Da angústia solitária à revolta solidária: sobre a filosofia de Albert Camus || A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.”
ALBERT CAMUS em “Núpcias” [1]

CAPÍTULO 1: A Indesejada das Gentes

Confinados na implacável finitude da vida, nós, os mortais, temos acesso a poucas certezas inabaláveis, dignas do estatuto de verdades absolutas. A mais irrecusável das certezas, para cada um e todos, é a de que todos nós um dia vamos morrer – como diz o provérbio: morte certa, hora incerta.

Por ser aquilo que nos é comum, não importa em que latitude e longitude vivamos, nossa finitude nos une. No entanto, sermos finitos não é simplesmente algo aceito e acolhido como um fato bruto, mas sim algo que é “vestido” pela consciência humana com as mais variadas roupas, embalado nas vestes de crenças multiformes. O único bicho que sabe que vai morrer é também o animal simbólico, faminto por sentido. A vivência do perceber- se mortal é de extrema diversidade conforme as crenças (ou ausência destas) que a pessoa nutra (ou que tenha destroçado em si).

Além disso, é variável o grau de realização da morte [2], ou seja, o sujeito considera como real tal condição num gradiente que vai da negação de quem finge que a morte nunca virá, à obsessão mórbida de quem pensa-se como “cadáver adiado” (Fernando Pessoa) [3] a todo momento de todos os dias. As dinâmicas psíquicas do recalque / repressão desta consciência de nossa radical limitação espaço-temporal, socialmente consolidadas em ideologias destinadas ao negacionismo da finitude, são tema do clássico A Negação da Morte (The Denial of Death) de Ernest Becker [4].  

O fato de sermos mortais, ao mesmo tempo que nos une na mesma condição que nos é comum, também nos separa radicalmente: assim como “ninguém vive por mim” (cantou lindamente Sérgio Sampaio) [5], também podemos dizer a qualquer um: ninguém vai morrer no teu lugar, a tua própria morte é algo que você vai ter que encarar, cedo ou tarde, querendo ou não. Cada um encara o processo de morrer num estado onde a solidão se manifesta de modo mais extremo do que em outras vivências humanas. Pode ser que o poeta chileno Nicanor Parra tenha razão ao propor que “a morte é um hábito coletivo” [6], mas cada sujeito a vivencia de maneira singular. E arrasta para o túmulo e seu eterno silêncio o segredo incomunicável do que se passou por dentro naqueles últimos momentos vitais antes do fatal ponto-final.

Pedra irremovível no caminho do desejo de imortalidade que muitas vezes os humanos nutrem, a morte existe sobretudo como horizonte. Está presente por sua iminência. O que nos condena à angústia como parte integrante da condição humana. Costuma-se dizer que somos os únicos animais no planeta Terra que sabem que vão morrer, mas talvez fosse mais preciso dizer que o sentimos mais que sabemos. A angústia é este afeto em nós que atesta a nossa finitude.

Na história da filosofia, a reflexão sobre o futuro estado de esqueleto de cada um de nós já foi alvo de muitas reflexões: a sabedoria Epicurista pretendia curar o medo da morte e dos deuses, causadores de intranquilidades da alma que impedem a sábia ataraxia, com uma argumentação que a Carta a Meneceu (Sobre a Felicidade) sintetiza assim: “Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações.” [7] Quase dois milênios depois, Michel de Montaigne, em um de seus mais célebres ensaios, exploraria a noção de que “filosofar é aprender a morrer” [8].

É preciso aprender que, querendo ou não, a morte é nosso quinhão e que dar sentido a uma vida que acaba é nossa perpétua tarefa. A sensação de absurdo que às vezes se espraia pela existência tem a ver com o fato de que a foice às vezes pode arrasar com um vivente em momento inoportuno, em hora precoce, quando ele ou ela ainda estava cheio de sonhos, planos e forças.

Por isso, raros são aqueles que enfrentam a vida sem medo algum: a possibilidade da morte, sobretudo injusta, súbita, dolorida, tira-nos o sossego. Talvez nunca tenha nascido e completado sua trajetória finita entre os vivos nenhum animal humano que possa dizer, do berço ao túmulo: “atravessei o tempo sem nunca temer a morte”. Para o poeta Manuel Bandeira, a morte é “a indesejada das gentes”, a “iniludível” (aquela que não se pode burlar ou enganar) [9]:

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.

Pintura de Arnold Boecklin


CAPÍTULO 2: A CLARIVIDÊNCIA, IMPRESCINDÍVEL VIRTUDE CAMUSIANA 

Para Albert Camus (1913 – 1960), não há escapatória: “a angústia é o ambiente perpétuo do homem lúcido” – e a questão das questões, como o príncipe Hamlet sabia, consiste em escolher entre o sim à vida (ainda que angustiada) ou o não à ela (o caminho do suicídio) [10]. Quem vê claro, nesta vida, não escapa de sentir o fardo de afetos angustiantes. O que importa é que a angústia não nos paralise, que possa inclusive servir à nossa ação e ao nosso Combat – nome do jornal com o qual Camus colaborou, crucial na cobertura de eventos históricos como a Resistência à ocupação nazista da França, a Guerra de Independência da Argélia e o Maio de 1968.

Neste livro (Folio, 2013, 784 pgs), estão reunidos 165 artigos publicados por Camus no jornal Combat, onde ele atuou como editor chefe entre agosto de 1944 e junho de 1947. Saiba mais.

Publicado em 1947 pela Editora Gallimard, o romance “A Peste” expressa a atitude existencialista Camusiana diante dos flagelos que parecem querer soterrar a humanidade sob os escombros de um sentido arruinado. Diante da irrupção do absurdo coletivo que é a peste, esta máquina mortífera que ceifa vidas de animais humanos como se estes fossem moscas, o que propõe o artista-filósofo franco-argelino?

Para começo de conversa, o absurdo, para Camus, é um ponto de partida e não de chegada. Não se deve ficar estagnado diante do absurdo, como se ele fosse uma barreira intraponível que deveria nos fazer desistir de qualquer ação, abandonando-nos à passividade. A percepção do absurdo deve conduzir à revolta solidária dos humanos em luta contra os males de seu destino. Se, de fato, a revolta e a solidariedade são valores basilares do ethos camusiano, é preciso destacar ainda o posição de destaque que a virtude da clarividência ocupa no universo temático de Camus.

Isto que a língua francesa chama de clairvoyance tem um sentido próximo ao de lucidez. A lúcida clarividência está fortemente presente em A Peste, como se Camus quisesse ensinar que é preciso ver claro em meio ao horror se não queremos aumentá-lo ou colaborar com ele. Perder a lucidez, deixar ir pelo ralo a clarividência, em nada ajuda a frear a expansão das epidemias, nem auxilia a vencer as infestações do fascismo. O médico Bernard Rieux, narrador do romance, trabalha arduamente em meio à proliferação da doença, ainda que sinta seu cotidiano de combatente anti-peste como um trabalho de Sísifo, repleto de “intermináveis derrotas”.

É preciso compreender que Bernard Rieux é uma espécie de Sísifo em tempos de flagelo coletivo, numa época em que há a irrupção do absurdo em escala massiva. O rochedo que ele tenta arrastar montanha acima é a saúde de seus pacientes. Muitos de seus esforços médicos são em vão: a peste vence frequentemente e o paciente morre. Mas a batalha perdida não finda a guerra. Novos infectados não param de chegar aos hospitais, como novos rochedos a tentar empurrar montanha acima rumo à saúde sempre precária.

Rieux jamais desiste da luta, por mais que seja muitas vezes derrotado em seu intento de curar os adoentados ou de diminuir o sofrimento dos agonizantes. Rieux, apesar do tom afetivo que o domina ser o de um pessimismo de homem ateu, não cai nunca no derrotismo ou na resignação imóvel. Rieux é um trabalhador: não fica de braços cruzados diante dos males concretos que afligem os corpos de seus concidadãos. Não espera ou pede nenhum auxílio divino ou sobrenatural. Por isso, apesar de tantas derrotas diante da peste mortífera, o Doutor Rieux não se torna nunca um derrotado no sentido que dá a esta palavra o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, para quem “os únicos derrotados são os que baixam a cabeça, que se resignam com a derrota.  A vida é uma luta permanente, com avanços e retrocessos”. [11]

Imaginem se Mujica, em algum momento de angústia extrema, durante o período de 12 anos em que esteve confinado nos cárceres da Ditadura Militar uruguaia, tivesse desistido da luta. Se tivesse gasto até a última fibra de sua coragem e resiliência de tupamaro, se tivesse utilizado a saída do suicídio para escapar dos horrores de estar entre os vivos em tais condições horríficas, aí sim teria sido um derrotado – e não o futuro presidente do Uruguai e um ícone das esquerdas latinoamericanas. Por isso, no poster do filme Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner, que retrata as vivências de Mujica e outros dois prisioneiros, destaca-se a frase: “los únicos derrotados son los que bajan los brazos”. [12]

História semelhante se poderia contar sobre Nelson Mandela, Oscar Wilde, Antonio Gramsci ou Luiz Inácio Lula da Silva: na prisão, eles não abaixaram a cabeça, não se renderam à opressão deixando a resiliência cair estilhaçada ao solo, seguiram determinados em sua luta, clarividentes e revoltados em face de absurdos insultantes. Atravessando a noite que parece interminável. Nunca aderindo à preguiça dos passivos ou à inação dos resignados.


CAPÍTULO 3: A LITERATURA DAS ENCRUZILHADAS

Vários debates filosóficos atravessam o romance de Camus: A Peste é um romance repleto de difíceis encruzilhadas em que os personagens tentam escolher entra as alternativas que o destino lhes impõe. O jornalista Rambert, por exemplo, está separado da mulher que ama, preso na Oran empesteada, de onde as autoridades não permitem que ninguém entre ou saia. Tomando medidas para pagar por uma fuga, Rambert entra em negociações com contrabandistas, mas os acordos não avançam muito bem. Retido na cidade em quarentena, Rambert decide-se a trabalhar junto com o Dr. Rieux enquanto aguarda ocasião mais oportuna de escapar dali para se re-encontrar com sua amada.

Depois de muito refletir, quando enfim se apresenta a ocasião da fuga, Rambert prefere ficar ao invés de partir. Explica que “se partisse sentiria vergonha”. Ao que Rieux responde com firmeza que isto é uma “estupidez” e que “não há vergonha em preferir a felicidade”. Ou seja, em meio à desgraça toda, os personagens debatem sobre o hedonismo enquanto doutrina ética, a noção de que uma prazeirosa felicidade é o fim último (télos) da existência humana.

Rambert, nesta sua encruzilhada ética, sopesa as alternativas: fugir em direção à mulher de quem sente saudades é sua tentação mais forte, sua vontade quase irreprimível, pois é este o caminho que lhe aponta sua ânsia de felicidade, sua fome relacional, seu ímpeto de gozo afetivo, sexual, de estima carnal. Porém, o outro caminho que se desenha na encruzilhada é o de ficar na cidade para trabalhar, junto com os outros, em prol de uma melhoria da condição de todos. Rambert prefere ficar, argumentando, contra Rieux e seu hedonismo, que pode sim ser motivo de vergonha “querer ser feliz sozinho” (être heureux tout seul) [13].

Em contexto de flagelo coletivo, Rambert acaba por concluir que não tem direito à fuga na direção de sua felicidade individual. Terceira voz neste diálogo, Tarrou percebe bem que a natureza da escolha na qual Rambert se debate envolve um desejo de empatia para com os que sofrem durante a peste. Porém, esta empatia pode mergulhar o sujeito numa tal maré de compaixão que ameaça destruir completamente sua possibilidade de vivenciar afetos alegres e vivificantes. Para Tarrou, se Rambert “quisesse partilhar da infelicidade dos homens, não haveria jamais tempo para a felicidade. Era preciso escolher.”

Rambert, apesar do sofrimento da separação, que às vezes o conduz a gritar a plenos pulmões (op cit, item 13, p. 185) em montes desertos da cidade, acaba por decidir-se que não quer suportar a vergonha de fugir tentando ser feliz alhures, argumentando que “essa história nos concerne a todos”. Sua atitude tem pontos de contato com Sócrates tal como descrito no diálogo platônico Crítono filósofo se recusa a fugir da prisão de Atenas onde está condenado a morrer pela cicuta, argumentando que ser vítima de uma injusta é preferível a ser injusto violando as leis da pólis.

O Dr. Rieux, de maneira similar ao jornalista Rambert, está separado de sua esposa, com quem se comunica por cartas e telegramas, mas nunca lhe ocorre a tentação de escapar: ele chega a trabalhar 20 horas por dias nos meses de auge da peste, como heróico médico que vê sua fadiga e exaustão crescerem até os extremos, sem nunca desistir de seus deveres ou “amarelar” diante do fardo de sua responsabilidade.


CAPÍTULO 4: CAMUS E NIETZSCHE: UM DIÁLOGO FECUNDO

Ganhador do Nobel de Literatura de 1957, Camus devotou muitos esforços a um diálogo fecundo e crítico com a obra de Nietzsche (1844-1900): “o filósofo alemão agiu como um álcool forte sobre Camus”, defende Michel Onfray [14].

No Brasil, um livro brilhante de Marcelo Alves, pesquisador graduado em Filosofia e Mestre em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), explora com maestria o tema: Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche (um livro que nasce de sua tese de mestrado disponível na íntegra) [15].

Unidos na “fidelidade à terra”, como dizia Zaratustra, Nietzsche e Camus estão sintonizados no interesse que compartilham pelo amor fati, o amor ao destino. O ethos do espírito livre consiste em amar a vida  exatamente como ela é, sem exclusão de tudo que existe nela de contraditório, problemático, horrendo e assustador. Camus fala assim das “núpcias” do homem com a natureza:

“Aprendo que não existe felicidade sobre-humana, nem eternidade fora da curva dos dias. Esses bens irrisórios e essenciais, essas verdades relativas são as únicas que me comovem. (…) Não encontro sentido na felicidade dos anjos. Só sei que este céu durará mais do que eu. E o que chamaria de eternidade, senão o que continuará após minha morte?

A imortalidade da alma, é verdade, preocupa a muitos bons espíritos. Mas isso porque eles recusam, antes de lhe esgotar a seiva, a única verdade que lhes é oferecida: o corpo. Pois o corpo não lhes coloca problemas ou, ao menos, eles conhecem a única solução que ele propõe: é uma verdade que deve apodrecer e que por isso se reveste de uma amargura e de uma nobreza que eles não ousam encarar de frente.” (CAMUS) [16]

Alves comenta:

“O corpo é a medida do homem lúcido diante da sua condição. Amar a natureza é reconhecê-la, antes de tudo, enquanto limite e possibilidade da vida humana. Amor trágico esse, na medida em que se ama o que por fim nos aniquila. Muitos homens, no entanto, preferem recusar essa sabedoria trágica e transformar o seu medo da morte na esperança de outra vida… Mas custa caro desprezar a verdade do corpo, ser infiel à terra, deixar-se iludir por uma esperança, isto custa o preço da própria vida, ‘porque se há um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por uma outra vida e se esquivar da implacável grandeza desta’, como escreve Camus. (…) Fidelidade à terra é justamente o que Zaratustra não cessa de pedir encarecidamente a seus discípulos, alertando-os ao mesmo tempo sobre a ‘enfermidade’ característica dos ‘desprezadores do corpo’, dos ‘transmundanos’ e dos ‘pregadores da morte’.” (M. ALVES) [17]

Esta valorização do corpo, da vida encarnada, das verdades relativas, da sensorialidade palpável, nada tem a ver com uma idealização do corpo que apagasse tudo que há nele de problemático e trágico: Camus chama o corpo de “uma verdade que apodrece” e não cessa de refletir sobre a revolta humana diante da morte, ou seja, da finitude deste corpo matável e adoecível. Camus quer manter-se fiel à Terra e à virtude da lucidez, o que exige vivenciar nossa condição corpórea em tudo que ela comporta de delícia e de tragédia: é com o corpo que se pode entrar no êxtase das núpcias dionisíacas com a natureza, mas é com o corpo que se pode também sofrer os horrores da angústia e as indizíveis dores da agonia.

“Para Camus ser fiel à terra inclui ser fiel aos homens de carne e osso que conosco compartilham, aqui e agora, a experiência de viver. (…) A solidariedade assim praticada é uma chance ao possível, uma chance àquilo que só através dos homens em luta comum contra sua condição pode vir à existência: a liberdade, a justiça, a felicidade e o amor.” (ALVES, op cit., p. 90-91) [18]

Ao analisar “A Peste”, Marcelo Alves destaca que Camus está ali “trabalhando literariamente as críticas formuladas nas Cartas sobre o nazismo” (em especial a Carta a Um Amigo Alemão), de modo que “é preciso tomar o mal como o símbolo maior do romance: o mal que o nazismo produziu e o mal a que o homem está condenado a sofrer por sua própria condição. Trata-se do mal no sentido trágico, do mal que se expressa através do sofrimento físico e moral daquele que vive sob o peso inexorável da mortalidade. É nesse sentido que Camus pode afirmar que a peste é a mais concreta das forças.” (op cit, p. 97) [19]

Escrevendo sobre o tema, o autor português Hélder Ribeiro aponta outras similaridades e sintonias entre Camus e Nietzsche:

“A origem da ética de Albert Camus está na monstruosidade que consiste em sacrificar os corpos às ideias. Encontramos talvez aqui o segredo do laço que une as concepções de Camus e de Nietzsche. Se Nietzsche empreende uma genealogia da moral cristã, para compreender como esta veio a produzir a negação da própria vida, e isto no contexto da sociedade burguesa do século XIX, Camus empreende uma genealogia da moral política do século XX, para compreender como esta veio a produzir a negação hitlerista e estalinista da vida.

Como na Genealogia da Moral, Camus pensa que a cultura e a moral do Ocidente chegaram a um envenenamento inexorável da vida e trata-se de tirar a máscara. (…) Que deve Camus a Nietzsche? Mais do que afirmações, o clima do seu pensamento, e acima de tudo a recusa global da ficção platônico-cristã dos dois mundos. Não há Além que repare a decepção multiforme de cá-de-baixo e que nos conduza ao Uno. Quando Camus suspira pela unidade, não a refere à ideia platônica que supõe o ultrapassar das aparências. As aparências são a única verdade. O Uno deve descobrir-se na própria dispersão do sensível e a tentação mística só pode ser naturalista.

“Todo o meu reino é deste mundo”, escreve Camus. É a fórmula mais flagrante desta convicção. O corolário é a exaltação do corpo e das verdades que o corpo pode tocar. A verdade do corpo ultrapassa a verdade do espírito. Ora, o mais alto poder do corpo é a arte, que opera uma transmutação do sensível sem o recusar.

O niilismo de Nietzsche, procedendo de uma experiência extrema do desespero, quebrando todos os ídolos do progresso com o mesmo cuidado com que recusava a sombra de Deus, chega, no entanto, a um consentimento radioso, dionisíaco, ao Todo do ser real do mundo, na sua totalidade e em cada realidade particular. O consentimento que dorme na revolta de Camus e lhe dá um sentido, esse “amor fati” que no sim à vida inclui a própria morte, de modo que chega a chamá-la de “morte feliz”, provém em parte de Nietzsche…”. (RIBEIRO, H.) [20]


CAPÍTULO 5: RELEVÂNCIA DE CAMUS NA ATUALIDADE PANDÊMICA

Diante da pandemia de covid-2019 que assola o mundo em 2020, “A Peste” teve uma notável re-ascensão e tornou-se um dos livros mais procurados na Europa, como relata a reportagem da BBC Brasil [21]. Seu status de best-seller na conjuntura deste evento traumático do séc. 21 é prova inconteste não só da atualidade da literatura Camusiana, mas também do brilhantismo com que seu autor sobre tratar dos flagelos da doença somados aos horrores da política. Pois se sabe que a obra nasce sob a influência da Ocupação Nazifascista de Paris, onde Camus escrevia no jornal libertário Combat e participava da Resistência contra a extrema-direita alemã.

O paralelo com o Brasil de 2020 é extremamente possível: a “peste” da covid-19 já é uma lástima terrível por si só, mas a ela se soma o fato de estarmos sob o desgoverno neofascista da seita obscurantista do Bolsonarismo. O chefe da seita, durante toda a pandemia, foi criminosamente irresponsável, acarretando milhares de infecções e mortes ao negar a gravidade do problema, boicotar medidas de isolamento e dar preferência a CNPJs e não a CPFs – ou seja, preferindo agradar empresários, banqueiros e rentistas, aderindo ao “matar ou deixar morrer” no que diz respeito aos trabalhadores empobrecidos pela crise. Além disso, o ocupante do Palácio da Planalto notabilizou-se globalmente por ser o líder do negacionismo do coronavírus, desdenhando de uma doença que em Maio de 2020 já havia ceifado mais de 300.000 vidas, mas que segundo Seu Jair não passa de um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta” e que não deve fazer parar as rodas da economia.

No romance de Camus, o fenômeno do negacionismo da peste, típico do Bolsonarismo na atualidade, também dá as caras. Alves escreve: “A primeira dificuldade dos homens diante da peste é a de reconhecer a sua existência. Por todos os meios procuram negá-la. Muitas vezes simplesmente dando-lhes as costas, outras encarando-a como uma abstração. Primeiro, a administração pública hesita em tomar as providências para não alarmar a população…. Depois, mesmo diante dos sintomas, muitos recusam-se a admiti-la: ‘Mas certamente isso não é contagioso.’, diz um personagem. Por fim, mesmo após o reconhecimento oficial do flagelo e do isolamento importo à cidade, os habitantes ainda resistem a aceitar o fato…” (ALVES, M. p. 98) [22]

A seita necrofílica dos Bolsonaristas tornou-se mundialmente famigerada justamente por este tipo de funesta e macabra irresponsabilidade das ações negacionistas.  Ao seguirem como ovelhas obedientes os ditames do Grande Líder, muitos cidadãos Bolsominions acabaram sabotando medidas de contenção, aglomerando-se para manifestações golpistas, fazendo coro à pregação de Jair de que algumas milhares de mortes eram preferíveis à diminuição dos lucros empresariais. Tudo isso tornou Bolsonaro uma figura internacionalmente repudiada como um dos piores presidentes do mundo em seu trato com a peste, tendo sido denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais.

Neste contexto, a leitura de Camus torna-se ainda mais relevante ao grifar sempre a importância crucial de transcendermos a angústia solitária e isolada, rumo à solidariedade na revolta:

“A vitória sobre a peste só acontece quando o homem reconhece que se trata de uma tragédia coletiva e, no lugar do isolamento individual, faz da sua cumplicidade trágica com os outros homens um só grito de revolta e lucidamente dá início à sua tarefa de Sísifo: ‘colocar tanta ordem quanto possa em uma condição que não a possui’. É verdade que nesse caso a vitória é sempre provisória, jamais definitiva, mas é a única vitória possível e desejável para aqueles que procuram nada negar nem excluir: nem a condição humana, nem a dor do homem. O médico Rieux, personagem e narrador do romance, encarnará o homem camusiano que vive entre o sim e o não: aquele que não se esquiva da condição humana, mas não se resigna às suas misérias; aquele que aceita o peso da existência, aceita rolar a sua pedra, que é o espelho opaco da sua virtude, mas se recusa a aumentar o mal, tanto através da ação quanto da omissão.” (ALVES, M., op cit, p. 101) [23]

O Dr. Bernard Rieux, encarnação da lucidez e da solidariedade, age em A Peste com um ethos de Zaratustriana fidelidade à terra e a seus viventes. Mesmo que na época em que o romance se passa a cidade argelina de Orã esteja empestada, mergulhada nos flagelos da doença e do sofrimento, Rieux permanece aferrado a este princípio: “O essencial era impedir o maior número possível de mortes e de separações definitivas. E o único meio para isto era combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas consequente.” (CAMUS, A Peste, I, 1327) [24]

Na verdade, Bernard Rieux não é um Übbermensch super-heróico, mas um médico de carne-e-osso, sujeito à fadiga e ao desespero, mas que decide suportar o peso de sua lucidez e agir incansavelmente com base na sua ética da solidariedade, da empatia e da revolta contra a peste. Esta peste é tanto doença em si quanto, de maneira metafórica, a política fascista, aquilo que chamaríamos hoje, a partir de conceito proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, de necropolítica [25].


CAPÍTULO 6: A AGONIA DE UMA CRIANÇA DIANTE DE UM MÉDICO E UM PADRE

No enredo, o médico Rieux também aparece como o antípoda do padre Paneloux. Onde o cristianismo prega oração e resignação, o médico ateu defende a ação coletiva solidária e obstinada contra o mal. Alves comenta: “Rieux combate ídolos, contesta abstrações, não a marteladas, mas através de sua obstinação em cuidar dos corpos… O médico é aquele que sabe dos limites da condição humana, mas não se submete a eles; sabe que não salvará tudo ou a todos, mas decide agir segundo as suas forças para salvar o que pode ser salvo: alguns corpos, por algum tempo.” (Alves, p. 106) [26]

No destino do Padre Paneloux, Camus nos fornece um memorável memento do que significa o desprezo pela Ciência em tempos de peste. Em meio à Orã transtornada pela epidemia, o padre Paneloux fazia sermões pregando que o flagelo era uma punição divina pelos pecados de alguns de seus concidadãos. Daí saltava para a idéia de que a vontade divina utilizava-se da peste como seu instrumento. E daí foi só um passo até que passasse à noção de que seria heresia ir contra a vontade de Deus: a atitude de um autêntico cristão consistiria na aceitação plena dos decretos do Céu.

No capítulo 3 da parte IV, uma cena-chave de A Peste se desenrola: uma criança gravemente enferma será cobaia para um teste de uma vacina (sérum), uma das esperanças de conter a epidemia. O sofrimento horrendo desta criança dá ensejo para que os personagens reflitam a fundo sobre a condição humana, os males do mundo e as injustiças de que nossa situação existencial está repleta. A tentativa de curar a criança não é bem sucedida e após uma longa agonia, extremamente sofrida, o menino morre. Ao redor do leito, Dr. Rieux, padre Paneloux, Tarrou realizam um debate crucial nesta situação excruciante.

O que está em questão, em última análise, é a dor infligida aos inocentes, em todo seu escândalo. A agonia de uma criança parece causar o desmoronamento da argumentação teológica exposta no primeiro sermão do Padre Paneloux (cap. 3, parte II), segundo o qual a infelicidade (malheur) seria sempre merecida, pois toda peste é punição contra pecadores, um purgativo enviado por Deus (p. 91). Caso aceitássemos o argumento do padre, Orã seria similar a Sodoma e Gomorra e “a peste teria origem divina e caráter punitivo” (p. 95). Daí decorre que o padre recomende a seus concidadãos que se ajoelhem, se arrependem e orem aos céus por misericórdia. Com fé, Deus os ouvirá e salvará. Seu discurso traz o dedo em riste, acusatório, lançando sobre os pecadores a culpa pelo flagelo vivido pela cidade. Assim, inventa-se um sentido como antídoto para o absurdo num procedimento que Slavoj Zizek chama de “the temptation of meaning” [27].

Esta cena d’A Peste em que a agonia da criança é sentida diferencialmente pelo médico e pelo padre está entre as obras-primas da dramaturgia Camusiana e aí também se jogam os lances decisivos para a apreciação plena do que pensa o autor sobre a fé. O sofrimento horrendo de uma criança que agoniza põe em crise o discurso do padre Paneloux, sua noção de que os afligidos pela peste eram pecadores: para manter tal ideologia, seria preciso dizer que a criança era culpada, ou mesmo que nasceu com a culpa provinda do princípio dos tempos, ou seja, do Pecado Original de Adão e Eva. É assim que a fé judaico-cristã pretende nos convencer que é merecido o sofrimento na infância?

O Dr. Rieux opõe-se a esta ideologia religiosa que culpabiliza para que possa manter a fé, ainda que num Deus abjeto e que se sirva da agonia infantil como um de seus perversos instrumentos de vingança contra os pecadores. O Dr. Rieux é muito mais ateu e a vivência da peste só aprofunda seu ateísmo. O suplício e a agonia de uma criança lhe parecem um escândalo injustificável, uma absurdidade que estilhaça a possibilidade de crer em Deus.  Porta-voz do ateísmo Camusiano, o Dr. Rieux se recusa em amar uma criação onde crianças são torturadas, ou seja, recusa a própria noção de um Criador que pudesse ter aceito, como parte do mundo criado, a agonia injusta de pequenas pessoas que vieram ao mundo recentemente e que acabam por ser expulsas dele em meio a um absurdo sofrer.

Na história da filosofia contemporânea, o filósofo Marcel Conche inspirou-se em argumentos muito próximos aos Camusianos para formular suas provas da inexistência de Deus com que abre sua obra Orientação Filosófica. [28]

O ateísmo, em Camus, parece ser a decorrência necessária da lucidez daqueles que não escamoteiam o absurdo da existência e que, através da revolta, alçam-se do “eu sou” ao “nós somos”: superando o racionalismo idealista de René Descartes e seu cogito (“penso, logo existo”), Albert Camus propôs o cogito existencialista-ateu, digno de virar bandeira de todos nós que nos solidarizamos na revolta contra os males de que o mundo terrestre está repleto: “eu me revolto, logo somos”.

Ao adoecer, o padre Paneloux recusa-se terminantemente a chamar um médico – ainda que soubesse que o Doutor Rieux estaria a postos, prestativo, para atendê-lo, sem poupar esforços para salvá-lo. Para o padre Paneloux, há uma contradição insolúvel entre a fé e a ciência: para manter-se crente, ele precisa recusar a medicina. No extremo do delírio desta fé auto-destrutiva, prefere fechar as portas ao socorro que poderia lhe vir dos terráqueos, permanecendo aberto apenas ao socorro que lhe viria do divino. Agarra-se ao crucifixo, recusando hospitais e remédios.

A desastrosa escolha de Paneloux o conduz a uma agonia horrorosa, sem analgésicos nem morfina, em que ele decide imolar a saúde num altar imaginário onde pensava estar encontrando a salvação. Encontrou apenas a morte absurda dos que desdenham daquilo que o ser humano pôde inventar, neste mundo, em prol do auxílio mútuo e da solidariedade concreta.

No livro de George Minois sobre A História do Ateísmo, Camus aparece como um artista-pensador que jamais recomenda que percamos tempo de vida com a ânsia de ascensão a um Paraíso transcendente, prometido aos “eleitos”, aos que tenham sido dóceis e obedientes nesta vida. Camus convoca para que trabalhemos juntos neste mundo para torná-lo menos opressivo e mais amável, o que exige que possamos assumir nossas responsabilidades. Não aquela responsabilidade de “servir a um ser imortal”, mas sim a de livrar-se desta subserviência para assim “assumir todas as consequências de uma dolorosa independência”. (MINOIS: p. 671) [29]

Como diz Marcelo Alves, na obra A Peste está ilustrado que “o pessimismo de Camus, longe de ser resignado ou valorar negativamente a vida, pretende, através da revolta diante da peste, culminar num lúcido sim à vida.” (ALVES, M. Pg 98) [30] De modo que a lucidez é uma das virtudes que Camus celebra entre as supremas. Não a lucidez derrotista, resignada ou solitária, mas a lucidez clarividente, a capacidade de enxergar com clareza, inclusive e sobretudo os males concretos que nos afligem e aos quais só a solidariedade das revoltas pode fazer frente.


 

CAPÍTULO 7: A CONCRETUDE EM CARNE-E-OSSO DE NOSSA CONDIÇÃO

A tarefa de ver claro torna-se mais difícil diante dos flagelos da peste, da pandemia, da guerra, pois enxergá-los em toda sua horrífica realidade é perturbador para a psiquê humana, que vê-se em apuros para “digerir” tais experiências. Preferimos então recusar a concretude dos sofrimentos das pessoas de carne-e-osso para olhar o problema através do prisma de pálidas abstrações e estatísticas. Pode-se ler em livros de História que umas 30 pestes que o mundo conheceu fizeram cerca de 100 milhões de mortos, mas quem nunca viu nem conheceu sequer um desses vivos transformados em cadáveres pode se ver tentado a deixar-se esse número torna-se uma fumaça na imaginação, sem carne e sem sangue.

Por isso a literatura é tão crucial e imprescindível: ao ler uma obra como A Morte de Ivan Ilítch, de Tolstói, podemos ter acesso a uma morte concreta e individualiza, que nos comove pelo que tem tanto de idiossincrática quanto de expressiva da condição humana geral. A Peste de Camus também funciona maravilhosamente como um dispositivo literário de concretização, um livro destinado a nos ensinar como os seres humanos de carne-e-osso lidam com o flagelo pestífero. A certo ponto, o Doutor Rieux relembra da peste de Constantinopla, que em seu pico fazia 10.000 vítimas fatais por dia, e pede que imaginemos o público de 5 grandes cinemas sendo assassinado na saída do filme (pg. 42).

Dar concretude às estatísticas, fornecer carnalidade aos números, fazer-nos sentir visceralmente aquilo que se esconde por trás de relatórios burocráticos ou meditações abstratas, é uma das funções essenciais da literatura. Rieux está impedido por seu ofício de médico de “abstrair” em meio à peste pois é obrigado a lidar com a concretude de doentes e mortos, de tosses e catarros, de agonias e cadáveres. Sua lucidez é trágica! E a única salvação que concebe é a união solidária de pessoas que trabalham juntas contra o flagelo. Pois isolar-se, fechar-se na mônada e no monólogo, não é nenhuma solução contra o absurdo. Separação e isolamento nunca serão panacéias.

O ator William Hurt, que interpreta o médico Rieux na adaptação cinematográfica do romance de Camus realizada por L. Puenzo em 1992

Rieux recusa a resignação, a prece, a passividade. Tampouco deseja fazer pose de herói. Sua humildade lúcida está em saber que não salvará todo mundo, apenas alguns corpos por algum tempo. Este médico sabe que suas vitórias são sempre provisórias mas que esta não é uma razão para cessar de lutar. Trata-se sempre de adiar a morte para mais tarde, pois restabelecer a saúde de alguém jamais significa livrá-lo da incontornável finitude.

– Já que a ordem do mundo é regrada pela morte, talvez convenha a Deus que não se creia nele e que se lute com todas as forças contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se esconde. (ALVES, op cit, p. 106) [31]

Este ateísmo Camusiano, que se manifesta em Rieux, tem a ver com uma crítica que o autor de O Homem Revoltado faz ao processo de sacrifício de pessoas concretas em nome de um ideal, um valor absoluto, uma abstração descarnada. Até mesmo Marx e Nietzsche são denunciados por Camus por terem instituído uma espécie nova de idealismo em que a sociedade sem classes do futuro comunismo ou os espíritos livres e Übermensch do porvir serviriam como ideais laicizados. Assim, substituem a noção religiosa de outra vida, acessível pela morte, por uma outra vida a ser construída e concretizada mais tarde – trocam o além pelo mais tarde. Chamo isto de uma oposição entre uma transcendência vertical (as pessoas que crêem numa ascensão ao céu, após a vida terrena) e a transcendência horizontal (as pessoas que crêem numa transfiguração desta vida terrena nos amanhãs cantantes de um futuro que está no horizonte). 

Se o entendo bem, Camus propõe uma imersão na imanência em que possamos celebrar as núpcias com a vida e a natureza, nas quais devemos amorosamente nadar como peixes deleitando-se na imensidão do mar. É óbvio que este mar está repleto de tubarões, que há predação e peste, sofrimento e finitude, injustiça e opressão, mas também extremas belezas e deleites, uma grandeza implacável que devemos aceitar e abraçar com toda lucidez e clarividência que pudermos. Viver é mergulhar no absurdo mas não deixar-se afogar aí. Este banho de absurdo só pode ser redimido pela cumplicidade revoltado dos solidários, dos justos, dos que trabalham juntos em prol de uma realidade menos absurda. A medicina, para Rieux, é um trabalho de Sísifo ateu – e é preciso imaginá-lo feliz, empurrando pedregulhos montanha acima, no aprendizado perene com todos os esforços e tombos.

Em O Mito de Sísifo, Camus escreveu: “Se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos contra sua vontade. Se ele não existe, tudo depende de nós.” [32] A fé em Deus desempodera o ser humano, coloca-nos na dependência de uma vontade alheia e de uma autoridade transcendente, condenando-nos à “minoridade” tutelada de uma criança que não ousa fazer uso pleno da força de sua razão [33]. Já o ateísmo nos liberta para as difíceis tarefas da responsabilidade, da solidariedade, das construções coletivas de sentido que façam frente aos absurdos que sempre ameaçam nos submergir.

Confinados na finitude de uma vida que fatalmente terminará, condenados à angústia que é o ambiente perene do ser humano lúcido, temos somente esta vida, este mundo, este espaço, este tempo, para celebrar nossas fenecíveis núpcias com o real. Quem não se revolta contra as injustiças e opressões que impedem estas núpcias, quem não se solidariza diante dos males que nos afligem em comum, este é um semi-vivo ou um zumbi, sempre necessitado de ser despertado pelas amargas mas salutares verdades que a arte e a filosofia podem conceder.

Sem além nem deus, espíritos livres Camusianos plenamente fiéis à terra, sejamos Sísifos felizes! Estejamos aqui-e-agora solidários, lúcidos, clarividentes e reunidos na revolta. Somando forças, alentos, beijos, amplexos, vozes e obras que permitem nossas núpcias com a vida, a natureza e os outros. Sem nunca esquecer que a angústia solitária precisa ser transcendida por uma revolta solidária que seja o emblema em ação de nossa “insurreição humana” – aquela que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, “em suas formas elevadas e trágicas não é nem pode ser senão um longo protesto contra a morte, uma acusação veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.” [34]

Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro [www.acasadevidro.com]
Goiânia, Maio de 2020

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REFERÊNCIAS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS, CINEMATOGRÁFICAS E FONOGRÁFICAS

[1] CAMUS, Albert. Núpcias  / O Verão. Editora Círculo do Livro, 1985.

[2] THE FLAMING LIPS. Ao usar a expressão “grau de realização da mortalidade”, penso sobretudo nos versos de uma canção da banda estadunidense de rock alternativo The Flaming Lips, chamada “Do You Realize?” (também interpretada por Sharon Von Etten), presente no álbum Yoshimi Battles The Pink Robots, em que o ouvinte é interpelado pela questão: “você realmente percebe que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?” The Fearless Freaks é um excelente documentário sobre a trajetória da banda.

“Do you realize that everyone you know someday will die?
And instead of saying all of your goodbyes, let them know
You realize that life goes fast
It’s hard to make the good things last
You realize the sun doesn’t go down
It’s just an illusion caused by the world spinning round…”

[3] PESSOA, Fernando. Mensagem. O trecho completo diz: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. A mesma expressão aparece nas Odes de Ricardo Reis:

NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas feitas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A quem um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

— Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), in “Odes”.

[4] BECKER, Ernest. A Negação da Morte (The Denial Of Death). Vencedor do prêmio Pulitzer, o livro também inspira o documentário The Flight From Death (2005), que compartilhamos na íntegra a seguir:



[5] SAMPAIO, Sérgio. Canção “Ninguém Vive Por Mim”. Em: Tem Que Acontecer. Saiba mais neste artigo em A Casa de Vidro.
[6] PARRA, Nicanor. O poeta chileno que viveu 103 anos (1914 – 2018), irmão da lendária cantora, compositora e folclorista Violeta Parra, escreveu muitas profundas reflexões sobre a morte.
[7] EPICURO. Carta Sobre a Felicidade (a Meneceu). Sobre o tema, acesse em A Razão Inadequada o artigo Epicuro e a Morte da Morte.
[8] MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Capítulo XX. Em: Os Pensadores, Abril Cultural.
[9] BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. Publicado originalmente em 1930.
[10] CAMUS, AlbertO Mito de Sísifo. Ed Record, 2004.
[11] MUJICA, José. Em: Rede Brasil Atual.
[12] BRECHNER, Alvaro. La Noche de 12 Años (2018), filme uruguaio que retrata ações do militantes Tupamaros, que lutavam contra a ditadura militar, e suas vivências na cadeia.
[13] CAMUS, ALa Peste. Folio: 1999, Pg. 191.
[14] ONFRAY, Michel. A Ordem Libertária – A Vida Filosófica de Albert Camus. Flammarion, 595 págs. Citado a partir de artigo na Revista Cult.
[15] ALVES, MarceloCamus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche. Florianópolis, 2001, Ed. Letras Contemporâneas.
[16] CAMUS. Essais, Paris: Gallirmard, 1993, 75 – 80.
[17] [18] [19] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[20] RIBEIRO, Hélder. Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Pg. 89-90.
[21] BBC News Brasil. ‘A Peste’, de Albert Camus, vira best-seller em meio à pandemia de coronavírus.
[22] [23] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[24] CAMUS, A. La Peste. Op cit.
[25] MBEMBE, AchilleNecropolítica. Saiba mais em A Casa de Vidro.
[26] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[27] SLAVOJ ZIZEK fala em “the temptation of meaning” ao responder as questões de Astra Taylor, realizadora do filme documental Examined Life: “Meaning allows us to create fantasies which defend ourselves from the awful truth that we’re bags of meat who can never escape death. That is, the turn towards subjectivity is itself a defense mechanism against the fact that the universe doesn’t care. God, whether He be loving or vengeful, is a way of turning this utter indifference into a fantasy of mattering.”

[28] CONCHE, Marcel. Orientação Filosófica. Ed. Martins Fontes. Coleção Mesmo Que O Céu Não Exista.
[29] MINOIS, George. História do Ateísmo. Ed. Unesp, pg. 671.
[30] [31] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[32] CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Citado em: MINOIS, op cit, idem item 29.
[33] A conclusão atéia não condiz com as apostas kantianas na necessidade de Deus como “apêndice” da razão prática, mas aqui penso no auxílio salutar que o ateísmo concede ao sapere aude tal como descrito por Immanuel Kant em seu texto sobre o Iluminismo / Esclarecimento.
[34] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Capítulo: “Niilismo e História”. Ed. Record, 2003, p. 125.

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APRECIE TAMBÉM:

Um combate contra o Absurdo | Albert Camus (documentário completo e legendado)

Filosofia e Eco-Anarquia em Tempos de Pandemia (Webdebate: A Casa de Vidro e Monstro dos Mares)

No dia 08 de Maio de 2020, sexta-feira, A Casa de Vidro, em parceria com a Editora Monstro dos Mares e o Grupo de Estudos em Complexidade, realizaram o webdebate “Filosofia e Eco-Anarquia em Tempos de Pandemia” – com Janos Biro Marques Leite, Pedro Tabio, Renato Costa e Eduardo Carli de Moraes. Assista na íntegra (2h36min):


Introdução

Combinando a crítica anarquista ao Estado e ao Capital com uma perspectiva ecocêntrica vinda do veganismo, do primitivismo, da crítica à sociedade industrial ou da ecologia profunda, a filosofia eco-anarquista tem se mostrado uma fonte valiosa de reflexões e provocações para o contínuo desenvolvimento das teorias e práticas anarquistas, desafiando os paradigmas das escolas de pensamento mais tradicionais.

São consideradas como ligadas ao eco-anarquismo as seguintes tendências: o anarco-naturismo (inspirado por Thoreau, Tolstoi e Élisée Reclus), a ecologia social (que não se limita ao movimento iniciado por Bookchin), o anarcoprimitivismo (representado por John Zerzan e os autores da revista Green Anarchy) e o veganarquismo (movimento anarquista e vegano).

O anarcoprimitivismo e o veganarquismo se destacam em tempos de pandemia pela crítica que já faziam há muito tempo à sociedade de massas e à domesticação de animais como fatores da produção de pandemias e novas doenças. (Janos Biro)

CONHEÇA OS DEBATEDORES:

PEDRO TABIO é urbanista, bioconstrutor, agricultor, inpermacultor libertário, eco-anarquista e editor na Monstro dos Mares.

JANOS BIRO é formado em filosofia pela UFG e membro do coletivo eco-anarquista Contra a civilização (contraciv.noblogs.org). Criador do site Contrafatual (contrafatual.com).

RENATO COSTA é chef vegano e estudante de jornalismo na UFG.

EDUARDO CARLI é jornalista, filósofo, mestre em Ética e Filosofia Política pela UFG, professor do IFG, fundador d’A Casa de Vidro, onde atua como agitador cultural.

ASSISTA:

Youtube

Vimeo


PAUTA TEMÁTICA

I) E O LOCKDOWN, ANARQUISTAS? Se observarmos as crises econômicas e políticas, os alertas climáticos, e agora a crise epidemiológica, muito do que um suposto alarmismo radical anunciava vem se concretizando. Hoje os bolsonaristas acusam a pauta do isolamento de alarmismo. Entretanto subjaz o problema da condução das medidas de isolamento por parte do Estado, amparado pelas recomendações dos organismos internacionais de saúde. Na visão de vocês, a possibilidade de isolamento total, obrigatório, conhecido como lockdown, contraria o princípio libertário defendido pelo anarquismo? O fator de controle sanitário, e consequentemente, a necessidade compulsória de isolamento legitimado pela ciência, em “defesa de vida”, contrariam as liberdades individuais e os princípios da auto-gestão coletiva? Quero dizer, o lockdown atenta, por princípio, contra a organização autônoma das comunidades? Ou seria manipulável apenas em caso de qualquer tipo de autoritarismo se valer da pandemia como álibi da repressão, no oportunismo da condução da crise em favor do Estado e do Capital?


II) TECNOFOBIA vs TECNOFILIA

Os ativistas eco-anarquistas, no que diz respeito às táticas de enfrentamento das forças sociais que causam as catástrofes ecológicas, aceitam de bom grado o uso das tecnologias digitais e das mídias sociais como ferramentas de mobilização? Percebem pautas em comum com movimentos como o Software Livre e certas vertentes do circuito hacker? Ou vocês consideram que a anarquia verde aproxima-se mais do anarco-primitivismo, da recusa diante de um cenário cibernético dominado por empresas como Facebook, Google, Apple etc.? Digo isso pois uma publicação do Comitê Invisível, Foda-se o Google (faccaoficticia.noblog.org), coloca em foco a diferença entre movimentos caracterizados por tecnofilia ou por tecnofobia, arriscando também a seguinte caracterização:

“O grosso dos marxistas e pós-marxistas juntam à sua propensão atávica para a hegemonia um certo vínculo à técnica-que-liberta-o-homem, enquanto uma boa parte dos anarquistas e pós-anarquistas se acomodam sem dificuldade numa confortável posição de minoria, ou mesmo de minoria oprimida, acantonando-se geralmente em posições hostis à ‘técnica’. Cada tendência dispõe até da sua caricatura: aos partidários negristas do ciborgue, da revolução eletrônica pela multidão conectada, respondem os anti-industriais que fizeram da crítica do progresso e do ‘desastre da civilização tecnicista’ um gênero literário bem rentável, feitas as contas, e uma ideologia de nicho onde nos mantemos quentes e aconchegados, à falta de entrever uma qualquer possibilidade revolucionária. Tecnofilia e tecnofobia formam um par diabólico unido por essa mentira central: que uma coisa como a técnica existe.” (Cap. 4)

w.capaGOOGLE-web.cleanedFoda-se o Google [Baixar PDF]

Fragmento do livro Aos Nossos Amigos do Comitê Invisível que trata da expansão tecnológica e política sobre as formas de governo e controle social. “Uma empresa que mapeia todo o planeta, enviando equipes para fotografar cada rua de cada cidade não pode ter interesses apenas comerciais. Ninguém mapeia um território sem intenções de dominá-lo. ‘Don ́t be evil’”.

1. Não existem “Revoluções de Facebook” mas uma nova “Ciência de Governo”, a Cibernética. 2. Guerra a tudo que for Smart! 3. Miséria cibernética. 4. Técnicas contra tecnologia.


III) INTEGRAÇÃO COMUNITÁRIA EM TEMPOS DE CONSUMISMO PREDATÓRIO

Considerando mais especificamente o sujeito político contemporâneo, em relação com a coletividade massificada pelas formas de consumo predatórias, estimuladas em grande parte pela hegemonia neoliberal do culto ao mercado, quais seriam as dinâmicas entre o papel do indivíduo e sua integração comunitária para fixarmos uma agenda de transformações ambientais e sócio históricas, desejáveis no futuro próximo? Mais especificamente ainda, de acordo com os aspectos sociais da atual crise do Coronavírus, interpretados pelo crítica eco-anarquista ao capitalismo em geral, quais as estratégias eco-anarquistas que permitiriam a cada um e cada uma de nós influir numa conjuntura de luta contra as opressões coletivas e a degradação ambiental? Ou seja, minha pergunta vai no sentido de buscar saber como equacionar indivíduo e sociedade, do ponto de vista da filosofia anarquista, no contexto da crise ecológica e sanitária!


IV) A BADERNA ORGANIZADA?

A coleção de livros Baderna, originalmente publicada pela ed. Conrad, depois relançada pela Veneta, trouxe ao público brasileiro a oportunidade de conhecer mais sobre grupos anarquistas e similares, como Luther Blissett, organizados mundo afora, além de propiciar contato com pensadores como Hakim Bey e Raoul Vaneigem. Qual seria, para vocês, a importância de organizações coletivas de ativistas eco-anarquistas? Quais os exemplos destas que vocês poderiam citar? O que pensam sobre certas experiências no mundo atual, citadas por Camila Jourdan e Acácio Augusto, de regiões “liberadas” onde princípios anarquistas estão presentes na prática? Os autores se referem sobretudo “À experiência zapatista no México, cujos territórios autônomos se organizam de maneira federalista libertária, sem Estado e de modo comunal, e o confederalismo libertário de Rojava, no território de ocupação majoritariamente curdo que derrotou o Daesh (Estado Islâmico) e hoje está sob ameaça militar do Estado turco.” (pg. 9)


V) CARNISMO INFECCIOSO – UMA OUTRA ALIMENTAÇÃO ANARCOVEGANA É POSSÍVEL? Em relatório da OMS, Ben Embarek, especialista em segurança alimentar, atesta-se que o novo coronavírus veio do morcego, provavelmente mediado por um outro animal “criado para fornecer alimento”. Além disso, confirmou o que Manuais Epidemiológicos chineses já atestavam: a doença pode circular entre gatos, furões e cachorros. Estes fatos colocam em destaque o risco sanitário envolvido no consumo de carne e no morticínio de animais. O Vegan-arquismo vem denunciando há muito o abandono e a domesticação dos animais – uma sendo condicionante da outra. Pergunto: como vocês trata dessas urgências éticas e ecológicas, a exemplo da necessidade de se adotar uma dieta vegetariana, ou de se representar o veganismo como orientação ao consumo, e também como filosofia em si? Como vocês vêem o papel do veganismo na crise ecológica e na crise sanitária?


VI) A ABOLIÇÃO DO ESTADO: AINDA É O CENTRO DA PROPOSTA ANARCO?

Em Marx Selvagem, Jean Tible busca um “diálogo entre as concepções marxiana de abolição do Estado” com a noção de Pierre Clastres de uma “sociedade contra o Estado”. Sabemos que Marx polemizou com grandes anarquistas de sua época – Bakunin, Proudhon e Max Stirner – a respeito do processo de abolição do estado, visto como fim tanto pelo anarquismo quanto pelo comunismo. A diferença essencial estaria na reivindicação anarquista de extinção súbita do Estado em contraste com um processo mais gradual no âmbito do marxismo que prevê uma transição – a ditadura do proletariado servindo-se do Estado como “instituição transitória, da qual nos servimos na luta durante a revolução para reprimir à força os adversários” (ENGELS, citado por Tible, pg. 192). Para Lênin, o Estado burguês é sucedido pelo Estado proletário no pós-revolução de modo a “reprimir a resistência dos exploradores” (ou seja, combater a reação contra-revolucionária) mas também para “dirigir a grande massa da população na efetivação da economia socialista” (Lenin, 1918, citado por Tible, p. 194). Como compreendem os eco-anarquistas esta questão? É preciso abolir o Estado imediatamente ou gradualmente? De que modo a preocupação com as questões ambientais, ecológicas, de sustentabilidade, justifica práticas e movimentos que visam esmagar o Estado? E como ficam os Mercados e Corporações nesta luta, considerando-se que os Estados neoliberais atuais são basicamente lacaios das mega-empresas e seus financiadores, seus banqueiros, a classe rentista?


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AILTON KRENAK: COMO ADIAR O FIM DO MUNDO – Leia trechos e veja vídeo da conferência na UFG (Outubro de 2019, 49 min)

Ailton Krenak – líder indígena, ambientalista, ativista e escritor brasileiro, nascido em 1953, na região do Rio Doce (MG) – esteve na Universidade Federal de Goiás em Outubro de 2019. Participou do V Seminário do Núcleo de Estudos de Antropologia, Patrimônio, Memória e Expressões Museais (NEAP) e do I Seminário Lugar e Patrimônio, com o tema “Patrimônios marginalizados e a luta pelo território”(saiba mais: https://bit.ly/2r13v0p). ASSISTA AO VÍDEO – ACESSE: https://youtu.be/x55TZ73Wqvw.

Ailton Krenak vem demonstrando ser um “pensador acurado e original das relações entre as culturas ameríndias e a sociedade brasileira, criando reflexões provocativas e de largo alcance” (Azougue Editorial). Entre os temas que ele aborda, está o estado de “coma” do Rio Doce após os crimes sócio-ambientais das empresas mineradoras em Minas Gerais, com o despejo de lama tóxica em mais de 600 km de extensão daquele curso d’água à margem do qual o povo Krenak desenvolveu sua história e forjou sua cosmovisão.

Daria para dizer que o fim do mundo não é nenhuma novidade para os povos originários desta terra que os europeus invasores chamariam de América, mas que recentemente houve um incremento nesta sensação de mundo que se acaba com o exacerbamento das catástrofes sócio-ambientais e das mudanças climáticas. O que capacita Ailton Krenak a ser uma espécie de xamã visionário deste mundo em colapso é, para começo de conversa, a vivência concreta que seu povo teve, a partir de 2015, de um crime monumental que pôs o Rio Doce em estado de coma.

Era novembro de 2015 quando a barragem do Fundão, controlada pelas empresas Vale e BHP Billiton, rompeu-se e lançou 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos da mineração de ferro no Rio Doce, habitat ancestral do povo Krenak. O material tóxico “nos deixou órfãos e acompanhando o rio em coma”, diz Ailton. “Esse crime atingiu as nossas vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que acabou.” (KRENAK, Cia das Letras, 2019, p. 42)

Lançado pela Companhia das Letras em 2019, o livro – disponível na Livraria A Casa de Vidro: https://bit.ly/2T1fHKi – revela um pensador que é lúcido em sua crítica de uma tóxica ideologia:

“a ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. (…) É um abuso que chamam de razão. Enquanto a humanidade está se distanciando de seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio. Porque, afinal, é preciso fazer alguma coisa com o que sobra do lixo que produzem, e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para nos entreter…” (KRENAK, 2019, p. 11 – 20)

Ailton Krenak é hoje um voz altissonante que questiona os rumos equivocados da doentia civilização mercadológica dos branquelos. Ele nos pergunta: “Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade.” (pg. 28)

Ora, os branquelos concebem a civilização e a humanidade como áreas V.I.P. e querem excluir mais da metade dos humanos. Contra esta pretensa civilização – supostamente iluminada, mas realmente obscurantista; falsamente universalista, mas autenticamente excludente – é que se insurgem as resistências em nosso território, seja dos Krenak no Rio Doce criminosamente poluído (tema de documentário da Futura), seja dos Yanomami resistindo ao garimpo e à contaminação em suas terras, seja dos Munduruku praticando a auto-demarcação de suas terras ancestrais, seja dos Guajajara na linha de frente contra o fascismo Bozonazista que os quer exterminados, seja dos Guarani-Kayowá resistindo contra o avanço do agrobizz genocida e desumano, dentre outros.

No vídeo filmado por A Casa de Vidro, Ailton também reflete sobre a noção de “patrimônio imaterial” e as defesas institucionais erguidas para sua salvaguarda (em instituições como o Iphan). Fala sobre as produções culturais dos povos ameríndios e as dificultosas relações com a civilização dos “brancos”, ou seja, com “o povo da mercadoria” (Davi Kopenawa). Acostumado a cutucar a onça do imperialismo externo e interno com a vara curta de suas provocações ácidas, Ailton afirma que “a maioria das pessoas tem dificuldade de nos considerar remanescentes de uma guerra de colonização. Todos os meus parentes são sobreviventes de uma guerra de ocupação.” (Livro “Encontros”, pg. 84)

Este vídeo foi filmado e editado por Eduardo Carli de Moraes para a Frente Audiovisual d’A Casa de Vidro (Ponto de Cultura e Centro de Mídia Independente), em evento realizado no auditório da Faculdade de Farmácia da UFG em 21/10/2019.


“Ideias para adiar o fim do mundo”, seu novo livro publicado pela Companhia das Letras, teve seu lançamento em Goiânia em 22/102019 na Livraria Palavrear. A obra está disponível na Livraria A Casa de Vidro em Estante Virtual! Sobre o livro, a editora publicou:

Uma parábola sobre os tempos atuais, por um de nossos maiores pensadores indígenas. Ailton Krenak nasceu na região do vale do rio Doce, um lugar cuja ecologia se encontra profundamente afetada pela atividade de extração mineira. Neste livro, o líder indígena critica a ideia de humanidade como algo separado da natureza, uma “humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô”.

Essa premissa estaria na origem do desastre socioambiental de nossa era, o chamado Antropoceno. Daí que a resistência indígena se dê pela não aceitação da ideia de que somos todos iguais. Somente o reconhecimento da diversidade e a recusa da ideia do humano como superior aos demais seres podem ressignificar nossas existências e refrear nossa marcha insensata em direção ao abismo.

“Nosso tempo é especialista em produzir ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar e de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta e faz chover. […] Minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história.”

Desde seu inesquecível discurso na Assembleia Constituinte, em 1987, quando pintou o rosto com a tinta preta do jenipapo para protestar contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas, Krenak se destaca como um dos mais originais e importantes pensadores brasileiros. Ouvi-lo é mais urgente do que nunca. “Ideias para adiar o fim do mundo” é uma adaptação de duas conferências e uma entrevista realizadas em Portugal, entre 2017 e 2019.

Na obra, Krenak denuncia “um aparato que depende cada vez mais da exaustão das florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes d vida.

A conclusão ou compreensão de que estamos vivendo uma era que pode identificada como Antropoceno deveria soar como um alarme nas nossas cabeças. Porque, se nós imprimimos no planeta Terra uma marca tão pesada que até caracteriza uma era, que pode permanecer mesmo depois de já não estarmos aqui, pois estamos exaurindo as fontes da vida que nos possibilitaram prosperar e sentir que estávamos em casa, sentir até, em alguns períodos, que tínhamos uma casa comum que podia ser cuidada por todos, é por estarmos mais uma vez diante de um dilema a que já aludi: excluímos da vida, localmente, as formas de organização que não estão integradas no mundo da mercadoria, pondo em risco todas as outras formas de viver – pelo menos as que fomos animados a pensar como possíveis, em que havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos constituir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres.” (p. 47)

Além de mobilizar o importante conceito de Antropoceno, entrando em diálogo com a obra de grandes pensadores contemporâneos como Eduardo Viveiros de Castro, Bruno Latour e Isabelle Stengers, Ailton Krenak também nos ajuda a formular, para o século XXI, um Ética Inter-Geracional similar àquela formulada pelo filósofo Hans Jonas:

“Quando, por vezes, me falam em imaginar outro mundo possível, é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços, de novos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza, como se a gente não fosse natureza. Na verdade, estão invocando novas formas de os velhos manjados humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza que eles mesmos criaram para consumo próprio. Todos os outros humanos que não somos nós estão fora, a gente pode comê-los, socá-los, fraturá-los, despachá-los para outro lugar do espaço. O estado de mundo que vivemos hoje é exatamente o mesmo que os nossos antepassados recentes encomendaram para nós.

Na verdade, a gente vive reclamando, mas essa coisa foi encomendada, chegou embrulhada e com o aviso: ‘Depois de abrir, não tem troca.’ Há 200, 300 anos ansiaram por esse mundo. Um monte de gente decepcionada, pensando: ‘Mas é esse mundo que deixaram para a gente?’ Qual é o mundo que vocês estão agora empacotando para deixar às gerações futuras? Ok, você vive falando de outro mundo, mas já perguntou para as gerações futuras se o mundo que você está deixando é o que elas querem? A maioria de nós não vai estar aqui quando a encomenda chegar. Quem vai receber são os nossos netos, bisnetos, no máximo nossos filhos já idosos. Se cada um de nós pensa um mundo, serão trilhões de mundos, e as entregas vão ser feitas em vários locais. Que mundo e que serviço de delivery você está pedindo?  Há algo de insano quando nos reunimos para repudiar esse mundo que recebemos agorinha, no pacote encomendado pelos nossos antecessores; há algo de pirraça nossa sugerindo que, se fosse a gente, teríamos feito muito melhor.” (p. 69)

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A ARTE DE CONVIVER: Uma Ética do Mundo Comum e do Bem Público Para Resistir à Pervasiva Privatização da Vida – Por Eduardo Carli de Moraes [Vídeo Completo – 2019, 52 min]

PRÓLOGO – Organizado pela Comissão de Ética do IFG, o IV Workshop “Moralidade e Conduta Ética nas Relações Sociais”, realizado em 10 de Outubro de 2019 em Goiânia, contou com esta fala pública do professor de filosofia Eduardo Carli de Moraes (produtor cultural e livreiro @ A Casa de Vidro), docente que atua no câmpus Anápolis do IFG (saiba mais sobre o evento nesta reportagem publicada pela Diretoria de Comunicação Social da Reitoria).

A palestra explora o tema A Arte de Conviver: Uma Ética do Mundo Comum e do Bem Público Para Resistir à Pervasiva Privatização da Vida. O vídeo na íntegra, com cerca de 52 minutos, está disponível no Youtube ou Vimeo; acessem também a apresentação completa (24 slides) contendo todas as imagens e citações mencionadas na ocasião: http://bit.ly/2omVoKK.

A ARTE DE CONVIVER: Uma Ética do Mundo Comum e do Bem Público Para Resistir à Pervasiva Privatização da Vida

Por Eduardo Carli de Moraes

 

“Gosto de ser gente porque mudar o mundo é tão difícil quanto possível.“ – Paulo Freire

A ética faz parte das práticas humanas que visam tanto à reflexão quanto à ação de seres humanos interdependentes. Sem ela, não há possibilidade de bem viver: toda vida bem vivida, que expressa uma sabedoria encarnada, envolve necessariamente um horizonte ético. Se alguém dissesse que não se interessa pela ética, estaria dizendo que não se interessa pela felicidade e que não se importa de desperdiçar sua vida. O desprezo pela ética é o caminho mais simples e comum para uma vida mal-vivida.

A ética também é um campo onde reinam os “juízos de apreciação referentes à conduta humana, qualificada do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto.“ (In: Dicionário Aurélio Buarque de Holanda) A finalidade última da ética (seu télos) pode ser descrito como a felicidade individual (eudaimonia), como o sumo bem (summum bonum), como o bem público ou a felicidade geral etc. Sem dúvida, o despertar da consciência ética ocorre ainda na infância, como sugere a tirinha de Quino que descreve Mafalda descobrindo um “inquilino interior“ (a consciência moral do agente humano), espécie de marco zero do despertar da consciência ética da intersubjetividade e da interdependência que marcam a existência humana:

O campo de atividade da ética é de uma amplitude estonteante: os agentes éticos estão em interação no mundo comum, conceito essencial na filosofia de Hannah Arendt. Esta filósofa, em uma dos mais belos trechos de A Condição Humana, assim o define:

“O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós.

Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. (…) Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar.” HANNAH ARENDT em “A Condição Humana”

Por isso é impossível separar ética de política: o campo de atividade do agente ético é necessariamente o espaço entre nós, o território que inclui o outro, o mundo que nos é comum, integrando não apenas nós que somos contemporâneos, mas conectando também a geração presente com as passadas e as vindouras. Já Aristóteles afirmava que o ser humano é um zoon politikon, algo reafirmado a seu modo por um dos maiores mestres da ética no Brasil contemporâneo, Fábio Konder Comparato, que afirma: “a política é a suprema dimensão da vida ética”:

“A célebre afirmação de Aristóteles de que o homem é, pela sua própria natureza, um ser político significa que o indivíduo somente encontra condições apropriadas para atingir um nível elevado de aretê, isto é, de desenvolvimento integral de sua personalidade, quando convive com outros seres humanos numa comunidade organizada, regida por normais gerais de comportamento, (…) em função de um objetvo comum a todos os seus membros, que se vêem, assim, ligados entre si por vínculos jurídicos e relações de solidariedade.“ (COMPARATO, Ética, Cia das Letras, p. 584)

Por isso, uma reflexão ética também não é dissociável de uma atuação atenta às diferenças entre o público e o privado. Para os gregos, o conceito de idiotia era utilizado para se referir àquela pessoa que só se interessava pelos seus assuntos privados, obcecada pelo próprio umbigo, omissa e isenta dos assuntos públicos e políticos por decisão própria. Esta obliteração proposital do público pelo sujeito era caracterizado com o qualificativo de idiotes. Para os gregos, inventores da democracia, o status de cidadão comportava sérios deveres, como explica Comparato:

“De modo geral, sempre foram vistos com maus olhos os que se abstinham sistematicamente de comparecer e votar nas reuniões da Ekklesia, sendo por isso qualificados de idiotai, ou seja, indivíduos unicamente preocupados com os assuntos do seu interesse particular. A neutralidade política era considerar em Atenas atitude contrária ao bem comum. Segundo reporta a tradição, Sólon teria editado uma lei, chocante para a mentalidade moderna, pela qual deveriam ser punidos com a atimia (perda da cidadania) todos aqueles que se recusassem a tomar partido numa situação de guerra civil.“ (COMPARATO, p. 644)

Mário Sérgio Cortella, co-autor da obra Política Para Não Ser Idiota, também o destaca: “Para os gregos da Antiguidade Clássica era “idiota” o sujeito que preenchendo as prerrogativas para participar da vida pública na polis, abdicava de fazê-lo. Hoje, muitas vezes, são rotulados de idiotas aqueles que, nas rodas de conversa, não se empolgam com assuntos sobre a vida privada das celebridades e insistem em colocar em pauta temas públicos, ou seja, assuntos políticos. Interessar-se por política, para muitos, não é normal.” (CORTELLA)

Se há idiotia em toda atitude que pretenda focar apenas no privado e não ligar para o público, isto se dá pois não há isentismo que não seja cumplicidade com os opressores: “Se você é neutro em situações de injustiça, é que você escolheu o lado do opressor”, afirma em célebre frase o Vencedor do Prêmio Nobel da Paz Desmond Tutu. Ficar em cima do muro não é nunca “inocente” pois de cima do muro você assiste, tomando chá, à brutalidade dos opressores e os processos que ele impõe de espoliação, humilhação, repressão dos oprimidos.

Por isso, em um mundo como o nosso, onde avança em passo acelerado, de modo perigoso e destrutivo, a oni-privatização do que antes foram espaços públicos, terras comunais e natureza inapropriável, é necessário insistir numa ética atenta ao bem público – e não apenas interessada nos motivos próprios ao indivíduo isolado (no fundo, uma abstração que serve à tirania burguesa sobre sistemas econômicos e sobre a nossa “economia psíquica”). A produção de subjetividades ególatras, idiotas pois despolitizadas, incapazes de devoção ao que transcende o “caro eu”, cegas ao público e o comum, é uma marca dos frutos da “revolução burguesa” quando se instituiu. Segundo Comparato:

“A oposição público – privado corresponde ao contraste entre o que é comum e o que é próprio. Próprio diz-se do que pertence, com exclusividade, a alguém, indivíduo ou grupo social determinado. A essência da propriedade
privada, como vem expresso na legislação dos mais diversos países, é o direito do proprietário de excluir todos os outros sujeitos do uso, fruição ou disposição de uma coisa determinada.

Em contraste, dizem-se comuns os bens compartilhados por mais de um sujeito, em igualdade de condições. A comunidade supõe, com efeito, que os seus integrantes sejam essencialmente iguais, ou seja, que não haja
indivíduos privilegiados, superiores aos outros.

Da igualdade cidadã decorre o princípio republicano da supremacia do interesse comum de todos os membros da coletividade – o povo ou a nação em cada país, o conjunto dos povos que formam uma federação de países, ou a própria humanidade no plano mundial, sobre os interesses particulares.“ (COMPARATO, p. 621)

Se deveras formos republicanos, seremos eticamente norteados pela supremacia do interesse comum e não pelo predomínio dos interesses individuais. O que ocorre é vivemos por tempo demais sob o efeito da lavagem cerebral imposta pela hegemonia ideológica liberal-burguesa. Esta pode ser resumida pela fórmula, bastante emblemática: vícios privados, benefícios públicos. Presente na famosa fábula das abelhas de Mandeville, também é uma conclusão tirável da “lógica” em que operam os pensamentos de figuras como Bentham e Adam Smith. Mas será mesmo que o egoísmo dos indivíduos realmente conduz à prosperidade geral? (E será que Eduardo Giannetti soube, no seu livro, aprofundar de fato a crítica que tem que ser feita a esta ideologia?)

“Durante o século XVIII, a Ideologia do Egoísmo encontrou um defensor no pensador Adam Smith: ele sustentou que se compradores e vendedores numa economia se dedicassem a maximizar seu ganho, os bens e serviços seriam distribuídos por uma ‘mão invisível‘ atendendo ao interesse da comunidade como um todo da melhor forma.

– Buscando o próprio interesse – escreveu Smith – um indivíduo muitas vezes promove o da sociedade mais efetivamente do que quando realmente pretende promovê-lo.

O poder dessa ideia estava em oferecer uma justificativa econômica e política enfática para que se agisse em conformidade com os próprios interesses pessoais, o que explica a popularidade de Smith em meio às elites empresariais e políticas durante a Revolução Industrial. Depois, nas ideologias de livre-comércio do thatcherismo e do reaganismo.“ (KRZNARIC, 2015, p. 35)

Esta apologia da pretensa prosperidade que o egoísmo acarretaria em prol da prosperidade geral é cada vez mais insustentável diante das evidências de que o capitalismo, calcado nas ideologias do liberalismo e suas “neo” versões, produz injustiça social, exclusão, precariedade e violência de modo avassalador, o que só se agrava com as catástrofes ambientais que um modelo extrativista e queimador de combustíveis fósseis gera. O cartunista André Dahmer é um dos mais ácidos comentaristas sociais deste contexto:

Mas também a atual cruzada contra Paulo Freire, movida pelos extremistas de direita no Brasil, tem a ver com as posturas anti-capitalistas críticas do neoliberalismo que o autor de Pedagogia do Oprimido abraçava. Em “Pedagogia da Autonomia“, Paulo Freire explicita sua “crítica permanentemente presente” à “malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia”:

“Estamos de tal maneira submetidos ao comando da malvadez da ética do mercado que me parece pouco tudo o que façamos na defesa e na prática da ética universal do ser humano. (…) Não é possível ao sujeito ético viver sem estar permanentemente exposto à transgressão da ética. Uma de nossas brigas na história, por isso mesmo, é exatamente esta: fazer tudo o que possamos em favor da eticidade, sem cair no moralismo hipócrita, ao gosto reconhecidamente farisaico. (…) Quando falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana.” (PAULO FREIRE, Primeiras Palavras, p. 16-19)

O Paulo Freire virou uma bruxa a ser caçada pela direita Bolsonarista e Olavete pois ele é um crítico bem-informado do catastrófico aparato educativo gerado pelo capitalismo liberal em conluio com as classes dominantes interessadas na produção massiva da idiotia e do conformismo. Paulo Freire escreve, em 1959, em “Educação e Atualidade Brasileira” (tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação, na Escola de Belas Artes de Pernambuco), em prol de uma educação que formasse eticamente no sentido da expansão da consciência comunitária e não do individualismo ególatra liberal-burguês:

“Encaminharemos o nosso agir educativo no sentido da consciência do grupo e não no da ênfase exclusiva no indivíduo. Sentimento grupal que nos é lamentavelmente ausente. As condições histórico-culturais em que nos formamos nos levaram a esta posição individualista. Impossibilitaram a criação do homem solidarista, só recentemente emergindo das novas condições culturais em que vivemos, mas indeciso nessa solidariedade e necessitando por isso mesmo de educação fortemente endereçada neste sentido. De educação que deve desvestir-se de todo ranço, de todo estímulo a esta culturológica marca individualista. Que dinamize, ao contrário, o espírito comunitário.” (FREIRE, apud Souza, p. 64)

A educação não é desvinculável da ética. Edgar Morin sempre repete – e é o título de um de seus livros – que educar tem a ver com ensinar a viver. E ética é o aprendizado prático de um viver que não é desvinculável do ser-com-os-outros, em uma teia de interdependência. Os gregos já sabiam que o processo formativo, a paidéia, não era dissociável de uma educação do ethos, e que este tinha tudo a ver com a transmissão e a prática das virtudes (aretê). A filosofia, como amor à sabedoria, sempre foi, por esta razão, conectada à educação ética, à formação para o aprender a viver bem, o que é sempre também um aprendizado do convívio. E no convívio se aprende que nada pior do que tratorar interesses alheios secundarizar o bem comum sempre em prol dos limitados e cegos motivos egóicos do indivíduo que se delira (enquanto preso no Samsara) isolado.

Dois dos principais pensadores da ética no pensamento contemporâneo, André Comte-Sponville e Vladimir Jankélévitch (1903-1985), têm obras devotadas à estas confluências entre filosofia, ética e educação. Eles sem dúvida concordariam com a magistral obra recente do australiano Roman Kznaric, O Poder da Empatia, que destaca o quanto poderíamos revolucionar para melhor o mundo comum caso tivéssemos um “caldo cultural” que favorecesse o florescer da empatia. Esta, que Jankélévitch descreve belamente nos seguintes termos e em fecundo diálogo com a tradição filosófica pregressa:

“A simpatia ou empatia é o ato pelo qual meus irmãos me ajudam a carregar minha cruz, isto é, compartilham ativamente meu destino, participam do nosso destino comum, atestam por sua solidariedade essa comunidade de essência de todas as criaturas que era, segundo Schopenhauer, o fundamento da piedade e, segundo Proudhon, o princípio da justiça.” (Jankélévitch, que foi professor da Sorbonne de Paris entre 1951 e 1979. Em: Cursos de Filosofa Moral. Editora Martins Fontes, 2008, Pg. 211.)

Empatia com a alteridade multidiversa, somada à solidarização radical com os oprimidos e excluídos, constituí um bom norte ético nesta época de pervasiva privatização da vida. Neste contexto, importante destacar a figura juvenil de impacto global, Greta Thunberg, detonadora do movimento Fridays for Future, inspirando milhões de jovens ativistas que ocuparam – e seguirão ocupando – as ruas do planeta, também no Brasil, na primeira grande sublevação de jovens diante da emergência climática.

“Nossa casa está em chamas. Eu quero que vocês entrem em pânico.” Quando Greta Thunberg diz frases como essas aos adultos, ela está anunciando a maior inflexão histórica já produzida por uma geração. Pela primeira vez na trajetória humana os filhotes estão cuidando do mundo que os espécimes adultos destruíram – e seguem destruindo. Esta é uma inversão no funcionamento não só da nossa, mas de qualquer espécie. A mudança responde a uma enormidade. A emergência climática é a maior ameaça já vivida pela humanidade em toda a sua história. Quando ouvimos o grito de Greta e dos milhões de jovens inspirados por ela, um grito que ressoa em diferentes línguas e geografias, é esta a ordem de grandeza do que testemunhamos. Escutar é imperativo.“ Eliane Brum em EL PAÍS Brasil

“Imperativo”, eis uma palavra que os pensadores da ética adoram. Imperativo é um jeito complicado de falar sobre o nosso dever, sobre a esfera que nos compete enquanto tarefeiros-de-um-dever-ser. A escutadeira Eliane Brum, que é também uma das forças mais significativas da educação ética no Brasil, diz que é imperativo escutarmos a Gretas, Sonias Guajajaras e Marielles.

O capitalismo neoliberal, calcado na ideologia individualista e burguesa da “Mão Invisível” – seja egoísta à vontade, a mão invisível do Mercado tratará de providenciar a prosperidade geral!, mostrou-se como construtor de ruínas. O capitalismo é a catástrofe globalizada, o advento do Antropoceno apocalíptico. Diante disso, não há isenção possível que não caia na idiotia ou, pior, na cumplicidade com os assassinos.

É o que Jean-Paul Sartre já ensinava ao dizer que “O homem é um ser condenado à liberdade.“ Não é possível uma vida humana sem escolhas nem consequências, o que torna a responsabilidade ética uma necessidade ontológica para qualquer bem-viver, ou seja, uma condição inextricável da filosofia como práxis da vida bem vivida pois bem refletida, sábia e amorável.  “O que não é possível é não escolher”, dizia Sartre. “Eu posso sempre escolher, mas devo estar ciente de que, se não escolher, assim mesmo estarei escolhendo. Viver é isso: ficar se equilibrando o tempo todo, entre escolhas e consequências.“

O que Greta ensina – “escutar é imperativo!” – é o que Hans Jonas já dizia: o princípio responsabilidade da nova ética que precisamos pôr em prática engloba não só nossos contemporâneos (a geração dos atualmente vivos), mas engloba também as gerações por vir. As pessoas que ainda vão nascer, e que serão impactadas por nossas escolhas hoje, precisam ser levadas em conta em todas as nossas “equações éticas”. O futuro, fruto de escolhas coletivas, só será mais sábio caso pudermos ser a sabedoria ativa no presente, tarefa interminável e que, a julgar pelas catástrofes Fukushímicas que nos assolam, corre o risco da derrota. Não haveria, porém, qualquer justificativa ética plausível para a cumplicidade com os exterminadores dos equilíbrios ecosistêmicas e os perpretadores das injustiças tremendas, hoje globalizadas.

SAIBA MAIS – Vídeo da palestra completa:

NÓS, O LIXO MARXISTA – Por Vladimir Safatle

NÓS, O LIXO MARXISTA – Por Vladimir Safatle || Folha de S.Paulo

Tomou posse o primeiro governo eleito de extrema-direita do Brasil. Com ele, não há negociação alguma possível. E nem ele procura alguma forma de negociação com aqueles que não comungam seus credos, que não louvam seus torturadores e que não acham que “é duro ser patrão no Brasil”. Não há razão alguma para se enganar e acreditar em certa normalidade: a lógica que irá imperar daqui para frente é a da guerra. Pois isto não é um governo, isto é um ataque.

Já o discurso do sr. Jair Messias foi claro. Questões econômicas e sociais estiveram em segundo plano enquanto as duas palavras mais citadas eram “deus” e “ideologia”. Deus estava lá, ao que parece, para nos livrar da “crise moral” em que a república brasileira se encontra. Isto, diga-se de passagem, há de se conceder ao sr. Jair Messias: vivemos mesmo uma crise moral profunda. Ela está instalada no cerne do governo brasileiro. Pois como justificar um governo cujo ministro da justiça ganhou seu cargo como prêmio por ter colocado o candidato mais popular a presidente nas grades e pavimentado a estrada para a vitória de seu atual chefe? Como descrever um governo que já nasce com ministros indiciados e um réu confesso que se escarnece da população brasileira ao afirmar “já ter se acertado com Deus” a respeito de seus malfeitos? Como descrever um presidente cujo motorista foi pego em operações financeiras absolutamente suspeitas e se negado duas vezes a comparecer à justiça sem sequer ser objeto de condução coercitiva?

Mas o destaque evidente é a mais nova luta do estado brasileiro contra a “ideologia”. Enquanto uma de suas primeiras medidas governamentais foi diminuir o valor previsto do aumento do salário mínimo, mostrando assim seu desprezo pela sorte das classes economicamente mais vulneráveis, o sr. Jair Messias convocava seus acólitos à grande cruzada nacional para lutar contra o socialismo, retirar das escolas o lixo marxista e impedir que a bandeira brasileira seja pintada de vermelho.

Alguns podem achar tudo isto parte de um delírio que normalmente acomete leitores de Olavo de Carvalho. Mas gostaria de dizer que, de certa forma, o atual ocupante da presidência tem razão. Sua sobrevivência depende da luta contínua contra a única alternativa que nunca foi tentada neste país, que nunca se acomodou nem às regressões autoritárias que nos assolam, nem aos arranjos populistas que marcaram nossa história. Pois ninguém aqui tentou expropriar meios de produção para entregá-los à autogestão dos próprios trabalhadores, ninguém procurou desconstituir o Estado para passar suas atribuições a conselhos populares, aprofundando a democracia direta, e nem levou ao extremo necessário a luta pelo igualitarismo econômico e social que permite à todos os sujeitos exercerem sua liberdade sem serem servos da miséria e da espoliação econômica.

Ou seja, a verdadeira latência da sociedade brasileira que poderia emergir em situações de crise como esta é um socialismo real e sem medo de dizer seu nome. A sociedade brasileira tem o direito de conhece-lo, de pensar a seu respeito, de tentar aquilo que ela nunca viu sequer a sombra. Ela tem direito de inventa-lo a partir da crítica e da autocrítica do passado. Mas contra isto é necessário calar todos os que não se contentam com a vida tal como ela nos é imposta por essa associação macabra de militares, pastores, latifundiários, financistas, banqueiros, iluminados por deus, escroques que tomaram de assalto o governo e que sempre estiveram dando as cartas, de forma direta ou indireta.

Assim, quando Jair Messias fala que irá lutar contra o lixo marxista nas escolas, nas artes, nas universidades, entendam que esta luta será a mais importante de seu governo, a única condição de sua sobrevivência. Pois ele sabe de onde pode vir seu fim depois de ficar evidente o tipo de catástrofe econômica e social para a qual ele está nos levando.

Folha de São Paulo / 05 de janeiro de 2019

* * * * *

“Nossas sociedades são estruturalmente antagônicas, e a divisão é sua verdade. Pois julgamos a partir da adesão a formas de vida, e o que nos distingue são formas diferentes de vida. Não queremos as mesmas coisas, não temos as mesmas histórias.

Neste ponto, há os que dirão que essa é a maior prova de que precisamos de sociedades baseadas no respeito à diferença. Sendo sociedades antagônicas, devemos neutralizar os combates e construir uma forma de convivência entre as diferenças. Mas o que fazer quando temos aqueles que defendem a tortura, que exaltam ditaduras militares ou que naturalizam a espoliação social das mulheres? Há de se respeitar essa ‘diferença’? É realmente possível acreditar que podemos resolver tais diferenças através do diálogo?

Neste ponto, seria importante lembrar que nem todos os modos de circulação da linguagem se resumem ao diálogo e à comunicação. A palavra que circula na experiência estética do poema, na experiência analítica da clínica e mesmo nas conversões de toda ordem não argumenta nem comunica. Ela instaura, ela mobiliza novos afetos e desativa antigos, ela reconstrói identificações, em suma, ela persuade com uma persuasão que não se resume à explicitação de argumentos. O que nos falta não é diálogo, mas encontrar a palavra nessa sua força instauradora.

(…) O que nos persuade não é exatamente a verdade de uma proposição, mas a correção de uma forma de vida que ganha corpo quando ajo a partir de certos critérios e admito o valor de certos modos de conduta e julgamento. Nesse sentido, o critério do que me persuade está ligado a um julgamento valorativo a respeito de formas de vida que têm peso normativo. Argumentos que mobilizam móbiles psicológicos são, na verdade, maneiras de mobilizar afecções (como o medo, o desejo, o desamparo) que impulsionam nossa adesão a certas formas de vida.

Triste é a sociedade que vê nessa persuasão a explosão da irracionalidade, pois ela conhece apenas um conceito de razão baseado em dicotomias que remetem, ao fim, à distinção metafísica entre o corpo e a alma; um conceito pré-pascaliano de razão. Pois há de se lembrar de Pascal, para quem ‘o coração conhece razões que a razão desconhece.’ A frase foi muito usada e gasta, mas a ideia era precisa. Compreender circuitos de afetos não é calar a razão, mas ampliá-la.” (SAFATLE, Ética e Pós Verdade, p. 133 e 135)

Por que os brasileiros elegeram um aspirante a ditador? – Por André Pagliarini em The New Republic

Ilustração por Alex Nabaum

Por que os brasileiros elegeram um aspirante a ditador?

Jair Bolsonaro venceu a presidência com a promessa de restabelecer o regime militar

Por André Pagliarini em The New Republic (13 de novembro de 2018)
Tradução: Raquel de Vasconcellos Cantarelli

Jair Bolsonaro não aprecia muito a democracia. O presidente recém-eleito menospreza a noção de direitos humanos como um “desserviço” ao Brasil. Ele lamenta o fato de que a polícia, uma das mais letais do mundo, não tenha o direito de matar com mais liberdade, prometendo-lhe carta branca em sua administração. Certa vez, propôs utilizar um helicóptero para jogar panfletos advertindo os traficantes a abandonarem as comunidades pobres, ou seriam indiscriminadamente baleados.

Bolsonaro é de longe a mais proeminente autoridade eleita a elogiar a rígida ditadura militar que governou o país de 1964 a 1985. Capitão reformado que serviu ao Exército de 1977 a 1988, foi um soldado sem notoriedade, cujas ambições políticas descomunais frequentemente exasperavam oficiais superiores. Em 1986, por exemplo, queixou-se à imprensa da falta de aumentos salariais e da escassez de perspectivas profissionais aos soldados da ativa.

Pouco depois, foi julgado pela Justiça Militar por incitação à desordem. (Foi acusado de conspirar para atirar bombas em um quartel militar e foi condenado, mas ganhou na apelação e as acusações contra ele acabaram sendo retiradas). Na época, fazia pouco tempo que os militares tinham restituído o governo ao controle civil. Mas Bolsonaro, ao contrário de muitos oficiais superiores, nunca aceitou a redução das funções militares na vida brasileira.

Em sua campanha presidencial, escolheu um general como vice-presidente e prometeu nomear outros militares para cargos-chave do governo. Ele pretende militarizar as fronteiras do Brasil e descreveu o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – uma organização que ocupa grandes propriedades improdutivas no campo para advogar pela reforma agrária e denunciar desigualdades rurais – como uma organização terrorista. Resumindo, promete reviver em espírito, se não necessariamente por lei, a força repressiva do regime militar.

O alinhamento de Bolsonaro com os militares segue uma clara lógica política. As Forças Armadas são as instituições públicas mais confiáveis do Brasil, tendo uma aceitação muito maior que o Congresso, considerado irremediavelmente corrupto pelos brasileiros, ou que o Judiciário, visto como um conluio isolado e mais interessado em resguardar seus próprios privilégios do que administrar justiça. (Juízes brasileiros estão entre os mais bem pagos do mundo).

Nos últimos anos, outros líderes da América Latina se beneficiaram de uma onda da direita. Maurício Macri, um conservador multimilionário, tornou-se o presidente da Argentina em 2015 e, em 2017, chilenos elegeram Sebastian Piñera, que trouxe para seu gabinete autoridades ligadas ao brutal regime de Augusto Pinochet. Contudo, Bolsonaro é um caso à parte por realizar algo que nenhum político havia tentado desde a restauração da democracia na região, há quase 30 anos: ganhou uma eleição nacional como ousado defensor da ditadura militar.

Bolsonaro serviu ao Exército numa época em que autoridades mais moderadas negociavam o retorno ao governo civil. Ainda havia, contudo, militares da linha-dura que acreditavam que restituir o poder à mesma classe política corrupta que havia sido, em grande parte, extirpada em 1964 seria um erro. Em outras palavras, desejavam continuar perseguindo os membros da esquerda. É quase certo que Bolsonaro pertencia a esse grupo.

Por três décadas no Congresso, lamentou-se frequentemente de que o regime não tivesse causado mais mortes, argumentando que matar 30.000 inimigos políticos na ditadura teria sido melhor do que as muitas centenas que de fato morreram. (“A ditadura errou ao torturar e não matar”, é uma expressão comum). Faz sentido que tal retórica militarista tenha favorecido Bolsonaro junto às Forças Armadas, mas não está claro por que convenceu o resto do Brasil. Apenas uma diminuta minoria clama por uma intervenção militar como a que culminou na ditadura de 1964. O que explica sua vitória?

Uma resposta simples seria a recessão. O Brasil está atolado em profundas dificuldades econômicas desde 2014. Para os brasileiros mais pobres, Bolsonaro prometeu mais empregos e a manutenção de benefícios do governo; para a classe média, o retorno ao status perdido enquanto o Partido dos Trabalhadores, de esquerda, esteve no poder; para os brasileiros mais ricos e investidores, a abertura do mercado, leis trabalhistas menos rigorosas e impostos mais baixos. É uma agenda atraente para aqueles que acreditam que a economia será restabelecida apenas se o governo ficar fora do caminho.

Bolsonaro também prometeu erradicar o crime, algo que até mesmo seus mais fervorosos oponentes consideram bem-vindo. Entretanto, poucos eleitores teriam levado a sério seus recursos violentos ou o considerado um candidato legítimo, não fosse a reabilitação gradual da ditadura na consciência pública. São 33 anos desde o fim do regime militar no Brasil. E enquanto memórias dolorosas daquele período recuam no tempo, a severidade do regime foi sendo suavizada. Isso com o auxílio de nova onda de políticos, economistas, movimentos, especialistas e intelectuais que visam contra-atacar o que entendem ser o controle total da esquerda sobre a política brasileira durante a última década e meia.

Resta-nos saber se o apelo nacionalista e militarista de Bolsonaro sobreviverá caso a economia brasileira demore a se recuperar. Entretanto, pode ser que isso não importe, pressupondo que Bolsonaro seja bem-sucedido em seu objetivo de fortalecer os poderes repressivos do Estado. O povo brasileiro tem voluntariado seu apoio a ele, mas pode não ter permissão para retirá-lo.

UM RÉQUIEM PARA A DEMOCRACIA BRASILEIRA – A Ditadura Neoliberal, teocrática e entreguista, vem aí para massacrar o que restou de nosso combalido Estado Democrático de Direito

(Ilustração e poema acima: André Vallias)

“O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”, ensinava a filósofa existencialista e feminista  Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo). Esta cumplicidade dos oprimidos com os opressores só se explica pela implantação ou inculcação de uma ideologia que faz com que a base e os estratos médios da pirâmide social acabem por aderir a um discurso formulado e disseminado a partir do topo.

 Igualmente lapidar é o pensamento desse imenso pensador brasileiro, respeitadíssimo no exterior, apesar de tão difamado e incompreendido em sua pátria-mãe, Paulo Freire: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor.”  A ideologia das cúpulas, a visão-de-mundo das classes dominantes (que desejam afirmar como sacrossanto o direito absoluto à propriedade privada), acaba por se espraiar pelo corpo social, a ponto dos mais vulneráveis e desvalidos acabarem abraçados a uma ideologia e a um projeto político que os oprimirá impiedosamente.

Diante dos mais de 57 milhões de brasileiros que votaram em Jair Bolsonaro em 28 de Outubro de 2018 – data simbólica que marca o colapso da Nova República (1988 – 2018) e uma espécie de re-instauração da Ditadura Militar -, é impossível não lamentar aquilo que Millôr Fernandes disse em outra frase tragicômica que retorna à lembrança como um bumerangue: “O Brasil tem um enorme passado pela frente.”

Uma chacota que parece ter o dom da eterna atualidade neste país-caranguejo, que insiste em regredir às barbáries pretéritas. Aliás, vocês já decidiram onde vocês vão passar o reveillon de 2018 para 1964?

Em matéria de economia política, um Pinochetismo brutal está a caminho, como muito bem argumentado neste artigo de El País que explica porque a Escola de Chicago floresce no autoritarismo. O “Chicago Boy” que chefiará o programa econômico Bolsonarista, Mr. Paulo Guedes, vem aí para aplicar a Shock Doctrine, analisada com brilhantismo por Naomi Klein.  O resumo mais simples da Doutrina do Choque é uma frase do bilionário Warren Buffett: “é a guerra de classes, e os ricos estão vencendo.”

O autoritarismo militarizado é hoje convocado pelo capitalismo neoliberal para defender sua hegemonia, sacudida em suas raízes pela crise econômica iniciada em 2008 e que deu origem ao equivalente, no século 21, da Grande Depressão dos anos 1930. Para impor privatizações, massacre de direitos trabalhistas e previdenciários, além de mamatas e privilégios para megacorporações transnacionais, tudo deve ser defendido sem piedade pelos tanques e tropas.

Como nos lembra a escritora indiana Arundathi Roy, há um pensamento de Milton Friedmann (o economista neoliberal, prêmio Nobel, que ajudou a formular a plataforma econômica da ditadura Pinochet no Chile) em que ele diz: “The hidden hand of the market will never work without a hidden fist”, ou seja, a mão invisível do mercado nunca funcionará sem um punho escondido. Este Punho, que aterroriza aqueles que poderiam se sentir tentados a protestar ou a tentar revolucionar o atual status quo, é um Estado penal-policial truculento, que impõe sua Ordem injusta, racista e segregadora através do argumento mais bestial que há: o da força bruta.

Quem ganhou as eleições no Brasil foi o Capitalismo Selvagem, militarizado e entreguista, somado às forças do fundamentalismo religioso, sobretudo neopentecostal, tudo apoiado pelos velhos barões da mídia oligopolizada e da parcela da classe média que não quer direitos para todos, mas privilégios para si e para os seus. Venho sugerindo que o Brasil vai no rumo de uma teocracia militarizada semelhante à Gilead em The Handmaid’s Tale de Margaret Atwood.

Venceu, nas eleições, um projeto autoritário de exclusão, segregação e extermínio que não tem a mínima disposição para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Apesar de, hipocritamente, vestirem a máscara de cristãos e alardearem slogans como “Deus Acima de Tudo”, o movimento de extrema-direita, empoderado pelas urnas em Outubro de 2018, aboliu o “Amai-vos uns aos outros” e instituiu o “Matai-vos uns aos outros”, processo tido como necessário para uma “faxina” como nunca antes se viu neste país.

Os novos ocupantes do aparelho de Estado aparecem em transmissões orando a Deus, entidade que supostamente mandou avisar, lá nos Evangelhos onde se guarda supostamente a sua Divina palavra, que a mentira é filha do demônio, e no entanto mentem como mitomaníacos. É difícil pensar em alguma campanha eleitoral que tenha sido mais desleal do que esta que elegeu Bolsonaro – as enxurradas de fake news são um fenômeno que revela, em suas motivações psicológicas, um sadismo alterofóbico que se manifesta na tentativa de assassinar a reputação e a honra do adversário, a todo preço, inclusive o do avalanche de mentiras que foram despejadas sobre Haddad, Manu, Lula e outras lideranças de esquerda.

 

Pessoalmente, sinto minha vida muito mais vulnerável agora, diante da iminência de um governo Bolsonaro, pois trabalho com mídia independente, educação e artes – três áreas que o novo führer pretende tratar com sua já usual boçalidade. Na educação, teremos um milico à frente do MEC, empoderando as milícias do Escola Sem Partido, para livrar as escolas e universidades da “doutrinação esquerdista” e da “propaganda comunista”. É pau-de-arara e aprisionamento pra quem ousar ensinar Paulo Freire, Karl Marx, Rosa Luxemburgo, mas também Charles Darwin (que atenta contra o sagrado criacionismo) e Nietzsche (aquele ateu sujo, aquele herege desbocado!).

O MinC provavelmente será extinto, virando uma secretaria dentro de um Super Ministério chefiado por Guedes e “garantido” pelo General Mourão, onde não haverá um centavo para produtos culturais que enfrentem o racismo, o machismo, a homofobia, o classismo. Sobrará recursos para mandar imprimir milhões de cópias de Olavo de Carvalho. Já na mídia, a Censura a todos aqueles que não se colocarem em uníssono com a máquina produtora de fake news que o neo-governismo seguirá despejando em Whatsapps, Twitters e Facebooks, com dinheiro público, para seguir produzindo uma conveniente lavagem-cerebral-em-massa.

A tendência clara, para os próximos tempos, é a de intensificação de uma certo macartismo à brasileira, já apontado com muita clareza em textos recentes de Verlaine Freitas e de Luis Felipe Miguel:

Em um impressionante artigo que publicou recentemente em Folha de S. Paulo, o filósofo Vladimir Safatle fez um exercício de futurologia distópica e imaginou um discurso de Bolsonaro no final de 2019. O cenário pintado por Satafle de fato é muito verossímil, sinto que é a isto que estamos nos encaminhando: teremos como Chefe-de-Estado alguém que deseja que seus opositores “apodreçam na prisão” e que só saberá lidar com as graves convulsões sociais que seu plano intragável fará eclodir através de seu único método: resolver tudo no tiro, com a graça de Deus e o beneplácito de Edir Macedo.

UM ANO DEPOIS – Por Vladimir Pinheiro Safatle em Folha de S.Paulo

“Brasileiros amantes da pátria, venho a público em cadeia nacional, um ano após nossa grande vitória nas eleições de 2018, para anunciar medidas que nosso governo tomará contra o grave momento por que passamos. As forças subversivas que lutam dentro de nosso país contra os interesses supremos da pátria, aliados ao comunismo internacional, se voltaram contra as reformas que implementamos neste ano de 2019, semeando mentiras, cizânias e fake news entre o povo.

Quando flexibilizamos as leis de trabalho para garantir que os empresários voltassem a empregar mais, tirando entulhos que eles chamavam de ‘direitos’, esses delinquentes foram capazes de sorrateiramente convencer gente ingênua de que nós estávamos apenas governando para os ricos. Porra, quando eu falei que era melhor ter menos direitos e emprego do que mais direitos e desemprego parece que teve gente que não entendeu. O cara fica sonhando com férias, 13º, acordo coletivo, mas ninguém queria contratar.

Então a gente liberou e os empregos apareceram, tá OK?

Aí veio essa gente dizendo que os salários desses empregos eram muito mais baixos e sem garantias, que minha política era responsável por deixar os pobres ainda mais pobres, mesmo trabalhando mais e em condições piores, enquanto diminuía os impostos dos ricos. Eu botei uma alíquota única para o imposto de renda, 20% para todo mundo, e teve gente que ainda reclamou que os mais pobres perderam sua isenção fiscal. Mas todo mundo tem que colaborar. Todo mundo tem que pensar no Brasil.

Só que esse pessoal se aproveitou para criar aquela balbúrdia que vocês viram. O governo não ia deixar o país parar por causa daquelas greves e manifestações na rua. Mandei mesmo a polícia intervir. Fazer o que se aqueles vermelhos foram para cima das forças da ordem e elas reagiram? Porra, vocês acham o quê? Se teve 14 mortes, paciência. Esse país não vai virar uma Venezuela.

Depois, veio uma ONG estrangeira, dessa gente que fica comparando o Brasil às Filipinas e à Turquia, para dizer que o aumento da violência neste ano foi gerado pelo aumento da desigualdade e pela concentração de renda que meu governo teria produzido. Conversa. Violência é coisa de bandido, chega de passar a mão na cabeça de malandro. Só que esse pessoal ainda fica rodando o mundo com as cenas daqueles dois garotos que entraram em uma escola de elite de São Paulo e metralharam 25.

O que isso tem a ver com a liberação do porte de armas que fizemos no meu governo? Tudo isso é coisa de gente mal intencionada, tá OK? Hoje, os professores andam armados e estão mais seguros. Por isso, mandei essas ONGs para fora do país e aprovamos uma Lei da Informação verdadeira. Quem mentir dançou. Cadeia.

Agora, tem gente de novo na rua dizendo que eu não estou nem aí com a saúde pública, que está tudo sucateado e o povo apodrece em fila de hospital porque não aumentei os recursos para o SUS. Eu tinha dito que não ia aumentar mesmo, que não precisava disso. Mas aqueles médicos cubanos vieram com essa história de terem que tirar dinheiro do próprio bolso para comprar medicamentos para os pacientes. É coisa de cubano.

Juntou esse povo com os estudantes riquinhos que perderam sua mamata porque as universidades públicas agora são pagas e cortamos a verba desse pessoal que tinha fetiche de diploma. Aquilo era só doutrinação comunista e gayzista, ninguém vai sentir falta dos 5.000 professores que botamos para fora porque só faziam doutrinação.

Os pais têm que se preocupar com o ensino fundamental. Universidade para quê? O que falta é educação moral e cívica. Agora, se não tem gente que quer ser professor de ensino fundamental porque as tais condições de trabalho são ruins, paciência. Vamos fazer tudo a distância. E não venha falar em queda de qualidade. Esse pessoal gostava mesmo era da época em que o governo distribuía kit gay para nossas crianças.

Por tudo isso, eu e meu vice, o general Mourão, estamos decretando estado de exceção para limpar de uma vez por todas este país dessa escória e garantir o crescimento, a prosperidade e a paz social. Lei não é feita para bandido. O Brasil ama a ordem e o progresso. Boa noite.”

* * * * *

UMA HECATOMBE PARA OS DIREITOS HUMANOS E LIBERDADES CIVIS?

Dá até calafrio de imaginar o sr. Jair Messias Bolsonaro falando na plenária das Nações Unidas – talvez por isso ele já tenha anunciado que vai pular fora da ONU. Deve pensar que nesse antro de esquerdistas, em pleno coração financeiro de Manhattan, em Nova York, fica aí querendo defender vagabundos e bandidos.

Por aqui, ele vai resolver isso aí: não vai ter “coitadismo” com negros, gays, transexuais, esquerdistas, estudantes questionadores, professores críticos, jornalistas independentes, vai ter é Ordem Militar impondo o Progresso. E o plano deles é que possamos progredir rumo a… 1968. Bolsonaro falou que quer o Brasil de volta como era há 50 anos atrás. Quer dar à nossa geração um gostinho amargo do sangue derramado nos Anos-de-Chumbo.

A Anistia Internacional Brasil​ mostra-se preocupada, e com razão:

“O presidente eleito fez campanha com uma agenda abertamente anti-direitos humanos e frequentemente fez declarações discriminatórias sobre diferentes grupos da sociedade. Sua eleição como presidente do Brasil representa um enorme risco para os povos indígenas e quilombolas, comunidades rurais tradicionais, pessoas LGBTI, jovens negros, mulheres, ativistas e organizações da sociedade civil, caso sua retórica seja transformada em política pública”, disse Erika Guevara-Rosas, Diretora da Anistia Internacional para as Américas.

As promessas de campanha de Bolsonaro incluem a flexibilização das leis de controle de armas e autorização prévia para policiais matarem em serviço. Essas propostas, se adotadas, agravariam o já terrível contexto de violência letal no Brasil, onde ocorrem 63 mil homicídios por ano, mais de 70% deles com armas de fogo, e onde a polícia comete cerca de 5 mil homicídios por ano, muitos dos quais são, na realidade, execuções extrajudiciais.

Além disso, Bolsonaro ameaçou os territórios de povos indígenas com a promessa de alterar os processos de demarcação de terras e autorizar grandes projetos de exploração de recursos naturais. Da mesma forma, também falou sobre flexibilizar os processos de licenciamento ambiental e criticou as agências de proteção ambiental do Brasil, colocando em risco o direito de todas as pessoas a um ambiente saudável.

“Agora, com o processo eleitoral encerrado, enfrentamos o desafio de proteger os direitos humanos de todos no Brasil. A Anistia Internacional está ao lado de movimentos sociais, ONGs, ativistas e todos aqueles que defendem os direitos humanos, a fim de garantir que o futuro do Brasil traga mais direitos e menos repressão”, disse Erika Guevara-Rosas.

O Brasil tem uma das taxas de assassinatos de defensores e ativistas de direitos humanos mais altas do mundo, com dezenas de mortos todos os anos por defender os direitos que deveriam ser garantidos pelo Estado. Nesse contexto grave, as declarações do presidente eleito, sobre colocar um fim no ativismo e reprimir os movimentos sociais organizados, representam um alto risco aos direitos de liberdade de expressão e manifestação pacífica, garantidos pela legislação nacional e pelo direito internacional.

Bolsonaro e Mourão, ambos militares da reserva no Brasil, também defenderam publicamente crimes do Estado cometidos durante o antigo regime militar, incluindo a tortura. Isso aumenta a perspectiva de graves retrocessos em direitos humanos, desde o fim do regime militar e a adoção da Constituição Federal de 1988.

“As instituições públicas brasileiras devem tomar medidas firmes e decisivas para proteger os direitos humanos e todos aqueles que defendem e se mobilizam pelos direitos no país. Essas instituições têm um papel fundamental a desempenhar na proteção do estado de direito e impedir que as propostas anunciadas se materializem”, afirmou Erika Guevara-Rosas.

“A comunidade internacional permanecerá atenta para que o Estado brasileiro cumpra suas obrigações de proteger e garantir os direitos humanos.”

Diante de um cenário tão preocupante, o que não podemos, de modo algum, é calar nossas angústias, afundar a cabeça na terra como um avestruz e fingir que tudo está normal. “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte.” O manifesto escrito por Júlian Fúks representa um caminho interessante a adotarmos de imediato: resistência cultural, criativa, solidária, nas redes, ruas, podcasts, blogs, festivais, poemas, livros, shows, danças, batuques etc.

A história da arte no Brasil já deu muitas provas de que crescem nas adversidades muitas expressões potentes e significativas – como foi a revolução estético-comportamental do Tropicalismo na Ditadura pré-AI5 (1967-1968). O pior que poderia acontecer é abaixarmos nossas cabeças e aceitarmos a imposição autoritária da mordaça, do novo cálice de cale-se. Contra a cultura do silenciamento, onde só pode se manifestar o uníssono da manada que repete a mensagem das cúpulas, os papagaios do verbo do Grande Líder, devemos pôr em ação conjunta toda a nossa criatividade coletiva na manifestação polifônica, policrômica, poliafetiva, da nossa indomável sociobiodiversidade.

Não há dúvida de que tempos convulsionados e tensos se avizinham, e que neles será muito mais difícil sustentar projetos de mídia independente, de educação para o senso crítico e de arte transgressora de normas e dogmas. A Censura já está comendo solta neste fim de 2018 – o TSE não deixou a campanha eleitoral do PT ser veiculada pois vinculava Bolsonaro à apologia do torturador e estuprador Brilhante Ustra; o The Intercept está sob intenso ataque de Edir Macedo (Record e IURD); o jornal Brasil de Fato foi censurado e teve algumas centenas de cópias de sua edição histórica apreendidas; mesmo a Folha de São Paulo, jornal liberal e nada suspeito de pendores comunistas, foi perseguida por revelar o esquema de caixa 2 da fraudulenta campanha de Bolsonaro.

Tentando nos infundir um pouco de ânimo, Peter Pál Pelbart – filósofo, ensaísta, professor e tradutor húngaro residente no Brasil – comunica sua leitura de conjuntura:

“Eu acho tudo isso que está acontecendo positivo no macro, embora esteja sendo dificílimo no micro. Explico: todo esse ódio, toda essa ignorância, essa violência, isso tudo já existia ao nosso redor. Agora é como se tivessem tirado da gente a possibilidade de fingir que não viu. Caíram as máscaras. O Brasil é um país construído em bases violentas, mas que acreditou no mito do “brasileiro cordial”. Um país que deu anistia a torturadores e fingiu que a ditadura nunca aconteceu. Que não fez reparação pela escravidão e fala que é miscigenado e não é racista. Nós fechamos muitas feridas históricas sem limpar e agora elas inflamaram.

Estamos sendo obrigados a ver que o Brasil é violento, racista, machista e homofóbico. Somos obrigados a falar sobre a ditadura ou talvez passar por ela de novo. Estamos olhando para as bases em que foram construídas nossas famílias e dizendo “Essa violência acaba em mim. Eu não vou passar isso adiante.” Como todo processo de cura emocional, esse também envolve olhar pras nossas sombras e é doloroso, sim, mas é o trabalho que calhou à nossa geração.

O lado positivo é que, agora que estamos todos fora dos armários, a gente acaba descobrindo alguns aliados inesperados. Percebemos que se há muito ódio, há ainda mais amor. Saber que não estamos sós e que somos muitos nos deixa mais fortes. Precisamos nos fortalecer, amores. Essa luta ela não é dos próximos 15 dias, é dos próximos 15 anos. Mais: é a luta das nossas vidas. Não cedam ao desespero. Não entrem na vibe da raiva. Não vai ser com raiva que vamos vencer a violência. E se preparem, tem muito chão pela frente.”

O que a vida quer da gente é coragem – como Guimarães Rosa dizia, muitas vezes citado por Dilma Rousseff, e agora recuperado por Fernando Haddad. “Verás que um professor não foge à luta”, disse Haddad no discurso após a derrota, parafraseando o hino nacional e demonstrando, numa disposição de espírito que amalgava serenidade e indignação, ser um mestre de dignidade e de coragem.

Eis um ser humano que cresceu nas adversidades e esteve à altura da missão histórica de levar adiante a tocha de Lula depois do golpe contra sua legítima candidatura, em que a “fascistização” do Brasil já se escancarava, pois as instituições do Judiciário chutaram para escanteio a recomendação do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas​. Acredito que Haddad foi nosso professor coletivo, alguém que manifestou as duas virtudes que ele, na entrevista à TVE, disse que são fundamentais ao ofício de educador: a humildade de aprender e a generosidade de ensinar. Seguirá conosco, como valioso aliado das batalhas que virão.

Nas Eleições, Haddad jogou limpo, de peito aberto, encarando o debate público, expondo suas propostas, trabalhando arduamente na tarefa de Sísifo de conscientizar o eleitorado brasileiro sobre o tiro-na-cabeça que seria a eleição do Coiso – tragédia que se consumou, mas não sem uma linda mobilização social que nos fortaleceu. Nas urnas, Haddad teve o apoio de mais de 47 milhões de brasileiros. Fora das grades da política eleitoral, construímos alianças e solidariedades que serão de muito valor para a reinvenção das esquerdas no Brasil – processo que não é promessa, pois já está em pleno processo.

Não há razão para abaixarmos a cabeça: estivemos juntos e unidos, buscando construir harmonia na diversidade, unindo vozes na polifonia de nossas diferenças, ao lado da Justiça e da Verdade, em defesa da Democracia e das liberdades civis. Fomos ardorosos na defesa de toda a pluralidade de existências e seus direitos a florescerem. Defendemos valores tão desprezados e tão derrotados no decorrer da História, repleta de truculência e militarismo. O #EleNão marcou história não só no movimento feminista, mas na luta intersecional, pois reuniu também a luta antifa, antiracista, anti-austeridade, anti-precarização. Soubemos honrar a vida e o legado de Marielle e afirmar em alto e bom som o direito de todas as pessoas diversas – mas não dispersas. Diferentes mas solidárias.

Os tempos sombrios da História sempre fazem com que despertem da apatia aqueles que são lúcidos e corajosos o bastante para reacender os ânimos dos companheiros e instigar mais gente a devotar a existência à construção coletiva de um mundo menos sórdido e mais solidário. Um mundo onde caibam todas as vidas.

Não há vergonha: estamos lutando a boa luta, aquela por um mundo menos opressivo, menos intolerante, menos dogmático, menos violento, o que só se fará se for mais justo e solidário. Quem deveria se sentir envergonhado é Bolsonaro e boa parte de seu eleitorado: mentiram como uns desgraçados por toda a campanha, confundindo Eleições com a UFC; foram profundamente desrespeitosos e agressivos com as minorias sociais, tendo apelado a dúzias de agressões físicas e até mesmo fatais; tocaram o terror pra cima do campo adversário, desumanizando-se a ponto de prometer “fuzilamento da petralhada” e enquadramento de movimentos sociais como “terrorismo”; foi uma das mais vis, vergonhosas e fraudulentas campanhas políticas de toda a história da Nova República, que assim colapsa.

O Bolsonarismo, explicitando o seu mau-caratismo, a trogloditice de seus acólitos, fez uma campanha toda calcada na manipulação de massas, fundada sobre os pés de barro das fake news distribuídas em massa com dinheiro do empresariado, praticando assassinato de reputações e fugindo a todos os debates que poderiam iluminar a opinião pública sobre o verdadeiro caráter das políticas Bolsonaristas – elitistas, higienistas, violentas, racistas, misóginas, ditatoriais. Uma política esmagadoras dos direitos humanos mais elementares. Pode-se dizer, sem apelar para a linguagem metafórica mas permanecendo no regime literal, que os fascistas venceram sim, mas, como é de praxe, sujaram-se com o sangue que derramaram. Justo eles, que prometeram que nossa bandeira nunca seria vermelha…

Na derrota, se pude manter a cabeça erguida apesar da tristeza imensa, foi por empatia diante das atitudes tão plenas de dignidade humana encarnadas pelo querido professor Haddad, pela maravilhosa mulher guerreira Manuela D’Ávila, pelo ex-presidente de Lula detrás das grades e tendo a ele prometido pelo novo tirano o destino de “apodrecer no cárcere”… Posso até estar entre os que por enquanto estão entre os derrotados, mas sempre será muito melhor estar entre os derrotados que mantiveram a dignidade do que entre os que triunfam através da bestialidade.

“Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”

Darcy Ribeiro

Eduardo Carli de Moraes – 29 de Outubro de 2018
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Se fere qualquer existência, seremos a reXistência.

CLARICE LISPECTOR E O AMOR FATI – Ou: Como dizer “Sim!” até mesmo às Baratas

A suma da sabedoria, para Nietzsche, cabe nesta fórmula em latim: amor fati. O que o filósofo bigodudo quis dizer com isso, com esta celebração do “amor ao destino”? A artista-pensadora Clarice Lispector (1920 – 1977) pode nos ajudar a decifrar essa esfinge. A leitura de sua obra nos conduz a pensar que a postura existencial que se chama de amor fati pode ser sintetizada em uma palavra única: “sim”.


Estar no mundo em estado de amor fati significa encarnar um ethos afirmativo, que diz “sim!” ao destino humano em sua totalidade, inclusive aquilo que há de mais doloroso e cruel em nossa condição de mortais. Aquele capaz de alçar-se ao amor fati abraça a existência como um todo, sem exclusão de nada (como explica o filósofo Marcel Conche).

Mas, para conseguir amar um destino que muitas vezes nos faz tragar vivências amargas e sofrimentos indigeríveis, talvez não haja escola mais salutar do que a tragédia. É aí que esta atitude de amor incondicional à existência do amor fati, com tudo que ela inclui de sofrimento e desrazão, de horror e de efemeridade, acaba desaguando no ethos trágico.

Clarice Lispector, dentre os artistas do Brasil, foi uma daqueles que melhor percebeu esse vínculo. Por essa razão, ainda que não cite Nietzsche, ela está em sua “órbita espiritual”.

Só há autêntico amor fati para aqueles que conseguem reconhecer, encarar e celebrar a existência com tudo nela que é contraditório, agonístico, dilacerante, insuportável. Se fôssemos capazes desse tipo amor, seríamos então os virtuoses da aceitação total do mundo – o que que talvez seja algo humanamente impossível.

Clarice é uma dessas raras pessoas que, sentindo-se como uma precursora que abre caminhos para outros cosmonautas que ainda nascerão, descreve-se a si mesma como “contemporânea do amanhã”. Pois ainda estão para nascer aqueles que um dia saberão libertar-se da má consciência, do rancor ressentido que alimenta-se com planos de vingança, típico do caráter forjado e disseminado por religiões e éticas de tendências ascéticas. O antídoto é dionisíaco, pagão, lúdico, carnavalesco: o espírito livre Nietzschiano.

Clarice, como Nietzsche, pensa poder contribuir para que amanhã se dissemine mais um tipo de atividade espiritual ainda pouco explorada e exercida: a arte-de-viver conexa à sabedoria trágica-dionisíaca, o amor fati que diz sim à esfinge toda da nossa humana existência. Clarice, assim, pode ser lida como uma artista-pensadora que mergulha fundo na busca desta “Sabedoria do Sim”.

Essa busca pelo Sim consiste num desejo de superar a condição daqueles que sofrem de negação niilista, de passividade ascética. O amor fati nos conduz, não à contemplação e à estagnação, mas a uma vida que se sabe criativa e criadora, e nunca apenas conservadora e acomodada. O espírito livre, que ama o mundo como um todo, ama também a si mesmo dentro dele, já que, enquanto agente transformador, vive em labuta colaboradora em que as dores são celebradas pois são dores de parto. Toda criação envolve dor, mas estas dores dos que parem obras, e que fazem de suas próprias vidas cintilantes obras-de-arte em carne-e-osso, não devem ser negadas, mas abraçadas.

Este ideal trágico-dionisíaco de amor fati – que Nietzsche projeta na figura ainda por vir dos filósofos do futuro, os “espíritos livres”, e que prefigura em seu Zaratustra – conduz uma existência capaz de superar o nojo, a náusea, o cansaço, o niilismo, ascendendo ao “Sim!” maior que todos os nãos. Um sim criador, que diz sim até mesmo à destruição, quando esta abre terreno para a renovação e a recriação do mundo e de nós mesmos.

Diríamos assim um sim, que seria ao mesmo tempo uma ação de graças, ao cosmos como um todo, inclusive às coisas nele usualmente consideradas sórdidas, repugnantes, intragáveis. Como as baratas.

A Paixão Segundo G.H., o famoso romance em que Clarice foca toda sua atenção sobre o “encontro” de uma mulher com uma barata, é veículo para profundas reflexões que tem muitas afinidades eletivas com aquelas de Nietzsche. Eis o tema do interessante livro de Cláudio Dias G.: Clarice Lispector & Friedrich Nietzsche – Um Caso de Amor Fati (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, 1ª ed.)

Segundo o autor, tanto Clarice quanto Fritz tiveram uma profunda e prolongada confrontação com o trágico da existência humana, separando-se assim da futilidade reinante nas manadas.

Ambos rompem com as normas vigentes, mas sentem que esta aparente destruição pode ser criativa, pelo mesmo ser a pré-condição da criação – assim como o leão precisa preceder à criança na parábola de Zaratustra, Das Três Metamorfoses do Espírito. 

O leão ruge contra a norma, quer sobrepujar o temível e paralisante Dragão do “Tu Deves!”, mas não é para depois tornar-se bestial, mas sim para devir-criança, novo começo, criatividade em ação.

amor fati não é algo que o sujeito possa ganhar de presente, como maná caído dos céus, é uma atitude a se conquistar. Entre os estóicos, toda uma série de exercícios ascéticos e cognitivos deveria conduzir à esta atitude difícil de acessar como um cume de montanha.

Zaratustra ama os cumes de montanha, o isolamento de um asceta sem Deus, que diante do Cosmos reflete sobre o eterno retorno e exercita-se na tarefa dificílima de aprender a Atitude do Sim Maior.

Abertura ao cosmos, ao universo como ele verdadeiramente é, sem tirar nem pôr. E é difícil negar que o cosmos inclui muita coisa que, para a sensibilidade e a razão humanas, são sentidas e percebidas como grotescas, horríveis, disformes, dolorosas. Pensem numa UTI infantil.

Crianças berrando de dor numa UTI infantil, em especial para o filósofo que abandonou o cristianismo e não crê mais no Pecado Original (que teria se transferido de Eva a Adão, e do casal primordial para todas as gerações subsequentes da humanidade), estes hospitais onde gritam de dor os recém-nascidos é prova viva de que há no mundo muito sofrimento imerecido. Shakespeare resumiu isso num verso cintilante: “Há inocentes que não escapam dos raios.”

O que pode ter feito uma criança de 10 dias para merecer os dolorosos processos de uma agonia hospitalar que não lhe conduz à cura nem à redenção, mas somente à morte? A inocência torturada, o sofrimento que não corresponde à culpa: eis uma faceta forte do trágico.

A atitude do amor fati é trágica-dionisíaca pois consiste na “aceitação  incondicional e cruel do mundo, com todos os seus problemas, e que nos dá a consciência sem perdão da própria efemeridade.” (DIAS, pg. 49) Clarice e Nietzsche compreenderam, cada um à seu modo, que a tragédia não deve ser evitada, não devemos fugir dela com medo: precisamos mais que tudo, caso queiramos ser sábios, aprender a amar a vida naquilo que ela possui de mais problemático, de mais ameaçador, de mais ofensivo ao nosso gosto, e a tragédia é uma escola para isso. É nas tragédias, da vida e da arte, que aprendemos o amor fati, a sabedoria maior.

Só se vai além dos vários nãos de nossas recusas, nossos nojos, nossos ódios, nossos muros, investindo numa atitude que vá Além do Bem e do Mal. Não se trata, pois, de uma atitude que fique se concentrando nos horrores da existência para retirar disso motivos para o desânimo, a prostração, o niilismo passivo, mas muito pelo contrário. Nietzsche e Clarice também se unem na compreensão de que o ethos do amor fati, esta sabedoria trágica de que nos falam os filósofos Michel Onfray e Clément Rosset, consiste num fortalecimento da nossa potência. O contato com o trágico deve servir na vida como tônico, e não como algo desanimador; deve fortalecer em nós o salutar pessimismo dos fortes. 

A força que pode nascer de nosso pessimismo consiste naquela lucidez desesperada dos que agem na ausência de Deus, e por isso mesmo tomam o seu destino nas próprias mãos de maneira muito mais radical do que os crentes. Albert Camus é uma das figuras que melhor encarna isso entre os artistas-pensadores do século 20, e as afinidades de sua obra e seu pensamento com os de Lispector e Nietzsche são múltiplas e intensas.

Clarice, Nietzsche, Camus – todos eles buscaram a sabedoria do amor fati, e souberam tematizar o quão difícil era o processo da “morte de Deus” – perder a fé, ir ganhando autonomia de espírito, ousar ascender ao privilégio de tornar-se quem se é. É a busca pelo auto-pertencer-se que permite o auto-esculpir-se, ou melhor, é a vida como autopiésis (ver, para links como a biologia e o evolucionismo, a obra de Maturana e .

Pois Deus é o nome de uma resposta pronta que nos esbofeteiam na cara quando somos crianças para que paremos de fazer perguntas impertinentes. É o nome de uma invenção que nos rouba boa parte de nossa capacidade de estupefação diante do mistério, da sphinx cósmica onireluzente.

Falo aqui de mestres do amor fati que souberam transcender o simplismo e a tosquice da crença em Deus tradicional – um velho rabugento, de barbas brancas, sentado numa nuvem, que nos julga com rigor e severidade, pronto para condenar os maus às penas infernais e promover os bons aos deleites do paraíso.

O Deus de todos os maniqueísmos cai por terra, esfacelado, apagado, vivenciando seu crepúsculo – e Zaratustra (ou Zoroastro), o profeta persa que está no início deste longo delírio monoteísta-maniqueísta, é ressuscitado por Nietzsche como revolucionário, profeta-bufão, que vem para reinstaurar o dionisismo trágico “pagão” lá onde a decadência européia desejava instalar o verme nocivo e doentio do niilismo e do pessimismo dos fracos (que cruzam os braços, choram e dizem só não, não, não…).

Clarice e Nietzsche são autores cujos escritos seguem sendo inesgotáveis mananciais para a conquista de sabedoria trágica, amor fati, em especial para aqueles que buscam acessar toda a potência escondida na lucidez desesperada dos que agem na ausência de Deus. Esta aventura espiritual talvez só se torne possível para aqueles que sepultaram o pseudo-deus da infância, e que hoje rezam singularmente, como Clarice:

“Meu Deus, me dê a coragem de viver 365 dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu tenha coragem de me enfrentar. Receba em teus braços o meu pecado de pensar.” – CLARICE LISPECTOR, Um Sopro de Vida. Pg. 159-160.

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PARTE 2: A PAIXÃO SEGUNDO G. H.

“Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. O leite a gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa. (…) Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. (…) Para termos, falta-nos apenas precisar. Precisar é sempre o momento supremo. Assim como a mais arriscada alegria entre um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar é tanta que se sente em agonia e espanto: sem ti eu não poderia viver. A revelação do amor é uma revelação da carência – bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o dilacerante reino da vida.” CLARICE LISPECTOR. A Paixão Segundo G.H.

A pior maneira de abordar esse livro é ir a ele querendo entendê-lo por inteiro, como se entende um teorema matemático, um sistema científico ou silogismo filosófico – e entendê-lo com a cabeça somente, o que é sempre o pior. Minha dica para os marinheiros de primeira viagem que se propõe a navegar por esse oceano turbulento que é A Paixão Segundo G.H. é a seguinte: se importem pouco em ler com a Razão e só com a Razão. Esse livro não é pra ser entendido, pessoas… É pra ser sentido, é pra ser experenciado, é pra ser viajado – digo mais, até: é pra ser ingerido como um entorpecente, uma espécie de mescalina literária que pode nos ajudar a viver todas aquelas loucas experiências que o Aldous Huxley relatou depois de tomar seus alucinógenos. É preciso ser como a própria G.H. e ter “a coragem de um sonâmbulo que simplesmente vai” (pg. 15).

O que a Clarice faz nesse livro é nos levar num passeio vertiginoso dentro da alma de uma mulher que descobre, tateando e com medo, alguma verdade importantíssima sobre a vida e o universo – e que vai nos relatando, aos trancos e barrancos, entrando progressivamente no “poço”, essa sua experiência tão singular.

Ela, porém, teme esse próprio segredo que lentamente vai descobrindo, teme se perder no desconhecido em que se joga, e a mão que ela pede em vários trechos do texto talvez seja a própria mão do leitor. “Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão”, diz G.H. logo no início de seu relato, quase suplicando: segura minha mão, amigo leitor, que estou com medo… e vamos juntos entrar nesse quarto escuro… E pede até perdão por nos trazer para um ambiente onde vigora tanta confusão e tanta vertigem:

“Sei, é ruim segurar minha mão. É ruim ficar sem ar nessa mina desabada para onde eu te trouxe sem piedade por ti, mas por piedade por mim. Mas juro que te tirarei ainda vivo daqui – nem que eu minta, nem que eu minta o que meus olhos viram. Eu te salvarei deste terror onde, por enquanto, eu te preciso. Que piedade agora por ti, a quem me agarrei. Deste-me inocentemente a mão, e porque eu a segurava é que tive coragem de me afundar. Mas não procures entender-me, faze-me apenas companhia…” (pg. 98-99)

Eis um livro extremamente difícil de entender, com certeza absoluta – mas toda grande obra-de-arte tem um quê de mistério, um quê de inexplicável, algo que permite voltar a ela, vezes sem fim, tentando decifrar o que está ali escondido. A decifração aqui não é nada fácil; mas é um enigma delicioso de enfrentar.

Sei bem que os mais caçoadores podem até desprezar Clarice Lispector por não ter feito nada além de ficar realmente “viajando na maionese” por 200 páginas: esse é o tipo de obra que grande parte das pessoas pode até ler inteirinha, e até com muito gosto, mas no final acabar por dizer: “pô, não entendi porcaria nenhuma…” Mas é bobo xingar o artista e dizer que ele não presta só porque nós não o entendemos, ou não o entendemos por inteiro: quem sabe nós é que não estamos à sua altura? Quem sabe nossa sensibilidade e nossa inteligência é que precisa se desenvolver, e muito, para que nos alcemos ao nível dele?

De qualquer jeito, esse livro é “exigente”. Eu tenho a impressão de que um certo “repertório” filosófico é essencial pra conseguir acompanhar Clarice nessa viagem, que tem vários pit-stops na metafísica, na teologia e no misticismo. A gente precisa ter na bagagem pelo menos um pouco de conhecimento, mesmo que superficial, sobre as “doutrinas místicas” orientais presentes em textos como os Upanishades, os Vedas, o Bhagavad Gita, o Livro Tibetano dos Mortos e coisas semelhantes. Ou pelo menos ter lido algum dos autores mais modernos que tornaram mais acessíveis aos leigos as obscuras doutrinas indianas antigas: tipo o Osho, o Krishnamurti, o Heinrich Zimmer, o François Jullien, entre outros. Ao mesmo tempo, a abordagem da Clarice muitas vezes beira o existencialismo e ela dá impressão de ter lido muito Nietzsche, Bergson, Sartre, Camus.

Viajemos um pouco com Clarice, tentando sacar qualé todo a “filosofia” por trás desse livro tão focado na figura da barata – algo que sugere também uma influência Kafkiana. O nojo por baratas é quase universal no ser humano; difícil encontrar algum louco que ache-as “bichos bonitinhos” ou que os crie numa gaiolinha como animais de estimação, acariciados com carinho… Alguém que fizesse isso iria parar no manicômio.

A barata é um bicho feio, sujo, nauseante, nojento e imundo – uma daquelas criaturas que os crentes com menos temor de cometerem heresias podem se perguntar: mas por que Deus foi criar um negócio horrendo desses?

A barata, afinal, pode ser considerada como um símbolo de como a realidade pode ser feia e grotesca. E o contato com a barata (mesmo que seja meramente visual) é um símbolo de algo na realidade que nos dá vontade de fugir, que causa quase uma “revolta”, que quase “nos força” a cometer um assassinato brutal e irracional de um ser vivo que, afinal de contas, nenhum mal nos fez. A barata é uma daquelas coisas da realidade que faz com que os homens, quase instintivamente, sintam repugnância, nojo e desejo de matar. É uma das “coisas feias da realidade”, uma das coisas que preferiríamos que não existisse na realidade, um fragmento da realidade que recusamos…

Mas o problema é que: quem for avançando na leitura do relato de G.H. vai notar que ela está, no fundo, engajada numa missão de tentar AMAR A CRIAÇÃO POR COMPLETO, sem nada excluir nem incluir, sem “transcender” o real ou fugir para um paraíso ou além qualquer. Ela deseja estar presente no aqui-agora, sem escapar daqui e do já através dos meios de fuga tradicionais: a esperança, a fantasia, os sonhos. Talvez Clarice esteja querendo nos dizer que recusar qualquer fragmento da realidade é um grande erro na vida: a sabedoria estaria, quem sabe, na aceitação completa da “Criação” exatamente como ela é. Se fosse para encontrar uma única frase em A Paixão Segundo G.H. que sirva como uma espécie de “moral da história”, eu escolheria esta: “o erro básico de viver era ter nojo de uma barata.” (pg. 164)

E o diabos isso quer dizer?! Quer dizer que precisamos APRENDER A AMAR AS BARATAS? Sei que essa idéia fará muitos darem risada… De que adiantaria isso? Que ganharíamos amando uma barata? Amor correspondido certamente que não…! Estaríamos “salvos”, atingiríamos a maior das sabedorias, se conseguíssemos amar uma barata?!? Parece o maior dos absurdos, a maior das loucuras, talvez um sintoma de que a pobre Clarice Lispector tinha uns parafusos faltando, fala sério…

Mas não desprezemos rápido demais uma idéia só por ser diferente e excêntrica. Talvez haja algo de profundo nisso tudo?

Quem sabe isso: quem consegue amar uma barata, que outra coisa não poderá amar? Quem ama uma barata, eu suspeito, consegue amar qualquer coisa – amar tudo. E é justamente isso que G.H. está querendo conquistar: o amor de tudo, e o amor de tudo que há agora – e não o amor do que será a vida de amanhã ou o futuro prometido, não o amor de um “outro mundo”, purificado de tudo o que este aqui tem de feio, sujo e desagradável… A conquista que ela procura é o amor da Realidade, e da Realidade inteira. Uma realidade, ou uma “Criação”, que inclui baratas, aranhas, cobras, vulcões, maremotos e tudo mais que nós chamamos de “feio” e “injusto”.

É como se ela dissesse: a coisa não precisa ser bela ou boa para que você a ame! Mais que isso: é como se ela dissesse que não existe nada mais importante na vida do que aprender a amar justamente o que não é nem belo nem bom – o que ela traduz numa fórmula poderosa, dizendo que precisamos aprender a “amar o neutro”.

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PARTE 3 – O DEUS DE G.H.

Por quê é tão importante “amar o neutro”? Porque a realidade em conjunto, no fundo, na perspectiva que a Clarice Lispector expõe nesse livro, é inteiramente neutra. E quando ela fala em “Deus” parece usar a palavra mais ou menos como a usava o Spinoza: num sentido panteísta. Deus é quase um sinônimo de “Universo”, um sinônimo de “Tudo O Que Existe”. E, claro, esse “Tudo Que Existe” é muito maior que o humano – é trans-humano, sobre-humano, indiferente ao humano… “Deus”, no fundo, é neutro – e é um grande erro antropomórfico pensar que Deus age como um homem.

Em linguagem mais simples, isso equivale a dizer que Deus não está nem aí pra nós. Deus é o Universo inteiro, e está ocupado demais existindo e sendo tudo que existe para se ocupar dos homens, que são só uma pequena parte “Dele”. Deus não está “lá fora” do Universo, olhando-o de cima: Ele É o Universo… E se Deus é neutro e “indiferente” ao destino dos homens, nada mais necessário do que aprender a amar o neutro. Nos momentos mais teológicos do livro, Clarice descreve os santos, ou seja, os mais perfeitos amadores da divindade, assim: “A grande bondade do santo – é que para ele tudo é igual. O santo se queima até chegar ao amor do neutro.” (pg. 170)

Somos tolos demais ao imaginar Deus como um velhinho barbudo, sentado numa nuvemzinha, coçando seu cavanhaque e mandando raios e tempestades para a Terra, ao sabor de seus humores, enquanto observa-nos com um binóculo… “O que é Deus estava mais no barulho neutro das folhas ao vento que na minha antiga prece humana” (pg. 134), diz G.H.

Ou seja: o Deus de Clarice é uma entidade “sem sentimentos”, um Deus que se confunde com o próprio Cosmos, um Deus que é a soma de toda a matéria que existe (“eu estava no seio de uma matéria que é a explosão indiferente de si mesma…”), um Deus que está em tudo e que É tudo – e que, por isso, está inclusive nas baratas!

“Aguenta eu te dizer que Deus não é bonito…” (pg. 160), nos diz G.H. E quem de nós aguenta, hein?! Pois isso, no fundo, é dizer que Deus “não quis” fazer um mundo bonito, porque Deus “não quer” nada – querer é coisa que fazem os homens e a “vontade de Deus” sempre foi, como dizia Spinoza, “o asilo da ignorância”. Quando não conseguimos saber a causa de algo, atribuímos a Deus, ao invés de reconhecer nossa ignorância, o que é a raiz da superstição e seu séquito de horrores.

Segundo G.H., não devemos enxergar “finalidades secretas” na Criação. Àquele famoso dilema “o olho foi feito para ver, ou acabou adquirindo essa capacidade de ver por acaso?”, ela responderia provavelmente com a segunda opção.

“Não é para nós que o leite da vaca brota, mas nós o bebemos. A flor não foi feita para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu cheiro, e nós a olhamos e cheiramos. A Via Láctea não existe para que saibamos da existência dela, mas nós sabemos. E nós sabemos Deus. E o que precisamos Dele, extraímos. (Não sei o que chamo de Deus, mas assim pode ser chamado.) Se só sabemos muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos Dele o que fatalmente nos basta, só temos de Deus o que cabe em nós. (…) Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. O leite a gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa. Quanto mais precisarmos, mais Deus existe.” (pg. 151)

Essa concepção de Deus e do Universo vai ter suas consequências um tanto assustadoras – e que me parecem profundamente existencialistas. Camus e Sartre, creio eu, não discordariam nada das “conclusões filosóficas” que a personagem de Clarice tira: que no mundo não existe nenhum plano estético e também nenhum plano ético.

Olhando aquela barata horrorosa à sua frente, G.H. tem forçosamente que concluir: o mundo não foi feito para que nós o achássemos bonito! (Apesar de ser possível, é claro, de vez em quando, que nós tenhamos essa experiência estética da beleza do Cosmos…). E vendo um bichinho inocente a sofrer injustamente um martírio indizível, ela tem que concluir também: o mundo não foi feito para que o achássemos justo! Nossa tarefa, então, é tentar amar o mundo mesmo com toda a sua falta de beleza e de justiça – amá-lo justamente como ele é, e em completa identidade… O trecho seguinte é crucial:

São Paulo, 1974.

“Não quero a beleza, quero a identidade. A beleza seria um acréscimo, e agora vou ter que dispensá-la. O mundo não tem intenção de beleza, e isto antes me teria chocado: no mundo não existe nenhum plano estético, nem mesmo o plano estético da bondade, e isto antes me chocaria. A coisa é muito mais que isto. O Deus é maior que a bondade com a sua beleza. Ah, despedir-se disso tudo significa tal grande desilusão. Mas é na desilusão que se cumpre a promessa, através da desilusão, através da dor é que se cumpre a promessa, e é por isso que antes se precisa passar pelo inferno: até que se vê que há um modo muito mais profundo de amar, e esse modo prescinde do acréscimo da beleza.” (pg. 160-1)

O que Clarice narra é sim uma espécie de experiência mística de uma mulher que consegue “se despersonalizar”, desfazer-se de seu “eu” ilusório, livrar-se das formas convencionais de pensamento e sensibilidade, abandonar toda a esperança, para viver uma espécie de unificação com o Todo, de experiência pura do presente, onde já não existe nem esperança, nem moralidade, nem estética.

Ela não exige que o mundo que ela está experenciando seja belo nem que seja demonstravelmente “bom”, moralmente falando: ela tenta aceitá-lo como vêm, inclusive com baratas agonizantes soltando das entranhas uma gosma nauseante. Em uma frase que é puro Camus, Clarice nos convida a “aceitar a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão.” (pg. 177)

O que importa é aprender a amar sem necessitar da beleza como “isca” – amar a realidade, amar a vida, com um amor total, que não exclui aquilo que há de feio ou de doloroso na realidade e na vida. Clarice Lispector poucas vezes foi mais nietzschiana do que em certos trechos de A Paixão Segundo G.H. Sua “filosofia” tem muito a ver com a de Nieztsche: recusa de qualquer tipo de transcendência, recusa da esperança, recusa de uma Criação com um “sentido” último, recusa da fuga em direção à imaginação (de um paraíso, de uma redenção, de um outro tipo de realidade…). Em certos trechos, Clarice parece juntar no liquidificar um pouco de Nietzsche, de budismo e de cristianismo, acabando por parir trechos magistrais como esses:

“…agora estou aceitando amar a coisa! E não é perigoso, juro que não é perigoso. Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos. Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente.

Escuta. Eu estava habituada somente a transcender. Esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe que adiava a atualidade para uma promessa e para um futuro. Mas descubro que não é sequer necessário ter esperança.” (pg. 147)

por Eduardo Carli de Moraes

CONVITE: Neste domingo (21 de Outubro de 2018), no Bolshoi Pub, participo do Café Filosófico com Will Goya – Goiânia/GO, com o tema “Friedrich Nietzsche e a Literatura – Como Transformar Sua Vida Em Uma Obra de Arte”. Sintam-se convidados ao debate. Começa Às 17h. Ingresso: 5kg de alimentos não perecíveis.

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O ANEL DA INVISIBILIDADE COMO ESPELHO DO SUJEITO ÉTICO – Por André Comte-Sponville

O ANEL DA INVISIBILIDADE COMO ESPELHO DO SUJEITO ÉTICO
Por André Comte-Sponville, filósofo francês contemporâneo, em seu livro Viver – O Mito de Ícaro, 2º Volume

Giges é pastor, hoje seria bancário ou cabeleireiro, e não era melhor nem pior que outro qualquer. É cada um de nós. Mas eis que ele encontra, em circunstâncias espantosas que Platão narra com abundância de detalhes, um anel: anel milagroso que o torna invisível a seu comando! É o inverso de Édipo: este furou os olhos para não ver mais o mal que fizera; Giges tem um meio para que não se veja mais o mal que ele fará…

“O Anel de Giges”, Anônimo da escola de Ferrara, século XVI

[Diz Glauco:]

Que os justos não o são por querer, mas pela impossibilidade de cometer injustiças, veríamos bem se imaginássemos o seguinte: se, dando aos dois oportunidade de agir como quiserem – ao justo e ao injusto -, os seguíssimos de perto, observando aonde o desejo os conduz. Em flagrante apanharíamos o justo indo ao mesmo lugar que o injusto, por conta do privilégio, que a natureza busca como bem, mas de que, por força da lei, é desviada  à estima da igualdade. Seja a oportunidade de que falo  esta: se conseguissem o poder que dizem ter conseguido Giges, ancestral do rei dos lídios.

Giges era um reles pastor que servia ao governante da Lídia de então; certa vez, sobrevindo chuva intensa e terremoto, a terra se abriu e surgiu uma fenda perto do lugar em que pastoreava. Vendo aquilo, assombrado, desceu e viu muitas coisas de que a lenda conta, mas sobretudo um cavalo de bronze, oco, com pequenas portas, pelas quais passou e viu um cadáver que parecia maior do que os homens comuns; não tomando-lhe outra coisa que não o anel dourado que tinha na mão, partiu.

Ao costumeiro encontro que os pastores faziam a cada mês para que mandassem ao rei um relato sobre seus rebanhos veio ele também, com o anel. Estando sentado com os outros, por acaso virou a pedra do anel em direção da palma da mão; feito isso, tornou-se invisível aos que se sentavam ao seu lado, e falava-se dele como de alguém que partira. Ele se assombrou e, tocando o anel, virou a pedra para fora e, ao virá-la, tornou-se visível. Percebendo isso, testou o poder do anel, e lhe aconteceu que, quando virava a pedra para dentro, tornava-se invisível, quando a virava para fora, visível. Logo que o notou, negociou para ser um dos mensageiros que falariam ao rei e, indo ao palácio e tornando-se amante da rainha, com ela atacou o soberano, o matou e tomou o poder para si.

Se houvesse dois anéis desse, e o justo colocasse um, e o injusto, o outro, não haveria ninguém (como poderia parecer) que fosse tão férreo ao ponto de permanecer justo e ousar se abster dos bens alheios e não tocá-los, sendo-lhe possível, sem medo,  tomar do mercado o que quisesse, entrar nas casas e dormir com quem quisesse, matar e soltar da prisão quem quisesse e fazer qualquer coisa, como um deus em meio aos homens.  Desse modo, os dois não agiriam diferente e iriam na mesma direção.

Pode-se usar essa história como grande indício de  que ninguém é justo por vontade, mas porque é forçado, não considerando a justiça um bem em si; pois, quando julgam que podem fazer uma injustiça, todos a fazem. Todo homem pensa que é muito mais vantajosa  a injustiça do que a justiça, e pensa a verdade, segundo quem defende essa posição, uma  vez que, se alguém tivesse oportunidade semelhante e não quisesse cometer injustiças e nada tomasse aos outros, ao sabê-lo as pessoas o considerariam um pobre diabo e um imbecil – mas elas o elogiariam na frente umas das outras, enganando-se pelo medo de serem injustiçadas. Esse é o fato.

Glauco, nesse texto, quer provar que o justo e o injusto, o bom e o mau perseguem ambos o mesmo fim (aonde, diz Glauco, “o desejo os conduz”), divergindo apenas pela escolha, puramente tática, dos meios. O anel mágico, dispensando quem o usa de toda e qualquer preocupação tática (quanto aos meios), faria a identidade dos fins aparecer à luz do dia.

A força desse exemplo reside na possibilidade que cada um tem, solitariamente, de comprovar seu rigor e de repetir, por conta própria, sua imaginária e crucial experiência. Imaginemos, pois, se pudermos sem mentir. Você é Giges. Você tem o anel. É invisível quando quiser, quanto tempo quiser e tantas vezes quantas quiser. Nenhum homem o vê; nenhum deus o julga. Reflita: o que você fará? O que não fará?

Sua alma tem sua pedra de toque. Tudo o que você hoje veda a si mesmo, do assassinato ao roubo, do estupro à indiscrição (“pegar sem medo, introduzir-se nas casas, matar quem quiser, unir-se com quem lhe agradar…”), mas que talvez fizesse se possuísse o poder maravilhoso de Giges, não é honestidade, candura, discrição ou respeito (numa palavra, não é moralidade), mas medo, prudência, amor-próprio ou covardia. Virtude? Nada disso. Hipocrisia.

Faça a experiência uma vez, quero dizer, interiormente, com toda a seriedade de que você é capaz. Em seguida mire a sua imagem que essa experiência lhe reflete. O anel de Giges é um espelho singular… O que você faria? O que não faria? Pense bem. Giges fez tudo, e do pior, e morreu rei. E você? Glauco diz: o bom e o mau farão as mesmas coisas, cometerão os mesmos crimes. Portanto o bom não é verdadeiramente bom, e o mau não é mais mau que outro qualquer. Não há moral. Tudo se reduz ao princípio de prazer (quanto aos fins) e aos princípio de realidade (quanto aos meios).

Você é Giges, você tem o anel: agora você vai fazer várias coisas que não fazia até então… Se tivéssemos o anel, nossa vida toda mudaria, sem dúvida, e muitos de nossos comportamento “morais” desapareceriam, revelando assim sua amoralidade de sempre. Se tivéssemos o anel faríamos com certeza muitas coisas que hoje não fazemos; e deixaríamos de fazer outras, sem dúvida, a que nos sentimos compelidos hoje. Mas não é tudo… Também há coisas que, mesmo então, nós nos vedaríamos fazer; e outras, desagradáveis, a que, mesmo então, nos sentiríamos obrigados. O anel de Giges é um espelho singular: ele reflete nossos vícios nus e crus; mas, com isso, nossas virtudes também aparecem melhor.

Somos menos bons do que tentamos parecer: é bom saber; mas também somos melhores do que se poderia temer: não devemos ignorá-lo tampouco. Vários de nós, se tivessem o anel, o utilizariam para fazer mais bem do que podem ou ousam fazer hoje… Conheço gente quem nem mesmo a realeza faria mentir.

Dostoiévski se engana: mesmo se Deus não existe, não é verdade que tudo é permitido. Porque – invisível ou não – eu não me permito tudo: tudo não seria digno de mim. Minha moral é essa dignidade, e essa exigência. Giges não pode nada contra isso: mesmo invisível, mesmo invencível, há atos que não me autorizo e outros a que me sinto obrigado. A tal ponto que, se eu cometesse aqueles ou me dispensasse destes, e por mais invisível que eu fosse, nem por isso deixaria de saber distinguir, entre meus atos, aqueles de que posso me orgulhar ou sentir-me satisfeito, nem que apenas em meu foro interior, daqueles que, mesmo sem que ninguém saiba, me fazem sentir como que magoado ou diminuído.

O âmago do problema é a liberdade. Um homem mau só é mau, moralmente falando, se for livre de sê-lo. Um louco, por mais cruel que possa ser ou parecer, é legitimamente considerado irresponsável, moralmente, por seus atos… ninguém escolhe ser louco, ou não o faz livremente. Portanto o louco é inocente, sempre, dos crimes de que é culpado; perigoso, talvez; malvado, não. O Código Penal francês, em seu artigo 64, legaliza a coisa: “Não há crime nem delito quando o réu estava em estado de demência no momento da alão, ou quando foi coagido por uma força a qual não pôde resistir.” A mesma coisa se poderia dizer do animal ou da criança – ninguém culpa o recém-nascido que morde; e nos protegemos das feras – porque elas não escolheram ser tais – sem as odiar.

É o paradoxo da moral: é preciso poder ser bom para ser mau, e escolher livremente não o ser. “O princípio da ação moral é a livre escolha”, dizia Aristóteles. A liberdade do querer é, por isso, o “fundamento negativo da moral”, isto é, “aquilo sem o que a exigência moral não teria significação.” (Ética a Nicômaco, VI, 2) O homem mau só o é na medida em que é responsável por seus atos; e só é responsável por eles na medida que dependem de sua vontade. Mas não é tão simples assim. Que sejamos responsáveis por nossos atos, é possível; mas somos responsáveis por nós mesmos?

Quem escolhe nascer?… Alguém escolhe seu corpo? E se ele ficou mau, é culpado pelas circunstâncias que o fizeram assim? Acaso alguém escolhe sua infância, sua educação, sua família, seu inconsciente?… Um velho mau nunca é mais que um recém-nascido que deu errado. Mas que se pode reprovar a um recém-nascido? E que criança escolhe dar errado? Se não nasceu mau e mau se torna, é que foi mal criado, ou mal amado, ou vítima à sua maneira de uma sociedade demasiado dura ou demasiado injusta. Sócrates é que foi assassinado… Mas de quem é a culpa, se ele se torna Giges?

Voltemos a nosso exemplo inicial. Giges encontra um anel mágico e se torna um tirano sanguinário. Se Sócrates tivesse encontrado o anel, teria continuado a ser Sócrates. Pelo menos é a aposta da moral… Daí esta questão: quando Sócrates escolheu ser Sócrates? E quando Giges escolheu ser Giges? Se nunca escolheu ser o que era, se nunca escolheu ser Giges, é inocente, por isso, de todas as escolhas de que é culpado, já que não teve, primeiro, a escolha de quem escolhia…

As escolhas ficam submetidas, sempre, à personalidade de quem escolhe. O eu seria então um destino e uma circunstância, em cada caso, absolutamente atenuante. Afinal de contas, Giges sempre pode argumentar a seus eventuais juízes (e talvez poderia fazê-lo até sem mentir) que teria preferido ser Sócrates, e que não é culpa sua ser Giges, já que não fez a escolha… Condenar um homem, dizia um biólogo (Jean Rostand), nunca é mais que condenar cromossomos ou circunstâncias.

André Comte-Sponville, 2015 © Jérôme Bonnet

André Comte-Sponville

Saiba mais sobre esse filósofo em acasadevidro.com
Link: http://bit.ly/1PlPrOi

CERRADO VIVO OU BARBÁRIE – O cinema como arma de conscientização em massa. Sobre “Ser Tão Velho Cerrado”, de André D’Élia.

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ARMA DE CONSCIENTIZAÇÃO EM MASSA
por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

Não é catastrofismo delirante, é puro senso de realidade e atenção aos fatos empíricos: o Cerrado e toda sua estonteante diversidade está indo pro ralo, e nós com ele.

No país que é líder global no uso de agrotóxicos, onde cada cidadão consome 5 litros de veneno ao ano, estamos trucidando biodiversidade para substituí-la por monoculturas focadas no mercado estrangeiro.

Estamos deixando áreas de preservação ambiental serem invadidas pelos interesses de mineradoras, empreiteiras e hidrelétricas. Estamos testemunhando incêndios criminosos que alastram um fogo destruidor como represália pela expansão de parques devotados ao ecoturismo e à ampliação da consciência ambiental.

Estamos diante de uma alternativa similar à proposta por Rosa Luxemburgo (e Castoriadis) entre socialismo ou barbárieou mantemos o Cerrado vivo, ou tempos muito bárbaros virão, com água escassa, solos desérticos, migrações em massa, climate wars…

Um exemplo é a estrada que liga Brasília à Chapada dos Veadeiros: ela está tomada pelos mega-empreendimentos do agronegócio, e esses fazendeiros endinheirados são especialistas em ecocídio.

O extermínio da vida original do território é muitas vezes um crime sem volta, uma dilapidação de um bem que deveria, caso não fôssemos tão irresponsáveis, ser legado aos que ainda não nasceram (são preceitos básicos daquele livro de filosofia ainda tão pouco estudado, compreendido e praticado por nós: O Princípio Responsabilidade de Hans Jonas).

A riqueza inestimável da fauna e flora do Cerrado brasileiro é sacrificada para que possamos vender soja transgênica que alimentará porcos e vacas na China. Bichos escravos da indústria da carne (assistam Meat the Truth, Cowspiracy Earthlings), ainda necessitados daquela Libertação Animal de que fala o filósofo Peter Singer, animais cujas existências repletas de horror, sofrimento e agonia são tratados como commodities, produtos a serem consumida pelas centenas de milhões de carnívoros do planeta (enquanto isso, o vegetarianismo segue menos disseminado do que precisaríamos para salvar o planeta das hecatombes que já não podemos evitar).

Os lordes do agrobiz, especialistas em desmatamento, mestres da cegueira imediatista, fascinados com lucros a curto prazo mas desatentos em relação às necessidades de futuras gerações, estão fabricando a encarnação da distopia: um mundo onde este Ser tão velho, o Cerrado com seus mais de 40 milhões de anos nas costas, é irreversivelmente tratorado pelo avanço inclemente do “Progresso Modernizador”.

Ou seja, uma avalanche de latifúndios monocultores, que empregam pouquíssima gente, proliferam pesticidas cancerígenos, estimulam sementes transgênicas que só funcionam em conjunção com os produtos fertilizantes e mata-pragas fabricados por mega-corporações transnacionais, tomam o cenário de assalto.

E isto justo na época histórica onde formam-se monstros corporativos como a fusão entre Bayer e Monsanto. Num tempo onde a conjuntura política é desesperadora, com a ascensão ao poder de figuras como Donald Trump, inimigo número 1 de quaisquer práticas sustentáveis e quaisquer discursos ecologistas – e que saltou fora do Acordo de Paris sobre o aquecimento global, praticamente inviabilizando uma solução para o aumento vertiginoso das temperaturas planetárias, pois o maior poluidor atmosférico sobre a face da Terra diz, desde a Casa Branca, que está cagando e andando pra isso. O que interessa é a bufunfa, o clima que se exploda. Diante disso, ensina Naomi Klein, não basta dizer não!

Neste contexto, Goiás caminha no sentido de coloca um revólver tamanho família em sua própria cabeça e dar um tiro suicida em seu cérebro: o Caiado (DEM) é líder em todas as pesquisas de intenção de voto e deve tornar-se o novo governador do Estado após décadas de hegemonia do PSDB de Marconi Perillo. É uma conjuntura que nos leva a pensar na Lei de Murphy que enuncia: nada é tão ruim que não possa piorar. Pior que tá, fica sim.

É nossa tarefa trampar por um mundo melhor, decerto, mas às vezes também estamos obrigados a unir forças para evitar que a situação degringole para algo ainda mais catastrófico do que aquilo que já vivemos. De modo que os discursos e práticas favoráveis à conservação natural não necessariamente vinculam-se ao campo conservador do espectro político: podemos ser como ecosocialistas que defendem um modelo de intercâmbio entre Humanidade e Natureza que não seja predatório nem loucamente extrativista, apostando num modelo que privilegie a agrofloresta, a agricultura familiar e orgânica, a permacultura, a celebração da sociobiodiversidade em nossa cultura.

Neste contexto é que o cinema – como não cesso de descobrir em jornadas de intensa cinefilia! – tem poderes impressionantes de mobilização e conscientização. A chegada entre nós de Ser Tão Velho Cerrado é crucial para mostrar que esses poderes do cinema não servem somente para entreter e alienar, para gerar lucros estratosféricos com ingressos, para movimentar uma pujante indústria cultural massificada. Os poderes do cinema – em expansão espantosa deste a época dos primórdios, com os Irmãos Lumière e o mago Mèslies – podem ser mobilizados para iluminar e expandir horizontes, como ferramentas para a educação cívica, como armas de conscientização em massa.

O cinema pode ser uma via de sabedoria, uma escola itinerante cujos ensinamentos viajam na mídia leve da imagem-e-som digitalizados. Um meio de comunicação disseminável através das fronteiras, que vai onde um professor de carne-e-osso não pode ir, devido à proliferação das cópias e a divulgação na Internet, que rompe com o isolamento físico do educador que só pode estar em um único ponto do espaço-tempo de cada vez. Um filme pode ser, sintetizado em 90 minutos, todo um tratado de física, de filosofia, de biologia, de ambientalismo, de espiritualidade, de geografia, de história, de astronomia. Pode ser um chamado à união, ou mesmo à insurreição. Pode disparar os alarmes para que os adormecidos despertem para catástrofes iminentes – mas evitáveis.

Esta ambição de ensinar, somada ao ímpeto de denunciar os maus rumos que na atualidade estamos tomando, anima este filme co-movedor de André D’Élia. Sinto que nós todos, que de alguma maneira estamos visceralmente envolvidos com o métier do documentarismo e do audiovisual, sentimos bem, durante a sessão do documentário de produção e pesquisa primorosas, o quanto Ser Tão Velho Cerrado chega em boa hora e é uma obra-prima do gênero. É um documentário extremamente relevante e que precisa ser disseminado.

A aula que o filme proporciona é rica em ensinamentos cruciais: nos fala sobre o maior território quilombola da América Latina, o sítio histórico do povo Kalunga, e retrata a resistência deste povo contra o avanço trucidador dos poderes do ecocídio lucrativo; nos fala sobre a crise hídrica que nos ameaça e sobre a importância do Cerrado, como berço das águas, para todos os biomas que o circunda no território deste país de dimensões continentais; nos fala da desgraça política que é a falta de representação, nas instituições pseudo-democráticas, daqueles que defendem os interesses das populações tradicionais, dos agricultores familiares, dos produtores que não usam transgênicos; nos fala também das benesses de um ecoturismo em expansão e que, apesar de seus perigos (a gourmetização e a gentrificação), parece ser mesmo a solução imediata mais sábia para uma ocupação cívica construtiva da Chapada dos Veadeiros.

É um filme que sonda com coragem os problemas mais urgentes e cruciais de nossa época: fala das mudanças climáticas, da interconexão entre os biomas, da importância inestimável da preocupação com sustentabilidade, mas sem vender róseas soluções prontas. Ao contrário, Ser Tão Velho Cerrados pinta um retrato bastante distópico de nossa realidade atual, em que os retrocessos sócio-ambientais são chocantes e imensos. Vide a catástrofe gigantesca que matou o Rio Doce na “Tragédia de Mariana” (e que ameaça se repetir com as novas ofensivas das mineradoras sobre áreas outrora protegidas).

Este é também o primeiro filme brasileiro que faz a crônica e o registro histórico das proporções assustadoras do incêndio que devorou uma imensa fatia da fauna e flora da Chapada dos Veadeiros em 2017, chamas que muito provavelmente foram criminosamente provocadas em represália à expansão da área do Parque Nacional. Fiapos de esperança são os mutirões e as brigadas de combate ao fogo que puderam conter a tragédia através de uma solidariedade nascida das urgências do instante.

O fogo consumiu vorazmente cerca de 66 mil hectares – o equivalente a 28% da unidade de conservação – da rica flora e fauna do Cerrado em um dos piores desastres sócio-ambientais ocorridos no Brasil depois da hecatombe do Rio Doce. A Chapada dos Veadeiros viu-se lançada a um estado de emergência que exigiu solidariedade construída às pressas: ativistas e cidadãos conscientes se mobilizaram em brigadas para apagar o fogo e triunfaram após 20 dias de intensos e fatigantes trabalhos (leia mais minúcias nesta reportagem da Mídia Ninja): 

“Segundo Christian Berlinck, coordenador de combate ao fogo do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade, o Governo Federal gastou aproximadamente um milhão de reais na operação. Da sociedade civil, foram quase 200 voluntários envolvidos nas funções da operação e quase 600 mil reais arrecadados em um exitoso financiamento coletivo, que continuará a ser feito, na criação de brigadas voluntárias permanentes, que atuariam anualmente.” – Ninja

Esse Ser tão antigo do nosso planeta, o Cerrado de ancestralidade que deveríamos reverenciar, hoje está envolvido no cerne de uma contextura desesperadora, onde comparecem elementos como a escassez hídrica, a extinção acelerada da biodiversidade, a iminência de uma catástrofe ambiental global com o descontrole do clima terrestre etc. Tudo isso somado aos mega-projetos da mineração, do agrobiz, da hidreletricidade, fortemente amparados no poder político plutocrático. Contra tudo isso, precisamos sim, e muito, de educação – desde que ela seja mobilizadora, ativista, colocando o aluno na posição daquele que precisa ser posto em movimento e retirado de sua passividade de esponja, rumo à atividade de co-laborador no partejar de um outro mundo possível.

Este documentário é capaz de acordar no espectador uma consciência ampliada do tempo. É um fenômeno cinematográfico que merece ser estudado pelos filósofos, em especial os que se interessam pelo tema da temporalidade, já que veicula uma visão do tempo que rompe completamente com o imediatismo, com a cegueira mental daqueles que põe lucros imediatos na frente da preservação das riquezas concretas e reais do planeta, aquelas que temos a responsabilidade inalienável de legar intacta para as gerações que virão.

40 milhões de anos cabem em 90 minutos? A pergunta pode parecer absurda, mas a resposta é sim – e Ser Tão Velho Cerrado, o filme de André D’Élia, realiza este aparente milagre. É um documentário altamente didático, uma ferramenta de conscientização em massa que chega para marcar época naquilo que eu chamaria de pedagogia audiovisual. Somando denúncia e anúncio, como aconselhava Paulo Freire, a obra chega em boa hora para nos alertar sobre a preciosidade do Cerrado, sua reverenciável ancestralidade, e o perigo imenso que hoje corre.

Seu título em inglês é Old Lord Savanna, um nome que me parece problemático: invoca o Lord dos monoteísmos patriarcais, ao invés de entrar em sintonia com a espiritualidade muito mais matriarcal que o filme sugere e propaga. Precisamos mais do que nunca de um Matriarcado de Pindorama, de uma cultura mais Pachamâmica, de uma espiritualidade com mais pendores para Oxum e Iemanjá do que para o enfurecido deus pintudo de Sodoma e Gomorra. Abaixo Jeová e seus clone, queremos que todos sejam co-partícipes do panteísmo que enxerga-nos como grudados à Matriz do Planeta Mãe. Estamos todos na mesma barca Gaia. 

Foi tocante descobrir que o filme integra a seu material de conscientização em massa a obra de artistas como a da talentosa fotógrafa Mel Melissa Maurer, do projeto O Caminho do Cerrado. A arte como instrumento de sensibilização é algo que se explicita nas fotos da Mel – que já expusemos em Goiânia durante uma das edições do Confluências: Festival de Artes Integradas, evento que contou com a presença da modelo Moara, que nos concedeu uma entrevista enquanto passeava pela exposição (veja abaixo).

As fotografias põe em cena a beleza exuberante e a fragilidade constitucional do corpo humano nu, vestido apenas com botas, máscara anti-gás e fitas pretas nos mamilos, em meio à devastação ambiental acarretada pelo avanço das monoculturas de soja, pelos pesticidas e transgênicos, pelos mega-projetos de barragens, pelas mega-mineradoras e seus braços na indústria da construção civil.

O filme Ser Tão Velho Cerrado também dá voz e vez a outras figuras da cultura, como a Mãe da Lua, o Caio (da Turma Que Faz) etc. Assim obrando, o documentário congrega artistas e intelectuais para somarem numa mensagem direcionada não somente aos cérebros, mas às sensibilidades.

O lucro de mineradoras, latifundiários, empreiteiras e políticos a elas vinculados representa a devastação de nosso patrimônio ancestral somada à aniquilação de nossa possibilidade de termos um futuro vivível. O mínimo que se espera é que possamos legar aos que ainda nascerão um futuro com ar limpo para respirar, água potável em fartura, espaço comum para conviver e celebrar. Tudo sob ameaça. Os defensores da terra, ameaçados com a mordaça e as balas. O sangue de milhares de Chicos Mendes é derrubado aos borbotões, enquanto os rios são barrados. E os risos são abafados pelo vampirismo de Temers e Caiados, de Sarneys e de Marconis, de Maggis e Kátias Abreus. Velhos sanguessugas escrotos, contaminados por ganância, contaminadores de tudo com sua poluição e estupidez.

Sei que o cinema não pode tudo, mas tampouco é negligenciável seu poder de transformação. No escuro daquela sala em que estamos todos sozinhos-acompanhados, alone together, podemos ser impactados de modo transformador por aquele veloz e caleidoscópio desfile de imagens e sons. Portal de luz que conduz a que possamos mergulhar em locais onde não estivemos, permite que ouçamos pessoas que não conhecíamos, aprendendo lições com aqueles que nos comunicam o que sabem de melhor.

São filmes como Ser Tão Velho Cerrado que reativam a consciência da importância do documentário para a civilização. Pois o cinema-do-real é um espetáculo à parte. À margem da Sociedade do Espetáculo, com seus blockbusters e seus rentáveis ficções a serem consumidas com muita pipoca e refrigerante, quase sempre dentro de shopping centers, o cinema documental representa uma vertente essencial desta arte: seu poderio cívico, sua capacidade de informar, formar e mobilizar um público que não é visto apenas como espectador, mas como co-partícipe e co-laborador.

Co-laboremos, pois, para que o Cerrado viva e sobreviva – pois é também nossa sobrevivência que está em jogo, nosso futuro o que está na balança. São nossos amanhãs que estão com o pescoço na guilhotina. Impeçamos a descida brutal da espada de Dâmocles que nós mesmos deixamos que ali se colocasse. Levantemos para salvar nossas goelas, nossos pulmões, nossas vidas-em-teia. Para ajudar-nos, o filme dá voz e amplifica a potência de pesquisadores e intelectuais (como Altair Sales – blog), de ONGs e instituições da sociedade civil (como a Fundação Mais Cerrado), de órgãos públicos (como o ICMBio) e comunidades tradicionais (como os Kalunga, do sítio histórico quilombola localizado em Cavalcante). Mas exige que a gente entre nessa ciranda, junte a voz a este coro.

UM PUNHADO DE CRÍTICA CONSTRUTIVA

“Nem tudo que é torto é errado, veja as pernas do Garrincha e as árvores do Cerrado.” – Nicholas Behr

Pelo que ficou dito acima, fica evidente que adorei o documentário, reconheço seu imenso mérito e farei o possível para disseminá-lo. Quero utilizá-lo em sala de aula no IFG e tentarei persuadir colegas professores a espalharem por aí os cine-debates que ponham em circulação os ensinamentos de Ser Tão Velho Cerrado. Mas gostaria de, antes de encerrar, tentar um pouco de crítica construtiva, aquele tipo de procedimento que não tem a mínima intenção de tacar pedras ou de diminuir o valor da obra em questão, mas visa somar com o processo de discussão ao apontar uma espécie de déficit.

Um aspecto que poderia ter deixado o filme ainda mais interessante, mas que teria o agravante de deixá-lo mais longo em sua duração e mais amplo em seu espectro de problemas considerados, seria uma abordagem mais minuciosa do tema da Cultura. É muito neste sentido que venho tentando colaborar, recentemente, com a produção audiovisual – propondo, em O Futuro nos Frutos mas também em Afinando o Coro dos Descontentesque há uma imensa diversidade de manifestações artísticas de teor transformador, questionador, sincrético, celebrador da diversidade, rolando em Goiás. É uma produção cultural em que as manifestações artísticas de modo algum estão alheias às problemáticas ecológicas, políticas, socioambientais, éticas etc.

Sertão Velho Cerrado nem menciona que algumas das mais expressivas bandas do cenário goiano, como Carne Doce, Boogarins, Pó de Ser, Ave Eva, Umbando, Passarinhos do Cerrado, Turma Que Faz, dentre outras, vem focando suas atenções sobre a Chapada dos Veadeiros há tempos. Este tema está lá no slogan viralizável “o progresso é mato”, que Salma Jô canta na canção-manifesto “Sertão Urbano”, uma das canções mais politizadas e mais relevantes do Carne Doce, e um dos mais belos clipes já realizados em território goiano. Este tema está lá na sapiência comunicada nas belas vozes de Flávia Carolina Almeida e Paula de Paula, que com o Ave Eva estão invocando Oyá para criticar “os humanos seres da terra” que “pagam a ela com ingratidão”.

Está lá também no rap-folk de Doroty Marques, entoada pelo coro polifônico da Turma Que Faz, que fala assim: “deixe o meu Cerrado que ele não está errado!”. Está lá em “Benzin” dos Boogarins, cujo videoclipe celebra, em belas imagens, a imensidão do Cerrado através da qual Salma Jô trafega como uma transeunte do infinito. Está lá na proposta estética de vertente mais “makulelê”, em coletivos como Coró de Pau e Ninho Cultural, na música das finadas (e maravilhosas) bandas Umbando e Cega Machado, além de rebrilhar em muitos pontos da obra magistral de Juraildes da Cruz. Está lá, também, nos mais de 20 anos de trabalhos da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, que realiza o Encontro de Culturas e a Aldeia Multiétnica.

É uma gente que merecia ao menos menção no esforço documental de André D’Élia. A cultura – ainda que representada pelo lindo trabalho da Mel, pelas falas do Caio, pela Mãe da Lua – ficou um tanto menosprezada. De todo modo, assistir a Ser Tão Velho Cerrado me inspirou a continuar o trabalho que venho realizando como documentarista e agente cultural, com foco neste tema das manifestações artísticas de viés político. O filme de D’Élia, com todos os seus inúmeros méritos, extremamente elogiáveis, deixou escapar essa chance de tematizar, por exemplo, o quanto o cenário musical independente, em Goiás, está em estado de razoável sintonia (que merece ser expandida) com o eixo central que estrutura este meu discuro: a alternativa Cerrado Vivo ou Barbárie.

Esse menosprezo da Cultura impede o espectador de pôr questões importantes: o que precisamos para sair do buraco não é de uma autêntica revolução cultural? Ela não teria que estar conexa a uma transformação midiática que nos empodere diante dos velhos barões da mídia)?Não precisamos acelerar rumo ao Ponto de Mutação de que nos falava Fritjof Capra? E não é uma metamorfose cultural, em direção a uma sociedade com hegemonia de uma cultura mais consciente das interconexões e interdependências que constituem a Teia da Vida neste planeta, aquilo que poderá salvar tudo da ganância e da hýbris do homo sapiens, em toda sua estúpida e ultra-disseminada falta de sabedoria? E esta cultura transformada, com suas cegueiras curadas, com sua estupidez transcendida, também não será necessariamente uma obra dos artistas, esses disseminadores de uma nova sensibilidade, de uma consciência renovada?

Em “Gota Miúda”, o “sol se escondeu atrás de um edifício” e o eu-lírico, lindamente vocalizado pela Paula de Paula, lamenta-se: “amor, como é difícil perdê-lo na construção!”. É uma imagem impressionante do quanto a natureza acaba eclipsada pelos edifícios da urbe, que arranham os céus mas servem de obstáculo à nossa visão do horizonte. Uma imagem lírica similar e análoga anima “Avalanche”, dos Boogarins, onde o eco dos amplificadores e o ataque conjugado de guitarras, baixo e batuques (todos devidamente psicodelizados), é a ferramenta imaginada como capaz de transformação de um cenário urbano que pratica um apagão da natureza e nos prende num “labirinto de tédio”. “A maior demonstração de propagação do ser é o eco. Com ele meu grito tem força para derrubar todos os prédios que não nos deixam ver o sol.”

Para que o berço das águas não se torne o túmulo da vida ao ficar seco, desértico e distópico, para que a imensa biodiversidade que é riqueza viva e inestimável não seja imolada no altar retardado do capitalismo predatório, precisaremos sim de muita arte. De uma arte que ensine e ilumine, que expanda horizontes, que chova sobre nós estas gotas miúdas que re-ativam constantemente “o milagre do pão”.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 14/08/2018

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SIGA VIAGEM:

Repórter Eco da TV Cultura

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O diretor André D’elia apresenta seu projeto “Ser Tão Velho Cerrado”, um filme que mostra a importância do bioma cerrado para a sociedade brasileira e é um exemplo do Cinema Pedrada:

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NA IMPRENSA:

FOLHA DE SÃO PAULO >>> Documentário corajoso de André D’Elia denuncia devastação do cerrado

“Este documentário do diretor e roteirista André D’Elia —afeito às causas ambientais, como demonstram os longas “A Lei da Água” (2015) e “Belo Monte – Anúncio de uma Guerra” (2012)— procura sensibilizar o grande público sobre a situação da savana brasileira, que está em avançado processo de extinção.”

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LEIA TAMBÉM EM A CASA DE VIDRO:

  • A DANÇA DA CHUVA – RIOS VOADORES E MANANCIAIS SUBTERRÂNEOS: A escassez de água que alarma o país tem relação íntima com as florestas (Reportagem e Vídeos por Revista da FAPESP): https://wp.me/pNVMz-1qW