Emblema de uma época, a peça “Roda Viva” (1968) de Chico Buarque renasce em 2019 no templo dionisíaco do Teatro Oficina

Em 1967, a canção “Roda Viva”, de Chico Buarque, pousou no cenário cultural causando estrondo. Sem ser panfletária, esta música atravessou os tempos da ditadura, entrou na era democrática e transformou-se, junto com “Cálice” e “Apesar de Você”, num dos emblemas da época.

Com ela o jovem cantor-compositor conquistou o 3º lugar no III Festival da TV Record, consagrando-se ainda mais no cenário cultural no qual já havia faturado, com “A Banda”, reconhecimento prévio significativo no fervilhante front dos festivais. 

Hoje é cada vez mais evidente que a canção ganharia este caráter emblemático, esta característica de canção que encapsula toda uma época, só após os episódios polêmicos e explosivos envolvendo a encenação da peça teatral homônima pelo Teatro Oficina, com Zé Celso Martinez Côrrea e sua trupe agindo de modo altamente irreverente e provocativo.

Endiabrados nas suas travessuras em louvor a Dionísio, em suas antropofagias à la Oswald de Andrade, em suas invenciones inspiradas por Artaud, Brecht ou Meyerhold, o pessoal do Oficina lançou Roda Viva para as trincheiras da vanguarda do desbunde. 

Quando foi, diante das câmeras de TV, interpretada por Chico Buarque na companhia do coro poderoso do MPB-4, a canção decerto rendeu uma performance antológica, digna de figurar no documentário Uma Noite de 67 (lançado em 2010), ótimo retrato dos agitos da Era dos Festivais (também esmiuçada no livro de Zuza Homem de Melo).

Porém, Chico lá esteve com sua performance de bom moço, sem arroubos selvagens (como havia sido aquela de Sérgio Ricardo destruindo seu violão). A “Roda Viva” que foi transmitida pela TV ainda não havia se alçado a seu destino maior: os anseios de liberdade que esta canção continha em seu centro pulsante só foram amplamente libertadas no teatro, no terreiro dionisíaco do Oficina.

Coro da peça em 1968, com nomes como Zezé Motta e Pedro Paulo Rangel.

“A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar!” Versos assim empolgavam a juventude libertária daqueles tempos de trevas e de chumbo. Diante da opressão institucionalizada desde o advento da Ditadura com o golpe de 1964, muitos jovens artistas e intelectuais debatiam intensamente os caminhos possíveis diante da tirania militarizada, e os dois principais caminhos constituíam aquela encruzilhada fundamental: guerrilha ou desbunde?

 Os anseios de liberdade reprimidos, que vinham sendo sistematicamente pisoteados pelo regime opressor, tinham que se manifestar por vias menos explícitas, por vias mais sutis. Uma arte de que Chico Buarque era, na poesia musicada, incontestável mestre, driblando a tesoura dos censores com sua inteligência lírica ímpar.

Segundo Franklin Martins, a música tinha um subtexto poderoso que remetia a essa gente que queria ter voz ativa e em seu destino mandar estava sendo amordaçada pela tirania ditatorial: “a roda-viva, aquela que ‘carrega o destino pra lá’, poderia ser vista como um símbolo da máquina repressiva que asfixiava a sociedade.” (MARTINS, Franklin: Quem foi que inventou o Brasil – Volume 2 (1964 a 1985) – Ed. Nova Fronteira, 2005, pg. 95)

Ao coletar 50 curiosidade sobre a peça, Miguel Arcanjo Prado enfatizou com justiça que Roda Viva, a canção que originaria a peça, não existiria sem o impacto causado sobre Chico Buarque de sua experiência diante de O Rei da Vela, oswaldiana experiência antropofágico-dionisíaca que marcou a trajetória do Oficina nos anos 1960.

Em Roda Viva, a peça, Chico Buarque elege como protagonista

“um cantor popular chamado Benedito Silva, logo transformado em Ben Silver, que era obrigado a mudar constantemente de personalidade para sobreviver na selva dos espetáculos. A montagem inovadora do diretor Zé Celso, que já trazia em seu currículo a revolucionária encenação de O Rei da Vela de Oswald de Andrade, provocou muita polêmica.

Na noite de 27 de julho de 1967, o Teatro Ruth Escobar, onde a peça era encenada, foi invadido pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), organização terrorista de extrema-direita. Os agressores destruíram cenários e espancaram atores e técnicos.” (Martins, op cit, p. 95)

Roda Viva em montagem de 1968, dirigida por José Celso Martinez Corrêa

Uma espécie de jocosa e absurdista denúncia da sociedade do espétaculo, Roda Viva não era obra de alguém que estivesse de fora da engrenagem. Chico Buarque estava no processo de não se deixar moer pela maquinaria do show biz.

Roda Viva, vale lembrar, era uma criação teatral nascida das inquietações e provocações dum pop star brasileiro de apenas 24 anos, alçado subitamente ao posto de celebridade após seu hit “A Banda” – que catapultou o filho de Sérgio Buarque de Hollanda (autor de Raízes do Brasil) para os píncaros da fama.

Na figura de Ben Silver, Chico Buarque exercita, de modo esperto e sarcástico, seu pleno direito de crítica à máquina-de-moer-gente usualmente conhecida como showbusiness. 

Roda Viva representa uma espécie de ethos punk que toma conta de Chico, com ele mandando às favas o bom-mocismo, como escreveu Bruno Hoffman:

“Garotas de classe média – e de cabelos impecáveis – lotaram o auditório do Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro. Afinal, era a estréia da peça Roda Viva, escrita pelo genro ideal de seus pais, Chico Buarque. As meninas suspiravam ao imaginar o que o ‘cantor dos olhos de ardósia’ e símbolo do bom-mocismo havia criado. Quando as cortinas se abriram, entretanto, todas ficaram espantadas. A peça era extremamente provocativa, quase violenta.”

Sabemos que Chico acabou indo pro exílio em Roma quando o chumbo esquentou demais no período de vigência do AI-5 (1968 a 1978).

Mesmo de maneira cifrada, como em “Cálice”, suas críticas ao regime dos milicos rendiam-lhe dissabores e conflitos, inclusive com tentativas de sabotagem de seus shows.

O documentário Phono 73 revela um pouco de como eram altamente iconoclastas e perturbadoras as performances buarquianas sobre os palcos por volta de 1973. Revela também que, para além da tesoura e da mordaça impostas pelos censores, por vezes nos shows, misteriosamente, sumia o som do microfone de Chico:

Roda Viva é um ataque a todo o star system, mas sem aquela seriedade Frankfurtiana de Adorno e Horkheimer. Perdendo sua autenticidade e autonomia, Benedito Silva é transformado à força em mercadoria: Ben Silver, um peão no xadrez (only a pawn in their game, para lembrar do folkster Dylan) manuseado pelos empresários da mídia e da indústria fonográfica!

Em excelente artigo para a Revista Cult, Marcelo Sotello Felipe destacou os nexos entre a vivência de Chico Buarque, sob o risco de ser “mercantilizado” e vendido às massas como sabão em pó, e a reação criativa e subversiva que Chico realiza com a obra Roda Viva:

“O cantor se torna Ben Silver. Produzido, vestido, maquiado. Embalado. Tal qual uma marca de sabão em pó ou uma geladeira. A troco de 20% para o “anjo” (o empresário), a mercadoria é posta no mercado e a massa aprende a consumi-la. Mas um dia Ben Silver já não rende tanta grana. Desaparece para surgir Benedito Lampião, produzido, vestido e maquiado novamente, outra mercadoria. Que também um dia precisa desaparecer para que outro produto garanta o tamanho dos 20%. É a roda viva que carrega pra lá o destino de Ben Silver e Benedito Lampião.”

Roda Viva faz parte das efervescências daqueles anos seminais e prenhes de consequências, 1967 a 1969, quando explode no Brasil a renovação estético-cultural-política, altamente subversiva, do Tropicalismo. A novidade tinha a potência de um movimento que, ainda que profundamente inovador, estava bem enraizado no passado: a Antropofagia de Oswald de Andrade, que remetia ao caldeirão do Modernismo dos anos 1920, inspirava ativamente o trampo dos tropicalistas.

Mas era um Oswald que os tropicalistas não respeitavam como um ente sagrado, que não faziam de ídolo intocável: era um Oswald devorado e vomitado pelo Teatro Oficina, onde Zé Celso Martinez Côrrea e sua trupe encenavam O Rei da Vela em meio aos transtornos sócio-políticos daqueles anos danados, de chumbo-grosso e mordaças impostas a todas as canções de protesto contra o regime ilegítimo nascido da derrubada militar do governo João Goulart.

Neste contexto é que surgem algumas das mais emblemáticas canções de Caetano Veloso – que admitiu sentir-se profundamente transtornado pela experiência estética que teve com a ressurreição de Oswald através do Teatro Oficina.

Presente no disco-manifesto Tropicália ou Panis e Circensis (1968), “Enquanto Seu Lobo Não Vem” é um retrato daquele país que havia entrado em erupção após a morte de Edson Luís, com comícios-relâmpago e protestos estudantis, culminando com grandes manifestações cívicas como a Passeata dos Cem Mil, em Junho. Era uma época em que o movimento estudantil e os trabalhadores organizados puderam sentir muitos artistas e intelectuais aliando-se à luta contra a ditadura.

Que lobo seria este que está para vir, na canção de Caetano? Hoje, com nosso olhar retrospectivo, a canção pode soar profética, como se previsse a chegada do AI-5 e da fase mais brutal do terrorismo de estado:

“A canção misturava símbolos da guerrilha – florestas, veredas, cordilheiras – com o dia a dia das manifestações estudantis – passeatas, desfiles, ruas, avenidas, bombas, botas e bandeiras. O lobo, claro, era a repressão policial, com suas garras cada vez mais afiadas e ameaçadoras.

Em breve, advertia Caetano, seria necessário esconder-se debaixo da cama para não ser comido por ele. Para deixar claro de onde vinha o perigo, em boa parte da canção Gal Costa repetia em contraponto o estribilho “os clarins da banda militar”. (MARTINS, pg. 86)

Nos palcos do Brasil, em 1968, o regime dos milicos não só mandava proibir, mas fazia vista grossa ou apoio implícito a grupos paramilitares que utilizavam-se da força bruta para silenciar artistas. A canção Roda Viva, de Chico Buarque, composta em 1967,

“ganhou nova conotação política ao subir aos palcos em 1968 na peça homônima. O protagonista – um cantor popular chamado Benedito Silva, logo transformado em Ben Silver – era obrigado a mudar constantemente de personalidade para sobreviver na selva dos espetáculos.

A montagem inovadora de Zé Celso provocou muita polêmica. A peça estreou no início de 1968 no Rio. Meses depois chegou a São Paulo. Na noite de 17 de Julho, o Teatro Ruth Escobar, onde a peça era encenada, foi invadido pelo CCC, organização terrorista de extrema-direita. Os agressores destruíram cenários e espancaram atores e técnicos. Chico Buarque, mais tarde, levantou a hipótese de que o CCC, ao atacar Roda Viva, teria errado de alvo. Seu objetivo seria atingir o espetáculo Feira Paulista de Opinião, dirigido por Augusto Boal, apresentado em outra sala do mesmo teatro. Numa das cenas, um capacete militar era usado como penico, o que teria despertado a ira dos terroristas.

Se o CCC errou de alvo em São Paulo, insistiu no erro em Porto Alegre. No início de outubro, o grupo de extrema-direita atacou o Teatro Leopoldina, onde a peça estava sendo apresentada na capital do Rio Grande do Sul. Atores e atrizes foram agredidos e depois enfiados num ônibus, com ordens expressas para não voltar a pisar em terras gaúchas. O espetáculo, é claro, saiu imediatamente de cartaz.

A violência contra Roda Viva não era um fato isolado – e sim mais um episódio na escalada de violência protagonizada pelo CCC contra estudantes, artistas e intelectuais de oposição. Bombas foram jogadas no Teatro Opinião, na Associação Brasileira de Imprensa, no Correio da Manhã e na editora Civilização Brasileira.

Também em outubro, membros do CCC, infiltrados entre os estudantes de direita da Universidade Mackenzie, atacaram a tiros a Faculdade de Filosofia da USP, onde funcionava a União Estadual de Estudantes. Na chamada Batalha da (Rua) Maria Antônia, foi morto com um tiro na cabeça o secundarista José Guimarães, de 20 anos, que defendia a Filosofia.

Atuando em estreita dobradinha com os órgãos de repressão e multiplicando suas ações, o CCC ajudou a preparar o clima para a instauração da ditadura terrorista aberta que viria ao mundo com a edição do AI-5, em 13 de Dezembro de 1968. Mas o CCC não passava de uma linha auxiliar, um grupo de paus-mandados. Era no núcleo do regime militar, cada dia mais dominado pela linha-dura, que o coração da violência batia forte e marcava o ritmo da radicalização.

No segundo semestre, o país assistiu a uma escalada de arbitrariedades e provocações, que desembocaria no AI-5. Em agosto, a UnB foi invadida por tropas. Em outubro, a polícia prendeu cerca de 700 líderes estudantis no XXX Congresso da UNE, em Ibiúna (SP). Em todo o país, os estudantes saíram às ruas pedindo a libertação de seus dirigentes. No Rio, uma manifestação em frente à Faculdade de Ciências Médicas foi dissolvida à bala. Na ação da polícia, o estudante de medicina Luiz Paulo Nunes morreu com um tiro na cabeça.” (MARTINS, p. 96)

Não há dúvida de que no turbilhão de 1968, artistas fizeram história com sua participação política e com suas canções engajadas (acima, Chico Buarque e Gilberto Gil marcam presença na Passeata dos 100 Mil… 50 anos depois, estariam novamente reunidos no showmício Lula Livre, nos Arcos da Lapa/RJ, que reuniu mais de 50 mil pessoas).

Muito antes do AI-5 ser promulgado em Dezembro, a brutalidade dos milicos já havia se tornado explícita – e o mês de Junho não nos deixa mentir. Na chamada Sexta-Feira Sangrenta, 28 estudantes e trabalhadores foram assassinados nos conflitos de rua entre manifestantes e policiais; centenas de pessoas ficaram feridas; pelo menos 15 viaturas foram incendiadas. Foi esse massacre perpetrado pelos militares que gerou a onda de comoção que culminaria na Passeata dos 100 Mil, quando a maré de participação cívica intimidou a repressão, que permitiu a manifestação sem dissolvê-la no porrete e na escopeta como era de praxe.


Eis que, passados 50 anos, em 2019, nesta época de fascistas estúpidos e empoderados, o assassinato da liberdade se faz novamente presente.

Em 1968, quando a ditadura militar instaurada com o golpe de 1964 preparava-se para entrar em seus anos de chumbo, a peça Roda Viva fez história pela fúria que despertou no regime dos generais e nas milícias que o escudava (como o CCC).

É portanto altamente significativo e explosivo que Zé Celso e sua trupe re-encenem a peça escrita por Chico Buarque de Hollanda nestes nossos tempos de tenebrosas transações que culminaram com a tomada do poder pelo Bozonazismo.

Obviamente, o desgoverno Bozoasnal é o alvo principal da sátira impiedosa dos artistas no Roda Viva 2019 que o Teatro Oficina encenou em seu antológico espaço no Bixiga/SP. Eles não poupam artilharia contra figuras-de-proa da corja de Bozo: de Olavo de Carvalho a Sergio Moro, aos ministros e ao chanceler, não faltam poéticos bofetes que o Oficina distribui com seu radicalismo e irreverência de praxe…

Entrar naquele estranho edifício, com projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi, sempre torna explícita pra mim a sensação de não estar exatamente em um teatro, ou melhor, de não ter adentrado nada que se assemelhe a um teatro tradicional ou canônico: eis um espaço de desconforto, ou melhor, um lócus que visa incrementar nosso inconformismo. Um espaço de liberdade, cheio de convites à nossa libertação, coletivamente forjada no improviso de mênades e sátiros que juntos, dançando e tocando-se, tornam-se uma coisa só. “Todos juntos numa pessoa só”, como cantava a utopia d’Os Mutantes.

Zé Celso, antes da peça se iniciar “de verdade”, sendo o MC deste terreiro hightech, pede que o público se encoste, se toque, se mescle, se molhe com o suor uns dos outros, num rito de superação do eu separador. Quer que nos tornemos uma coisa só, uma centopéia de diversidade, envolvida num rito dionisíaco que celebra a renovação do mundo através da arte.

Benedito Silva, alçado ao status de pop star como Ben Silver, depois recauchutado como Lampião, serve como emblema do ídolo diante do qual as massas alienadas se prostram, subservientes, boquiabertas, demitindo-se de sua autonomia. A idolatria é uma face de uma moeda que do outro lado possui a face horrenda do poder pastoral. O pastorado, para reinar sobre nós impondo suas nefastas e desnecessárias opressões e mortificações, necessita, como de oxigênio, da idolatria. Quem idolatra é subserviente. 

Fazer de Ben Silver, ou de Boçalnaro, figuras míticas e pessoas idolatráveis, é desvelado em Roda Viva em todo o seu ridículo. Quem não é mané nem otário sai do teatro sabendo: paga o maior mico todo e qualquer sujeito que trate esses boçais como mitos.

Não lambamos as botas de ídolos de barro, ou pior: as botas daqueles que querem pisotear a dignidade humana e que focalizam a sua própria idolatria na direção mais sórdida (Bolsonaro, idólatra, idolatra sabe quem? Ustra e o “exército de Caxias”!).

Neste início da desgovernança Bozoasnal, já começam a pipocar os Youtubbers que, motivados por um desejo de se portarem como homens e mulheres “de bem”, denunciam o Teatro Oficina como sendo, basicamente, um antro do demônio, onde a platéia é agredida e os atores praticam assédio sexual contra pessoas que estão ali querendo assistir uma peça de boa (exemplo).

A verdade, acessada por aqueles que estão de corpo e alma dentro do Teatro Oficina, deixando-se afetar e transformar pela experiência, consiste na descoberta: viver é tão melhor fora dos cárceres do conformismo! É assim que a trupe mobiliza todo o seu arsenal de sarcasmos e de corpos nus, todo o seu repertório de canções e batuques, para afrontar o mau-gosto petit bourgeois e partir para a porrada com seu teatro de desmistificação e de escárnio com os atuais usurpadores do poder.

O Oficina segue sendo nosso farol-guia cultural que aponta rumos melhores para que o Brasil prospere espiritualmente para fora do pântano e lodaçal do autoritarismo e da ditadura, por aqui tão recorrentes.  Tragédias e farsas repetindo-se sem cessar, sendo o Bolsoasnismo apenas a mais recente máscara de um velho monstro.

O Oficina está antenadíssimo com o contemporâneo. Insere no cast de canções coisas como “Caravanas”, canção da safra recente de Chico, obra-prima da poética (uma letra que fica linda impressa num livro de poesia!).

O Oficina também faz de Roda Viva algo em sintonia com o antológico Desfile de Carnaval da Tuiuti no Rio de Janeiro em 2018. O drama sanguinolento e sofrido da escravidão e da diáspora africana marcam a criação cultural coletiva dessa trupe indomável.

À pergunta “existe uma cultura dionisíaca, subversiva, transgressora, hoje em atividade no Brasil?”, teríamos necessariamente que respondem que sim!

 Vejam a obra de Ângela Carneosso, por exemplo, ou alguns clipes calientes e hedonistas do Francisco El Hombre; confiram as ousadias que se permitem mulheres como Ava Rocha, Salma Jô, Larissa Luz; notem quão desbocada e subversiva é uma obra como “Gasolina” do Teto Preto ou como é explode-limites o álbum e filme Bluesman de Baco Exu do Blues.

Assistam aos clipes deliciosamente provocadores, repletos de explosão libidinal, da Flaira Ferro em seu “Coisa Mais Bonita” e em seu “Revólver” de frevo frenético libertário; ou deliciem-se com o sexoralismo desinibido de Karol Conka e sua língua quase tão pansexual quanto a de Janelle Monae. Notem quão bacântica é a estética de Juliana Perdigão em uma música como essa:

HINO DA ALCOVA LIBERTINA

Sim, o Brasil ainda é o palco onde a utopia antropofágica oswaldiana se expressa em meio à tirania sinistra dos caretas e dos milicos.

Neste contexto, Zé Celso e a trupe do Teatro Oficina continuam na vanguarda do desbunde, na barricada do dionisíaco, na trincheira libertária, como um bando de cabras desgarradas dos rebanhos, maravilhosos hippies que são ovelhas nuas pintando-se de preto, ébrias sob a Lua e os bilhões de sóis, bacantes sempre pentelhando o reinado sombrio de Penteu.

Com “Roda Viva”, Zé Celso reconquista a proeza histórica já alcançada ano passado em “O Rei da Vela”: poder dirigir 50 anos depois uma nova versão para um espetáculo que o consagrou na história do teatro brasileiro e mundial. Qual outro diretor teve tamanho privilégio em vida? E, ao fazê-lo com vigor e o mesmo atrevimento artístico de sua juventude, Zé Celso prova que está mais vivo e forte do que nunca, pronto para a batalha em prol de sua arte livre da qual jamais abriu mão, custe o que custar. Assim, ele faz de “Roda Viva” um espetáculo altamente emocionante, performativo e, obviamente, obrigatório de se ver e de se aplaudir de pé. (ARCANJO)

Se fosse para escolher uma cena emblemática, eu lembraria daquela que, em Roda Viva 2019, opõem dois grupos de brasileiros que chegam às vias de fato, às beiras à guerra civil: o exército dos agroboys financiados pela Bancada da Bala e da Bíblia e do Boi, todos com seus rifles em punho e berrando “Bolsonaro é mito!”, diante dos aguerridos guerreiros herdeiros do Quilombo de Palmares e de Canudos, que hoje entoam em coro: “Quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro! Aqui está o povo sem medo… sem medo de lutar!”

Zé Celso e sua trupe não fogem do ringue. Ao invés de armas, levam à batalha uma tempestade de poesia, relâmpagos radicais de sarcasmo e uma baita disposição para a polêmica. Encaram o trago e assumem a responsa, tentando ensinar ao Brasil os caminhos dificultosos e selvagens que levam ao Reino da Liberdade: onde tudo é criação e recriação infindável fora do cárcere estreito e injusto em que querem nos encerrar tacanhos milicos e fanáticos caretas, idolatradores de torturadores e que cagam bolsas de colostomia sobre o legado de Marx e Gramsci, de Paulo Freire e Florestan Fernandes, de Voltaire e de Jesus, de Darwin e de D2, de Marielle e de Jean Wyllys. 

Nestes tempos que nos condenam às trincheiras culturais, que nos convocam às batalhas ideológicas, o Teatro Oficina segue berrando suas luzes em tempos de obscurantismo. Dizendo-nos verdades cruéis que não podem ser silenciados. Abrindo nossos olhos à força. Quebrando nossas couraças e nossas porcupine skins a golpes de poesias e de canções. Berrando em nossos ouvidos, com vozes diversas e sintônicas, em lindo coro que comove até os ossos, para que ouçamos:

“A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira pra lá…
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração…”

Eduardo Carli de Moraes, São Paulo / Goiânia, Fevereiro de 2019.

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1968: A MÚSICA CANTA A HISTÓRIA – Movimento Estudantil vs Ditadura Militar, do Calabouço ao AI-5 (Por Eduardo Carli de Moraes)

1968: A MÚSICA CANTA A HISTÓRIA

“A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá…”
Chico Buarque de Hollanda

Neste turbulento ano 2018, relembrar 1968 torna-se urgente e inadiável. Não apenas pois meio século transcorreu desde então, e a redondeza deste marco – “50 anos depois…” – convida a lembrança a se exercitar, fornecendo pautas memorialistísticas aos jornalistas, documentaristas e historiadores.

Por uma razão melhor que esta, acredito, é que devemos nos debruçar sobre este passado específico: quem não conhece sua História, e não aprende com ela, tende a repetir os equívocos de gerações passadas. Neste sentido, a música pode ser excelente professora, caso saibamos abrir as portas da percepção e da cognição para ouvir seus ensinamentos, melodiosos e rítmicos, cheios de feitiço, com alto potencial de nos conceder benefícios que vão muito além dos deleites estéticos.

Re-ouvindo e re-decodificando aquelas antológicas canções – de Chico Buarque, de Gilberto Gil, de Geraldo Vandré, dos Mutantes, de Caetano Veloso, de Gonzagão e Gonzaguinha, de Milton Nascimento, de Elza Soares, de Tom Zé, de Jards Macalé, de Itamar Assumpção, de Clara Nunes, de Aldir Blanc e João Bosco, de Edu Lobo, de Gal e de Bethânia etc. – temos acesso ao nosso pretérito tal qual foi vivenciado e expressado por nossos maiores e melhores artistas, os mais sensíveis e criativos dentre os cidadãos ativos que sentiram na pele as fúrias e as esperanças da época.

Eles continuam nos ensinando sobre o tamanho do erro grotesco que seria permitir a re-emergência de um regime político autoritário e ditatorial, após tantos horrendos horrores que nos feriram desde o Golpe do 1º de Abril de 1964, início daqueles 21 anos de trevas (1964 – 1985) que até hoje lançam suas sombras sobre nosso presente.

Com a candidatura fascista do boçal Bolsonaro, encarnação do entulho militarista e truculento entre nós, figurando em 2º lugar nas pesquisas de intenção de voto para a presidência da república, só atrás de Lula (que está preso e provavelmente será impedido de disputar o pleito, apesar de ONUs e Papas, apesar de festivais e greves de fome, apesar de manifestações e protestos!), urge que a gente aprenda sobre as cagadas pretéritas. Para que possamos perceber, a tempo, o tamanho obsceno da cagada iminente que talvez façamos em breve, como sociedade, cometendo um crime de lesa-povo que só mesmo poderia perpetrar um bando demasiado vasto de amnésicos.

“1968 foi um ano marcado por grandes protestos estudantis contra a ditadura, por importantes greves operárias e pela rearticulação das forças de oposição”, escreve Franklin Martins. “O ano ficou marcado também pelo recrudescimento da repressão, pelo desencadeamento de atentados terroristas pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e pelo contínuo fortalecimento da linha-dura nos altos comandos das Forças Armadas.” (MARTINS, Quem Foi Que Inventou o Brasil, vol. 2, 2015, pg. 35)

No dia 28 de Março, “estudantes organizaram uma passeata para protestar contra a baixa qualidade das refeições e as péssimas condições de funcionamento do Restaurante Central dos Estudantes, conhecido como Calabouço. A Polícia Militar (PM) já chegou disparando. Vários comensais – assim eram chamados os estudantes que usavam o restaurante, em sua maioria secundaristas pobres – foram feridos à bala. Um deles, o paraense Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos, morreu no local.”  (pg. 82)

Milton Nascimento e Ronaldo Bastos: “Menino”

“Quem cala sobre teu corpo
Consente na tua morte
Talhada a ferro e fogo
Nas profundezas do corte
Que a bala riscou no peito
Quem cala morre contigo
Mais morto que estás agora
Relógio no chão da praça
Batendo, avisando a hora
Que a raiva traçou no tempo
No incêndio repetido
O brilho do teu cabelo
Quem grita vive contigo.”

A canção “Menino”, fruto dos acontecimentos de Março de 1968, só seria gravada muitos anos depois e lançada em Geraes, álbum de 1976. Como lembra Ridenti, “a lembrança do enterro de Edson Luís também inspirou Milton Nascimento e Wagner Tiso na composição de “Coração de Estudante”, em 1983, para a trilha sonora do filme Jango, de Silvio Tendler.” (RIDENTI, Em Busca do Povo Brasileiro, p. 56)

“Antes do golpe militar de 1964, o Calabouço – nos tempos do Império, o local havia abrigado uma antiga prisão de escravos – era administrado pela União Metropolitana dos Estudantes (UME). Instaurada a ditadura, o refeitório foi fechado pelas autoridades. Reaberto três meses depois, continuou na mira dos órgãos de segurança, que viam com maus olhos as frequentes assembleias realizadas no local.

Em 1967, o governo demoliu o restaurante sob o pretexto de que era necessário reurbanizar a área para uma reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI) a ser realizada no Museu de Arte Moderna (MAM), situado nas proximidades. A pressão estudantil, entretanto, obrigou as autoridades a construir às pressas outro Calabouço, a cerca de 2km do local.

A mudança, porém, foi um desastre. Logo começaram as mobilizações comandadas pela Frente Unida dos Estudantes do Calabouço (Fuec) contra a péssima estrutura do novo restaurante. A resposta da polícia foi imediata: sentou praça no local com o objetivo de intimidar os jovens. Nem bem o ano letivo começou, o restaurante foi invadido pela PM na operação em que Edson Luís morreu com um tiro no peito, dado à queima-roupa.

Temendo que a polícia desaparecesse com o estudante morto, as lideranças do Calabouço levaram o corpo para a Assembleia Legislativa do então estado da Guanabara, na Cinelândia, onde Edson Luís foi velado. Durante toda a noite e a manhã, milhares de estudantes e populares acorreram ao local, que se tornou palco de um prolongado comício contra a ditadura. Na tarde do dia seguinte, dezenas de milhares de pessoas acompanharam o cortejo da Cinelândia ao cemitério São João Batista, onde Edson Luis foi enterrado. No trajeto, a palavra de ordem mais gritada foi MATARAM UM ESTUDANTE, PODIA SER SEU FILHO. O Rio de Janeiro, chocado com a brutalidade policial, parou e vestiu luto.

Marco do acirramento da luta dos estudantes contra a ditadura, a morte de Edson Luis inspirou duas canções importantes – ambas proibidas pela censura: “Menino”, de Milton Nascimento, e “Calabouço” de Sergio Ricardo. Esta última foi proibida em 1968, mas a música circulou entre os estudantes em gravações clandestinas. Nos anos seguintes, foi cantada em shows nas universidades em desafio às autoridades. “Em cada lugar que a apresentava, curiosa e inesperadamente, o refrão de “Calabouço” era repetido efusivamente pela plateia”, contou Sérgio Ricardo. A canção somente foi gravada comercialmente em 1973, graças a um cochilo da turma da tesoura.

Quando as autoridades se deram conta de que tinham levado um frango por debaixo das pernas, convocaram o compositor para prestar depoimento no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), mas já era tarde demais: o LP com a canção estava esgotado. Também em 1973, Sérgio Ricardo cantaria Calabouço na Catedral da Sé, durante a missa de 7ª dua em homenagem a outro jovem assassinado pela ditadura – Alexandre Vannucchi Leme, estudante da USP, torturado e morto pelos órgãos da repressão nas dependências da Oban (Operação Bandeirantes).” (MARTINS, p. 82-83)

Sérgio Ricardo: “Calabouço”

Olho aberto, ouvido atento
E a cabeça no lugar
Cala a boca moço, cala a boca moço
Do canto da boca escorre
Metade do meu cantar
Cala a boca moço, cala a boca moço
Eis o lixo do meu canto
Que é permitido escutar
Cala a boca moço. Fala!

Olha o vazio nas almas
Olha um violeiro de alma vazia

Cerradas portas do mundo
Cala a boca moço
E decepada a canção
Cala a boca moço
Metade com sete chaves
Cala a boca moço
Nas grades do meu porão
Cala a boca moço
A outra se gangrenando

 Cala a boca moço
Na chaga do meu refrão
Cala a boca moço
Cala o peito, cala o beiço
Calabouço, calabouço

Olha o vazio nas almas
Olha um violeiro de alma vazia

Mulata mula mulambo
Milícia morte e mourão
Cala a boca moço, cala a boca moço
Onde amarro a meia espera
Cercada de assombração
Cala a boca moço, cala a boca moço
Seu meio corpo apoiado
Na muleta da canção
Cala a boca moço. Fala!

Olha o vazio nas almas
Olha um violeiro de alma vazia

Meia dor, meia alegria
Cala a boca moço
Nem rosa nem flor, botão
Cala a boca moço
Meio pavor, meia euforia
Cala a boca moço
Meia cama, meio caixão
Cala a boca moço
Da cana caiana eu canto
Cala a boca moço
Só o bagaço da canção
Cala a boca moço
Cala o peito, cala o beiço
Calabouço, calabouço

Olha o vazio nas almas
Olha um violeiro de alma vazia

As paredes de um inseto
Me vestem como a um cabide
Cala a boca moço, cala a boca moço
E na lama de seu corpo
Vou por onde ele decide
Cala a boca moço, cala a boca moço
Metade se esverdeando
No limbo do meu revide
Cala o boca moço. Fala!

Olha o vazio nas almas
Olha um violeiro de alma vazia

Quem canta traz um motivo
Cala a boca moço
Que se explica no cantar
Cala a boca moço
Meu canto é filho de Aquiles
Cala a boca moço
Também tem seu calcanhar
Cala a boca moço
Por isso o verso é a bílis
Cala a boca moço
Do que eu queria explicar
Cala a boca moço
Cala o peito, cala o beiço
Calabouço, calabouço

Olha o vazio nas almas
Olha um brasileiro de alma vazia.

O assassinato de Edson Luis, perpetrado pela PM, foi “um tiro no coração do Brasil”, como tão bem expressa o título do documentário de Carlos Pronzatohttps://youtu.be/ZNRxpfUMwQw (assista na íntegra, 58 min). Poucos dias depois do crime perpetrado pelo terrorismo de Estado, o jornal Correio da Manhã, em 07 de Abril de 1968, publicava um potente texto de Hélio Pellegrino:

“Tombou morto um jovem estudante brasileiro, varado pela bala assassina que o matou… o tempo de sua vida, ao qual tinha direito e do qual foi miseravelmente roubado, ergue-se de súbito diante da nação como uma imensa catedral sagrada, sob cujas abóbadas milhões de vozes deflagraram sua revolta. O tempo de Edson Luís, dilacerado e destruído pela bala homicida que o cortou, tornou-se de repente tempo histórico, tempo brasileiro, tempo de cólera e consciência, tempo de gritar: BASTA! Há instantes privilegiados em que um destino pessoal se dissolve no movimento da história. Nesses instantes, a formidável alquimia da história faz refulgir, com luz imperecível, o destino no qual toca. Edson Luís, assassinado pela polícia, cujos clarões varreram de ponta a ponta a noite reacionária que o poder militar fez desabar sobre o país.” (Citado do livro de Maria Ribeiro do Valle: “1968 – O Diálogo é a Violência – Movimento Estudantil e Ditadura Militar no Brasil”, 2ª ed., Editora UNICAMP, 2016)

É neste contexto que explode a renovação estético-cultural subversiva do Tropicalismo. A novidade tinha a potência de um movimento que, ainda que profundamente inovador, estava bem enraizado no passado: a Antropofagia de Oswald de Andrade, que remetia ao caldeirão do Modernismo dos anos 1920, inspirava ativamente o trampo dos tropicalistas.

Mas era um Oswald que os tropicalistas não respeitavam como um ente sagrado, que não faziam de ídolo intocável: era um Oswald devorado e vomitado pelo Teatro Oficina, onde Zé Celso Martinez Côrrea e sua trupe encenavam O Rei da Vela em meio aos transtornos sócio-políticos daqueles anos danados, de chumbo-grosso e mordaças impostas a todas as canções de protesto contra o regime ilegítimo nascido da derrubada militar do governo João Goulart.

Neste contexto é que surgem três das mais emblemáticas canções de Caetano Veloso – que admitiu sentir-se profundamente transtornado pela experiência estética que teve com a ressurreição de Oswald através do Teatro Oficina. Presente no disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis (1968), “Enquanto Seu Lobo Não Vem” é um retrato daquele país que havia entrado em erupção após a morte de Edson Luís, com comícios-relâmpago e protestos estudantis, culminando com grandes manifestações cívicas como a Passeata dos Cem Mil, em Junho. Era uma época em que o movimento estudantil e os trabalhadores organizados puderam sentir muitos artistas e intelectuais aliando-se à luta contra a ditadura.

Que lobo seria este que está para vir, na canção de Caetano? Hoje, com nosso olhar retrospectivo, a canção pode soar profética, como se previsse a chegada do AI-5 e da fase mais brutal do terrorismo de estado. “A canção misturava símbolos da guerrilha – florestas, veredas, cordilheiras – com o dia a dia das manifestações estudantis – passeatas, desfiles, ruas, avenidas, bombas, botas e bandeiras. O lobo, claro, era a repressão policial, com suas garras cada vez mais afiadas e ameaçadoras.

Em breve, advertia Caetano, seria necessário esconder-se debaixo da cama para não ser comido por ele. Para deixar claro de onde vinha o perigo, em boa parte da canção Gal Costa repetia em contraponto o estribilho “os clarins da banda militar”. (MARTINS, pg. 86)

Vamos passear na floresta escondida, meu amor
Vamos passear na avenida
Vamos passear nas veredas, no alto meu amor
Há uma cordilheira sob o asfalto

(Os clarins da banda militar…)
A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas
(Os clarins da banda militar…)
Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar…)
Presidente Vargas, Presidente Vargas, Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar…)

Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil
Vamos passear escondidos
Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou
Vamos por debaixo das ruas

(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das bombas, das bandeiras
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das botas
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das rosas, dos jardins
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo da lama
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo da cama

O lobo já havia devorado muitos companheiros, mundo afora, que haviam se engajado na construção de um mundo menos injusto. Não se compreende as canções de 1968 sem lembrar que ainda era recente, naquele ano, o assassinato de Ernesto Che Guevara ocorrido na Bolívia em 1967. Ocorrência que inspirou pelo menos duas composições: em “Aleluia”, Sérgio Ricardo fez um deslavado panegírico ao médico-guerrilheiro: “Che Guevara não morreu, aleluia!” Celebrando Che como uma espécie de santo laico, dizendo claramente o nome de seu herói, Ricardo se colocava de modo explícito no lado dos apologistas de Guevara e dos que se punham na órbita de influência da Revolução Cubana que triunfara em 1959.

Este procedimento de explicitação da mensagem e de louvor ao revolucionário não foi a escolha de Caetano em sua “Soy Loco Por Ti América”. Nela, em ritmo de mambo cubano, em clima altamente festivo, ele incluiu uma menção à censura, ironizando a turma da tesoura que então amordaçava a arte de protesto e subversão no Brasil: “o nome do homem morto não se pode dizer”.


Antenado com o tempo histórico fora do Brasil, o movimento tropicalista, que seria “abatido em pleno vôo pelo AI-5” (para emprestar uma expressão de Tárik de Souza), trouxe ao país, em 1968, um pouco do clima insurrecional que havia tomado conta de Paris em Maio.

Acompanhado dos Mutantes, Caetano agia sem medo de psicodelizar a MPB de maneira extremada, sem temor da guitarra elétrica e distorcida. Como lembra Martins, Caetano fez É Proibido Proibir inspirado em uma

“frase pichada numa parede de Paris, ao lado de tantas outras palavras de ordem que exigiam o impossível: IL EST INTERDIT D’INTERDIRE. A tradução literal deu nome à composição que ele apresentou no III Festival Internacional da Canção (FIC), em Setembro de 1968.

Com uma montagem quase cinematográfica, semelhante à Alegria, Alegria, a música resgatava a explosão dos movimentos estudantis de 1968 em todo o mundo. Era preciso dizer não ao não, simbolizado pela mãe da virgem, pelo anúncio da televisão, pelo mestre e pelo porteiro, e também derrubar prateleiras, estantes, estátuas, vidraças, louças e livros.

Por sua temática, É Proibido Proibir tinha tudo para fazer sucesso no festival, mas Caetano não estava lá para agradar. Queria mesmo era protestar. Subiu ao palco do Teatro da PUC-SP (Tuca) vestindo um protesto em forma de roupa: camisa de plástico verde, colares de fios elétricos, correntes metálicas com dentes de animais. Entrou em cena rebolando e simulando um ato sexual. Boa parte do público não gostou e reagiu com vaias e gritos de ‘bicha’. Mesmo assim a música se classificou para a rodada decisiva.

Na final, a performance de Caetano – ainda mais forte que a da fase classificatória – foi recebida com vaias e uma saraivada de objetos da plateia. O cantor baiano não conseguiu ir até o fim. Revoltado, explodiu num discurso antológico, sintetizado na pergunta inicial que dirigiu ao público: ‘Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?'” (FRANKLIN MARTINS, pg. 88)

A mãe da virgem diz que não
E o anúncio da televisão
Estava escrito no portão
E o maestro ergueu o dedo
E além da porta
Há o porteiro, sim…

E eu digo não
E eu digo não ao não
Eu digo:
É! — proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir…

Me dê um beijo, meu amor
Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estantes, as estátuas
As vidraças, louças, livros, sim…

E eu digo sim
E eu digo não ao não
E eu digo:
É! — proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir…
(falado)
Caí no areal na hora adversa que Deus concede aos seus
para o intervalo em que esteja a alma imersa em sonhos
que são Deus.
Que importa o areal, a morte, a desventura, se com Deus
me guardei
É o que me sonhei, que eterno dura
É esse que regressarei.

Me dê um beijo meu amor
Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estátuas, as estantes
As vidraças, louças, livros, sim…

E eu digo sim
E eu digo não ao não
E eu digo: É!
Proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir…

Nos palcos do Brasil, em 1968, o regime dos milicos não só mandava proibir, mas fazia vista grossa ou apoio implícito a grupos paramilitares que utilizavam-se da força bruta para silenciar artistas. A canção Roda Viva, de Chico Buarque, composta em 1967, “ganhou nova conotação política ao subir aos palcos em 1968 na peça homônima. O protagonista – um cantor popular chamado Benedito Silva, logo transformado em Ben Silver – era obrigado a mudar constantemente de personalidade para sobreviver na selva dos espetáculos.

A montagem inovadora de Zé Celso provocou muita polêmica. A peça estreou no início de 1968 no Rio. Meses depois chegou a São Paulo. Na noite de 17 de Julho, o Teatro Ruth Escobar, onde a peça era encenada, foi invadido pelo CCC, organização terrorista de extrema-direita. Os agressores destruíram cenários e espancaram atores e técnicos. Chico Buarque, mais tarde, levantou a hipótese de que o CCC, ao atacar Roda Viva, teria errado de alvo. Seu objetivo seria atingir o espetáculo Feira Paulista de Opinião, dirigido por Augusto Boal, apresentado em outra sala do mesmo teatro. Numa das cenas, um capacete militar era usado como penico, o que teria despertado a ira dos terroristas.

Chico Buarque e MPB4: “Roda Viva”

Se o CCC errou de alvo em São Paulo, insistiu no erro em Porto Alegre. No início de outubro, o grupo de extrema-direita atacou o Teatro Leopoldina, onde a peça estava sendo apresentada na capital do Rio Grande do Sul. Atores e atrizes foram agredidos e depois enfiados num ônibus, com ordens expressas para não voltar a pisar em terras gaúchas. O espetáculo, é claro, saiu imediatamente de cartaz.

A violência contra Roda Viva não era um fato isolado – e sim mais um episódio na escalada de violência protagonizada pelo CCC contra estudantes, artistas e intelectuais de oposição. Bombas foram jogadas no Teatro Opinião, na Associação Brasileira de Imprensa, no Correio da Manhã e na editora Civilização Brasileira. Também em outubro, membros do CCC, infiltrados entre os estudantes de direita da Universidade Mackenzie, atacaram a tiros a Faculdade de Filosofia da USO, onde funcionava a União Estadual de Estudantes. Na chamada Batalha da (Rua) Maria Antônia, foi morto com um tiro na cabeça o secundarista José Guimarães, de 20 anos, que defendia a Filosofia.

Trailer do documentário de Renato Tapajós

Atuando em estreita dobradinha com os órgãos de repressão e multiplicando suas ações, o CCC ajudou a preparar o clima para a instauração da ditadura terrorista aberta que viria ao mundo com a edição do AI-5, em 13 de Dezembro de 1968. Mas o CCC não passava de uma linha auxiliar, um grupo de paus-mandados. Era no núcleo do regime militar, cada dia mais dominado pela linha-dura, que o coração da violência batia forte e marcava o ritmo da radicalização.

No segundo semestre, o país assistiu a uma escalada de arbitrariedades e provocações, que desembocaria no AI-5. Em agosto, a UnB foi invadida por tropas. Em outubro, a polícia prendeu cerca de 700 líderes estudantis no XXX Congresso da UNE, em Ibiúna (SP). Em todo o país, os estudantes saíram às ruas pedindo a libertação de seus dirigentes. No Rio, uma manifestação em frente à Faculdade de Ciências Médicas foi dissolvida à bala. Na ação da polícia, o estudante de medicina Luiz Paulo Nunes morreu com um tiro na cabeça.” (Martins, p. 96)

Não há dúvida de que no turbilhão de 1968, artistas fizeram história com sua participação política e com suas canções engajadas (acima, Chico Buarque e Gilberto Gil marcam presença na Passeata dos 100 Mil… 50 anos depois, estariam novamente reunidos no showmício Lula Livre, nos Arcos da Lapa/RJ, que reuniu mais de 50 mil pessoas).

Muito antes do AI-5 ser promulgado em Dezembro, a brutalidade dos milicos já havia se tornado explícita – e o mês de Junho não nos deixa mentir. Na chamada Sexta-Feira Sangrenta, 28 estudantes e trabalhadores foram assassinados nos conflitos de rua entre manifestantes e policiais; centenas de pessoas ficaram feridas; pelo menos 15 viaturas foram incendiadas. Foi esse massacre perpetrado pelos militares que gerou a onda de comoção que culminaria na Passeata dos 100 Mil, quando a maré de participação cívica intimidou a repressão, que permitiu a manifestação sem dissolvê-la no porrete e na escopeta como era de praxe.

Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, também conhecida como Caminhando e Cantando, foi composta em meio a esta tormenta e tornou-se uma das canções mais significativas da história da MPB. Estreou em Setembro no III FIC, onde acabou derrotada por “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque, “o que valeu sonoras vaias ao júri. Ao subir ao palco para receber a medalha de prata, Vandré foi saudado aos gritos de “é marmelada”. (…) Em dezembro, quando o AI-5 desabou sobre o Brasil, o compositor teria de deixar o país e partir para o exílio.” (Martins, p. 93)

Que esta canção tão emblemática não tenha vencido o III FIC, apesar do imenso sucesso de público (estava, literalmente, na boca do povo), revela também que as músicas politizadas e engajadas, consideradas pela ditadura como panfletos subversivos e estopins para agitação transgressora, estavam longe de ser unanimidade. O status quo preferia laurear canções mais inofensivas, como “Sabiá”, e compositores como Luiz Gonzaga chegaram a compor canções de protesto contra as canções de protesto (a postura um tanto pró-milico do Rei do Baião é, aliás, uma das muitas razões de atrito entre pai e filho reveladas no filme de Breno Silveira sobre Gonzagão e Gonzaguinha).

Luiz Gonzaga: “Canto Sem Protesto”

Geraldo Vandré: “Caminhando” (Para Não Dizer Que Não Falei De Flores)

Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Pelos campos há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição
De morrer pela pátria
E viver sem razão

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Somos todos soldados
Armados ou não
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não

Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
Uma nova lição

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

1968 termina com uma brutalização da ditadura, o triunfo da linha-dura, a fúria impiedosa do AI-5 (que duraria entre 1968 e 1978): “o Congresso foi fechado por tempo indeterminado. Nas semanas seguintes, foram cassados os mandatos de 55 deputados e 6 senadores. Três ministros do STF foram afastados e perderam seus direitos políticos. Deixou de existir habeas corpus no Brasil. Uma enorme soma de poderes foi concentrada nas mãos do presidente da República. Milhares de opositores foram presos: estudantes, intelectuais, trabalhadores, parlamentares, religiosos, juízes. Para evitar prisões e maus-tratos, muitos foram obrigados a passar para a clandestinidade. Outros buscaram o exílio.

A partir daí, durante os 10 anos seguintes, o Brasil viveria sob o terrorismo de Estado. Abertas as jaulas, os tigres saíram à caça, com passe livre para prender, perseguir, torturar e matar. Todo aquele que não concordasse com as ideias do regime era encarado como uma ameaça à segurança nacional.” (Martins, p. 102)

Logo após a decretação do AI-5, Caetano e GIl são presos. Tiveram seus cabelos raspados. No xilindró, Gil ouvia os soldados se saudarem com a expressão “aquele abraço”, bordão muito popular na época. Após algumas semanas em cana, receberam autorização para deixar o país e se prepararam para rumar na direção de Londres. A canção de Gil é uma “despedida do Brasil”, escreve Martins, e “a primeira das canções de exílio depois do AI-5, escrita ainda terras brasileiras – um sinal de que por um bom tempo nosso povo viveria exilado em seu próprio país. Em meio ao clima de caça às bruxas – o regime via subversivos por toda parte – muitos compositores e cantores, além de Gil e Caetano, partiram para o exterior.” (Martins, p. 102)

Mas não há tirania que dê conta de calar no peito humano a ânsia pela liberdade. Não há ditadura que tenha tanques e tropas suficientes para que impeça um povo de celebrar os “Heróis da Liberdade”, como ocorreu no primeiro carnaval após o AI-5. O samba-enredo da Império Serrano, maior sucesso na avenida no Carnaval de 1969, “foi cantado pelo povo como um hino contra a ditadura militar.”

Dias antes do desfile, a censura da Ditadura Militar havia proibido terminantemente que a letra mencionasse a palavra “Revolução”. Os milicos exigiram que ela fosse substituída por “Evolução”. “Fechado o acordo, o samba foi para a avenida, onde o povo, a plenos pulmões, botou tudo nos devidos lugares e cantou revolução ao invés de evolução.” (Martins, p. 105)

Passava a noite, vinha dia
O sangue do negro corria
Dia a dia
De lamento em lamento
De agonia em agonia
Ele pedia
O fim da tirania
Lá em Vila Rica
Junto ao Largo da Bica
Local da opressão
A fiel maçonaria
Com sabedoria
Deu sua decisão lá, rá, rá
Com flores e alegria veio a abolição
A Independência laureando o seu brasão
Ao longe soldados e tambores
Alunos e professores
Acompanhados de clarim
Cantavam assim:
Já raiou a liberdade
A liberdade já raiou
Esta brisa que ajuventude afaga
Esta chama que o ódio não apaga pelo Universo
É a evolução em sua legítima razão
Samba, oh samba
Tem a sua primazia
De gozar da felicidade
Samba, meu samba
Presta esta homenagem
Aos “Heróis da Liberdade”

Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

 

 

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

MARTINS, FranklinQuem Foi Que Inventou o Brasil, vol. 2, Ed. Nova Fronteira, 2015.

RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro. Ed. Unesp, 2016.

VALLE, Maria Ribeiro do. 1968 – O Diálogo é a Violência – Movimento Estudantil e Ditadura Militar no Brasil. 2ª ed., Editora UNICAMP, 2016.

 

TROPICÁLIA: 50 anos de um movimento estético e político que catalisa as confluências

TROPICÁLIA: 50 anos de um movimento estético e político que catalisa as confluências

“Como todo movimento explosivo”, opina Luiz Tatit (oficial), “o tropicalismo deixou estilhaços em diversos lugares da cultura brasileira e, à medida que o tempo passa, descobrem-se fragmentos que ainda fervilham e geram novos focos de criação de alguma forma tributários daquele final dos anos 60.”

Cerca de meio século depois de ser “abatida em pleno vôo pelo AI-5”, como diz Tárik de Souza, a Tropicália faz por merecer um destino de Fênix, renascendo das cinzas. A chama ainda ardente da Tropicália inspira a nós do Confluências: Festival de Artes Integradas a dar novos impulsos às práticas e valores da trupe que revolucionou estética e política no Brasil que então gemia sob os tanques e torturas que se seguiram ao golpe militar de 1964 e suas “tenebrosas transações”.

Acreditamos que a Tropicália, apesar de ser compreendida pelo senso comum como um movimento musical, transborda das fronteiras da música e expressa-se através de variadas linguagens artísticas, tendo intenções mais amplas do que uma mera inovação das formas musicais. A Tropicália propunha a renovação da vida através das confluências sem medo de elementos aparentemente díspares, mas que a trupe provou serem deliciosamente mescláveis. Propunha que fôssemos todos Os Mutantes, jamais estagnados.

Na capa do disco manifesto “Tropicalia ou Panis et Circenses” (ouça: https://youtu.be/KIiwbHqtb7w), é explícita a confluência entre a cultura popular (de que Tom Zé e Gilberto Gil eram tão inventivos representantes) e a cultura mais erudita (ali representada pelo maestro Rogério Duprat, que parece tomar chá em um penico que remete à obra de MARCEL DUCHAMP). Ali também está clara a confluência entre a literatura e a música, com a presença do poeta e jornalista Torquato Neto (também um dos mais brilhantes letristas de nossa MPB) e do poeta José Carlos Capinam (representado em fotografia emoldurada que seu parceiro Gil carrega como porta-estandarte).

As confluências não param de proliferar na história da constituição da Tropicália: o nome do movimento vem do ramo das artes plásticas, era o nome de batismo de uma instalação bolada em 1967 por Hélio Oiticica, o célebre inventor dos parangolés e divulgador de motes vanguardistas como “incorporo a revolta” e “seja marginal, seja herói”.

Parangolé de Oiticica

Caetano e Nara na companhia dos Beatles (faltou cola e Paul McCartney ficou fora da parede…)

Quando Caetano Veloso criar a canção “Tropicália”, fará isto não só sob a influência de Hélio Oiticica e seus parangolés, mas tremendamente impactado também pelo cinema de Glauber Rocha – que havia realizado, aos 23 anos de idade, a obra-prima “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, e que na época de eclosão tropicalista havia lançado ao mundo seu desnorteante “Terra em Transe”. Pouco tempo depois de finalizar a composição da música, relembra Caetano, ele foi assistir a outro fenômeno descomunal da cultura brasileira da época: “O Rei da Vela”, peça de Oswald de Andrade encenada pelo Teatro Oficina Uzyna Uzona de Zé Celso Martinez Corrêa.

A devoração antropofágica da diversidade cultural é um dos motes dos artistas Tropicalistas que, segundo Celso Favaretto em seu livro “Tropicália: Alegoria Alegria”, “retém do primitivismo antropofágico a concepção cultural sincrética, o aspecto de pesquisa de técnicas de expressão, o humor corrosivo, a atitude anárquica com relação aos valores burgueses” (pg. 57).

No livro Antropofagia e Tropicalismo, publicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e que me foi recomendado pela Salma Jô e pelo Macloys do Carne Doce, o artigo inaugural de Bina Friedman relembra que o próprio movimento antropofágico já era pura confluência. Confluências múltiplas entre Oswald e Tarsila, por exemplo, por razões tanto óbvias – a transa sexual-criativa do casal – quanto outras menos evidentes – entre o Manifesto Antropófago e o Abaporu (1928):

“Inspirado no quadro de Tarsila do Amaral – que aliás teria detonado a idéia do Manifesto Antropófago e que a artista reproduziu em bico de pena para ilustrar o primeiro número da Revista de Antropofagia, Oswald funda, cunha, teoriza e consagra na literatura modernista o tema e o tratamento da Antropofagia. (…) A devoração do bispo Sardinha, aproveitada por Oswald como metáfora, propõe, em irreverência e ironia, um novo calendário nacional: a história brasileira deveria iniciar a partir de uma data que sugeria uma reação dessacralizante com o poder… O episódio do bispo Sardinha é marotamente aproveitado por Oswald como data do Manifesto Antropófago (“Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”). Devorado em 1554 por índios antropófagos quando o navio em que viajava naufragou na costa brasileira, o Bispo Sardinha do texto alude ironicamente à história do Brasil Colônia. O Manifesto rende, com o chiste, uma ‘homenagem’ carnavalizada a todos que, na pessoa do bispo, deveriam ser comidos.” (FRIEDMAN: 1993, p. 9, 10)

Bebendo na fonte da utopia antropofágica oswaldiana, do Cinema Novo, do dionisismo teatral do Oficina, da Poesia Concreta, da “geléia geral brasileira” de que falou Décio Pignatari, a Tropicália explode em 1967 no cenário artístico como algo que chuta para escanteio a mesmice, a caretice e a zona de conforto. Bagunça com a polarização entre Jovem Guarda e MPB, subverte os códigos transformados em clichê que caracterizaram seja o iê-iê-iê, seja a canção-de-protesto engajada.

Muitos dos episódios lendários desta empreitada estão descritos por Carlos Calado em seu Tropicália – A História de Uma Revolução Musical (Editora 34). O mesmo autor, pela mesma editora, também publicou o seminal estudo biográfico sobre Os Mutantes – A Divina Comédia dos Mutantes. 

Frederico Coelho tem um excelente livro que nos ajuda a expandir os horizontes sobre o tal do Tropicalismo (termo cunhado pelo jornalista cariosa Nelson Motta): “Eu, Brasileiro, Confesso Minha Culpa e Meu Pecado – Cultura Marginal no Brasil das Décadas de 1960 e 1970” (Civilização Brasileira & Paz e Terra, 2010, 335 pgs). Nele, Coelho defende que, a partir de 1967, o “movimento apresentou posturas e práticas que liberavam o artista e o intelectual do compromisso de obrigatoriamente relacionar sua obra a uma ‘cultura nacional’ ou a um ‘povo’. Suas ações abalaram a crença necessária desses segmentos no nacional-desenvolvimentismo de esquerda e colocaram em xeque seu temor xenófobo do ‘imperialismo estrangeiro’, assumindo uma nova forma de inserção desses agentes no mercado de bens culturais” (p. 111).

Embora a música popular brasileira seja o “epicentro” de eclosão do tropicalismo, Coelho argumenta que o tropicalismo foi “um movimento cultural mais amplo e diretamente conectado à emergência, pós AI-5, do que chama de marginália, que aproveita-se de aberturas e rupturas estabelecidas pelos artistas durante a breve aventura da Tropicália. “Mais do que um movimento musical, o tropicalismo representou um novo elemento em um espaço de ação que já estava ficando imobilizado pela díade engajados / alienados.” (p. 112) Abrindo espaços para a renovação da cultura brasileira, Tropicália e Marginália transbordam de qualquer caixa de categorização de diversos setores artísticos: Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Torquato Neto, todos eles são artistas do híbrido, da mescla, da confluência entre vertentes, sempre “desafinando o coro dos contentes” (para lembrar verso inolvidável de Torquato, musicado por Jards Macalé em “Let’s Play That”).

Se em 1967 a Tropicália pôde explodir no cenário através da exuberância de “Alegria, Alegria” ou de “Domingo no Parque”, em 1968 a situação torna-se mais escura, tensa, violenta. Glauber filma Câncer enquanto a barra pesada do aprisionamento, da tortura e do exílio se abate sobre boa parte dos artistas mais relevantes do país. A mordaça do regime de exceção instalado através da violência militar truculenta busca abater em pleno vôo a ave demasiado águia da Tropicália. É preciso calar a ferro e fogo esses arruaceiros que dizem seja marginal, seja herói e celebram heróis perigosos como Ernesto Che Guevara ou Carlos Marighella.

“Temas como banditismo, armas de fogo, enfrentamentos armados entre policiais e estudantes, desagregação de valores da classe média brasileira, grupos marginalizados da sociedade, entre outros, passam a fazer parte do universo temático das canções tropicalistas a partir da segunda metade de 1968. Canções como “Enquanto Seu Lobo Não Vem” (Caetano Veloso), “Divino Maravilhoso” (Caetano e Gilberto Gil), “É Proibido Proibir” (Caetano), “Marginália II” (Torquato e Gil) ou “Deus vos salve esta casa santa” (Torquato e Caetano) eram emblemáticas para esse momento de radicalização. São canções que tratam de ‘bombas’ e de ‘botas’, de não ter tempo para ‘temer a morte’, das pichações dos jovens de maio de 1968 em Paris, de ‘pânico e glória’ e de ‘laço e cadeia’.” (COELHO, p. 116)


Levando adiante os ideais tropicalistas que convidam à miscigenação, ao hibridismo, à mistura de linguagens e à proliferação de pontos-de-vista, organizamos a Mostra Audiovisual em homenagem aos 50 Anos da Tropicália e disponibilizaremos vários dos livros importantes na decifração desta jornada.

Nesta 5ª edição do Confluências, na medida do possível, cientes da limitação espaço-temporal de um evento de apenas dia – autêntico “Domingo no Parque” (que, de preferência, termine sem crime de sangue!) – queremos contribuir para colocar mais lenha na fogueira dos debates públicos sobre a importância da Tropicália na história, no presente e no futuro da Cultura brasileira.



Mostra audiovisual celebrando os 50 anos da Tropicalia ou Panis et Circencis: assista documentários e filmes de ficção lendários:

► [14h às 15h30] “Meteorango Kid: O Herói Intergalático” (1969), de André Luiz Oliveira;

► [15h45 às 17h15] “Uma Noite em 67” (2010, 95 min), de Renato Terra e Ricardo Calil, dentre outros.

► [17h30 às 19h] “Tropicália” (2012, 87 min.), de Marcelo Machado;

► [19h15 às 20h30] “Futuro do Pretérito: Tropicalismo Now!” (2011, 76 min), de Ninho Moraes e Francisco Cesar Filho



LIVROS TROPICALISTAS – SELEÇÃO ESPECIAL


* Feirão de livros da Livraria A Casa de Vidro, em especial obras focadas nas Artes – cinema, música, teatro, além de biografias de grandes artistas e personalidades culturais. Selecionamos também um punhado de excelentes livros, que estarão à venda durante o evento, que estão entre as mais importantes obras já escritas no Brasil sobre o tema, tais como:

► “Tropicália: Alegoria Alegria”, de Celso Favaretto

► “Brutalidade Jardim”, de Christopher Dunn

► “Tropicália: A História de uma Revolução Musical”, de Carlos Calado

► “Torquatália: Geléia Geral”, de Torquato Neto

► “Hélio Oiticica: A Asa Branca do Êxtase”, de Gonzalo Aguilar

► “A Biografia de Torquato Neto”, de Toninho Vaz

► “Oiticica: Qual É O Parangolé?”, de Waly Salomão

Dentre outros!

* * * * *

SE LIGUE: CONFLUÊNCIAS #5: TROPICALIÊNCIAS
DOMINGO, 24 de Setembro de 2017, a partir das 14h.
Na Trip – Música e Artes: Rua 115e, Setor Sul, Goiânia.
Ingressos: R$5 até às 17h, R$10 reais a partir das 17h.

PROGRAMAÇÃO COMPLETA E OUTRAS INFORMAÇÕES: https://acasadevidro.com/2017/09/20/confluencias-festival-de-artes-integradas-5a-edicao-24-de-setembro-na-trip-em-goiania/

DISCOS ESSENCIAIS NA HISTÓRIA DA TROPICÁLIA

SIGA: CONFLUÊNCIASA CASA DE VIDRO

A CAVERNA – ALEGORIA FECUNDA: Da pena de Platão à era dos memes, as mutações de um mito filosófico

A Alegoria da Caverna, exposta por Sócrates no Livro VII do diálogo “A República” de Platão (leia a transcrição), é uma das mais fecundas invenções filosóficas que já vieram à luz, pela História afora.

Ela continua eficaz em inspirar inúmeros comentários, interpretações, releituras, adaptações e debates: marca presença em filmes (como “Matrix”, dos Wachowski, ou “Truman Show”, de Peter Weir) e romances (como “A Caverna” de Saramago), tirinhas da cultura pop e palestras acadêmicas, memes viralizantes e artigos no Medium (com o perdão da auto-referência explícita)…

O legado “cavernístico”, sua fortuna crítica, suas diferentes versões, é um espanto de tão gigante, vasto e multiforme. Até mesmo as polarizações políticas brasileiras acabam raptando o célebre mito, subvertido e reconfigurado memeticamente em imagens que têm sua graça e seu charme:

 

 ALEGORIA DA CAVERNA adentrando a ERA DOS MEMES

Neste grupo dos “rebentos” mais recentes do mito, podemos também mencionar os quadrinhos de Maurício de Sousa — que aborda o tema em uma das historinhas protagonizadas pelo Pithecanthropus Erectus da Silva, ou melhor, o Piteco.

O personagem pré-histórico da Turma da Mônica é o responsável, neste caso, por uma intervenção pedagógica na caverna: adentra o recinto, alertando aqueles que estavam fascinados pelas sombras dançantes no muro de que lá fora é que, de fato, estava pulsando a verdadeira vida, sob a fulgurância dos raios de Sol.

Quando o pessoal vibra diante da sombra de uma mulher, Piteco lhes garante: “vocês deviam admirar é a dona desta sombra!” Um pedagogo platônico, ainda que um tanto fanfarrão? Ou um professor de empirismo, que rompe com o platonismo e manda procurar a coisa concreta ao invés de sua mera representação?

Estes quadrinhos ignoram a primeira parte da alegoria, em que um daqueles que estava acorrentado consegue libertar-se e sai pela primeira vez da obscuridade cavernosa rumo ao mundo iluminado pelo Sol. É como se Maurício de Souza desse o start em sua historieta já no momento onde o personagem que libertou-se decide retornar à Caverna, para contar a boa-nova aos que lá ficaram, abestalhados diante do precursor da alienação televisiva.

Quando, no final da HQ, a TV faz sua aparição, o comentário irônico é bem claro: seguimos preferindo as imagens às coisas, as sombras aos entes concretos, as mentiras televisionadas às verdades da carne. Uma leitura que pode aproximar o Peteco de uma visão “Black Mirror” sobre a atualidade, mas que certamente o afastam um pouco do sentido original transmitido pela parábola socrática.

No caso da lenda narrada por Sócrates, aquilo que fascina com sedução falseadora os acorrentados na Caverna é o mundo empírico — tudo o que cotidianamente vemos com nossos olhos, escutamos com nossos ouvidos, cheiramos com nossos narizes, tocamos com nossa pele, tudo isto não passaria de ilusão, sombra, reflexo.

Originalmente, a parábola quer instaurar uma espécie de condenação da credulidade humana diante dos dados sensíveis, afirma que há uma Verdade que se esconde para além do sensível, uma Verdade só acessível à alma humana capaz de suficiente ascetismo para ascender até ela…

A Verdade, sim, está longe das imagens — como sugerem tanto a HQ do Piteco, quanto a tirinha à la Black Mirror em que o Armandinho, em plena era dos celulares, diz que “vivemos no tempo das cavernas… vivemos na caverna de Platão!” — mas no caso de Sócrates a Verdade não está nas coisas, as “donas” das sombras, os corpos carnais cujos reflexos se projetam na parede, mas sim algo muito mais ideal, impalpável: os ideais eternos, os paradigmas incorruptíveis, eternamente em morada celeste.

O mais temerário de tudo, na teoria platônica, é a suposição de que os paradigmas eternos precedem no tempo as coisas tal como aparecem na empiria. O espiritual precedeu o material — tese platônica que, História afora, será perpetuamente contestada pela escola Materialista (de Demócrito, Epicuro e Lucrécio, na Antiguidade, a Holbach, Diderot e Marx na Modernidade…)

O Sol, similarmente, não é exatamente a estrela que aparece-nos à visão como bola-de-fogo, irradiante de calor e luz, sensível à nossa pele, estarrecedora para nossas retinas, mas muito mais um símbolo: o sol platônico representa a verdade do mundo inteligível, aquele que só podemos acessar “pelo pensamento”, domínio acessível somente à alma e não ao corpo.

Longe, pois, de convidar-nos a abraçar tudo que é de carne-e-osso, tudo o que é carnal e pulsante de vida, a alegoria da Caverna convida ao ascetismo, ao racionalismo mortificador do corpo. Ao menos esta seria a interpretação mais coerente com o conjunto da doutrina filosófica hoje conhecida como idealismo, e que teve em Sócrates, em especial em sua expressão através da pena platônica, um de seus mais importantes plasmadores, forjadores, inventores.

O mito cai no mundo e não se pode controlar as interpretações dele: longe de respeitar a ortodoxia platônica, muitos artistas realizaram leituras heterodoxas da alegoria da Caverna — e a historinha do Piteco é uma delas. No cinema, o sci-fi “Matrix” (1999), dos Wachowski, que marcou época em fins de século, pretende lançar o mito para um cenário futurista e apocalíptico, em que após a rebelião das máquinas a Humanidade está sob a opressão de uma escravidão nova, condenados quase todos a uma Neo-Caverna cibernética, uma ilusão colocada diante de nossos olhos para nos cegar da verdade…

“Matrix” recupera muitos elementos da mitologia e da filosofia da Antiguidade, inclusive ingredientes pré-socráticos, e inclusive pré-filosóficos: inspira-se em certas vertentes da espiritualidade grega que estavam presentes desde muito antes da aurora da Filosofia em VI a.C. com os primeiros cosmologistas da Jônia (Tales, Anaximandro etc.). O personagem de Neo (vivido por Keanu Reeves) realiza algo análogo a uma peregrinação rumo ao Oráculo de Delfos em uma cena em que adentra a moradia oracular lendo uma inscrição, em latim, que recomenda: “conhece-te a ti mesmo”.

Neo, logo se vê, é um Sócrates pós-moderno. Quando consulta o oráculo, não está ainda cheio-de-si, arrogante, presunçoso, como depois se tornará — também à imagem e semelhança de Sócrates — quando estiver mais crédulo em seu status de Messias. A Caverna platônica e a Matrix cinematográfica envolvem ambas a noção de um Messias, um Salvador, um Libertador, o Cara Que É O Tal. E é necessário criticar os heróis construídos para nosso fascínio (e nosso consumo) — e isso deve valer tanto pra Neo quanto para o herói da alegoria (na verdade, uma figura através da qual Sócrates realiza um narcísico auto-elogio).

Neo é o “eleito” para salvar a Humanidade da Matrix assim como Sócrates havia sido eleito por Apolo — o próprio oráculo délfico o referenda!- para a missão divina que desenhava em Atenas através da práxis filosófica. O herói, aqui, através de suas peripécias deixa emanar de seu exemplo uma “moral da história” que convida, e nos confina, no individualismo: o indivíduo especial, extra-ordinário, com dons fora do comum, irá salvar-nos a todos, virá resgatar-nos de nossa estupidez, nossa ignorância, nossa violência, nosso caos social. A salvação coletiva é produto de um indíviduo salvador. O que conduz à subserviência aos ídolos que são os grandes líderes, fabrica o perigoso e fecundo em atrocidades “Complexo do Messias”.

O que hoje conhecemos por Platonismo, algo que plasmou-se tendo “A República” como um dos textos mais essenciais, pode ser lido por seus efeitos sócio-políticos, pelo tipo de ethos que recomenda, pelas consequências que traz para as relações humanas inter-subjetivas e políticas. A explícita recomendação de que o governante supremo, soberano, deve ser um filósofo-rei, faz com que se acendam os alertas: Sócrates, no texto platônico, pretende instaurar uma espécie de monarquia aristocrática onde o poder político está concentrado naquele que é “mais sábio”. Ora, cara pálida, mais sábio no juízo, no julgamento de quem?!? Quais são os critérios que nos farão definir quem é o detentor-mor de “sophia”, sendo portanto o mais legítimo dos governantes?

Naturalmente, a resposta é: o filósofo-rei é aquele que tem todas as qualidades de Sócrates. Deve reinar aquele que tem a alma mais forte que o corpo; aquele que sabe reprimir seus ímpetos sexuais e sensuais; aquele que tem o auto-controle, a moderação, a prudência, a razão controladora dos afetos; aquele que é cavaleiro firme, que doma o corcel desordenado da paixão.

Acima de tudo, deve reinar aquele que sabe da hierarquia verdadeira entre a empiria (os dados sensíveis) e o intelecto (a razão descarnada) — o filósofo-rei é, à semelhança da figura que libertou-se da Caverna, aquele que sabe que a empiria é mentira, que só o intelecto tem acesso à verdade, e que a Verdade assim desvelada (os gregos falarão de “alethéia”, desvelamento do oculto) precisa ser ensinada aos enganados. O filósofo-messias, dono da verdade, senhor das paixões, faz-se tirano esclarecido, praticando em seguida a mais totalitária das “ortopedias”: ensina seus súditos que só há uma verdade, a sua, e que serão alçados à força para fora de seu chafurdamento vergonhoso na sensualidade empírica, antro apenas de engano e depravação…

Não está longe a tirania do puritanismo que grassará pela Idade Média afora; e encontraríamos aí, no Sócrates de Platão em “A República”, o protótipo do messias autoritário, cuja condenação à morte é um sintoma do quanto incomodava as autoridades com seus acólitos e discípulos fanatizados, ensinados na escola da intolerância que só os puros se salvarão…

Hannah Arendt afirma que precisou escrever “As Origens do Totalitarismo” pois, na História pregressa, não encontrou, por exemplo nas classificações que a filosofia política greco-romana propôs para os diferentes regimes de governo, nada que se assemelhasse aos sistemas políticos surgidos sob a Alemanha nazista (o III Reich) ou na fase stalinista da URSS. Poderíamos retrucar, provocativamente, que apesar de não ser adjetivada ainda com este termo “totalitário”, “A República” de Platão é aquilo que mais se aproxima, na Antiguidade, de descrever tal regime político…

É interessante o que Arendt diz, em conversa com Octavio Paz, reproduzida no livro “A Duas Vozes” (Org: Eduardo Jardim), em que ela reflete sobre a relação dos filósofos com a política:

“Os filósofos levaram a política muito a sério, e nem poderia ter sido de outra forma, pois foram motivos políticos que justificaram a condenação de Sócrates. Um ensaio de Heidegger — A Doutrina de Platão sobre a verdade  (saiba mais) — apresenta uma proposta de interpretação da conhecida alegoria da caverna… Ela descreve o percurso do personagem que representa a alma, em dois sentidos: do interior da caverna, onde se encontrava aprisionado, em um movimento ascendente, até a contemplação do sol — o bem ou a verdade suprema — e, em seguida, em sentido descendente, do ambiente iluminado do exterior da caverna até o seu interior, para libertar os que ficaram.

Heidegger observa que estão presentes neste relato duas expressões para designar a verdade. A primeira — “alethéia” ou desvelamento — tem a ver com o modo como tradicionalmente a verdade era concebida: associada a um procedimento por meio do qual algo é arrancado da ocultação e é trazido à luz. O termo aparece na descrição do percurso ascendente do personagem, em sua ânsia por contemplar o brilho das idéias, sobretudo da mais perfeita — a do bem, representada pelo sol.

Uma segunda forma de designar a verdade é, em seguida, mencionada, ao se descrever o percurso descendente do personagem de volta ao interior da caverna… Nesse momento, a verdade não motiva mais uma experiência de contemplação estética, como ocorrera anteriormente. Agora, a idéia é tomada como um padrão cujo significado é idêntido ao do modelo percebido pelo artesão ao iniciar a execução do seu trabalho. O termo “alethéia” desaparece. Em seu lugar, o texto faz menção a “orthótes”, que quer dizer correção, indicando desse modo que o acesso à verdade depende, agora, da posição correta do olhar na direção do modelo ideal…” (HANNAH ARENDT, conversa com Octavio Paz, pg. 58–59)

O que incomoda-me, preocupa-me, irrita-me, ou mesmo revolta-me, é que a alegoria propõe que a salvação dos acorrentados não é obra dos próprios, quebrando suas correntes de alienação, mas é obra de um salvador exterior, do messias “descendente”, aquele que porta-se como “dono da verdade” e que liberta os outros à fórceps (um pouco como os EUA levando a Democracia e a Liberdade para o Iraque e o Afeganistão, hoje em dia?).

Esta “liberdade” que o herói socrático-platônico propõe é fiel a um ideal ético-político baseada no racionalismo, no puritanismo, numa vida de ascese anti-corpórea, anti-sensual, anti-gozo, que com frequência degenera numa tirania dos que se julgam os melhores. É possível propor uma política, baseada numa certa interpretação do mito socrático-platônico, que parece uma aristocracia totalitária, que deseja impor à totalidade da sociedade os seus parâmetros de comportamento e de vida — aqueles que não se corrigirem, que não se adequarem, que não se conformarem, poderão e deverão ser excluídos do convívio social, mandados ao exílio, ou, quem sabe, como farão alguns no século XX, enviados aos campos de extermínio…

Longe de propor a auto-superação ou mesmo a auto-revolução dos encavernados, que por suas próprias forças romperiam sua ingenuidade e alçariam sua consciência ao patamar superior da consciência crítica, como seria possível numa re-leitura Marxizante ou Paulo Freirezante do mito, o que ocorre em Platão é propaganda reacionária: as massas, as maiorias, os meros mortais, estão na mentira. O filósofo-rei — puritano, racionalista, ascético, capaz de ir ao céu da verdade e voltar para forjar os outros, por ortopedia, em obediência a ela! — não passa de um aristocrata mandão, crédulo demais na sua própria via e na sua posse da verdade, a ponto de torna-se o impositor de um ethos específico à imensa diversidade humana.

Ao arco-íris do desejo, de que fala Boal, ele impõe o preto-e-branco, o 8 ou 80, de seu dualismo maniqueísta (a alma vale tudo, o corpo não vale nada…) Nasce daí um tiranete, enfim, o governante despótico de um idealismo tirânico, que expulsa poetas, condena desviantes, estigmatiza diferenças e já conheça a acender as chamas de futuras Inquisições e Expurgos…

A alguns pode parecer chocante, impertinente, excessivamente vândala, a atitude de acusar o Sócrates platônico de ser um precursor do totalitarismo, quando tantos o celebram, por seus diálogos intensamente animados pelo debate inter-subjetivo, como precursor da democracia. A verdade é que Sócrates é complexo e multifacetado demais para que nele algum rótulo cole a contento. E a verdade é que Platão é um escritor, um poeta e um dramaturgo genial demais para que seja possível crer que de fato existe algo como “o platonismo”, como doutrina fechada. Aliás, Platão ama ocultar-se. O papel protagônico é todo de Sócrates em sua obra filosófica-dramatúrgica. O texto de Platão, as falas de Sócrates, a vivacidade destes diálogos e desta dramaturgia, transborda todas as represas — é um oceano, imenso, fecundo. Há ainda futuro para o mito mutante da Caverna.

O que apenas desejo enfatizar com estas mal-traçadas críticas — e nisto sinto-me acompanhado, e muito bem-acompanhado, por figuras como André Comte-Sponville (O Mito de Ícaro) e Oswald de Andrade (A Utopia Antropofágica) — que o dito platonismo, que o legado do pensamento socrático, que o próprio mito da caverna, são fecundos também em perigos, inclusive e sobretudo aquele de uma certa “apropriação totalitária” deste mito.

* * * *

Por Eduardo Carli de Moraes
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THE TRUMAN SHOW – O SHOW DA VIDA, um filme de Peter Weir (1998)

NA LIVRARIA A CASA DE VIDRO: Obra poética reunida de Ana Cristina César (1952-1983), Companhia das Letras, 2016, 4ª Edição, Posfácio de Viviana Bosi

“Conheces a cabra-cega dos corações miseráveis?”
Ana Cristina César em “Sexta-Feira da Paixão”,
poema do livro A Teus Pés [1982], 2016, p. 111.

[Comprar Poética – Cia das Letras, 2016 @ Livraria A Casa de Vidro]

Homenageada da FLIP 2016, “expoente da literatura marginal brasileira nos anos 70” e “ícone literário de sua geração” (para citar o El País Brasil), Ana Cristina César renasce das cinzas neste livro-antologia, Poética (Cia das Letras, 2013). Lançado 30 anos após seu suicídio, em 1983, quando tinha vivido apenas 31 anos, Poética reúne toda a produção de poesia e prosa da Ana C., incluindo também aos desenhos de próprio punho e alguns facsímiles de seus manuscritos. O livro traz posfácio da professora Viviana Bosi (a filha de Ecléa e Alfredo Bosi), da FFLCH/USP, além de apresentação por Armando Freitas Filho e vários textos anexos, de resenhas publicadas nos jornais sobre seus livros a ensaios de análise biográfica e estética.

Através deste livro, mergulhe a fundo na obra desta poetisa nascida no Rio de Janeiro, em 1952, que formou-se em Letras pela PUC-Rio e depois tornou-se mestre em dose dupla: fez mestrado em comunicação social pela UFRJ e em teoria e prática da tradução literária pela Universidade de Essex (Inglaterra) – onde realizou elogiados trabalhos traduzindo, por exemplo, Bliss de sua adorada Katherine Mansfield (1888-1923). Em 1975, Ana Cristina César despontou integrando a antologia 26 Poetas Hoje (1975), compilada por Heloísa Buarque de Hollanda.

COMPRE "26 POETAS HOJE"

COMPRE “26 POETAS HOJE”. Participaram da antologia os poetas:  Poetas: Francisco Alvim, Carlos Saldanha, Antônio Carlos de Brito, Roberto Piva, Torquato Neto, José Carlos Capinan, Roberto Schwarz, Zulmira Ribeiro Tavares, Afonso Henriques Neto, Vera Pedrosa, Antonio Carlos Secchin, Flávio Aguiar, Ana Cristina Cesar, Geraldo Eduardo Carneiro, João Carlos Pádua, Luiz Olavo Fontes, Eudoro Augusto, Waly Salomão, Ricardo G. Ramos, Leomar Fróes, Isabel Câmara, Chacal, Charles, Bernardo Vilhena, Leila Miccolis.

soneto-ana-cristina-cesarSobre Ana Cristina César, Caio Fernando Abreu deixou-nos uma retrato lapidar, publicado na primeira edição de A Teus Pés pela Editora Brasiliense, em 1982: “fascinada por cartas, diários íntimos ou o que ela chama de ‘cadernos terapêuticos’, Ana C. concede ao leitor aquele delicioso prazer meio proibido de espiar a intimidade alheia pelo buraco da fechadura. (…) A Teus Pés revela finalmente, para um grupo maior, um dos escritores mais originais, talentosos, envolventes e inteligentes surgidos ultimamente na literatura brasileira.”

Já Italo Moriconi escreve que “os amantes da poesia poderão constatar ao lerem  este livro como era avançada a pesquisa poética de Ana C. naqueles idos dos anos 1970 e início dos 1980, buscando radicalizar e narrativizar a sintaxe do poema conversacional que, se por um lado retomava dicções modernistas (algum Mário, muito Drummond, todo o Bandeira, ecos de T.S. Eliot e Baudelaire), por outro as desviava num sentido pop que não parasitava, e sim fagocitava literariamente, com esperteza e ironia, o rock, o rádio, o sexo, as cenas de cinema, a hiperestesia pós-moderna, os embates de um feminismo inquieto.”


ALGUNS POEMAS:

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QUANDO CHEGAR

Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teus soluços
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um calmo e doce descanso.

Julho / 1967
p. 141


aSAMBA-CANÇÃO

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz…

Do livro “A Teus Pés”, p. 113

Bianca Comparato declama “Samba-Canção”:


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COMPRE NA LIVRARIA A CASA DE VIDRO:
Obra POÉTICA reunida de Ana Cristina César (1952-1983)
Companhia das Letras, 2016, 4ª Edição, Posfácio de Viviana Bosi.

ASSISTA:

Veronica Stigger, «O útero do mundo: Clarice Lispector, a arte, a histeria»

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“Em textos como Água viva, Clarice Lispector retomou o elogio surrealista do impulso histérico na forma de um pensamento simultâneo da forma artística e do corpo humano como lugares de êxtase, isto é, de saída de si – e de saída, também, das ideias convencionais de arte e de humanidade. Nesta conferência, escrita paralelamente à preparação de uma exposição para o Museu de Arte Moderna de São Paulo, três conceitos extraídos da escritora-filósofa – grito ancestralmontagem humana e vida primária – servirão de balizas num percurso por uma série de obras visuais dos séculos XX e XXI.”

Veronica Stigger é professora de História da Arte na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e coordena o curso de Criação Literária da Academia Internacional de Cinema. Como ficcionista, é autora dos livros O trágico e outras comédias (2003), Gran Cabaret Demenzial (2007), Os anões (2010), Massamorda (2011), Delírio de Damasco (2012), Minha novela (2013), Opisanie swiata (2013), Sul (2013, edição argentina; edição brasileira atualmente no prelo) e Nenhum nome é verdade (2016). Foi curadora das exposições Maria Martins: metamorfoses (MAM-SP, São Paulo, 2013) e, com Eduardo Sterzi, Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo (SESC Ipiranga, São Paulo, 2015).

ASSISTA A FALA COMPLETA (32 min):

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Confira também:

Veronica Stigger na Livraria A Casa de Vidro:
Os Anões (Cosac Naify, 2010)

acervo-0058-stigger“Eles têm graves falhas de caráter, não respeitam filas nem idosos e vão pagar caro por isso. Nos breves contos da gaúcha Verônica Stigger, o que salta aos olhos, mais que o absurdo e certa surrealidade, é a forma natural como eles se resolvem, mesmo que envolvam violência, cortes abruptos, fim precoces e um tanto melancólicos. Em seu terceiro livro, Os Anões (Cosac Naify), o estranhamento persiste, mas dá vazão a mais experimentações entre os gêneros, com “textos que tomam a forma de uma palestra, de uma legenda, de um anúncio publicitário, de uma peça teatral, se fingem de poemas, de classificados, de roteiros cinematográficos, de depoimentos etc.” (Bruno Borigati em Saraiva Conteúdo)

COMPRE AQUI

“TRÓPICOS UTÓPICOS”: Eduardo Giannetti faz a autópsia de uma utopia míope e sugere caminhos para um outro Brasil [Leia excertos selecionados do livro: Cia das Letras, 2016, 214 pgs]

“Trópicos Utópicos – Uma perspectiva brasileira da crise civilizatória”, de Eduardo Giannetti (Companhia das Letras, 2016, 214 páginas)

Em sua nova obra, que em seu título parece inverter a fórmula de Lévi-Strauss em Tristes Trópicos, Eduardo Giannetti  encara o “desafio de desentranhar luz das trevas” (Prefácio, #1). Escritor de raro talento, de pena Machadiana, Giannetti é autor de livros consagrados como Auto-Engano; Felicidade; A Ilusão da Alma; O Valor do Amanhã; Vícios Privados, Benefícios Públicos?, dentre outros. Seu Trópicos Utópicos é uma coletânea de aforismos, em formato um tanto nietzchiano, que busca pintar tanto um retrato distópico da “crise civilizatória” que hoje nos assola, quanto apontar os rumos para um Brasil que tivesse alguma utopia a propor ao desconcerto das nações.

Giannetti declara, em seu prefácio, sua dívida de gratidão em relação a dois autores que o inspiraram: Viveiros de Castro e Antonio Risério. “O mergulho em duas obras recentes de antropologia exerceu um papel decisivo na formação de minha capacidade de apreciar a riqueza dos saberes e da cultura de extração ameríndia e africana na vida brasileira: A inconstância da alma selvagem, de Viveiros de Castro, e A utopia brasileira e os movimentos negros, de Risério.”

Muitas das reflexões presentes no livro também soam como uma espécie de amplificação e complexificação do debate de Giannetti com Caetano Veloso no Roda Viva, da TV Cultura, em setembro de 1996.  Caetano, aliás, celebra na contracapa este como “um dos mais belos livros escritos sobre o Brasil” que já leu: nele, segundo Caê, “os becos sem saída criados pela espécie humana são encarados com coragem” (contracapa).

De fato, a crise trevosa em que a humanidade está atolada recebe um diagnóstico de conjuntura bastante lúcido através dos escritos de Giannetti. Ele realiza, assim, a autópsia de uma utopia míope, escrevendo uma espécie de esperançoso epitáfio para a modernidade e seus equívocos. “Os três ídolos da modernidade – a ciência, a tecnologia e o crescimento econômico – e os impasses oriundos dos seus cultos” (Prefácio, #2) são objeto de uma pontiaguda crítica que revela alguns dos descaminhos que nos fizeram chegar à presente “crise civilizatória” que tem por emblema o aquecimento global e a devastação das próprias bases materiais da vida (a atmosfera, a água, a alimentação etc.).

Sua abordagem do tema das utopias, e mais especificamente do Brasil no contexto dos pensamentos utópicos, carece de um debate mais complexo da obra de Oswald de Andrade, cuja utopia antropofágica mal é discutida pelo livro afora (o que soa um tanto omisso em um livro, ademais, que se diz tão inspirado em Viveiros de Castro, ele mesmo um oswaldiano bastante entusiástico). A pobreza e superficialidade do trato com a obra e o legado de Oswald de Andrade talvez seja o déficit mais grave de uma obra que, sem dúvida, chega para provocar excelentes debates e para propiciar aos leitores mais um banquete de belíssimos escritos.

Com a promessa de voltarmos à obra no futuro próximo em um artigo que discuta mais a fundo algumas das idéias ali apresentadas, compartilhamos por enquanto uma seleção de excertos; boa leitura! Você pode comprar o livro pela Estante Virtual, pela Amazon ou pela Cultura.

* * * * *

A TRÍPLICE ILUSÃO – O mundo moderno nasceu e evoluiu embalado por três ilusões poderosas: a de que o pensamento científico permitiria gradualmente banir o mistério do mundo e assim elucidar a condição humana e o sentido da vida; a de que o projeto de explorar e submeter a natureza ao controle da tecnologia poderia prosseguir indefinidamente sem atiçar o seu contrário – a ameaça de um terrível descontrole das bases naturais da vida; e a de que o avanço do processo civilizatório promoveria o aprimoramento ético e intelectual da humanidade, tornando nossas vidas mais felizes, plenas e dignas de serem vividas. Se é verdade que uma era termina quando as suas ilusões fundadoras estão exauridas, então o veredicto é claro: a era moderna caducou. (#1)

A CRISE DE SENTIDO – O culto da ciência no mundo moderno – o fato de que o veredicto da comunidade científica se tornou, ao fim e ao cabo, o único com direito à cidadania no reino do conhecimento verdadeiro – produziu uma situação exótica.

Por um lado, abrir mão de buscar respostas ao que está além do horizonte da razão científica seria empobrecer – e no limite negar – a nossa humanidade; a fome de sentido do animal humano existe desde que ele próprio existe e seria irrealista supor que ela pode ser suprimida por algum tipo de cordão sanitário cognitivo ou interdição intelectual.

Por outro lado, contudo, o próprio avanço da ciência se encarregou de minar de forma implacável, como um ácido corrosivo que a nada poupa, os credos religiosos e as crenças metafísicas de toda ordem que no passado permitiam a seu modo, se não aplacar a falta, ao menos distrair e enganar a fome de sentido; a consequência foi a erosão da confiança na capacidade humana de encontrar respostas que sobrevivam ao crivo de um exame crítico mais exigente e atendam a um padrão de integridade e honestidade intelectuais adequado. Aí reside o cerne da crise: a ciência ilumina, mas não sacia – e pior: mina e desacredita todas as fontes possíveis de repleção.

(…) A percepção do déficit de sentido e a sensação de vazio, desamparo e futilidade associadas à vitória da perspectiva científica – a pura positividade sem mistério do mundo – tendem a fomenta duas modalidades de reação regressiva que se tornaram traços definidores do nosso tempo: a reversão em massa a formas infantilizadas e caricatas de religiosidade, não raro afeitas ao fanatismo fundamentalista, e o recurso ao consumismo cego e desenfreado como fuga ou válvula de escape diante da perda de qualquer senso de transcendência e propósito na vida. (#21)

ROLETA RUSSA COM O PLANETA – Gentileza gera gentileza; violência gera violência. Com a natureza não é diferente. Quem deseja ou defende a devastação do meio ambiente? E, não obstante, ela se tornou o fato capital do nosso tempo. Como um sonâmbulo ecocida, a humanidade está realizando um gigantesco, temerário e quase certamente irreversível experimento no único lar que possui – a biosfera.

No intervalo de apenas cinco ou seis gerações desde a Primeira Revolução Industrial – uma fração minúscula da nossa existência como espécie – a natureza vem sendo submetida a uma agressão cega e desmedida: a área coberta por florestas foi reduzida a um terço do total existente em 1700; cerca de 87% dos oceanos estão superexplorados ou exauridos (eram menos de 10% nesse estado em 1900); a calota polar do hemisfério Norte tem perdido 475 bilhões de toneladas de massa anualmente em média; o ritmo atual do desaparecimento de espécies vivas é o maior desde a extinção dos dinossauros há 65 milhões de anos.

Mas o mais preocupante vetor de mudança – em parte causa e, em menos grau, efeito dos fenômenos descritos – é o aquecimento provocado pelo acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera. O aumento de 0,85º C da temperatura média global desde o início da era industrial é um fato estabelecido; em maio de 2013, a concentração de CO2 na atmosfera ultrapassou (possivelmente pela primeira vez em 4,5 milhões de anos) a marca de 400 partes por milhão – e o futuro?

Qualquer previsão está cercada de incertezas: as ações humanas dependem das escolhas futuras e o clima é um sistema de alta complexidade regido por um número extraordinário de variáveis que interagem… Duas incógnitas desafiam a ciência do clima: estimar a magnitude do impacto de um aumento na emissão de gases sobre a temperatura global e prever os efeitos específicos de uma elevação da temperatura sobre os diferentes ecossistemas do planeta. Supondo que a emissão de gases venha a dobrar nas próximas décadas – um cenário plausível na trajetória vigente do business as usual – os melhores modelos estimam que a probabilidade de o aumento de temperatura superar 4,5ºC é de 17%; essa contingência, por sua vez, teria como efeitos prováveis a desertificação da Amazônia, a devastação de cidades litorâneas, a submersão de grande parte de Bangladesh e o colapso da agricultura mundial, entre outras catástrofes.

Seis culatras, uma bala no tambor: por uma peculiar coincidência, a chance de que algo assim ocorra com o nosso planeta é justamente aquela de alguém estourar os miolos ao praticar roleta-russa. (#37)

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AIR-CONDITIONED NIGHTMARE – Tecnologia é a resposta, mas qual é a questão? O caso do ar-condicionado é ilustrativo. O que era um luxo restrito, virou artigo de uso comum. Graças ao aumento da renda das famílias, ao barateamento dos aparelhos e à maior eficiência energética dos compressores, a proporção de domicílios americanos dotados de condicionadores de ar passou de 20% em 1960 para 85% hoje em dia. Mas, como ficou muito mais em conta ter e usar, o resultado foi a explosão do consumo – e desperdício – de energia: a eletricidade usada atualmente só para alimentar os aparelhos de ar condicionado nos lares ianques equivale ao consumo americano total de meio século atrás; os EUA gastam mais energia elétrica com essa única finalidade do que o continente africano para todos os fins. E a febre, ao que parece, é contagiosa: enquanto a China precisou de uma década para triplicar o uso de condicionadores de ar – a compra do equipamento é subsidiada pelo governo -, a previsão é que a Índia multiplique por 10 o número de aparelhos entre 2005 e 2020. E, assim, a imagem cunhada pelo dramaturgo americano Henry Miller ao retratar o deserto espiritual dos seus afluentes conterrâneos – “um pesadelo com ar-condicionado” – salta as fronteiras da América para assaltar o mundo.

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SEMPRE UM PAPO: Eduardo Giannetti no debate e lançamento do livro “Trópicos Utópicos – Uma Perspectiva Brasileira da Crise Civilizatória” (Companhia das Letras), no Palácio das Artes em Belo Horizonte, dia 16/08/2016:

“Existe uma utopia brasileira?” – Ciclo de Conferências “Utopias contemporâneas” da Academia Brasileira de Letras, em 02/08/2016:

Diálogos com Mário Sergio Conti

[Encontro de Culturas Txt 16] Sabenças da Infância: as ensinanças lúdicas da oficina de Thâmile Vidiz no XVI ECTCV

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A X Aldeia Multiétnica e o XVI Encontro de Culturas também são espaço de congregação lúdica e união cirandeira no entrelaçamento das culturas. Foto: Santiago Asef.

INFÂNCIA QUE REVIVE

Como parte integrante do XVI ECTCV, a oficina “Sabenças da Infância” de Thâmile Vidiz explorou o universo do lúdico, suas práticas e saberes, suas graças e charmes, numa jornada de reconexão com as raízes

por Eduardo Carli de Moraes para o XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros

A oficina “Sabenças da Infância”, com Thâmile Vidiz, animou o Espaço Petrobrás na quarta-feira, 27 de julho, como parte da programação do XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros. O projeto tem como um de seus objetivos possibilitar que a diversidade das tradições e culturas de infância se revelem na criação e recriação de brincadeiras, num espaço lúdico onde os jeitos-de-jogar se entremesclam. Por que não misturar os modos de brincar tão conhecidos dos brasileiros (como as cobras-cegas ou os jogos de “o que é, o que é?”) com jogos vindos de outras civilizações (como a confecção artesanal das bonequinhas quitapenas da Guatemala)?

Brincadeiras, mímicas, canções, narrativas, trava-línguas, cabras-cegas, unidunitês, jogos de adivinhar, dentre outros elementos, deram o tom desta vivência que foi destinada a todas as idades, inclusive as que desejam uma reconexão com o frescor perdido da infância. Durante a oficina, uma maioria de adultos e adolescentes, acompanhados por três crianças, buscaram reencontrar-se com uma espontaneidade e uma graça que o correr dos anos às vezes trata de aniquilar. Como disse Carl Gustav Jung, infelizmente temos a tendência a “nascer como originais e morrer como cópias”.

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Apesar do clima de leveza e descontração, de jovialidade e muitos risos, a oficina de Thâmile Vidiz deu muito o que pensar sobre o valor do lúdico no processo de aprendizado: um trava-língua é excelente instrumento para desenvolver habilidades linguísticas, virtuosismo no trato com o verbo falado, podendo servir como primeiros passos no processo de desenvolvimento de futuros rappers, repentistas, radialistas, rapsodos.

Os jogos-de-adivinhar também tem a serventia de aguçar a curiosidade e botar os miolos para funcionar. Diante de um “o que é, o que é”, a mente sai em busca da resposta para o mistério de decifrar e nisto se exercita alegremente, desenvolvendo aptidões novas e colocando em movimento uma espécie de divertida vasculhação do mundo e seus mistérios: “Quem é que vive com os pés na cabeça? É o piolho! Quem é que dá muitas voltas e não sai do lugar? É o relógio! Quem é que cai de pé e corre deitado? É a chuva! Quem é que tem mais de 10 cabeças e não sabe pensar? A caixa de fósforos! Quem é que corre a casa e vai dormir no canto? A vassoura!”.

Quitapenas pelos pequenos e crescidos no Vilarejo de São Jorge, Chapada dos Veadeiros, em um encontro do Sabenças da Infância... Bonequinhas que surgiram na Guatemala, por mães indígenas para acalentar coração de crianças com medo...  SAIBA MAIS

Quitapenas criadas pelos pequenos e crescidos no Vilarejo de São Jorge, Chapada dos Veadeiros, em um encontro do Sabenças da Infância. Bonequinhas que surgiram na Guatemala, por mães indígenas para acalentar coração de crianças com medo… SAIBA MAIS!

Um dos auges da oficina de Thâmile Vidiz foi a confecção das quitapenas, pequeninas bonecas de origem nos povos indígenas da Guatemala. De fácil fabricação artesanal – você não precisa de muito mais do que palitos de fósforo, linhas para costura e muita criatividade para enfeites –, as pequenuchas quitapenas são brinquedos que cabem na palma da mão.

Como explicou Thâmile, o folclore conta que quando você não consegue pegar no sono, pois está aflito com preocupações, pode contar os teus problemas para a quitapena, depois guardá-la debaixo do travesseiro, e pronto: a pena se mandou. Segundo as lendas muito populares na cultura guatemalteca, a insônia será enxotada e as angústias serão aliviadas pelo simples fato de narrarmos nossos males para a microboneca. Eis um ótimo substituto – e muito econômico! – para o divã do psicanalista e os dispendiosos ouvidos de aluguel que são os praticantes do ofício psicanalítico.

Vivenciar a oficina “Sabenças da Infância” leva a pensar que, apesar da leveza e da graça com que faz e acontece, o lúdico é coisa séria na história. Em um estudo muito interessante, publicado em 1938, Johan Huizinga propôs que seria mais adequado que mudássemos o nome da espécie de homo sapiens para homo ludens. Afinal de contas, nada no percurso pregresso da humanidade, nem nada no nosso presente, referenda a avaliação de que sejamos sábios (sapiens). E tudo no nosso passado e no nosso presente indica que em toda parte, em qualquer latitude onde haja gente, culturas jogam, brincam, cantam, dançam. Em suma, congregam as pessoas com os cimentos invisíveis do lúdico.

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Em seu livro (acesse o ebook em PDF), Huizinga argumenta, de modo bem convincente, que o jogo é algo comum a todas as culturas, o traço de união que as congrega, uma espécie de universal concreto. Há quem jogue capoeira, há quem prefira o futebol; há quem toque violão, há quem prefira ficar no faz-de-conta ou no air guitar; tem quem prefira correrias e atletismos, e há os que são mais de um xadrez cerebral. De todo modo, não existe povo sem jogo, todo tipo de gente inventa sua ludicidade. E as artes, em sua raiz, também estão conectadas ao jogar, a ponto de Huizinga diagnosticar que a cultura, num sentido amplo, tem no lúdico, no “jogo”, um de seus nascedouros e uma de suas fontes mais importantes.

“O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana'” (Huizinga, “Homo Ludens”, 1980, p.33).

Vale notar que seria difícil quantificar a magnitude da riqueza cultural brasileira que emerge do âmbito do lúdico: não faltam artistas brincalhões e geniais por meio da história de nossas artes: lembremos somente, de modo sumário, d’Os Mutantes, de Tom Zé, do Patu Fu, de Oswald de Andrade, Manoel de Barros, Stanislaw Ponte Preta, de Henfil, Millôr Fernandes, Laerte, Angeli etc.

Quem acha que sabedoria é coisa de velhos e só existe em gente de cabelos brancos, pôde repensar este dogma a partir da oficina de Thâmile Vidiz. Ela nos revelou a amplidão das “sabenças da infância”, práticas e jogos que servem para congregar, transpondo os abismos da alteridade numa ciranda onde o eu transcende seu isolamento rumo a ser parte-de-nós. E o melhor: através do lúdico, empreendemos este processo de construção de pontes na companhia de risos e sorrisos. É também a sabença de Cartola: “A sorrir eu pretendo levar a vida / Pois chorando eu vi a mocidade… perdida.”

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Fotos: Pedro Henriques no XVI ECTCV

POESIA EM OVERDOSE: Ná Ozzetti e Zé Miguel Wisnik lançam álbum “Ná Zé” [2015] Leia o release de Luiz Tatit:

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NÁ E ZÉ por Luiz Tatit

Faz exatamente 30 anos que Ná cantou pela primeira vez composições do Zé. Ele se casava em dia de Iemanjá e a cerimônia começava ao som de “Louvar”, música que encerra este álbum. Pouco depois, Zé compõe a comovente “Tudo Vezes Dois” para o show Princesa Encantada que reuniu Ná Ozzetti e Suzana Salles, duas vozes identificadas com os movimentos musicais paulistanos da década de 1980. Não demorou muito, Ná lança seu disco-solo inaugural com nada menos que 4 canções de Zé Miguel Wisnik, entre as quais as belíssimas “A Olhos Nus” e “Orfeu” que, felizmente, renascem neste álbum.

Há uma particularidade no repertório que ouvimos aqui. Com exceção das últimas canções citadas e de duas mais recentes, as demais são quase segredos de baú. São pérolas do final do século passado que aos poucos respondem a uma espécie de desafio lírico e emocional: como converter poesia em letra, fazendo vibrar aqui e agora, e para todos, a paixão que permanecia em silêncio na mente e no coração do poeta e de seus leitores? Wisnik a fisga com seu poder melódico. Acha sempre a curva ideal para dizer palavras e frases acostumadas com a introspecção. Faz virar letras – e, portanto, sensíveis canções – os poemas de Fernando Pessoa (“Sim, Sei Bem”), Oswald de Andrade (“Noturno no Mangue”), Cacaso (“Louvar”) e Paulo Leminski (“Gardênias e Hortênsias”). E a experiência prossegue nas criações ombro a ombro com poetas como o próprio Leminski (“Subir Mais” e “Sinais de Haikais”) e outros, em plena atividade, como Alice Ruiz (“Sinal de Batom”), Marina Wisnik (“Miragem”) e Paulo Neves (“Alegre Cigarra”, “Som e Fúria” e “A Noite”). Aliás, é deste último o pensamento que Wisnik gosta de evocar: “a poesia é um chamado, a música uma chama”. Vindo de Paulo Neves, creio que música é o termo genérico para dizer canção.

 Ao lado do caráter afirmativo das composições aqui reunidas, da opção pelo “sim” num mundo cheio de incertezas, há um fio melódico condutor de doce tristeza de faixa para faixa que precisa de um canto sóbrio que se sirva dessa dor sem cair em pura melancolia. É o que faz Ná Ozzetti, nossa cantora maior, com sua assinatura vocal inconfundível e com o cuidado de sempre. Dá para entender, então, por que tantas canções significativas não encontraram espaço em discos anteriores. Simples, Zé esperava Ná para a gravação definitiva de suas, agora, novas pérolas.

Na Ze

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QUARTETO VITAL: Em “Vida”, Paulo Leminski (1944-1989) traça retratos de Cruz e Souza, Bashô, Jesus & Trótski

Leminski em Ilustração de Rafael Sica

Leminski em Ilustração de Rafael Sica

I) GRAFAR A VIDA DE GUIAS DE LUZ E DE LUTA

VidaCom seu ciclo de 4 biografias, Paulo Leminski (1944-1989) pretendeu retratar “quatro modos de como a vida pode se manifestar: a vida de um grande poeta negro de Santa Catarina, simbolista, que se chamou Cruz e Souza; Bashô, um japonês que abandonou a classe samurai para se dedicar apenas à poesia e é considerado o pai do haikai; Jesus, profeta judeu que propôs uma mensagem que está viva 2.000 anos depois; Trótski, o político, o militar, o ideólogo, que ao lado de Lênin realizou a grande Revolução Russa, a maior de todas as revoluções, porque transformou profundamente a sociedade dos homens.” (p. 10)

Segundo Alice Ruiz, que foi casada com Leminski de 1968 até a morte dele e com quem teve 3 filhos, comenta sobre os 4 biografados: “guias de luz e de luta, esses heróis nos fazem lembrar de nossos próprios heróis, aqueles lá no fundo da memória, que, de alguma forma, determinam e orientam nossos próprios sonhos. (…) Esses mortos precoces, dois por assassinato e dois por precariedade, foram seus heróis por excelência. (…) [E] Paulo Leminski soube, a exemplo de seus biografados, sobreviver à própria vida.” (RUIZ, Alice. P. 11-14)

Paulo Leminski e Alice Ruiz, em 1980

Paulo Leminski e Alice Ruiz em 1980

O livro Vida, lançado em 2013 pela Companhia das Letras, oferece-nos a chance rara de conhecer um dos mais brilhantes escritores brasileiros do século 20 no processo de celebrar seus heróis. Mas não são de modo algum biografias que pretendam ser lineares, ir “passo a passo e dia a dia / exumando o passado”, mas sim obras que pretendem, nas palavras de Domingos Pellegrini, “revelar vidas lapidadas / pela visão de um poeta.” (PELLEGRINI, P. 9)

Há poetas, pondera Leminski, que são “heróis de guerras e batalhas interiores, invisíveis a olho nu. Tem outros, porém, cuja vida é, por si só, um signo. O desenho de sua vida constitui, de certa forma, um poema. Por sua singularidade. Originalidade. Surpresa. Um Camões. Um Rimbaud. Um Ezra Pound. Um Maiakóvski. Um Oswald de Andrade.” (p. 21)

Talvez o próprio “polaco loco paca” tenha intentado transformar sua própria existência em poema ao arriscar-se em tão múltiplas atividades e mestiçagens: filho de mãe negra com pai polaco, Leminski foi faixa-preta de judô, mestre zen-budista nos trópicos, estudioso da Revolução Russa e do trotskismo, compositor de canções populares, além é claro de poeta dos mais talentosos do século 20 na América Latina. Parece-me que Leminski entendia o ser-poeta como uma Foucaultiana estilização da existência, exercício ético que exerceu com rara maestria, consagrando-se como figura inesquecível na história da (contra)cultura brasileira.

II. UM GÊNIO NASCE NA SENZALA

Filosofando sobre a negritude no Brasil, Leminski entoa seus evoés a gênios da literatura (Machado de Assis), da música (Gilberto Gil) e do esporte (Pelé), inserindo neste time seleto “nosso mais fundo e intenso poeta”, Cruz e Souza. Se este poeta interessa tanto a Leminski, é também pela radicalidade de seu destino paradoxal, pela intensidade das contradições e anomalias manifestas nesta vida-poema:

O ASSINALADO

Tu és o louco da imortal loucura;
O louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma desventura extrema;
Faz que tu’alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o poeta, o grande assinalado;
Que povoas o mundo despovoado
De belezas eternas, pouco a pouco.

Na natureza prodigiosa e rica,
Toda a audácia dos nervos justifica,
Os teus espasmos imortais de louco!

Cruz e Sousa

Cruz e Souza

A senzala e a casa grande mesclam-se no espírito de Cruz e Souza, conduzindo-o a viver um fado excepcional. “Negro retinto, filho de escravos do Brasil imperial, mas nutrido de toda a mais aguda cultura internacional de sua época, lida no original” (p. 21), Cruz e Souza foi uma “anomalia sociocultural no Brasil escravocrata do Segundo Império” – e Leminski sabe bem: “exceção, desvio, aí temos a matéria-prima para um poeta. Afinal, que é poesia senão discurso-desvio, mensagem-surpresa, que, essencialmente, contraria os trâmites legais da expressão numa dada sociedade?” (p. 29)

Se tivesse nascido nos EUA, Cruz e Souza talvez tivesse ajudado seus comparsas de sofrimento a inventar o blues, este “sentimento que produziu uma das modalidades musicais mais poderosas do século” (“basta dizer que todo o rock and roll deriva, diretamente, do blues e suas variantes, traduzidas para um repertório branco e comercializadas: Elvis Presley, Beatles, Rolling Stones”). Nascido escravo no Brasil colonial, Cruz e Souza, quase um blueseiro brasileiro, entendia de banzo, este “sentimento historicamente situado dos negros brasileiros, submetidos ao estatuto da escravidão. Quando um negro ‘banzava’, ele parava de trabalhar, nenhuma tortura chicote ferro em brasa o fazia se mover. Ele ficava ali, sentando, ‘banzando’… Vinha o desejo de comer terra. E, comendo terra, voltar para a África, através da morte.” (p. 25)

Desde a juventude, Cruz e Souza, que teve o privilégio, raro para os negros, de ser o protegido de um rico marechal e de sua esposa D. Clarinda, brilhou na escola: “eclipsou todos os colegas brancos, em vivacidade e rapidez de aprendizado”, a ponto de chamar a atenção de Fritz Müller, o colaborador de Darwin: aquele “brilhante aluno negro desmentia as teorias racistas correntes que proclamavam a inferioridade intelectual da raça negra.” (p. 33) Leminski abre seu Quarteto Vital, sinfonia polifônica e mestiça, refletindo sobre a História Brasileira de modo crítico e pungente, atento às peculiaridades regionais que distinguem o Nordeste e o Sul (a Bahia de Gilberto Gil e a Santa Catarina de Cruz e Souza):

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“O Brasil, qualquer transeunte sabe, foi descoberto por Cabral e fundado pela violência. Violência física e espiritual do branco adventício e invasor sobre o índio nativo e o negro sequestrado na África e escravizado. Conquista e catequese ou catequese e conquista.Do índio, o massacre foi completo. Já com o negro é outra história. O africano conseguiu preservar suas formas culturais, em corpo e alma, da lavagem cerebral exercida por missionários e pregadores. (…) Basta ver como os africanos de nação gege-nagô, falantes do iorubá, mantiveram vivos seus orixás, num genial gesto quilombola de defesa e resistência, traduzindo-os e disfarçando-os sob as aparências legais dos santos católicos do hagiológio romano. (…) Na Bahia, os cultos africanos já passaram por seu período de catacumbas. E os orixás circulam livremente, entre as pessoas… Sobretudo nas ruidosas festas religiosas, as festas do Largo, onde o povo baiano cultua seus antigos deuses, sob as aparências do ritual católico. Essa fonte de vida, na presença da África, foi negada a Cruz, negro em terra onde o africano era pouco e, portanto, não podia se afirmar culturalmente, como no norte. Cruz e Souza não viu os orixás se movendo em torno. Nem os exus, nas encruzilhadas. No palácio de seu corpo, o fantasma de uma alma branca.” (p. 36)

O poeta negro, carregando o fantasma de uma alma branca, muda-se para o Rio de Janeiro, em 1890, “na efervescência dos primórdios da República”; ingressa no jornalismo; casa-se com Gavita, com quem tem 4 filhos homens; “come o pão que o diabo amassou no terreno da sobrevivência” (p. 43), até que sua vida de apenas 37 anos vividos é ceifada pela tuberculoso, “certamente provocada por precárias condições de vida” (p. 49). Destino meteórico e marcante, que legou-nos uma obra seminal, um dos cumes do simbolismo na poesia brasileira. Leminski lê na própria vida de Cruz e Souza um símbolo inesquecível de uma “loucura social” encarnada no fato deste “negro retinto, no Brasil do século XIX, possuir o repertório de bens abstratos que um Cruz e Souza possuía. O poeta como assinalado. O marcado (Caim?) por um sinal.” (p. 71)

Quem imaginaria o surgimento de um gênio das letras em meio a um grupo social tão estigmatizado, judiado, escorraçado e torturado? Cruz e Souza, aponta Leminski, é um destino insólito e singular em uma época histórica em que “o negro era mantido na senzala numa condição de dor física institucionalizada – açoites, queimaduras com ferro em brasa, algemas, colares de ferro, máscaras de lata para os negros que, com intenção de se matar, comiam terra. A mesma terra que plantavam para os senhores lusos.” (p. 70) A senzala deu à luz um poeta de gênio superior à qualquer dos poetas já gerados pela casa grande. Leminski quer que os brasileiros tomem providências para jamais esquecer este símbolo. Escrever sobre esta vida e esta obra foi uma providência, tomada por um poeta, para que outro poeta pudesse enfim ser reconhecido por seus compatriotas em toda a sua grandeza.

Basho

III. EX-SAMURAI, PAI DO HAIKAI, POETA ZEN

Nascido em 1644, Bashô é considerado por Leminski “o máximo poeta que o Japão produziu” (p. 87). Em seus 23 primeiros anos, Bashô assimilou os valores da casta samurai, “braço armado da classe dominante, a nobreza feudal do Japão medieval” (p. 89). “Assimilava, também, toda uma complexa ideologia, baseada no confucionismo, com ênfase no dever, no sacrifício e na supremacia do social sobre o individual. E no budismo, em sua manifestação zen.” (p. 90) Abandonando a vida militar, Bashô adere a uma vida errante, tornando-se uma espécie de proto-hippie, que deixa-se soprar pelo vento como uma nuvem nos céus. Torna-se alguém, para lembrar um haikai elegíaco de Alice Ruiz, capaz de “enxergar a lágrima no olho do peixe.” (p. 94)

Com Bashô nasce esta forma poética extremamente sintética e peculiar, o haikai, no qual o poeta procura expressar-se em apenas 17 sílabas. “Seu haikai”, celebra Leminski, “é a fina flor de tudo que de melhor o Extremo Oriente produziu… Todos os rios de signos do Oriente correm e concorrem para fazer das parcas sílabas do haikai de Bashô, sempre, uma obra-prima de humor, poesia, vida e significado.” (p. 99) Séculos antes do Twitter, os criadores de haikai procuravam dizer um monte em um espaço minúsculo. Utilizavam as palavras de modo a evocar quadros, utilizando o verbo de maneira pictórica, como se pintassem com as letras. Os ideogramas das línguas orientais – ou seja, aquelas letras-desenhos, bem mais artísticas do que nossos caracteres ocidentais padronizados  –  são inseparáveis do métier do haikai, de modo que “nenhum tipo de poema é mais traído na tradução” (p. 101). De todo modo, Leminski tenta.

velha lagoa
o sapo salta
o som da água

Bashô

Nesta “microilíada zen”, Leminski enxerga alguns elementos paradigmáticos do haikai. Quase sempre, o “primeiro verso [do haikai] expressa uma circunstância eterna, absoluta, cósmica, não humana”; o “segundo verso exprime a ocorrência do evento, o acaso da acontecência, a mudança, a variante, o acidente casual”; já “a terceira linha do haikai representa o resultado da interação entre a ordem imutável do cosmos e o evento.” (p. 112) Poesia que procura transcender o antropocentrismo, o haikai muitas vezes não fala sobre o ser humano: o protagonista de Bashô, no exemplo aqui citado, é o sapo; o tema do poema, a interação ancestral e sempre recomeçada do anfíbio com a água de uma velha lagoa. Qual o sentido de um tal poeminha pictórico tão “banal”? É um quadro do real, e isso basta; o mestre zen ensina a não procurar sentido onde há somente a plenitude do real em sua profusão de acontecências.

Budfha

A força determinante na vida de Bashô, destaca Leminski, “era uma coisa chamada zen… uma das inúmeras seitas de budismo chinês, que começaram a aportar às ilhas do Sol Nascente a partir do século VIII da nossa era. Em termos de expansão geográfica (Índia, China, Birmânia, Tibete, Vietnã, Sião, Camboja, Coreia, Laos, Japão), brilhante a performance dessa ideia nascida de um príncipe do norte da Índia, que virou iogue, meditou no Parque dos Cervos, teve sua iluminação ao nascer do sol: a suprema intuição de que o viver era Dor. E bem, viver era trabalhar, com todos os seres vivos, para diminuir a Dor. Sem dúvida: o mundo seria muito melhor se fosse budista, a ‘religião’ mais doce, mais humana, mais compassiva. Bashô foi monge budista. Botou em prática, no haikai, a fé que alimentou sua alma durante 50 vagabundos anos, com signos substanciais.

O budismo não é, propriamente, uma ‘religião’, uma ligação entre o homem e os deuses: se não ateu, o budismo é, pelo menos, agnóstico. Não há deuses a adorar, nenhuma potência transcendental: os atos de homenagem a Buda são apenas e exatamente isso, homenagens a alguém extraordinário, o herói fundador, o signo original. (…) O que realmente interessa é que os seres vivos são vítimas da dor. E só a solidariedade, no sentido mais cósmico, pode minorar este fundamento da condição humana, feita de miséria, carência e penúria de ser. (…) O zen não é uma fé. Nem uma teoria. Realiza-se através de práticas (formas sociais) concretas, materiais, físicas. Zen é que nem jazz. E humor. Dessas coisas que não se explicam (isto não é uma explicação).” (p. 127)

5Leminski explica que, para o zen budismo, é preciso descrer na linguagem verbal e nos processos racionais, em prol da emergência de uma consciência que desabrocha a partir da superação de nosso logocentrismo. “Os processos usados pelos mestres zen, no adestramento aos pretendentes à iluminação, são os mais aberrantes, para nossos conceitos ocidentais de pedagogia, centrados na palavra.” (p. 130)

Tanto é assim que o zen budismo inteiro nasce de um gesto de Sidarta Gautama: em silêncio, ele levanta uma flor. Repara bem no que não foi dito. O que importa não é tagarelar uma diarréia verbal, como fazem tão comumente os pregadores religiosos do Ocidente; para Buda, importava mais tornar explícita uma presença. Uma singela presença capaz de ser testemunhada como beleza sublime a quem tem olhos para ver, a quem está com a mente suficientemente quieta para deixar-se penetrar pela plenitude de um mundo que não necessita de sentido para ser lindo.

IV. O DIÓGENES-ZEN DE PAULO LEMINSKI

No Ocidente, Leminski localiza entre os filósofos gregos uma figura que se assemelha a um mestre zen: é Diógenes, lendária figura a quem Emil Cioran dedicou algumas de suas melhores páginas (leia em: http://bit.ly/1GapYU5). Sabe-se que Diógenes contestou de modo provocativo e punk os platônicos de que foi contemporâneo. Platão, afinal, preconizava uma espécie de idolatria dos conceitos, considerados como paradigmas imorredouros a habitar em um paraíso transcendental, algo que Diógenes não conseguia engolir: ao ficar sabendo, por exemplo, que Platão definia o ser humano como um “bípede implume” (está escrito no céu das idéias que é isto o homem!), Diógenes, brincalhão, teria agarrado uma galinha, retirado dela todas as penas, para então acorrer na Academia platônica, berrando: “eis o homem de Platão! Eis o homem de Platão!”

“A figura de Diógenes confina com certo tipo de santo popular, o beato, ‘o louco de Deus’, o peregrino, os portadores de utopias, cuja vida ensina outra vida, proposta alternativa de existência, o modelo de um possível, um dos possíveis do tesouro de possibilidades humanas. (…) Diógenes, ao meio-dia, procurando um homem com uma lâmpada acesa, é um koan perfeito. Como koan é aquilo de Diógenes mandar sair da frente de seu sol um Alexandre Magno que lhe oferecia a satisfação de qualquer desejo.” (LEMINSKI, Vida. Cia das Letras, 2014. Pg. 129-130)

Sem nunca ter ouvido falar em zen budismo, Diógenes agiu um pouco à maneira zen; foi um punk avant la lettre, um poeta do gesto provocativo; foi um koan em carne viva. O paralelo com Bashô, estabelecido por Leminski, afirma a importância do criador de haikais japonês como figura que combate o logocentrismo e a verborragia. Em suma, para Leminski, também ele praticante do zen, criador de haikais e provocador cínico, “o zen é uma fé de artistas. Uma fé que valoriza, absolutamente, a experiência imediata. A intuição. O aqui e agora. A superfície das coisas. O instantâneo. O pré ou post-racional.” (Op cit. p. 143)

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Estátua dedicada a Diógenes em Sinope, Turquia

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V. ECOS DO ORIENTE

Mapeando os ecos do zen e do haikai da cultura ocidental, Leminski revela não só a amplidão de sua erudição literária e sua paixão pela poesia, mas revela também a cultura como uma grande teia, viva, interdependente, de influenciação e interação intensas:

“É de suspeitar odores nipônicos no ‘imagismo’ de García Lorca e na brevidade aforismática do poeta espanhol Antonio Machado. (…) Difícil não desconfiar, de resto, que os poemas-minuto de Oswald de Andrade, micromomentos de superinformação, não tenham inspiração no haikai… Nos anos 1930, até a celebérrima pedra no caminho de Drummond traz consido um certo perfume zen… Poucos criadores brasileiros, porém, prestaram tantos serviços à forma cultivada por Bashô quanto Millôr Fernandes. Via Millôr, o haikai é uma das formas do humor brasileiro de hoje, ao lado do cartum, do picles e da frase de efeito.” (p. 144)

Humilde, Leminski não destaca o óbvio: que ele mesmo é um dos maiores mestres da poesia lapidar brasileira, um gênio dos versos curtos de alto potencial mnemônico, um virtuose na arte do poeminha inesquecível. Ele, que dizia: “Não discuto com o destino / O que pintar eu assino.” Ele, que sobre o “dínamo estrelado da noite” (para citar Allen Ginsberg) soube cravar esta pintura memorável: “A noite me pinga uma estrela no olho e passa.” Ele, que viajou a existência e concluiu: “Essa vida é uma viagem, pena eu estar só de passagem.”

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por Eduardo Carli de Moraes [Junho de 2015]

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