRMÃOS DE SANGUE1

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Homenagem a Chaplin – Embora tenha se tornado um marco do momento político brasileiro, O bêbado e a equilibrista nasceu para homenagear Charles Chaplin, que havia morrido dois anos antes do lançamento, em 1977. Em entrevista à Associação Brasileira de Imprensa concedida em 2007, o letrista Aldir Blanc relembrou a história:

– Quando o Chaplin morreu, o João me chamou na casa dele e disse que havia feito um samba, cuja harmonia tinha passagens melódicas parecidas com “Smile” (do filme “Tempos modernos”), propositalmente construídas para que homenageássemos o cineasta. Só que, casualmente, encontrei o Henfil e o Chico Mário, que só falavam do mano que estava no exílio. O papo me deu um estalo. Cheguei em casa, liguei para o João e sugeri que criássemos um personagem chapliniano, que, no fundo, deplorasse a condição dos exilados. Não era a idéia original, mas ele não criou caso e disse: “Manda bala, o problema é seu.”

chaplin

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João Bosco – Nota de Repúdio

Recebi com indignação a notícia de que a Polícia Federal conduziu coercitivamente o reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, Jaime Ramirez, entre outros professores dessa universidade. A ação faz parte da investigação da construção do Memorial da Anistia. Como vem se tornando regra no Brasil, além da coerção desnecessária (ao que consta, não houve pedido prévio, cuja desobediência justificasse a medida), consta ainda que os acusados e seus advogados foram impedidos de ter acesso ao próprio processo, e alguns deles nem sequer sabiam se eram levados como testemunha ou suspeitos. O conjunto dessas medidas fere os princípios elementares do devido processo legal. É uma violência à cidadania.

Isso seria motivo suficiente para minha indignação. Mas a operação da PF me toca de modo mais direto, pois foi batizada de “Esperança equilibrista”, em alusão à canção que Aldir Blanc e eu fizemos em honra a todos os que lutaram contra a ditadura brasileira. Essa canção foi e permanece sendo, na memória coletiva do país, um hino à liberdade e à luta pela retomada do processo democrático. Não autorizo, politicamente, o uso dessa canção por quem trai seu desejo fundamental.

Resta ainda um ponto. Há indícios que me levam a ver nessas medidas violentas um ato de ataque à universidade pública. Isso, num momento em que a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, estado onde moro, definha por conta de crimes cometidos por gestores públicos, e o ensino superior gratuito sofre ataques de grandes instituições (alinhadas a uma visão mais plutocrata do que democrática). Fica aqui portanto também a minha defesa veemente da universidade pública, espaço fundamental para a promoção de igualdades na sociedade brasileira. É essa a esperança equilibrista que tem que continuar. João Bosco

LEIA TAMBÉM:

A esperança permanece, equilibrista
por Carlos Motta / GGN

Há músicas e músicas.

​Há músicas que de tanto tocar no rádio acabam esquecidas: doces demais, enjoam.

Há músicas que permanecem na memória coletiva porque representam um sentimento, uma época, um ideal.

É o caso de “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, vencedora do Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, no ano de 1966, junto com “A Banda”, de Chico Buarque, e de “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”, do mesmo Vandré, que ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção de 1968, promovido pela Rede Globo de Televisão.

As duas são exemplos claríssimos de que a arte pode ser uma manifestação política de alto teor explosivo.

“Disparada” e “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” são ouvidas e cantadas até hoje com a mesma carga emocional da época em que foram lançadas – uma época triste que viveu o Brasil, mergulhado nas trevas de uma ditadura.

As duas alcançaram status de hino contra a opressão, as injustiças, e de amor à liberdade.

“Mas o mundo foi rodando/Nas patas do meu cavalo/E nos sonhos/Que fui sonhando/As visões se clareando/As visões se clareando/Até que um dia acordei/Então não pude seguir/Valente em lugar tenente/E dono de gado e gente/Porque gado a gente marca/Tange, ferra, engorda e mata/Mas com gente é diferente” – diz a letra de “Disparada”.

“Vem, vamos embora, que esperar não é saber/Quem sabe faz a hora, não espera acontecer” – clama o refrão de “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”.

Outra canção, uma década depois dessas duas obras-primas de Vandré, também foi alçada à condição de hino, dessa feita em favor da anistia a quem bravamente combateu a ditadura e foi por ela perseguido e punido – “O Bêbado e a Equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, uma das duplas mais afinadas e importantes da música popular brasileira.

Clarice ainda chorava a morte de seu marido Vladimir; o irmão do Henfil vivia exilado, longe de sua terra natal; a esperança dançava na corda bamba de sombrinha e em cada passo daquela linha podia se machucar.

Milhões ouviram a mensagem que aquele samba trazia – e se emocionaram.

João cantou, Elis encantou.

“O Bêbado e a Equilibrista” permanece com a sua beleza incólume – uma beleza que não pode ser apropriada por uma malta selvagem, cuja única linguagem é a da violência da pré-civilização.

O artista João Bosco se sentiu ofendido pelo roubo da “esperança equilibrista” que ajudou a transformar o Brasil: “Essa canção foi e permanece sendo, na memória coletiva do país, um hino à liberdade e à luta pela retomada do processo democrático. Não autorizo, politicamente, o uso dessa canção por quem trai seu desejo fundamental”, escreveu em sua página no Facebook.

Seu desabafo é um importante documento de repúdio às práticas deste “Brasil Novo” e um alerta sobre os rumos que ele toma, em direção oposta à da democracia e da liberdade.