A construção social da subhumanidade: Judith Butler e a distribuição diferencial da vulnerabilidade e do luto || A Casa de Vidro

“Os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros”, escreve com alta carga de ironia George Orwell em A Revolução dos Bichos (Animal Farm). Era um modo lúdico e sagaz do escritor inglês denunciar o abismo entre a enunciação de um ideal, a igualdade, e o mundo como ele é, onde a desigualdade reina.

Na fábula orwelliana, a tirania dos porcos faz uso do recurso ideológico de anunciar, ao menos da boca pra fora, que os “animais são todos iguais”, para na sequência cortar as asas das pretensões dos animais subalternos: “não se assanhem, oprimidos! respeitem a nova ordem!”, dizem os porcos, que se transformaram em nova elite após a Revolução-na-Granja-do-Mr-Jones.

O substrato histórico que inspira Orwell – os descaminhos da Revolução Russa de 1917 quando, após a morte de Lênin em 1924, cai sob o domínio do stalinismo – não impede que a obra aspire a dizer algo universal: revoluções vem e vão, mas o igualitarismo radical permanece travado em sua concretização.

Como o próprio fenômeno Napoleão – nome que Orwell escolhe dar o porco-rei de sua fábula – demonstra na história da Revolução Francesa: do estandarte tricolor que anunciava Fraternidade, Liberdade e Igualdade em 1789, anos depois o que vigia era um Império, envolvido em altas rixas bélicas fora de suas fronteiras, estruturado de maneira hierárquica e personalista tal qual no Antigo Regime supostamente derrubado.

A frase cômica (pois absurda) “mas uns são mais iguais que outros”, item bizarro da ideologia da nova elite porca, que massacra as pretensões de galinhas, cachorros, ratos e outros bichos de pretenderem gozar dos mesmíssimos direitos gozados pela elite suína. É a frase que explicita a tirania disfarçada sobre um linguajar pseudo-democrático. É um item que desvela o absurdo ideológico na base da farsa: um “novo mundo” que promete o igualitarismo mas fracassa em entregá-lo.

“It is for your sake that we drink that milk and eat those apples. Do you know what would happen if we pigs failed in our duty? Jones would come back!” GEORGE ORWELL, Animal Farm. SAIBA MAIS NO SITE DA BBC.UK

Transpondo o problema da fábula literária orwelliana para o campo da filosofia contemporânea, encontramos no pensamento de Judith Butler uma análise magistral da gênese, da reprodução e da conservação das desigualdades e injustiças sociais.

Ela mostra de que modo ocorre a construção social da subhumanidade, a criação artificial de noções ideológicas que fabricam, nos discursos e nas práticas, uma certa parcela da humanidade como se fosse menos que outra.

Uma parcela da humanidade é estigmatizada como menos do que humana por uma outra parcela da humanidade – e neste processo nossas vidas, que teríamos a tentação de dizer que são igualmente precárias pois somos todos mortais, são tratadas diferencialmente em face desta morte que nos une mas nos separa: algumas vidas são construídas como valiosas (e suas perdas são sentidas como catástrofe a ser pranteada), outras vidas são tidas como matáveis (como se “esmaga um inseto no chão”, para lembrar um verso inesquecível de “Let Down” do Radiohead) e indignas de luto.

Em Vida Precáriaescrito sob o impacto dos atentados do 11 de Setembro de 2001 nos EUA e da “Guerra Contra O Terror” que os sucedeu, a filósofa interroga: “a questão que me preocupa, à luz da violência global recente, é: quem conta como humano? Quais vidas contam como vidas? E, finalmente, o que concede a uma vida ser passível de luto?” (BUTLER: 2019, p. 40)

Butler quer saber: por que não deveríamos chorar a perda de um gay de São Francisco que morreu de AIDS tanto quanto a morte de um grande empresário que se acidentou fatalmente em seu jatinho privê? Por que permitimos que certos grupos sociais sejam tratados como menos humanos que outros, e transformados assim em vidas mais precárias e desprotegidas, mais sujeitas à violência e ao descaso com seus corpos?

“Mulheres e minorias, incluindo minorias sexuais, são, como comunidade, sujeitas à violência, expostas à sua possibilidade, se não à sua concretização. Isso significa que somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade social de nossos corpos (…) socialmente constituídos, apegados a outros, correndo o risco de perder tais ligações, expostos a outros, correndo o risco de violência por causa da tal exposição.” (JUDITH BUTLER, op cit, p. 40)

Na filosofia de Butler, somos todos “corpos socialmente constituídos”, condenados o apego e à interdependência, ameaçados com a perda de vínculos, correndo o risco da violência – somos sempre corpos políticos, permeados por afetos e vínculos, constitutivamente vulneráveis. Esta vulnerabilidade comum que poderia nos unir, servindo como o universal concreto que propicia nossa solidariedade (somos todos vulneráveis e precários, portanto “ninguém solta a mão de ninguém”), na prática acaba pervertido através disto que estou chamando aqui de construção social da subhumanidade. Que é a construção de razões, justificativas, ideologias e instituições que permitem tratar certos outros como matáveis, extermináveis – no limite, construir o outro como subhumano, como barata (para relembrar Mukasonga e sua pungente narração literária sobre os genocídios em Ruanda).

Por que a humanidade não cessa de dividir-se em richas fratricidas? Poderíamos responder, com Butler: a guerra não pára pois a humanidade ainda não existe, ainda não se consumou. Ela ainda está cindida entre aqueles que, em sua arrogância e húbris, querem reduzir a alteridade e transformar todo o domínio multicolorido da Outridade (para usar o neologismo cunhado pelo Nobel de Literatura mexicano Octavio Paz) em algo que esteja à altura-de-anão da perspectiva binária.

O colorido dos outros, a polifonia de nossas vozes, o “arco-íris terrestre” que supera em cores o celeste (Eduardo Galeno), acaba mutilado e forçado a entrar numa representação de um pebê empobrecido e monofônico no viés daqueles que constrõe alguns outros como sub-humanos. Para que possam fazê-lo, estes altericidas precisam estar acometidos de algo semelhante àquela “cegueira branca” de que José Saramago foi o genial romancista, e que Fernando Meirelles soube levar o cinema com maestria.

A construção social da subhumanidade, conexa às violências bélicas, aos genocídios, aos massacres de fúria étnica, aos pogroms e chacinas entre seitas, está conexa à cegueira de quem vê o mundo distorcido pelo prisma defeituoso que só enxerga branco e preto, oito ou oitenta, nós vs eles…

Em um dos filmes mais significativos para a história da filosofia contemporânea, Examined Life (Vida Examinada), de Astra Taylor, Judith Butler passeia na companhia de Sunaura Taylor em San Francisco. O papo delas é ocasião para levar filosofia pras ruas e realizar um debate sobre as segregações, que se manifestam concretamente nos territórios urbanos, onde o próprio direito à cidade não é estendido igualitariamente a todos: a pessoa na cadeira-de-rodas, por exemplo, tem vários problemas de acessibilidade que não são apenas questões técnicas e logísticas, mas que tem a ver com um acesso impedido à humanidade plena. 

Butler aproveita este diálogo para destacar que as pessoas ditas “normais”, que não tem nenhuma “deficiência” corpórea visível, podem chegar a ter a ilusão de uma radical auto-suficiência. Isto é falso pois a existência humana só se constitui na relacionalidade – e nossa própria formação psíquica inicial depende radicalmente da teia de relações de nossa primeira infância: “somos, desde o início, mesmo antes da própria individualização, e em virtude de exigências físicas, entregues a um conjunto de outros primários: essa concepção significa que somos vulneráveis àqueles que somos jovens demais para conhecer e julgar e, portanto, vulneráveis à violência; mas vulneráveis também a um outro tipo de contato, um que inclui a erradicação do nosso ser, de um lado, e o apoio físico para nossas vidas, de outro.” (Butler, 2019, op cit, p. 51).

Desde o Iluminismo do séc. XVIII, e das revoluções díspares que ele trouxe em seu bojo (pensemos na França em oposição ao Haiti, contrastando os relatos de Michelet e de C.R.L. James), sabemos que revoluções pautadas por um desejo de construção de direitos universais muitas vezes recaem no erro de, uma vez dotadas de poder, construírem a subhumanidade e a matabilidade de uma parcela da humanidade, violando sua própria pretensão de estender os direitos a todos. Os jacobinos franceses chegaram ao absurdo supremo: decretaram os direitos universais, e excluíram deles dois terços da humanidade, ou seja, as mulheres e as populações sob o domínio colonial do Império Francês.

Quem ousou denunciar estes absurdos, como Olympe de Gouges, perdeu a cabeça nas guilhotinas do Terror revolucionário jacobino. Além de regicidas, os jacobinos, sob a tirania de Robespierre, também cortaram cabeças de feministas e de artistas que denunciavam a construção social da subhumanidade, por exemplo, da população do Haiti – lá onde triunfaria uma outra estirpe de revolução, propulsionada por Toussaint L’Ouverture  e os “jacobinos negros”.

A obra tão preciosa de Judith Butler está aí para nos ensinar caminhos para a desconstrução criativa daquilo que nos mantem atados a sociedades violentas e brutalmente desiguais. Para isso, a filósofo politiza a questão do luto, em sintonia com o conceito feminista de que “o pessoal é político”. Para ela, o luto – o pesar pela perda de um certo vínculo com algum outro – é sempre o índice do quanto somos animais sociais, zoon politikon:

“Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos isola em uma situação solitária e é, nesse sentido, despolitizante. Acredito, no entanto, que o luto fornece um senso de comunidade política de ordem complexa, primeiramente ao trazer à tona os laços relacionais que têm implicações para teorizar a dependência fundamental e a responsabilidade ética. (…) A paixão, o luto e a raiva nos arrancam de nós mesmos, nos prendem a outros, nos transportam, nos desfazem, nos envolvem, irreversível, se não fatalmente, em vidas que não são as nossas.” (p. 45)

O luto é um lócus onde podemos ler a construção social da subhumanidade: todos os animais humanos são mortais, mas alguns quando morrem não merecem ser chorados. Assim reza a cartilha do luto na boca daqueles que se arrogam o direito de construir parcelas da humanidade como sub, inferiores, matáveis.

Judith Butler nos faz questionar por que somos ensinados a não chorar quando ouvimos falar de palestinos sendo massacrados sob as bombas do estado de Israel sob domínio sionista, mas choramos copiosamente quando a mídia, via Fox News ou Rede Globo, nos pinta o comovente retrato de um soldado do Exército dos EUA que perdeu a vida nos campos-de-batalha do Iraque, supostamente defendendo “a democracia e a liberdade”. Por que ouvir sobre um massacre perpetrado por policiais contra pessoas encarceradas não desperta a mesma comoção pública de luto coletivo quanto o suicídio de um popstar ou astro de Hollywood?

O célebre silogismo que marca a história da filosofia, com sua lógica aparentemente irrefutável – todos os homens são mortais, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal -, na verdade esconde algo que a reflexão ética e o escrutínio crítico da nossa vida coletiva é capaz de desnudar: todos morremos, sim, mas alguns morrem e isto é um catástrofe que muitos irão chorar, enquanto outros morrem e quase todo mundo dá de ombros e, sem sentir muita coisa, nem piedade nem indignação, deixa que sejam enterrados sem que mereçam a esmola de uma lágrima ou de um pensamento enternecido e dilacerado pelo luto.

É verdade que uma mortalidade comum nos une, mas a vulnerabilidade que nos é constitutiva não passa através do “prisma” social sem distorções: algumas vidas são construídas como mais vulneráveis, mais expostas à violência, mais precárias. Importa muito, ou seja, é de uma pertinência urgente, que possamos perceber “as formas radicalmente injustas que a vulnerabilidade física é distribuída globalmente”, como escreve Butler, cuja ética, inspirando-se em Lévinas mas também no “farol moral” de Arundhati Roy, envolve necessariamente a postura de quem atenta para a dor do outro, sensível ao que ele padece, levando em consideração seu rosto, ainda que emudecido pela morte ou ainda vivo mas nas contorções de uma vida sufocante ou de uma morte indigna: através da “consideração da vulnerabilidade dos outros”, ensina Judith, “poderíamos avaliar criticamente e nos opor às condições em que certas vidas são mais vulneráveis do que outras e, assim, certas vidas humanas provocam mais luto do que outras.”

Gaza, July 2014Gaza, Julho de 2014

Escrevi, em 2014, um texto em inglês para o blog Awestruck Wanderer que tentava refletir filosoficamente sobre a dificuldade de “apertar as mãos com a dor dos outros”. O moralista La Rochefoucauld fornece o mote ao dizer que “nem sempre temos a força necessária para suportar os males dos outros”. De fato, não há caminho fácil para a solidariedade, nem exercício indolor da virtude crucial da empatia. É preciso abraçar a aventura da abertura que é descobrir, em todo a glória e em todo o horror, a vulnerabilidade de cada um de nós. Corpo mortal, finito, transitório, ameaçado de morte durante toda sua vida, sou um corpo social cuja vulnerabilidade o congrega a todos os outros corpos sociais, mas  é preciso também perceber os abismos que nos separam devido às injustiças na distribuição das vulnerabilidades. Butler, assim, torna-se nossa aliada imprescindível no processo de desnudamento e superação dos estratagemas sócio-políticos envolvidos na construção da subhumanidade e da matabilidade alheia.

Escrevendo nos EUA pós-11 de Setembro, Butler diz, sobre os obituários da grande imprensa:

“nunca escutamos os nomes dos milhares de palestinos que morreram pelas mãos dos militares israelenses apoiados pelos EUA, ou o número indiscriminado de crianças e adultos afegãos. Eles têm nomes e rostos, histórias pessoais, famílias, passatempos favoritos, lemas pelos quais vivem? (…) Se 200.000 iraquianos foram mortos durante a Guerra do Golfo e seu rescaldo, teríamos nós uma imagem, um enquadramento para qualquer uma dessas vidas, individual ou coletivamente? Haveria uma história que podemos encontrar na mídia sobre essas mortes? Haveria nomes ligados a essas crianças?… Não existem obituários para as vítimas da guerra que os Estados Unidos infligem… o obituário funciona como o instrumento pelo qual a injustiça é publicamente distribuída. (…) As vidas queer que desapareceram no 11 de Setembro não foram publicamente acolhidas na identidade nacional construída nas páginas dos obituários… Mas isso não deveria ser surpresa quando pensamos quão poucas mortes causadas pela AIDS foram passíveis de luto público, e como, por exemplo, o grande número de mortes ocorrendo agora na África não é também evidenciado ou suscetível ao luto na mídia.” (pg. 53-54-56)

A reflexão crítica de Butler, em Vida Precária, nos leva a questionar sobre porquê choramos tão pouco diante dos destinos daqueles que estão detidos sem julgamento em Guantánamo, ou que estão num campo de concentração a céu aberto em Gaza, ou estão amontoados em campos de refugiados ou presídios super-lotados. O livro inclui uma contundente defesa do direito ao dissenso e à liberdade de expressão: Butler diz que não devemos calar nossas críticas contra o imperialismo dos EUA ou contra o sionismo de Israel devido ao temor de sermos taxados como “aliados do terrorismo islâmico” ou “anti-semitas”. A desqualificação do discurso crítico e da denúncia das violações de direitos humanos básicos se dá com frequência, no contexto atual, através da falsificação do dissenso como se fosse traição, quando na verdade é a mais alta responsabilidade do intelectual público estar ao lado dos que foram injustamente detidos e torturados em Abu Ghraib, dos que não tem o “direito a ter direitos” nos territórios palestinos ocupados pelo exército sionista, dos que são chacinados pela polícia ou pelo descaso estatal nas favelas, nos guetos, nos bantustões…

Enxergar a humanidade neles, abraçar sua dor, criticar a desumanização que lhes é imposta, não significa apenas se revoltar contra aquilo que Renato Russo cantava (“a humanidade é desumana…”), é dedicar-se à refazenda de nossa própria humanidade. A humanização é sem fim ainda que a humanidade um dia finde. Para que os humanos possam ser de fato “corpos em aliança”, unidos na vulnerabilidade, juntos no “nós” da revolta contra a desumanização (“eu me revolto, logo somos”, ensinava Camus), é preciso primeiro corroer através da crítica e da ação política tudo aquilo que constrói a subhumanidade alheia, convidando a matar e não chorar – o mais desumano dos atos e que, paradoxalmente, muitas vezes é praticado justamente por aqueles que de modo mais arrogantes se auto-proclamam como os porta-vozes do humano.

Arte de Luciana Siebert

Conceição Evaristo tem uma frase famosa: “eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.” Aí se expressa uma união que nasce do próprio âmago da vontade de sobrevivência, esta que é a mais primeva e a mais intensa das forças que nos habitam: o que Spinoza chamou de conatus, e que Kalil Gibran disse ser “a ânsia da vida por ela mesma”. As pessoas que estão sob ameaça maior de perder a vida pois encontram-se em situação de precariedade, vulnerabilidade, risco, aquelas pessoas que os poderosos de certo modo marcam para morrer, aquelas pessoas que os políticos palacianos calculam que não valem o esforço de tentar salvar, pessoas que podem tranquilamente perecer, pessoas para quem está vigente o descaso absoluto de uma política do deixar-morrer, são justamente estas as pessoas que precisaram organizar-se de modo solidário.

A união de fato faz a força para quem foi destituído por outrem a ponto de ser forçado à posição de fraco. Judith Butler é uma pensadora-ativista que convoca nossos afetos, a exemplo de Conceição Evaristo, a uma espécie de fratria dos fracos, uma sororidade dos despossuídos, uma aliança dos marginalizados, uma força coletiva que nasça da precariedade de cada um para transformar-se na força de todos, no raiar da consciência salutar e imprescindível de nossa interdependência. Caso estejamos dispersos e desunidos, eles que combinaram de nos matar vão triunfar. Nós, que preferimos a vida ao capital, o amor à ganância, a diversidade em flor ao purismo dos racistas, devemos nos insurgir conjuntamente para que o berro agonizantes dos eugenistas não triunfe, e sim todo o colorido de uma queer-Idade que faça valer, enfim, o mote de Rosa Luxemburgo: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.”

QUANDO A ECONOMIA SE TORNA O BERRO AGONIZANTE DOS EUGENISTAS 
Judith Butler em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil (Maio de 2020):
 
“As políticas sociais são armadas e aplicadas de maneira a se configurar como a morte das populações marginalizadas, especialmente, das comunidades indígenas e das populações carcerárias, também daqueles que, como resultado de políticas públicas racistas, nunca tiveram um tratamento de saúde adequado. Afinal, a taxa de mortes nos Estados Unidos neste momento está diretamente correlacionada à pobreza e privação de direitos das populações negras. Quando nos referimos àqueles com “complicações prévias de saúde” estamos geralmente nos referindo àqueles que nunca tiveram a assistência e diagnóstico que precisaram e certamente mereciam. E esse é apenas um dos efeitos mórbidos do capitalismo de mercado. Nós deveríamos usar esse momento para pensar em práticas universais de sistemas de saúde e sua relação com um socialismo global que esclareça o jeito como somos todos interdependentes.
Temos que deixar bem claro que todos os humanos possuem igual valor. E ainda assim a maioria de nossas ideias sobre o que é ser humano implica em estruturas radicalmente desiguais porque algumas pessoas tornam-se mais “humanas” ou “valiosas” aos olhos do mercado e do Estado. Nós ainda não sabemos como seria o humano se nos imaginássemos todos possuindo o mesmo valor. Essa seria uma nova imagem de humano, uma nova ideia e horizonte. Quando ouvimos falar sobre a “saúde” da economia sendo mais importante do que a “saúde” dos trabalhadores, dos idosos e dos mais pobres, somos convidados a desvalorizar o humano para que a economia reine acima dele. Agora se “saúde econômica” significa expor o trabalhador à doença e à morte, então nos voltamos à produtividade e ao lucro, não à “economia”. A brutalidade do capitalismo se apresenta às claras, sem nenhum pudor: o empregado deve ir trabalhar para conseguir viver, porém o local de trabalho é onde sua vida é colocada em risco. Marx já dizia isso na metade do século XIX e assustadoramente esse pensamento ainda se aplica à nossa realidade.
 
Talvez ainda não tenhamos nos decidido entre ficar chocados pela compreensão de que existe uma interdependência global como um fato inerente à nossa existência no planeta ou se seremos puxados de volta ao relato de nossas fronteiras e identidades, lógicas de mercado e individualismo. O que parece claro é que essa dúvida faz parte do nosso desafio contemporâneo. Depende de conseguirmos nos enxergar como criaturas porosas, aquelas em constante troca com os ambientes pelos quais transitam, coabitando com todas as outras formas de vida. E mesmo assim as fantasias da autossuficiência ainda são os resquícios de nossa cultura masculina, e as fantasias de autossuficiência nacional são formas fracas (porém atraentes) de ideologia. Faria toda a diferença nos entendermos como seres interpelados (chamados à ação) por um vírus para conseguirmos nos tornar uma comunidade global, não uma que é apenas efeito da globalização. Agora temos a chance de criarmos novas formas de solidariedade baseadas na ideia de que nossa vida é uma corrente de relações interdependentes. Ambos, indivíduo e nação, terão que ser repensados através dessa nova ótica.
 
A interseccionalidade (categoria teórica que focaliza múltiplos sistemas de opressão a um mesmo sujeito, em particular, articulando raça, gênero e classe) permite que enxerguemos quem é desproporcionalmente afetado pelo vírus, aqueles desproporcionalmente desprotegidos e expostos. Isso porque aqueles cuja morte é mais provável tendem a ser pobres, indígenas, pessoas de raças marginalizadas, aqueles que não possuem o privilégio de ter seguro de saúde. Mulheres que antes já eram impedidas de desempenhar certas funções, que aceitam o trabalho doméstico sem salário, que sofrem abuso em suas casas – todas essas comunidades estão em grande perigo. Deste modo, o que a interseccionalidade nos permite ver é que uma ameaça de doença e morte aumenta em populações que acumulam categorias de discriminação, aqueles corpos que não podem escolher a qual minoria pertencem por estarem com mesma intensidade na intersecção de várias minorias.
 
Pensando como ambos, Trump e Bolsonaro, são favoráveis à abertura da economia mesmo que isso signifique o aumento de mortes de populações vulneráveis, entendemos que esses líderes políticos percebem que essas “comunidades vulneráveis” são mais propensas a sofrerem as consequências do colapso da saúde, e não veem problema algum nisso. Eles não imaginam que seus operários mais jovens e produtivos morrerão. Mas muitos deles podem contrair o vírus e se tornarem focos de transmissão quando voltam para suas casas. Pode ser que eles não compreendam a seriedade da situação, mas também pode ser o caso de estarem dispostos a deixarem corpos morrerem em favor da economia. Bolsonaro parece acreditar no darwinismo social onde apenas os mais fortes sobreviverão, e que apenas os fortes merecem sobreviver. Ele até se imagina imune ao vírus – sua última forma de fantasia narcisista. O narcisismo de Trump difere do de Bolsonaro, pois seu único feito é contabilizar votos em sua mente. E ele não vencerá a próxima eleição se a economia estiver fraca. “É a economia!” se torna agora o grito agonizante dos novos eugenistas.
 
Não me vejo como uma teórica do neoliberalismo e tenho consciência da complexidade desse debate. Eu diria que neste momento há uma estrutura econômica em que números crescentes de pessoas estão em condições limítrofes de vida, expostos à morte, acumulando precariedades. Também há poucas restrições às corporações bilionárias que acumulam riquezas, superando o poder econômico da maior parte dos países. Nós deixamos que essa desigualdade econômica ganhasse forma e agora estamos vendo através de gráficos o quão facilmente a vida dos mais vulneráveis é abandonada e destruída. Minha aposta é de que as versões inalteráveis de masculinidade e feminilidade serão reencenadas dentro de novas formas no liberalismo, mas que o neoliberalismo não é capaz de produzir novas formas de gênero radicalmente diferentes. Ao pedir que pessoas fiquem em casa, os governantes presumem que as casas possuem uma estrutura de cuidado, que a divisão de gênero do trabalho funciona, que mulheres – mesmo quando ainda empregadas e trabalhando de casa – também assumirão os afazeres domésticos e os cuidados com os filhos. Algumas casas não são constituídas por famílias tradicionais, algumas pessoas vivem sozinhas, outras em abrigos com desconhecidos. E mulheres são profundamente atingidas pela violência de gênero quando ficam impedidas de procurar ajuda externa. Então devemos ter em mente que o gênero está sendo redefinido pelo confinamento, para então fazermos o possível para manter vivas as correntes de afeto, comunidades, alianças queer e solidariedade online até podermos, mais uma vez, demonstrar nossos números nas ruas.” (BUTLER, 2020)
 

Novo livro de Judith Butler, “O Poder da Não Violência”

 

Eduardo Carli de Moraes
Abril e Maio de 2020

SAIBA MAIS: Acesse A Casa de Vidro – https://wp.me/pNVMz-6hU

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, JudithVida Precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
————-. Quando a economia se torna o berro agonizante dos eugenistas – Entrevista ao Le Monde Diplomatique. Maio de 2020.
GARFIELD, R. Morbidity and Mortality among Iraqi Children from 1990 through 1998: Assessing the Impact of the Gulf War and Economic Sanctions. Link.
LUXEMBURGO, Rosa.
ORWELL, George. Revolução dos BichosAnimal Farm. Via site da BBC.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS:

JESUS, O PALESTINO – Poema natalino por Fausto Wolff + Lembrança geopolítica por Berenice Bento

“Se o palestino mais conhecido do mundo, Jesus Cristo, fosse nascer hoje, teria uma grande chance de ter como manjedoura um posto militar israelense (checkpoint). Todos os anos dezenas de crianças palestinas nascem nestes postos horríveis, no chão, porque as mães não podem ir ao hospital. Algumas vezes a criança morre. Outras, a mãe.” – BERENICE BENTO

* * * *

POEMA NATALINO – DE FAUSTO WOLFF

**A Recriação do Homem**

É claro que gostávamos dele.
Era um homem pobre, humilde, ofendido, e maltratado
Como nós.
Era também corajoso e humano.
Muito humano, demasiado humano.
Ficava com raiva, se comovia e chorava.
Mas o livro não registra o seu riso.
Naquela época como hoje, não havia motivos para rir.
Há dois mil anos que gostamos dele
Porque fomos nós, os pobres, que o inventamos.
Não agüentávamos mais a tirania do pai,
Do pai aliado dos tiranos governantes,
Dono de uma religião contra a nossa independência;
Religião que nos mantinha de joelhos
Diante do algoz
Não queríamos uma religião
Que só servia de consolo
Para as impostas privações.
Não queríamos uma religião
Que aliviava a culpa dos poderosos.
Gostávamos dele porque era filho de uma bela adolescente virgem
E de um honesto carpinteiro de mãos calosas como as nossas.
Além disso,
Havia nascido numa manjedoura.
Contava fábulas lindas sobre uma vida melhor
Para todos nós.
Havia amor e comunismo entre nós que dividíamos
O pão, a lágrima, a esperança e o riso eventual.
Mas cedo os ricos descobriram as vantagens da nossa religião.
Prenderam nosso deus simples e humano
E o trancaram num palácio.
Cobriram-no de jóias
E o afastaram de nós.
Fizeram dele um sócio mercador.
Quando alguém da nossa tribo ousava reclamar,
O poder explicava:
“Se ele que é Deus foi crucificado,
Por que tu, mísero mortal,
Não queres sofrer aqui na terra
Quando sabes de antemão
Que terás toda a felicidade no céu?”
Protegidos pelas armas,
Como falavam bem nossos tiranos!
E nós continuamos a agradecer aos senhores que por mais de dois mil anos nos obrigam a conviver
Com a fome, o desemprego, a peste, a miséria,
A brutalidade, a humilhação e o salário mínimo.
Dizem que um dia ele voltará.
Por isso sonhamos com Baltazar, Melchior e Gaspar
Como eles eram naquela época,
Bem diversos do que são hoje e atendem pelo nome de lucro, ganância e poder .
Deixaram de ser reis para se transformarem em assistentes de Papai Noel.
E se essa história da Carochinha fosse verdade
(como é em nossos corações)
senhores donos das pompas do mundo?
Se no dia do juízo Final, nós, os pobres, formos mesmos os primeiros?
Haverá um inferno suficientemente quente para aqueles que há dois milênios nos maltratam?
É fácil reverenciá-lo agora que está morto, e pode ser adorado sem riscos.
Mas nós nos lembramos de como ele era antes;
Antes que o roubassem de nós.
Um dia nos revoltaremos ao lado dele.
Ou sem ele, e se for preciso, até mesmo contra ele!
Hoje a noite, quando vocês estiverem abrindo presentes,
Bebendo champanhe
Como bons fiéis,
Pensem bem antes de mandar o porteiro expulsar
Aquele crioulo sujo, desdentado, cheirando a álcool, medo, humilhação e mijo.
Pode ser o juiz supremo disfarçado,
Aquele por quem tanto esperamos
E por qual vocês tanto temiam.
Pode ser o aniversariante.

 

A FRATERNIDADE DOS REFUGIADOS – Sobre o filme “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé

A FRATERNIDADE DOS REFUGIADOS
por Eduardo Carli de Moraes​

“Nós somos todos refugiados”, dispara Carmem Silva, uma ativista da Frente de Luta por Moradia (FLM) de São Paulo. “Somos refugiados da falta dos nossos direitos.”

Carmem, esta mulher da vida real que interpretou a si mesma em “Era o Hotel Cambridge”, fusão de ficção e documentário, talvez seja a responsável pela frase mais emblemática deste memorável, contundente e relevantíssimo filme dirigido por Eliane Caffé.

O filme é espetacular por sua capacidade de transcender o cinema e tornar-se um evento cívico, um acontecimento político, uma “experiência de cinema colaborativo em São Paulo que aproxima artistas e intelectuais de movimentos de sem-teto e refugiados. E explica o direito à cidade, na prática.” (Rede Brasil Atual)

Eliane Brum​, em artigo magistral para EL PAÍS Brasil​, disse que o desembarque entre nós deste OVNI cinematográfico equivale a “um acontecimento político-cultural capaz de expressar as tensões e a potência do Brasil atual”:

“O Hotel Cambridge, personagem central do filme, foi na vida real de São Paulo um hotel de luxo construído no final anos 50 com evocações hollywoodianas. Com o crescimento da cidade e o abandono da região central pelos mais ricos, ele testemunhou sua própria decadência. Em 2004, cerrou suas portas e tornou-se mais um esqueleto do centro, um morto insepulto, abandonado ao vazio. Em 2012, foi ocupado pelo movimento dos sem-teto, uma das forças de maior potência da maior cidade do Brasil.

O hotel foi ocupado por cerca de 140 famílias, mais de 240 crianças. A quantidade de meninos e meninas fica explícita em cuidados como um surpreendente e bem organizado estacionamento de carrinhos de bebê. Na dinâmica da especulação imobiliária, que se impõe como uma lógica questionada por poucos, o fato de o Cambridge ter ficado abandonado por oito anos, juntando lixo e empoçando água, tornando-se um criadouro de mosquitos numa época de dengue, zika e chikungunya, não parece ser um problema para a população.

Já quando o velho hotel foi ocupado para a moradia de quem não tem, os ocupantes são tachados de “invasores” – e a urgência de sua denúncia é apagada pelo processo perverso da criminalização.”

(ELIANE BRUM – Leia na íntegra em http://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/20/opinion/1490015804_432739.html)

Em “Era o Hotel Cambridge”, baseado em livro de Carla Caffé, o cinema brasileiro alça-se às alturas artísticas que dele se espera por sua gloriosa história pregressa (de Glauber e Sganzerla, a Meirelles e Coutinho, com incontáveis outros gênios que poderiam ser lembrados). É uma obra coloca-nos algumas questões cruciais para o século 21, época em que vivenciamos a pior crise de refugiados no pós-2ª Guerra Mundial (1939-1945) (sobre o tema, leia: Vladimir Safatle) e em que as utopias urbanas têm insistido em sonhar e construir outros mundos possíveis baseados em ideários como “se a cidade fosse nossa….”.

“Ocupar está em voga na cidade de São Paulo. Secundaristas, massa crítica, hortelões comunitários, Ministério da Cultura (MinC), fábricas de cultura, Minhocão, jornadas de junho, ­rolezinhos foram e são fenômenos que apontaram para movimentos de apropriação e ressignificação dos espaços públicos e da vida pública. São insurgências distintas, na maioria um pontapé da juventude. E que, apesar de separadas no mapa, possuem pontos comuns: resistência, prática autônoma e discurso apartidário. Uma experiência chama especial atenção nesse fluxo, principalmente pelo cruzamento entre diferentes tribos urbanas – militantes, artistas, jornalistas, psicanalistas, arquitetos, médicos e refugiados: a Ocupação Cambridge, fruto de um movimento não tão novo, mas importante na história das lutas sociais da cidade, pela moradia digna.” – CAROLINA CAFFÉ em REDE BRASIL ATUAL – Click e leia o artigo na íntegra

Refugiados e imigrantes provenientes do Congo, da Palestina e da Colômbia estão entre os personagens principais desta obra polifônica, rica em diversidade humana, em que Eliane Caffé inscreveu de vez seu nome nos anais da 7ª arte em nosso país. Desde já, a obra merece ser estudada nas aulas de sociologia, já que torna explícita a práxis deste conceito, às vezes compreendido de modo demasiado teórico ou abstrato do  Direito à Cidade, tão essencial na obra da cientistas sociais como Henri Lefebvre e David Harvey (autor de Cidades Rebeldes), e que possui no Brasil um de seus principais pensadores e praticantes na figura do Guilherme Boulos, filósofo e líder do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).

Eliane Caffé já havia realizado um filmaço com “Narradores de Javé” (2003), onde um banquete linguístico de deixar contente qualquer fã de Guimarães Rosa, José Cabral de Melo Neto ou Ariano Suassuna somava-se à descrição de um drama social que retorna ao foco, ainda em que transformado e em outras condições, em “Era o Hotel Cambridge”.

Ambos filmes falam sobre aqueles que são refugiados no Brasil, apesar de serem brasileiros; são gente que poderia figurar no tratado “Os Excluídos da História”, da historiadora francesa Michelle Perrot (Ed. Paz & Terra); são aqueles que foram expulsos de seu direito constitucional à moradia, ao território tradicional/originário, ao usufruto da terra que nos é comum.

São gente como a gente, da qual subtraem-se direitos a fórceps. São gente que sofre na carne as incontáveis desumanidades institucionalizadas que em toda parte vem maculando esta Terra que hoje encontra-se toda conspurcada pelas cercas, arames farpados e muros altos edificados pelas elites dos privilégios.

Em “Narradores de Javé”, os refugiados são os moradores do vilarejo de Javé, que está sob ameaça de desaparecer debaixo d’água devido à construção de uma gigantesca hidrelétrica. É surpreendente notar que um filme realizado no ano de 2003 pode hoje soar profético, emblemático de uma era do nosso Brasil que prossegue vigente 15 anos depois. É como se Eliane Caffé tivesse previsto com uma quase miraculosa clarividência, desde o começo do século, que vivenciaríamos os conflitos e antagonismos que hoje nos atravessam com os projetos à la Belo Monte e os fluxos migratórios desordenados e caóticos que hoje ocorrem pelo globo afora, piorados após as desastrosas campanhas da chamada Guerra Contra o Terror no Oriente Médio.

A resistência rural à redução do cidadão ao estado de refugiado interno tinge “Narradores de Javé” de um teor contestatório latente, transformando o filme, que poderia ser visto apenas como excelente entretenimento, a um só tempo humorístico e pedagógico, ao patamar mais alto das obras-de-arte que são também documentos históricos e sócio-culturais. É uma obra que permite-nos, por exemplo, avançar uma compreensão mais cheia de empatia e de entendimento dos dramas atuais como a luta do povo Munduruku contra as hidrelétricas no Rio Tapajós.

Em “Era O Hotel Cambridge”, os refugiados são os moradores da megalópolis paulista que têm negados pelos gestores palacianos da sociedade a chance, constitucionalmente garantida, à casa própria e digna. São aqueles que, obrigados por circunstâncias adversas a ocuparem imóveis abandonados, dão suor e sangue a prédios abandonados com a nova vida que lhe infundem através da ocupação.

A ocupa, força vivificante, resistente, que contesta o império atualmente vigente da especulação imobiliária e da gentrificação, serve como laboratório de outros mundos possíveis. Um mundo onde a propriedade de privilégios que privam concidadãos do mais básico para a existência digna seja reconhecida pelo que é: privilégio é só propriedade abusiva, ilegítima, reconhecível apenas como “roubo”, como dizia Proudhon. O privilégio é um roubo.

Em uma resenha escrita por Isabel Wittmann, ela pontuou muito bem o potencial do filme em pôr em questão o abismo existente entre a Constituição de 1988, em sua dimensão igualitária e em suas pretensões de instaurar justiça social, com nossa realidade atual, tão marcada por direitos que nos são violentamente subtraídos, em especial com a avalanche de retrocessos patrocinada pelas forças sociais e políticas responsáveis pelo Golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016-2017.

“O artigo sexto de nossa Constituição Federal estipula que “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. O Estado tem a obrigação de garantir que sua população tenha moradia, mas o que fazer quando os governos não só se recusam a fazê-lo, como reagem no sentido de silenciar movimentos que tentar garantir seus direitos? Essa é uma das muitas questões levantadas em Era o Hotel Cambridge, da diretora Eliane Caffé.

Trabalhando nos limites entre o ficcional e o documental, Caffé registra o cotidiano dos moradores do Hotel Cambridge, edifício abandonado no centro da cidade de São Paulo, destacando as vivências caleidoscópicas de alguns personagens que dão corpo à experiência coletiva. A rotina, as reuniões as tarefas e momentos de engajamentos são retratados com fluidez. Dentre as personagens, o destaque é Carmem, líder real da Frente de Luta por Moradia (FLM), que aqui tem sua força coordenadora descortinada para o público. Mas a narrativa é polifônica: não só se pauta em muitas vozes, como é perceptível a colaboração dos participantes com suas experiências reais nas falas de seus personagens. Em certo momento, Apolo (José Dumont), que organiza um espécie de vlog da ocupação, pergunta “Cadê o foco narrativo?“. Não há um foco pois o protagonista é a luta, sendo cada um apenas uma faceta dela.” (WITTMANN, Isabel)

(http://estantedasala.com/era-o-hotel-cambridge/)

Se o filme oferece-nos motivos para indignação, em especial quando desponta toda a truculência das Tropas de Choque, sob comando do Tucanistão, trata-se de um filme bem mais esperançoso do que, digamos, “Riocorrente” de Paulo Sacramento. A São Paulo focalizada por ambos os filmes é semelhante: é a cidade suja, abandonada, fervilhante de contradições, vista de cima pra baixo, sob a perspectiva dos mais humilhados e ofendidos pelo Sistema; em suma, não é Sampa vista de uma heliponto na Avenida Paulista ou de uma cobertura de 5 milhões no Morumbi, é a Sampa tal como ela é vivenciada nas Crackolândias, favelas e cortiços da maior cidade da América Latina.

“Riocorrente” parece evocar uma Sampa distópica, mais dark que Blade Runner 2049​, onde um dia o Tietê virará nada menos que um rio de fogo – e os protagonistas não vão economizar nas fagulhas e faíscas que tem a fornecer pra que tudo pegue fogo.

“Era o Hotel Cambridge” acredita mais na empatia humana e na força telúrica do amor sob sua encarnação social, expandida para além da cela individual e familiar – aquilo que chama-se comumente de “solidariedade” ou “fraternidade”. O bicho pode estar pegando – a Tucanalha fardada está prestes a chegar, com toda a grosseria brucutu de herdeiros da Ditadura Militar, para cumprir mandato judicial de reintegração de posse com a delicadeza e o respeito humano que viu-se no Pinheirinho (São José dos Campos) – mas o povo, unido, pode até ser vencido, mas luta com união, fortalece-se no esforço de superação das opressões vigentes, reergue-se como Fênix de cada derrota.

Se o Brasil não é um pesadelo totalmente desesperador, é pois existem fortes focos de resistência contra a mercantilização e canalhização completa de nossas vidas. No campo e nas cidades, MSTs e MTSTs, Levantes Populares de Todas as Juventudes, resistências enraizadas dos povos indígenas e quilombolas, artistas com consciência crítica, intelectuais orgânicos atentos aos horrores galopantes, midiativistas e artivistas, dentre outras forças, fazem desta pátria pluritétnica algo muito mais interessante e amável do que a pálida e pútrida propaganda pra patriotário que é a “Ordem e Progresso” do regime Michel Temer​.

Após o golpe de Estado de 2016, “Era o Hotel Cambridge” levanta-se como uma das mais preciosas respostas da Arte Brasileira ao cenário de devastação que está sendo gestado pelos arquitetos da Ponte Para o Futuro (“imaginem quantos milhões de pobres vão morar debaixo dela”, como provoca a tirinha de André Dahmer – malvados​). Este filme pode inclusive ensinar-nos um bocado sobre solidariedade internacionalista, este pilar básico do movimento socialista, que jamais acreditou em emancipação paroquial, mas sim na união de várias emancipações coordenadas, pois onde quer que haja opressão, há resistência e ímpeto de revolução, algo a tecer em união numa grande Internacional Comunista. Com o perdão deste arroubo Trotskysta, voltemos aos refugiados…

Zygmunt Bauman, o finado sociólogo polônes que tanto nos ensina sobre o mundo atual e o drama global dos refugiados, talvez diria, assistindo ao filme de Eliane Caffé, que ele exemplifica perfeitamente o conceito de “sub-classe”, ou de “sub-gente”, que com tanta frequência é mobilizado por nossas elites que tratam vastos contingentes populacionais como simplesmente “matáveis”.

Em “Danos Colaterais – Desigualdades Sociais Numa Era Global” (Ed. Zahar), ele escreveu:

“A condição de subclasse é a de emigrados internos, ou imigrantes ilegais, ‘estranhos de dentro’ – destituídos dos direitos de que gozam os membros reconhecidos e aprovados da sociedade; em suma, um corpo estranho que não se conta entre as partes ‘naturais’ e indispensáveis do corpo social. Algo não diferente de um tumor cancerígeno, cujo tratamento mais sensato é a extirpação…” (BAUMAN, 2011, p. 10)

Esta é a ideologia do nosso inimigo: o fascismo das elites que elegem certos povos, etnias ou territórios como “zonas de sacrifício” (Naomi Klein​), lidando com gente como se fosse sub-gente, meros bichos a serem mandados para matadouros, danos colaterais a aparecerem nos gráficos dos senhores da guerra reunidos em um bunker do FMI…

Como Eliane Brum bem percebeu, “Era o Hotel Cambridge”, sem nenhum panfletarismo explícito – quero dizer, sem nunca ficar parecendo com um discurso de Guilherme Boulos – trabalhou com uma noção crucial para nós no mundo contemporâneo: a fraternidade dos refugiados.

“Esta ideia está explícita na síntese produzida por Carmen Silva, ao abrigar estrangeiros de diversas origens com brasileiros de diversas origens sob o teto da mesma palavra-casa: refugiados”. Ela sinaliza que a identidade só pode existir como atravessamento de múltiplos.

Este é o amálgama que une todos aqueles homens e mulheres, adultos e crianças que se dedicam ao absurdo da vida nos corredores do Hotel Cambridge. O amálgama que coloca os brasileiros como um “fora” mesmo dentro do seu próprio país, os estrangeiros como um “fora” de suas pátrias de origem. Mas todos eles sem refúgio de fato, exceto o do provisório, do efêmero, que constroem num antigo hotel de luxo abandonado. O único refúgio permanente é o desta identidade atravessada que permite que se movam e que confrontem o sistema por “dentro”, eles que são aqueles que foram colocados “fora”. O refúgio permanente é justamente o improvável de sua existência coletiva.

E assim, “Era o Hotel Cambridge” (…) converte-se em uma das obras culturais mais criativas e criadoras dos últimos muitos anos. E uma obra que incorpora a política, na sua expressão mais profunda, como a própria carne do seu fazer. Vida e obra se entrelaçam de tal maneira que o filme está nos cinemas e nas ruas ao mesmo tempo. Para Carmen Silva e moradores do Cambridge, a obra se tornou um instrumento de luta na medida em que se converteu em um meio para se fazer conhecer.” (BRUM)

No ano em que “Eu, Daniel Blake” (de Ken Loach) faturou a Palma de Ouro em Cannes, colocando no epicentro do debate cinematográfico global o tema das desumanidades cometidas pelo neoliberalismo reinante, e em que iniciou de modo tenso a Era Trump na Casa Branca, com ameaças palpáveis de um recrudescimento das guerras imperialistas e de uma piora tanto da crise dos refugiados quanto da insana caminhada para catastróficas mudanças climáticas, o Brasil ergue-se à altura do tempo histórico com um filme que têm algo a dizer a todo o Globo.

EXTRAS


Reportagem TVT


No estúdio TVT, entrevista com Carmem Silva, uma das líderes do Frente de Luta por Moradia (FLM)



Trailer oficial



Metrópolis – TV Cultura


Depoimento de Camila Pitanga
https://www.facebook.com/eraohotelcambridge/videos/1282159991875503/?hc_location=ufi

“Os Índios da Palestina” – por Gilles Deleuze & Elias Sanbar

DeleuzeOS ÍNDIOS DA PALESTINA
Deleuze & Sanbar
(Trad. Arlandson Matheus Oliveira)

Gilles Deleuze: Parece que alguma coisa amadureceu no campo palestino. Um novo tom se insinua, como se eles tivessem superado o primeiro estágio de sua crise, como se tivessem chegado a um lugar de certeza ou de serenidade, com um novo senso de seus “direitos”. Isso sugeriria uma nova consciência. O novo tom parece ter-lhes permitido falar de uma nova maneira, nem agressivamente nem defensivamente, mas como“iguais” com o mundo. Como você explica isso, tendo em vista que os palestinos têm ainda de alcançar seus objetivos políticos?

Elias Sanbar: Tivemos uma sensação desse direito após a publicação do nosso primeiro número. Muitos preocupados com o conflito disseram: “Agora os palestinos têm seu próprio jornal”, e isso parece ter sacudido uma antiga imagem dos palestinos aos olhos do mundo. Não esqueçamos que, aos olhos de muitos, a imagem do palestino combatente – aquela que estamos tentando promover – permaneceu demasiadamente abstrata. Em outras palavras, antes de impormos a realidade da nossa presença, pensavam em nós exclusivamente como refugiados. Quando o nosso movimento de resistência deixou claro que a nossa luta não poderia ser ignorada, fomos uma vez mais reduzidos a uma imagem clichê: éramos vistos pura e simplesmente como militaristas. A imagem era isolada e reproduzida ad infinitum. Não éramos percebidos como nenhuma outra coisa. É para nos libertar da imagem militarista no sentido estrito que preferimos essa outra imagem do combatente.

Acredito que a surpresa que o nosso jornal tem suscitado também vem do fato de que algumas pessoas devem estar dizendo a si mesmas que os palestinos efetivamente existem, e não meramente por uma questão de evocar princípios abstratos. Apesar de o jornal ser palestino, constitui-se num terreno onde muitas preocupações diferentes podem ser expressas, um lugar onde não somente vozes palestinas podem ser ouvidas, mas também vozes árabes, judaicas e europeias.

Algumas pessoas devem também estar se dando conta de que esse tipo de trabalho, oriundo de vários horizontes, remete à existência de muitos palestinos diferentes nos vários setores da sociedade palestina: pintores, escultores, trabalhadores, fazendeiros, romancistas, banqueiros, atores, homens de negócio, professores, etc. Em suma, elas compreendem que existe toda uma sociedade por trás desse jornal.

A Palestina não é apenas um povo, mas uma terra. A Palestina é o que conecta esse povo à terra que tem sido pilhada e defraudada. É um lugar onde o exílio e um imenso desejo de retornar se conjugam, um único lugar, composto de todas as expulsões que o nosso povo vem sofrendo desde 1948. Quando estudamos a Palestina, e acompanhamos as mudanças que a afetam, temos uma imagem sua diante de nós. E nunca a perdemos de vista.

Gilles Deleuze: Muitos dos artigos no seu jornal se referem, e analisam de um jeito novo, os métodos que tem sido empregados para afugentar os palestinos do seu território. Isso é crucial porque os palestinos não se encontram em uma típica situação colonial. Eles são mais removidos e expulsos que colonizados. No seu livro (nota I), você compara os palestinos aos índios americanos. Há, com efeito, dois movimentos distintos no capitalismo. No primeiro, um povo é mantido na sua terra e forçado a trabalhar, explorado para acumular uma mais-valia. Isso é o que geralmente chamamos “colônia”. Mas no segundo, um território é esvaziado do seu povo. O capitalismo então faz um salto gigante em um único esforço, mesmo se isso exigir a importação de trabalhadores e labor manual. A história do sionismo, a história de Israel e a história dos Estados Unidos, todas têm feito este percurso: como criar um vácuo, como esvaziar um território?

Yassir Arafat em uma entrevista assinalou os limites da comparação (nota II), e esse limite abrange o horizonte do seu jornal: ele diz que a diferença é o mundo árabe, enquanto que os índios americanos, tendo sido expulsos do seu território, não tinham ninguém a quem poderiam recorrer para obter suporte econômico ou militar.

Elias Sanbar: Como exilados, a nossa situação é bastante particular, porque fomos expulsos não para um país estrangeiro, mas para os confins da nossa “pátria”. Fomos exilados em países árabes onde nunca passou pela mente de ninguém nos dispersar. Estou pensando na hipocrisia de alguns israelenses que declaram que os árabes têm culpa por não nos “integrar” – o que na fala israelense significa “nos fazer desaparecer”. Aqueles que nos expulsaram estão repentinamente preocupados com algum suposto racismo árabe contra nós. Isso significa que não encontramos situações difíceis em certos países árabes? Claro que não. Certamente encontramos. Mas essas dificuldades não se devem a sermos árabes. Elas são inevitáveis, porque éramos e ainda somos uma revolução armada. Mas, para nossos colonizadores judeus, somos de fato os índios da Palestina. Tudo o que estávamos a fazer era desaparecer de vista. Nesse sentido, a história do estabelecimento de Israel é uma repetição do processo que deu origem aos Estados Unidos da América. Aí provavelmente reside um dos ingredientes essenciais na sua mútua solidariedade.

Nisso, ademais,vemos os elementos que ilustram como, durante o período da Custódia Britânica (nota III), não fomos sujeitos à colonização “clássica”, onde colonizadores e colonizados viviam lado a lado. Os franceses, os ingleses, etc., queriam estabelecer áreas cuja condição mesma de existência dependia da presença dos povos indígenas. Para qualquer dominação efetiva, deveria ser um povo a ser dominado. Isso criou, talvez não intencionalmente, áreas comuns, isto é, redes ou setores ou aspectos da vida social onde o “encontro” entre colonizador e colonizado teve lugar. Que esse encontro era insuportável, explorador, esmagador ou opressivo, não muda o fato de que o “colonizador estrangeiro” teve primeiro de estar “em contato” com “os locais” a fim de exercer a sua dominação.

Então surgiu o sionismo, mas as suas suposições são o oposto: a nossa ausência é uma necessidade, mais ainda, como mostrou Ilan Halevi (nota IV), a pedra angular da nossa rejeição, do nosso deslocamento, da nossa “transferência” e substituição é um traço específico dos sionistas, a saber, o seu pertencimento a uma comunidade judaica. Assim, nasceu toda uma nova classe de colonizadores, “uma desconhecida”, chegando no meio da massa daquilo que acabei de chamar “colonizadores estrangeiros”. Esse novo colonizador opera fazendo das suas próprias características a base da total rejeição do Outro.

Além disso, em alguns sentidos, o nosso país não foi só colonizado em 1948 – ele “desapareceu”. De qualquer forma, é como os colonizadores judeus que se tornaram “israelenses” deve tê-lo experienciado. O movimento sionista mobilizou a comunidade judaica na Palestina não com a ideia de que os palestinos sairiam algum dia, mas com a ideia de que o país estava “vazio”. Houve, é claro, judeus que vieram, viram que era uma inverdade e escreveram sobre isso! Mas a maioria da comunidade judaica agiu como se o povo que eles encaravam todo dia, vivendo e trabalhando, não estivesse lá. Essa cegueira, contudo, não era física. Ninguém poderia enganar-se a esse ponto. Mas todos entendiam que o povo vivendo em seu meio estava “em processo de desaparecimento”. E eles se deram conta de que, para que o desaparecimento se consumasse, a primeira coisa a ser feita era agir como se tal consumação já tivesse ocorrido, “nunca vendo” a existência do Outro, que, no entanto, estava inegavelmente presente. O esvaziamento do território, para ser bem-sucedido, teria de começar pelo banimento “do Outro” da cabeça do colonizador.

Um dos meios de o sionismo obter êxito era jogar o jogo da raça, fazendo do judaísmo o fundamento mesmo para a expulsão, para a rejeição do Outro. As perseguições racistas na Europa foram extremamente úteis nesse sentido, uma vez que forneceram ao sionismo a confirmação dos passos que deveria seguir. Consideramos que o sionismo aprisionou os judeus, mantendo-os cativos da visão que acabei de descrever. Quero enfatizar que ainda os mantém cativos. Isso não é verdade apenas em um momento histórico particular. Digo isso porque a racionalidade sionista mudou depois do Holocausto. O sionismo se modificou, postulando um pseudo-“eterno princípio” de que os judeus seriam desde tempos imemoriais o “Outro” em qualquer sociedade em que vivessem. Contudo, nenhum povo, nenhuma comunidade pode reclamar ocupar essa posição de marginalizado, do maldito “Outro” de forma permanente e inalterável. E afortunadamente isso é verdade, em especial para os judeus.

Hoje no Oriente Médio, o Outro é o árabe, e o palestino. O desaparecimento desse Outro é agora a ordem do dia, e o fato de que é a esse Outro, que corre o risco de desaparecer, que os poderes ocidentais pedem por garantias é a medida da hipocrisia e do cinismo. Somos aqueles que precisam de garantias, para sermos protegidos da loucura dos líderes militares israelenses.

Em qualquer caso, a OLP [Organização de Libertação Palestina], nossa única representante, propôs uma solução para o conflito: um estado democrático na Palestina, um estado onde os muros que existem entre os habitantes, quem quer que fossem,seriam demolidos.

Gilles Deleuze: As páginas de abertura do primeiro número do seu jornal contêm um manifesto: somos “um povo como qualquer outro”. O sentido dessa declaração é múltiplo. Em primeiro lugar, é um lembrete, ou um clamor. Os palestinos são constantemente acusados de não reconhecerem Israel. Bem, dizem os israelenses, eles querem nos destruir. Mas por mais de 50 anos, os palestinos têm lutado para serem reconhecidos como um povo. Em segundo lugar, a declaração marca uma oposição ao manifesto de Israel, que diz “não somos um povo como qualquer outro” por causa da nossa transcendência e da enormidade das nossas perseguições. Daí a importância, no segundo número, dos dois textos de escritores israelenses sobre o Holocausto e a significância que esse evento teve em Israel, especialmente com relação aos palestinos e ao mundo árabe, intocado por uma tal catástrofe. Exigindo “ser tratado como um povo com um status excepcional”, o Estado de Israel mantém uma dependência econômica e financeira do Ocidente de uma maneira que não pode jamais ser equiparada à de nenhum outro Estado (Boaz Evron, nota V). Essa dependência do Ocidente explica o porquê de os palestinos serem tão duros relativamente à declaração contrária: eles desejam se tornar o que são, a saber, um povo com um status “excepcional”. À medida que opõem a história ao apocalipse, existe um sentido da história como possibilidade, a multiplicidade daquilo que é possível, a profusão de múltiplas possibilidades a cada momento. Não é isso que o seu jornal espera fazer evidente na sua análise?

Elias Sanbar: Absolutamente. A ideia de um clamor para recordar ao mundo a nossa existência é profundamente plena de sentido, mas é também bastante simples. É o tipo de verdade que, uma vez reconhecida, fará as coisas muito difíceis para qualquer um que ainda conte com o desaparecimento do povo palestino. No fundo, o que essa verdade diz é que todo povo tem “um direito aos seus direitos”, por assim dizer. Isso é auto evidente, mas é tão poderoso que representa o ponto de partida e o objetivo de toda luta política. Veja os sionistas: o que eles têm a dizer a esse respeito? Você nunca os ouvirá dizer: “os palestinos têm direito a alguma coisa”. Nenhum dispêndio de força pode sustentar tal posição, e eles o sabem. Eis por que a afirmação da existência do povo palestino é tão poderosa, muito mais do que pode parecer à primeira vista.

[Essa entrevista com Elias Sanbar foi publicada no Libération, em 8-9 de maio de1982, p. 20-21. Precedendo-a, havia umas poucas palavras que Deleuze escreveu sobre a Revue d’Etudes Palestiniennes, criada em outubro de 1981, e cujo objetivo era analisar os fatores responsáveis pela crise no Oriente Médio: “Desde algum tempo, esperávamos por um jornal árabe na França. Pensávamos que ele viria do norte da África, mas acontece que os palestinos o fizeram primeiro. Embora claramente focado nos problemas palestinos, esse jornal tem duas características que deveriam preocupar o mundo árabe como um todo. Primeiro, contém uma penetrante análise sociopolítica que revela um perfeito autocontrole, em um tom sereno; segundo, delineia um “corpus” literário, histórico e sociológico que é propriamente árabe, extremamente rico e pouco conhecido.” Elias Sanbar é um escritor palestino nascido em 1947 e editor-chefe da Revued’Etudes Palestiniennes. Deleuze e ele eram amigos desde o final dos anos setenta.]

[Traduzido ao português a partir da tradução ao inglês de Ames Hodges e Mike Taormina contida em “Two Regimes of Madness – Texts and Interviews, 1975-1995.”]

NOTAS

(i) Elias Sanbar, Palestine 1948, l’expulsion (Paris: Les Livres de la Revue d’Etudes Palestiniennes, 1983).
(ii) In Revue des Etudes Palestiniennes, 2, inverno de 1983, p. 3-17.
(iii) A Palestina esteve sob um regime militar britânico até 1921, quando a Liga das Nações declarou-a um Território de Custódia da Grã-Bretanha. A administração civil começou em 1923 e se encerrou em 15 de maio de 1948, quando os britânicos se retiraram e o estado de Israel foi criado.
(iv) Ilan Halevi, Question juive, la tribu, la loi, l’espace (Paris: Editions de Minuit, 1981).
(v) Boaz Evron, “Les interprétations de ‘l’Holocaust:’ Un danger pour le peuple juif,” Revue d’Etudes Palestiniennes, no. 2, inverno de 1982, 36-52.

COMPARTILHE NO FACEBOOK ou no TUMBLR

LEIA TAMBÉM: DELEUZE SOBRE A PALESTINA (1978 NO LE MONDE)

BONUS TRACK:
DELEUZE, O ABCDÁRIO / LETRA G de “GAUCHE” (ESQUERDA):