A EDUCAÇÃO PELO CÁRCERE: A sabedoria sofrida de Oscar Wilde após passar pelas profundezas do aprisionamento

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“For he who lives more lives than one
More deaths than one must die.”
OSCAR WILDE, The Ballad of Reading Gaol

Escrita na prisão, em 1895, De Profundis é a longa carta que Oscar Wilde (1854 – 1900) endereça a seu ex-amigo / ex-amante Lord Alfred Douglas, mais conhecido por seu apelido Bosie, revelando tudo o que aprendeu no cárcere. Poucas obras literárias são tão impressionantes e comovedoras ao retratarem a transfiguração de um sujeito que atravessa o inferno prisional. e pôde, utilizando-se da arte como instrumento alquímico, transfigurar o sofrimento em sabedoria. “Wilde não admite nenhuma culpa perante às leis injustas que o colocaram no cárcere”, escreve Anne Varty no prefácio da Wordsworth Classics, e deseja instruir o leitor “à luz da sabedoria que ganhou através de experiências de dor e privação.” [1]

Mas longe de ser um escrito repleto de retórica jurídica em que o acusado tentaria defender-se da acusação errônea que lhe lançam, De Profundis revela um artista, ciente de sua posição como vanguarda da cultura britânica do fim do século XIX, quer ensinar a Humanidade sobre a sofrida sabedoria que conquistou. Após o Sofrimento [Sorrow] ter raptado todos os seus dias e aprisionado Wilde a sua roda de Íxion (para lembrar num célebre torturado da mitologia grega), Oscar Wilde faz-se educador. Sobretudo de seu ex-amante, Bosie, a quem endereça diretamente suas palavras, mas também de todos os outros humanos, que o autor certamente imaginou que leriam esta “carta aberta” que enviou a Bosie e ao resto de nós todos.

Pintura de Giovanni Battista Langetti, “A Tortura de Íxion” (Século XVII)

Frei Betto gosta de citar uma frase de Shakespeare: “O ódio é um veneno que se toma esperando que o outro morra.” Wilde, ao escrever De Profundis, tenta fazer a catarse de sua amargura, numa terapia anti-ressentimento: “Não escrevo esta carta para encher seu coração de amargura, mas para esvaziar o meu. Por meu próprio bem devo perdoá-lo. A pessoa não pode ficar a vida toda com uma víbora para alimentar junto ao peito, não pode acordar dia após dia e semear espinhos no jardim da própria alma.” (p. 92)

A conclusão moral que Wilde tira dos episódios deste seu relacionamento que o conduziu ao cárcere é esta: “o vício supremo é a superficialidade.” Ele se refere, na verdade, ao vício de uma imaginação débil, incapaz de se colocar no lugar do outro, para sentir com empatia ou compaixão aquilo que o outro sente. Bosie teria agido cegado pelo ódio, pela vaidade, pela ganância, pela ânsia dos luxos supérfluos, pela inconsequência imprudente da irresponsabilidade etc.

Alfred Douglas, o Bosie, a quem Wilde endereça “De Profundis”

No contexto da exortação pedagógica de Wilde a Bosie, ser “superficial” significa não ser capaz de perceber e atentar à complexidade e profundidade do outro. Este colapso da empatia é outro nome para o egotismo. Só a abertura à Outridade, como diz Octavio Paz, é capaz de nos tornar mais “profundos”, alargando nossas teias relacionais e assim aprofundando a qualidade e diversidade de nossas vivências. Alargamos nossos horizontes também no contato com os abismos – sinais de pontes a construir, ou de uma lamentação por um abismo inponteável – que nos separam e nos unem aos outros.

A intenção pedagógica da carta fica clara na frase que a encerra: “talvez eu tenha sido escolhido para lhe ensinar”, escreve Wilde a Bosie, “o significado da Tristeza e sua beleza.” (p. 188) Wilde está triste, é evidente, por estar no cárcere, mas sobretudo pelo desamparo em que Bosie lhe largou. Na prisão, Wilde não recebeu uma carta sequer de seu ex-amigo. A comunicação foi totalmente cortada. A carta está repleta de recriminações que o prisioneiro Wilde faz a Bosie, já que este seria a encarnação da Insensibilidade, da Irresponsabilidade, da Imaginação Empática atrofiada. Já Wilde, bem à la Narciso, trata-se como “gênio”.

“Você não foi capaz de encontrar nada melhor para fazer com minha vida”, lamenta-se Oscar, “do que parti-la em pedaços. Se a pessoa dá à criança um brinquedo maravilhoso demais para sua jovem mente, ou belo demais para seus olhos ainda semidespertos, ela o quebra, se for teimosa; se fica desinteressada, ela o deixa cair no chão e se afasta para ficar com as outras crianças.” (p. 175)

Fica claro, portanto, que De Profundis pode ser classificado como uma obra em que seu autor teve intenção pedagógica no sentido de contribuir para um grau superior de maturidade emocional. É neste contexto que retorna o refrão do moralista Wilde: “o vício supremo é a superficialidade.” Só a Tristeza, ensina Wilde, torna alguém profundo.

 

“A religião não me é de ajuda. A fé que outros depositam no que não podem ver, eu a deposito no que a pessoa pode tocar e enxergar. Meus deuses habitam templos construídos com as mãos; e dentro do círculo da experiência real está meu credo tornado perfeito e completo: talvez completo demais, até, pois, como muitos ou todos que situaram seu paraíso na terra, nela eu encontrei não meramente a beleza do paraíso, mas também o horror do inferno.

Nas raríssimas ocasiões em que penso na religião, sinto como se quisesse encontrar uma ordem para aqueles que não podem acreditar: a Confraria dos Descrentes, onde, sobre um altar, no qual vela alguma ardesse, um sacerdote, em cujo coração a paz não tivesse morada, poderia celebrar com o pão não consagrado e um cálice vazio de vinho.”

OSCAR WILDE, De Profundis, p. 99

O aprendizado com as vivências do cárcere leva Wilde a compreender algo só acessível a quem esteve triste na sarjeta. Após beijar o pó, ir à falência e ver seu nome célebre arrastado na lama, ele descobre que perder tudo ensina a virtude da Humildade [Humility] e da Piedade [Pity]. A Humildade, como Wilde mesmo admite, faltou-lhe enquanto ele foi um dândi narcisista, gastando muita grana com prazeres supérfluos e refinados na companhia interesseira de Bosie. A Humildade, após a prisão, aparece-lhe como uma virtude que a vivência do sofrimento é capaz de ensinar a uma pessoa: “não se pode dá-la a ninguém e ninguém pode dá-la ao outro. Não se pode adquiri-la a não ser abrindo mão de todas as coisas que se tem. Apenas quando a pessoa perdeu tudo ela sabe que a possui.”

Paradoxalmente, Wilde pretende ter aprendido a Humildade e quer ensiná-la a Bosie, ou ao menos conclamá-lo para que faça uma jornada de auto-transformação que só ocorreria caso Bosie soubesse ser mais humilde e empático. Propõe, na carta: “melhor faria você em descer aqui ao pó e aprendê-la [a Humildade] ao meu lado. Ainda assim, Wilde prossegue convicto na adesão ao Individualismo: “Nada me parece ser do menor valor, exceto aquilo que a pessoa extrai de si mesma. Minha natureza está buscando um modo novo de autorealização. (…) Estou sem um tostão, e não tenho onde morar. Mas na vida há coisas piores que isto. (…) Os que têm muito são em geral gananciosos; quem tem pouco sempre compartilha.” (p. 97)

A lápide de Oscar Wilde no Cemitério Père Lachaise em Paris hoje celebra um outcast que soube lamentar-se pelo destino de outros outcasts. No poema A Balada de Reading, outro texto que, assim como De Profundis, nasce da experiência do autor de O Retrato de Dorian Gray na prisão, ele descreve o impacto de testemunhar a execução de um outro preso: em 7 de julho de 1896, após ser condenado à morte pela forca, Charles Thomas Woolridge, ex-soldado da Cavalaria Real, foi morto na prisão por ter matado sua esposa.

blues que Wilde entoa busca de certo modo dar voz a um canto coletivo: é como se todos os prisioneiros daquele complexo carcerário se expressassem através dos versos wildeanos. Todo o terror dos prisioneiros que sabem que vão sobreviver à execução do colega de cárcere ali se manifestam. Os últimos dias do condenado também são narrados, todo seu élan vital: ele “bebia o Sol como se fosse vinho”, canta Wilde, e adorava observar as nuvens peregrinas fluindo pelo céu sempre que os carcereiros o permitiam o luxo de uma contemplação entre grades da Natureza gloriosa. O lamento de Wilde também se deve ao fato de que “um homem deve morrer antes que carregue frutos” [A man must die / Before he bears its fruit].

O tom, o mood, a ambiência emocional do poema não deixam de evocar o blues que, do outro lado do Atlântico, impulsionado pelo banzo de afroamericanos que haviam sido no passado desenraizados de sua África-mãe. A denúncia contra o regime da Supremacia Branca [white supremacy] nos EUA que ressoa em “Strange Fruit”, clássica na voz de Billie Holliday, expressa um pouco deste blues diante da injustiça que também marca a Balada de Wilde.

O testemunho que Wilde nos deixa de suas reações diante da execução do outro não traz argumentos jurídicos ou humanitários contra a pena-de-morte. WIlde tenta nos convencer pelo sentimento de que a Piedade, neste caso, é bem-vinda, que não deveríamos nos misturar aos carrascos, colaborar com os assassinos oficiais, os gestores dos “massacres administrativos” de que nos fala Hannah Arendt. Wilde, com sua arrogância prévia bastante machucada pelas humilhações sofridas, ainda assim ergue uma cabeça determinada para manifestar, com todo o fogo de seu verbo, uma fraternidade entre outcasts. Um tema que interessará também enormemente a grandes autores posteriores que sofreram a influência de WIlde – a exemplo de Paul Auster.

Ao assistir, detrás das grades, ao homicídio estatal de um ser humano que é morto “como uma besta”, sem que ninguém lhe toque “um réquiem que poderia trazer algum alívio à sua alma conturbada”, e que depois de enforcado é rapidamente “escondido num buraco”, sem jamais merecer sepultura com lápide ou homenagem, Wilde sente-se compelido à empatia. O condenado à morte, a quem as autoridades do mundo recusaram a misericórdia, tratado sem nenhuma piedade por carrascos e seus mandantes, inspira os versos de Wilde que depois estariam em sua própria lápide:

Tumba de Oscar Wilde em Paris

“And alien tears will fill for him
Pity’s long-broken urn, 
For his mourners will be outcast men, 
And outcasts always mourn.”

Pg. 134

A famosa frase de Wilde que diz “estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas” pode ser enganadora: caso lida como uma espécie de convite à alienação, ou seja, um chamado para esquecermos tudo que se passa na sarjeta do mundo terreno para nos concentrarmos nas alturas cósmicas e celestes, o que não está entre as intenções do Wilde que surge da experiência prisional. Ele torna-se, nesta ocasião, um educador das emoções, um moralizador através da estética, que conclama a termos uma fraternidade dos seres da sarjeta, uma brotherhood of outcasts. 

O aprendizado pelo cárcere, a cruel pedagogia do estar-preso, conduziram Wilde a uma sabedoria conquistada no sofrimento. No pain, no gain – slogan de algumas academias de ginásticas, lema de algums marombados, esta expressão também poderia significar algo mais profundo e de um ethos mais trágico: a dor é uma escola. Ao menos para quem sabe ser bom estudante e deixar-se transformas pelas vivências do confinamento violento (pois imposto pela mão férrea de outrem). O individualista que Wilde permaneceu sendo entre outcasts emerge da prisão rebelde e comovido, cheio de empatia e certa humildade, denunciando as normas insanas (sobretudo as homofóbicas, ou seja, o nomos do macho tóxico) que o expulsaram do convívio normal no seio da autoproclamada Sociedade Civilizada.

Wilde propõe-se a chorar num belíssimo blues a morte de um destes que o Sistema lança ao moedor de carne como uma besta, classificado previamente como “matável”. Assim, Wilde alça-se ao nível daqueles raros humanos que agem pela palavra, através da função performativa da linguagem, muito depois de sua presença física ter desaparecido do mundo: quem fez escola nos escritos de cárcere de Wilde aprende que “todo santo tem um passado e todo pecador tem um futuro” e que “aquele que vive mais vidas do que uma, mais mortes do que uma deve morrer.”

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Abril de 2020


OUÇA BEM / VEJA TAMBÉM:

“No dia seguinte ninguém morreu” – José Saramago sonda a tragicomédia da existência em “As Intermitências da Morte” (2005)

Nunca houve, desde que há mundo, um único dia que tenha transcorrido sem mortes. Não há registro ou notícia, desde que há vidas nesta esfera que rodopia ao redor do sol, de um giro completo do planeta ao redor de seu próprio eixo em que não tivessem se entremesclado no Theatrum Mundi os primeiros gritos dos recém-nascidos com os últimos suspiros dos agonizantes (como já nos ensinava a poesia epicurista de Lucrécio).

Se na realidade nunca houve época em que a morte tivesse entrado em férias, na literatura pode-se fantasiar livremente sobre o inaudito, o inédito, o nunca-dantes-nos-anais-da-história: como aquela formidável época em que a gente parou de morrer. A crônica imaginária destes sucessos extraordinários foi realizada em As Intermitências da Morteromance publicado em 2005 por José Saramago e que assim se inicia:

“No dia seguinte ninguém morreu. O fato, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme… não havia notícia nos 40 volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenômeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas 24 horas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.” (SARAMAGO – Cia das Letras, 2005, p. 11)

Na trajetória do escritor, este livro é da fase tardia, escrito após a consagração mundial de Saramago em 1998, quando o hoje defunto autor português foi laureado com o Nobel de Literatura, aquele prêmio que concede a tão poucos e seletos mortais a aura de sua glória, auréola de fama que promete a seu detentor que sua obra irá seguir ecoando, enganando a bocarra gigantesca da obscuridade do túmulo que engoliu quem esta obra pariu.

Neste livro, como de praxe, o Saramago é o cronista sagaz de nosso absurdo individual e coletivo. É o autor capaz de enxergar com profunda ironia, tingida de melancolia, todas as nossas adversidades, todas as nossas idiotices, todas as nossas incompletudes. É também o crítico mordaz das religiões instituídas, das máphias políticas, das velharias autoritárias, agindo como um iluminista tardio que age contra todos os obscurantismos que insistem em medievalizar a terra.

Saramago atua, através de sua caudalosa escrita, como um pedagogo sábio que quer nos ensinar a travessia que vai da cegueira à lucidez. Pela via régia do ateísmo, busca a emancipação do pensamento e da sensibilidade, libertos das cataratas de mentiras que nos vendam os olhos. O pior cego é o que não quer ver, o que pôs vendas em seus próprios olhos, em atitude análoga à daquele que está perecendo em uma cela de prisão sem perceber que a chave está por dentro.

Explorado em outras de suas obras, como Ensaio Sobre a Cegueira, o tema da cegueira – não literal, mas sim moral, existencial, relacional – parece estar correlacionado, na obra saramaguiana, com a condição mortal. Como se fôssemos demasiado covardes, a maioria de nós e a maior parte do tempo, para estar with eyes wide open diante de nossa condição.

Preferimos a semi-obscuridade – a falta de lucidez – de nossas fés e ideologias, que tanto contribuem para que vivamos com eyes wide shut (nome, aliás, do notável filme de despedida de Stanley Kubrick). Cegos de propósito, pois nunca suficientemente corajosos para encarar, no espelho, a caveira que nos olha de volta por detrás da pele da face. Crânio escondido por detrás da cara que é o retrato de nosso futuro incontornável.

O único animal que sabe que vai morrer inventa, através da história, os ópios e morfinas espirituais que mediquem sua angústia da finitude. A música do Morphine expressa isto à perfeição em Cure for Pain, uma das mais belas canções do finado Mark Sandman: “someday there’ll be a cure for pain, that’s the day I’ll throw my drugs away”.

Saramago sabe que as religiões instituídas, aí incluída a católica apostólica romana, sempre insistiram no tema da “morte como porta única para o paraíso celeste, onde, dizia-se, nunca ninguém entrou estando vivo, e os pregadores, no seu afã consolador, não duvidavam em recorrer a todos os métodos da mais alta retórica e a todos os truques da mais baixa catequese para convencerem os aterrados fregueses de que, no fim de contas, se podiam considerar mais afortunados que os seus ancestres, uma vez que a morte lhes havia concedido tempo suficiente para prepararem as almas com vista à ascensão do éden” (p. 133). A extinção da morte é um perigo para a sobrevivência das religiões instituídas, estas profanas criações humanas destinadas a pôr em circulação os ópios fantasiosos que acalmam os terrores e angústias do bicho que sabe que vai morrer.

Há muito tempo estou convencido – e nisto a leitura de Saramago muito contribuiu – de que as religiões e as mitologias são incompreensíveis em um horizonte onde não coloquemos, no cerne, a mortalidade humana e o nosso protesto contra ela. Diante da morte invencível, os seres humanos erguem suas catedrais e suas preces; imaginam-se triunfantes em um além-túmulo que o poeta Tennyson chamará de local do Segundo Nascimento; Idolatram a figura de um crucificado que supostamente voltou à vida depois de três dias morto. Só inventamos deuses pois morremos – e é porque morremos que “se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo.”

Pintura de Andrea Mantegna – “Lamentação de Cristo”

Mortais humanos apegam-se com esperanças fervorosas ao sonho de ressurreição, e olhando, seja de frente ou de soslaio, seus destinos de criatura temporárias, abraçando ou recusando esta ciência fatal, os seres que somos recusam-se a ir ladeira abaixo, no processo que conduz pra baixo da terra, em silêncio e resignação. Para lembrar o célebre estribilho poético: We not go quietly into that good night… We rage, rage against the dying of the light! (Dylan Thomas)

Como disse Albert Camus, “o ser humano é a única criatura que se recusa a ser o que é.” E a danada da morte tem tudo a ver com isso. Ela é, para os viventes, aquilo que Manuel Bandeira chamou de “a indesejada das gentes” – e os suicidas sempre foram minoria da humanidade, pois os que buscam com ânsia uma morte que lhes dê fim aos tormentos e angústias sempre foram menos numerosos do que aqueles que foram impelidos à sobrevivência resiliente até que o tempo os matasse com seus instrumentos do costume, como as doenças e as violências bélicas. Ainda assim, o suicídio e a eutanásia são fenômenos que nos obrigam a refletir sobre o direito de morrer, quando a vida não é mais sentida como digna de ser vivida, um tema abordado com muita sensibilidade e pungência por filmes como Mar Adentro de Amenábar ou Amor de Haneke.

Saramago, no espaço livre de seu livro, suspende as leis natural que estão por aí desde que o mundo é mundo. Mago plenipotente no espaço de seu romance, ele conta uma história fantasiosa: na alvorada de um ano novo, todos os 10 milhões de habitantes de um certo país subitamente descobrem que a morte saiu de férias. Por tempo indeterminado. Sem aviso prévio, abandonou o posto e desistiu de seu fatal ofício, há tantos milênios incansavelmente exercido.

Não se sabe os motivos de sua greve, e ninguém explicou se o fenômeno é uma casual e efêmera transformação da ordem cósmica, que logo re-entrará nos eixos costumeiros, ou se as regras da vida e da morte foram alteradas para sempre neste pequeno rincão da terra. A princípio, é o fervor patriótico e todos comemoram o privilégio. Logo depois, percebem que a morte sair de férias irá acarretar um imenso transtorno – tanto é assim que os fluxos migratórios irão se acentuar, com inúmeros nômades-peregrinos querendo chegar a outro país onde ainda se tem a possibilidade de morrer.

Tudo se transtorna com as férias que a morte resolveu tirar: os hospitais ficam repletos de doentes terminais, os asilos de velhos sofrem com o excesso dos agonizantes estão à espera de seu ocaso, os escritórios das companhias de seguros e os bancos onde elas depositam seus capitais entram em crise…

Os impactos na economia são tremendos – e não apenas no pequeno nicho que são as empresas funerárias, que fornecem aos que sobrevivem os necessários auxílios para o despojo daquelas partes do ex-vivo tão brutalmente chamados por alguns de “restos mortais”, aquilo que, abandonado pela chama da vida, apodrece logo com exalações de odores pútridos e que por isso corremos a afastar de nossas fuças e vistas.

A teledramaturgia, nos últimos anos, foi responsável pela criação de uma obra-prima das séries dramáticas com A Sete Palmos (Six Feet Under), da HBO, cujas 5 temporadas expuseram em minúcias as vidas da família Fisher e seus agregados afetivos enquanto tocam avante a difícil empreitada de gerir uma funerária.

Saramago também se interessa por todas as indústrias que lucram com a morte, mas é mais como um crítico ácido que ele atua, nunca como alguém que não enxergue a problemática complexa que envolve hospitais, asilos, funerárias e os elos que os conectam aos poderes políticos e eclesiásticos. As altas cúpulas do clero e as altíssimas autoridades do reino são alvo da pena mordaz de Saramago, que em inúmeros livros despeja sua ironia sobre o fenômeno da vinculação teologia-política (Memorial do Convento, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Caim etc.).

Em As Intermitências da Morte, o romance revela tudo o que ocorre no curto período em que a morte cessa de desempenhar suas funções.

“A igreja”, por exemplo: “saiu à arena do debate montada no cavalo-de-batalha do costume, isto é, os desígnios de deus são o que sempre foram, inescrutáveis, o que, em termos correntes e algo manchados de impiedade verbal, significa que não nos é permitido espreitar pela frincha da porta do céu para ver o que se passa lá dentro.

Dizia também a igreja que a suspensão temporária e mais ou menos duradoura de causas e efeitos naturais não era propriamente uma novidade, bastaria recordar os infinitos milagres que deus havia permitido se fizessem nos últimos 20 séculos, a única diferença do que se passa agora está na amplitude do prodígio, pois que o que antes tocava de preferência o indivíduo, pela graça da sua fé pessoal, foi substituído por uma atenção global, não personalizada, um país inteiro por assim dizer possuidor do elixir da imortalidade, e não somente os crentes, que como é lógico esperam ser em especial distinguidos, mas também os ateus, os agnósticos, os heréticos, os relapsos, os incréus de toda a espécie, os afeiçoados a outras religiões, os bons, os maus e os piores, os virtuosos e os maphiosos, os verdugos e as vítimas, os polícias e os ladrões, os assassinos e os doadores de sangue, os loucos e os sãos de juízo, todos, todos sem exceção, eram ao mesmo tempo as testemunhas e os beneficiários do mais alto prodígio alguma vez observado na história dos milagres…” (p. 75)

Descrente em milagres como bom ateu, Saramago brinca de imaginar as consequências que tomariam o mundo caso este milagre ocorresse e a “Velha da Capa Preta” parasse de trabalhar. O desemprego dos coveiros seria a menor de nossas encrencas. A editora Companhia das Letras sintetizou bem os charmes e graças do romance:

De repente, num certo país fabuloso, as pessoas simplesmente param de morrer. E o que no início provoca um verdadeiro clamor patriótico logo se revela um grave problema.

Idosos e doentes agonizam em seus leitos sem poder “passar desta para melhor”. Os empresários do serviço funerário se vêem “brutalmente desprovidos da sua matéria-prima”. Hospitais e asilos geriátricos enfrentam uma superlotação crônica, que não pára de aumentar. O negócio das companhias de seguros entra em crise. O primeiro-ministro não sabe o que fazer, enquanto o cardeal se desconsola, porque “sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja”.

Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à mortalidade comum de todos os cidadãos. Mas, na sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar os afazeres de sempre. Então, o que vai ser da nação já habituada ao caos da vida eterna?

LEIA OUTRO TRECHO

Vale lembrar que, na arte brasileira, há também um magnum opus que se equipara a Saramago na capacidade de expressar de maneira criativa e expressiva o enrosco humano com a mortalidade: estou falando da música de Siba, depois regravada por Juçara Marçal em seu álbum Encarnado, “A Velha da Capa Preta”:

A morte anda no mundo
Vestindo a mortalha escura
Procurando a criatura
Que espera a condenação
Quando ela encontra um cristão
Sem vontade de morrer
Ele implora pra viver
Mas ela ordena que não
Quando o corpo cai no chão
Se abre a terra e lhe come
Como uma boca com fome
Mordendo a massa de um pão

A morte anda no mundo
Espalhando ansiedade
Angústia, medo e saudade
Sem propaganda ou esparro
Sua goela tem pigarro
Sua voz é muito rouca
Sua simpatia é pouca
E seu semblante é bizarro
A vida é corno um cigarro
Que o tempo amassa e machuca
E morte fuma a bituca
E apaga a brasa no barro

A morte anda no mundo
Na forma de um esqueleto
Montando um cavalo preto
Pulando cerca e cancela
Bota a cara na janela
Entra sem ter permisão
Fazendo a subtração
Dos nomes da lista dela
Com a risada amarela
É uma atriz enxerida
Com presença garantida
No fim de toda novela

Disse a morte para a foice:
Passei a vida matando
Mas já estou me abusando
Desse emprego de matar
Porque já pude notar
Que em todo lugar que eu vou
O povo já se matou
Antes mesmo d’eu chegar
Quero me aposentar
Pra gozar tranqüilidade
Deixando a humanidade
Matando no meu lugar

A personificação da morte não é novidade na história da arte – de Van Gogh (pintura acima) a Bergman (em um filme como O Sétimo Selo), artistas de várias vertentes já representaram a dita cuja de muitas maneiras, como um esqueleto que fuma um cigarro ou como uma jogadora de xadrez que oferece ao rival a oportunidade de adiar sua estadia entre os vivos, desde que consiga não tomar um xeque-mate.

No caso de Saramago, ele se deleita em imaginar as enrascadas em que a morte responsável por matar os humanos entraria caso mudasse seus métodos imemoriais. A morte, quando sai dos trilhos, acaba por descarrilhar todo o trem da vida. Primeiro, ela escolhe as férias, mas depois decide retornar à labuta, mas com outra estratégia: mandará pelo correio uma carta de cor violeta, avisando aos que estão na iminência de morrer que lhes resta apenas uma semana de vida…

Poética, a morte pensa em enviar, ao invés de cartas, borboletas – em especial a espécie acherontia atroposdotada pela natureza de um visual curiosamente fúnebre. São maneiras irônicas de Saramago nos sugerir, com muita graça, que a morte sempre fez parte da vida e que ainda bem que é assim. Esta funcionária exemplar causaria o caos caso falhasse no desempenho de suas funções. Hospitais engarrafados de tantos doentes, asilos às dúzias tendo que ser construídos às pressas, empresas de enterros indo à falência, e religiões instituídas caindo no colapso – tudo isso como resultado da temporária intermitência da morte em seu ofício.

Se a vida fosse impossível de perder, que valor teria? Não temos apreço senão por aquilo que é a um só tempo precioso e destrutível. Sabemos e sentimos que tudo de bom que vivemos é efêmero e temporário, e André Gide ensinava que quem não pensa suficientemente na morte não consegue dar o devido peso e urgência à vida: “Um pensamento insuficientemente constante sobre a morte”, escrevia Gide, “nunca deu valor suficiente ao mais ínfimo instante de vida.”

Nas páginas de Saramago, é como se a morte aparecesse como a necessária força de renovação das coisas. Sem morte, tudo estagnaria e o mundo viraria um amontoado de velharias. O fluxo cósmico perderia sua fluidez. As velharias se amontoariam, sufocando o novo. Só através da morte é que a vida pode inovar. No balé infindável de Eros e Tânatos, o palco do mundo vê a emergência sem fim de novas formas. Metamorfoses advindas interminavelmente da dialética inextirpável da vida e da morte.

Pintura de Michael Wolgemut, “A Dança dos Esqueletos”

Em seus momentos mais filosóficos, As Intermitências da Morte nos faz refletir sobre os diversos modos de findar a existência, de acordo com o organismo vivo que chega a seu ocaso, como no capítulo 6, em que um peixinho de aquário, alçando-se por sobre as águas, pergunta (perdendo seu pobre fôlego):

“Já pensaste se a morte será a mesma para todos os seres vivos, sejam eles animais, incluindo o ser humano, ou vegetais, incluindo a erva rasteira que se pisa e a sequoia giganteum com os seus 100 metros de altura, será a mesma a morte que mata um homem que sabe que vai morrer, e um cavalo que nunca o saberá. E tornou a perguntar, Em que momento morreu o bicho-da-seda depois de se ter fechado no casulo e posto a tranca à porta, como foi possível ter nascido a vida de uma da morte da outra, a vida da borboleta da morte da lagarta, e serem o mesmo diferentemente, ou não morreu o bicho-da-seda porque está na borboleta… Disse o espírito que paira sobre as águas do aquário, o bicho-da-seda não morreu, dentro do casulo não ficou nenhum cadáver depois de a borboleta ter saído, tu o disseste, um nasceu da morte do outro, Chama-se metamorfose, toda a gente sabe do que se trata, disse condescendente o aprendiz de filósofo….” (p. 72)

Morte e vida dançam o rock da metamorfose no fluido palco do universo, mas cada organismo tem seu modo de experenciar o seu próprio processo de dissolução: se é verdade que o homo sapiens é o único animal consciente de sua própria mortalidade, ainda que ele tanto se esforce para recalcar e reprimir esta ciência (através de métodos psicológicos brilhantemente iluminados por Ernest Becker em A Negação da Morte, belíssimo livro laureado com o Pulitzer), não se pode negar que outros animais dotados de sistema nervoso central e altamente sensíveis aos estímulos ambientais também batalhem com todas as forças de seu âmago contra quem quer lhes impor a morte. Ser um animal é estar animado pelo duro desejo de durar.

Um pomar não nos dá a mesma impressão de resiliência, de perseverança na existência, de manifestação concreta do conatus conceituado na filosofia de Spinoza, o que torna bastante cômicos e risíveis os argumentos de certos carnívoros que, diante da argumentação de vegetarianos em prol da libertação animal, argumentam que as cenouras e os alfaces gostam tão pouco de terem suas vidas abreviadas quanto os porcos e bois abatidos nas milhares de factory farms desde nosso mundo.

Neste debate, Jacques Derrida foi ao cerne do problema ao dizer que a questão crucial a se colocar, diante da vida de um outrem não-humano, é esta: “esta criatura pode sofrer?” E só um mentecapto seria capaz de avaliar, no termômetro da sofrência, que um porco ou uma galinha sofrem menos que uma maçã ou um brocólis com a interrupção de sua existência para fins alimentícios humanos. O apego à vida é evidente maior quanto mais ampla é a consciência que o animal possui de sua condição existencial – e, como Peter Singer argumenta, é um escândalo global chocante o quanto nossas economias ainda estão baseadas no morticínio ultra-disseminado de criaturas que sofrem imensamente com o processo mortífero que os humanos lhes impõem, ao invés de adotarmos uma cultura culinária mais sábia pois atenta aos interesses de seres sencientes semelhantes a nós mesmos.

Passando ao largo dessas questões, o romance de Saramago prefere focar nas reações humanas diante da aproximação da data fatal nas novas condições impostas pela Dona Morte, que no âmbito do romance resolveu inovar em seus métodos. O affair quase romântico da morte com um violoncelista serve como emblema saramaguiano para os poderes transformadores da arte: sob o impacto da aproximação da morte, o músico toca seu Bach, seu Chopin, seu Beethoven, com tal feeling e potência expressiva que tudo transfigura a seu redor.

Saramago imagina então que a morte, encantada com a musicalidade deste mortal que ela não consegue se decidir a matar, escolhe fazer o que nunca antes fizera – é só lembrar que ela não teve piedades, em sua ação pretérita, de gênios musicais colhidos tão cedo do jardim da vida como Schubert, Mozart ou Janis. A morte depõe suas armas diante da música, adia suas tarefas, deixa para depois o único mandamento que segue – “matarás!” Enfeitiçada pela música que fazem os vivos, a morte que nunca dorme decide-se a deixar a foice encostada e vai tirar uma soneca – afinal suas pálpebras pesam após tanto tempo de ação em completa insônia. “E no dia seguinte ninguém morreu…”

“O que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naquela música uma transposição rítmica e melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma cousa ainda tivesse ficado por dizer… (p. 171)

É nossa sina de seres temporários que nunca possamos abandonar o palco depois de tudo termos dito. Resta sempre muito por dizer, e o resto é silêncio. Na literatura de Saramago, este incontornável da condição humana recebe um tratamento literário que é tonificante, não só pela liberação lúdica que nos fornece, aliviando a gravidade com que costumamos tratar do assunto e polvilhando tudo com um espírito de jocosa ironia, mas também pela intensificação de nossa consciência do quão tragicômico é este clarão entre dois nadas que cada um de nós chama de vida.

A morte saramaguiana tem muita graça e lendo este romance pude me divertir a imaginá-la como um funcionária exemplar, que desde a alvorada da vida exerceu suas funções de maneira impecável, mas que enfim decide reclamar seus direitos trabalhistas e reclamar do patrão (deus ou o universo, segundo o gosto do freguês…), já que ela já labuta há milênios, sem férias nem direito a greve, matando 24 horas por dia, inclusive em feriados religiosos e nos horários mais impróprios da madrugada.

A morte é parte inextricável e incontornável da vida de que cada um de nós não detêm a posse mas somente o fugaz usufruto. E a sabedoria epicurista sempre ensinou que não há carpe diem sem memento mori. Saramago, acredito, assinaria embaixo caso a morte tivesse lhe deixado mãos para escrever. Também assinaria embaixo, provavelmente, de duas idéias filosóficas que muito aprecio: a primeira, de Montaigne, que dizia que “filosofia é aprender a morrer”, e a segunda, de André Comte-Sponville, que ensina que “é preciso pensar a morte para amar melhor a vida – em todo caso, para amá-la como ela é: frágil e passageira.”

O pensamento de Saramago, tão filiado a um certo ímpeto de lucidez iluminista que batalha contra o obscurantismo e o fanatismo, busca conduzir-nos a esta sábia apreciação de nossa existência mortal que é tão rara e preciosa. Escrevendo logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001, Saramago soube conectar com profundidade os fatores inextricáveis mortalidade religiosidade ao escrever “O Factor Deus”, excelente provocação filosófica-política que é recomendável como posfácio às Intermitências da Morte:

“De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta dos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas sem excepção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que isto seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel.

Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os taliban, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente os textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conluio pactuado entre Religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos, o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gémeas de Nova Iorque e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela acção dos homens, cobriram e teimam em cobrir de torpor e sangue as páginas da História.

Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “factor Deus”, esse está presente na vida como se efectivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o “factor Deus” o que se exibe nas nota de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos e não a outra…) a benção divina. E foi o “factor Deus” em que o deus islâmico se transformou que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o “factor Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem, acabou por fazer do homem uma besta.

Ao leitor crente (de qualquer crença…) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiram, não peço que passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento se não puder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do “factor Deus”. Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.” – SARAMAGO / O FACTOR DEUS

Por Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, Julho de 2018

 

AS GUERRAS DA MEMÓRIA: O PASSADO EM DISPUTA – Por Caroline Bauer, Dilma Rousseff, Maria Rita Kehl, Eliane Brum (Ilustrações por Vitor Teixeira e Latuff)

Não se trata apenas de uma coincidência que Lethe, a deusa grega do esquecimento, seja filha de Éris, deusa da discórdia.”
Caroline Silveira Bauer, Como Será o Passado?, pg. 15

Os mitos gregos narram que, lá no mundo subterrâneo do Hades, zona penumbral para onde vão as almas dos mortos antes de retornarem à vida em novos corpos, há um rio chamado Lethe. Beber de suas águas significa consumir uma dose cavalar de esquecimento. Nascemos todos desmemoriados por causa da beberagem que tomamos, ainda em estado pré-natal de almas vagando no Hades, da poção da amnésia.

O que esses mito podem nos ensinar no presente? Eles podem nos servir como emblemas para pensar o passado recente do Brasil, em especial a constituição da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e sua recepção e repercussão pela sociedade brasileira? Podemos explicar nossas discórdias civis a partir de um dever de memória e de aprendizado com a história que estamos fracassando em cumprir?

“A Ninfa Aquática”, Pintura de Herbert James Draper

Para além do célebre rio do esquecimento, as lendas míticas helênicas também nos contam sobre as ninfas, divindades femininas e aquáticas. Uma delas chama-se justamente Lethe, filha de Éris, a deusa da discórdia. Sobre Éris – filha do casal olímpico supremo, Zeus e Hera – o mínimo que se pode dizer é que, tendo sido alcunhada de “A Mãe dos Males”, ela tem uma longa fila de rebentos malignos. Além de Lethe, o esquecimento, Éris pariu: “Ponos (desânimo e fadiga), Macas (batalhas), Limos (fome) e Horcos (juramento); as chorosas Algea (tristeza), Hisminas (discussões e disputas), as Fonos (dor e matança), as Androctasias (devastações e massacres), as Neikea (ódio), as Pseudólogos (palavras mentirosas), as Anfilogias (ambiguidades; dúvidas e traições), Disnomia (desrespeito) e Até (insensatez) todos eles companheiros inseparáveis. Chamados pelos gregos de Daemones; as “desgraças” para os romanos.” (WIKIPÉDIA)

Por culpa de Lethe, a filha da Discórdia, nós nos tornamos desmemoriados, amnésicos, letárgicos (outra palavra que vem de lethe). Na história da cultura grega, as explicações para os males humanos que os conectam ao esquecimento são muitas. Os discípulos de Orfeu, de Pitágoras, de Sócrates, sustentavam que a maioria de nós não se lembra de vidas passadas pois nossas almas, antes de encarnar no corpo que atualmente ocupamos, tomaram um cházinho de esquecimento no Hades. E não faltarão os filósofos que vão argumentar em prol da importância da re-memoração como uma tarefa crucial para o aspirante à sabedoria.

anamnese pitagórica-socrática por muito tempo reinou como uma das concepções hegemônicas sobre o processo de conhecimento humano: saber sobre o passado era essencial para quem quisesse gozar dos benefícios da sophia. O próprio conceito de Verdade veiculado pelo termo grego alethéia está conectado com isto: encontrar o verdadeiro seria um processo de conhecimento baseado em um des-velamento, em um des-ocultamento. 

Retirar o véu que nos separa do passado, derrubar o muro que nos impede de conhecer mais amplamente o nosso tempo pretérito e seus legados, era quintessencial ao incremento de saber que ia forjando o sábio. Sábio era aquele que vencia o império de Lethes, símbolo do esquecimento. Para além dos mitos, o que isso nos dizer sobre as urgências do tempo presente e sobre a importância, aqui e agora, de políticas públicas da memória? Poderíamos ler o evento histórico da CNV no Brasil em uma chave que recupera o vínculo feito pelos gregos entre Esquecimento e Discórdia?




Em um dos livros mais importantes publicados no Brasil recente, Caroline Silveira Bauer pergunta, de maneira poética e provocativa: Como Será o Passado?  A graça da pergunta está na formulação verbal inesperada, pois espera-se que o passado seja de tal natureza que o verbo para ele deveria estar conjugado diferente: “como foi o passado?” Ora, Carol está dizendo que, no futuro, o passado será outro… O passado histórico está em disputa: qual das múltiplas representações do tempo pretérito ganhará hegemonia e se imporá como cultura histórica dominante?

Não é apenas que o passado vá aumentando de tamanho, ou seja, tendo o seu conteúdo expandido, como um porquinho de economias, um cofrinho cada vez mais gordo conforme recebe mais moedas, em um modelo do pretérito como tesouro crescente. O passado não é aquilo que “aumenta de volume” como uma piscina que está se enchendo, conforme novas gotas – os momentos presentes que vão passando – pingam e pingam no passado.

O passado está sendo sempre re-escrito em novos presentes, e por isto está sujeito a disputas. O domínio sobre a representação do passado é também um tema bélico, de alta conflitividade social. O passado é um campo de batalha – quem vai ganhar esta guerra em que o vencedor tem o privilégio de impor (mas não sem resistência) a sua própria concepção de tempo, a sua própria narrativa da história?

São questões exploradas por Orwell em 1984, romance distópico sobre uma sociedade totalitária, cujo protagonista trabalha no Ministério da Verdade, irônica denominação para o setor do governo que reescreve o passado de acordo com os interesses do presente (e que tem como emblema histórico, também comentado na sátira A Revolução dos Bichos, a tentativa de Stálin de apagar Trótski da histórica soviética).

“A gestão da memória não é um privilégio de sociedades comprometidas com valores democráticos, igualitários, de justiça e de proteção aos direitos humanos; ao contrário, a história do século XX demonstrou que regimes autoritários e totalitários procuram impor determinadas versões sobre o passado, demonstrando a importância da história como fator de legitimação desses regimes. Desta forma, aprioristicamente, não há como afirmar se lembrar ou esquecer é bom ou ruim, dependendo dos usos ou abusos da memória…” (BAUER, p.. 145)

O livro crucial da Carol Bauer, professora de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ao colocar a pertinente questão “como será o passado?”, deseja propor uma reflexão e um debate acerca das guerras da memória, ou seja, dos combates sociais pelo controle da representação hegemônica do passado. A obra, como explicita seu subtítulo – História, Historiadores e a Comissão Nacional da Verdade –, estuda os “usos políticos do passado” nas políticas públicas brasileiras, com foco sobretudo nas ações instituídas durante o governo Dilma Rousseff, que visavam lançar luz sobre as violações dos direitos humanos ocorridas durante os períodos ditatoriais da história recente do Brasil.

Para além do conhecimento histórico, a CNV tinha seus objetivos práticos, ou seja, o desejo de intervir no futuro da convivência democrática brasileira, já que entre seus altos ideais havia a intenção de promover paz e reconciliação, além de inculpar e penalizar aqueles que perpetraram crimes contra a humanidade. Uma significativa nota da CNV, publicada no fim de Março de 2014, no marco histórico dos 50 anos do golpe de 1964, destacava que cerca de

“82 milhões de brasileiros nasceram sob o regime democrático (após 1985). Mais de 80% da população brasileira nasceu depois do golpe militar (após 1964). O Brasil que se confronta com o trágico legado de 64, passados 50 anos, é literalmente outro. O país se renovou, progrediu e busca redefinir o seu lugar no concerto das nações democráticas. Não há por que hesitar em incorporar a esta marcha para adiante a revisão de seu passado e a reparação das injustiças cometidas.”  (LEIA NOTA COMPLETA EM PDF ou NO SITE OFICIAL DA CNV)

Caroline Bauer argumenta que há um “confronto de cronosofias e culturas históricas antagônicas” (p. 115), que nos colocam numa acirrada batalha sobre a memória. Um dos modos mais simples de exemplificar as formas radicalmente opostas de representar o passado histórico está na lembrança de que, para alguns, as ocorrências do fim de Março de 1964, o fim do governo João Goulart e o início do novo regime, equivalem a uma “revolução” (gloriosa), enquanto para outros aquilo foi um desgraçado de um “golpe de Estado” (nefasto).

Quem tem razão sobre o que foi o passado? É aquela capa do jornal O Globo, que no dia seguinte aos eventos publicou, em letras garrafais, “RESSURGE A DEMOCRACIA!”, ou aqueles  que falam sobre um Período de Trevas e Barbáries iniciado naquele Dia Que Durou 21 Anos? Memória em disputa.

Inspirando-se em reflexões de pensadores como Todorov, Paul Ricoeur e Karl Jaspers, dentre outros, a Carol Bauer sondou as profundezas do passado histórico brasileiro com um olhar atentíssimo à “luta política pela imposição de determinada construção temporal” (p. 118). No caso da presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2010 e re-eleita em 2014, houve uma elucidação importante realizada em seu discurso de posse dos integrantes da CNV, em 16 de Maio de 2012, que vale a pena rememorar:

“Ao instalar a Comissão da Verdade não nos move o revanchismo, o ódio ou o desejo de reescrever a história de uma forma diferente do que aconteceu, mas nos move a necessidade imperiosa de conhecê-la em sua plenitude, sem ocultamentos, sem camuflagens, sem vetos e sem proibições. (…) O nosso encontro, hoje, em momento tão importante para nós, é um privilégio propiciado pela democracia e pela convivência civilizada. É uma demonstração de maturidade política… O país reconhecerá nesse grupo [de membros da CNV], não tenho dúvidas, brasileiros que se notabilizaram pelo espírito democrático e pela rejeição a confrontos inúteis ou gestos de revanchismo.

Nós reconquistamos a democracia a nossa maneira, por meio de lutas e sacrifícios humanos irreparáveis, mas também por meio de pactos e acordos nacionais, muitos deles traduzidos na Constituição de 1988. Assim como respeito e reverencio os que lutaram pela democracia enfrentando bravamente a truculência ilegal do Estado, e nunca deixarei de enaltecer esses lutadores e lutadoras, também reconheço e valorizo pactos políticos que nos levaram à redemocratização.”  DILMA ROUSSEFF (BAUER, p. 118-119)

Carol Bauer reconhece neste discurso, que abre os trabalhos da CNV, a “ideologia da reconciliação”, a aposta na civilidade, o desejo de um processo de pesquisa lúcida sobre o passado que nada teria de revanchismo, de vingança odienta. Tratava-se de Justiça e não de vendeta. Dilma fala sobre uma certa cultura do medo, que teria feito do passado da ditadura uma espécie de área proibida, de zona tabu. “Eu acrescentaria”, disse Dilma, “que a força pode esconder a verdade, a tirania pode impedi-la de circular livremente, o medo pode adiá-la, mas o tempo acaba por trazer a luz. Hoje, esse tempo chegou.” (p. 129)

A Comissão Nacional da Verdade nasceu envolta em controvérsias, com muitas figuras políticas que se manifestaram contra a sua instauração, utilizando-se de argumentos como os de Arolde de Oliveira, que disse: “temo que nós estejamos mexendo numa ferida que já está cicatrizada e que poderá voltar a criar problemas sérios” (p. 152). Já o deputado Jair Bolsonaro, ex-capitão do Exército, discursou na Câmara em setembro de 2011 falando do “trabalho impecável” desenvolvido pelas Forças Armadas e criticando a CNV como um “projeto que já nasce mais do que viciado”:

“É um projeto que desborda a Lei de Anistia, permite a prisão disciplinar de militar. É um projeto que cria um trem da alegria, a partir do momento em que vão indenizar centenas e centenas de pessoas que comparecerem à Comissão e falarem que foram perseguidas… É um projeto que define, que apenas tipifica o tipo de crime que nós militares teríamos cometido para responder. Já os crimes praticados pela esquerda ficarão completamente de fora. Mais ainda: consubstancia, no final, um relatório que será imposto junto aos livros do MEC para se fazer uma nova História moderna brasileira, tendo os militares como bandidos nesse período de 1964 a 1986 [sic]. A Dilma vai ter o seu troco. (…) Fizeram curso em Cuba, na China, na Coréia, de guerrilha, de como torturar, de como sabotar, de terrorismo, e vieram aqui ao Brasil falar que combatiam uma tal de ditadura. Isso é uma piada, isso é uma piada, é uma vergonha. E eu lamento que o meu Congresso esteja aprovando essa proposta, apunhalando os militares das Forças Armadas, apunhalando!” – JAIR BOLSONARO (Bauer, p. 155 a 157)

O confronto entre duas visões radicalmente opostas se explicita neste contraste entre Dilma e Bolsonaro – que teve um de seus episódios mais macabros durante a sessão de votação do impeachment, em Abril de 2016, quando Bolsonaro elogiou o Coronel Ustra, “pavor de Dilma Rousseff”, e disse que a esquerda perdeu em 1964 e perdeu de novo em 2016.

A presidenta, que esteve presa pela ditadura militar por seu envolvimento em grupos de resistência ao regime (ver a biografia A Vida Quer É Coragem), mostrou-se visivelmente emocionada ao final dos trabalhos da CNV em 2014, quando não conteve as lágrimas ao receber o relatório final. Poucos meses antes, no dia 31 de Março daquele ano de 2014, rememorando os 50 anos do golpe civil-militar, ela disse:

“Por 21 anos, mais de duas décadas, nossas instituições, nossa liberdade, nossos sonhos foram calados. (…) Nós podemos olhar para este período e aprender com ele, porque nós o ultrapassamos. O esforço de cada um de nós, o esforço de todas as lideranças do passado, daqueles que vivem e daqueles que morreram, fizeram com que nós ultrapassássemos essa época, os 21 anos. O dia de hoje exige que nós nos lembremos e contemos o que aconteceu. Devemos isso a todos os que morreram e desapareceram, devemos aos torturados e aos perseguidos, devemos às suas famílias, devemos a todos os brasileiros. Lembrar e contar faz parte, é um processo muito humano…” (p. 120-121)

Ora, esta representação do passado ditatorial que teria sido ultrapassado, esta representação da Ditadura como algo que conseguimos superar, é algo que também está em disputa. A descrição que Dilma faz da História entre 2012 e 2014 é uma, agora que estamos em 2018 é certamente outra, já que ela vivenciou na pele todo o processo de impeachment que, em 2016, mostraram que o passado era outro do que aquilo concebido ao fim de seu primeiro mandato presidencial, quando a democracia de fato parecia mais consolidada do que agora, às beiras das eleições de Outubro de 2018, quando a condenação e o encarceramento de Lula demonstram uma aversão das elites dominantes a qualquer processo onde o sufrágio universal pudesse de fato exercer seu direito de escolha ao reconduzir ao poder o Partido dos Trabalhadores…

O passado ditatorial é mais presente e atual do que pensávamos, e é de se suspeitar que a CNV não teve força, nem capilaridade social, nem suficiente socialização de seus achados e pesquisas, que bastassem para que a população brasileira de fato aumentasse seu saber sobre o passado e aprendesse com as lições pretéritas. Voltamos a dar razão ao Millôr Fernandes, que dizia que “O Brasil é um país com um enorme passado pela frente.” Vera Paiva, filha de Rubens Paiva, célebre desaparecido político da era ditatorial, escreveu:

“Ao enfrentar a verdade sobre esse período, ao impedir que violações contra direitos humanos de qualquer espécie permaneçam sob sigilo, estamos mais perto de enfrentar a herança que ainda assombra a vida cotidiana dos brasileiros. Não falo apenas do cotidiano das famílias marcadas pelo período de exceção. Incontáveis famílias ainda hoje, em 2011, sofrem em todo o Brasil com prisões arbitrárias, sequestros, humilhação e tortura. Sem advogado de defesa, sem fiança. Não é isto que está em todos os jornais e na televisão quase todo dia, denunciando, por exemplo, como se deturpa a retomada da cidadania nos morros do Rio de Janeiro? Isso tudo continua acontecendo, Excelentíssima Presidenta. Continua acontecendo pela ação de pessoas que desrespeitam sua obrigação constitucional e perpetuam ações herdeiras do estado de exceção que vivemos de modo acirrado de 1964 a 1988.” – VERA PAIVA (Bauer, p. 168)

Quanto à Lei de Anistia promulgada em 1979, a CNV proclamou-se de maneira bem explícita contra a impunidade ainda reinante em relação aos torturadores e assassinos de farda que cometeram os atos de terrorismo de Estado durante a ditadura: “a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia.” (Relatório da CNV, vol. I, p. 965)

“A imposição do silenciamento por parte do Estado provinha de diversas técnicas, mas seu corolário foi a promulgação da Lei de Anistia”, opina Carol Bauer (p. 19). Uma falácia conciliatória teria lançado uma pá de cal sobre a possibilidade dos familiares das vítimas conquistarem a tão demandada justiça. O efeito concreto da lei de Anistia foi a impunidade dos agentes da repressão que cometeram crimes a mando do Estado ditatorial, ilegalmente instaurado no poder desde o golpe de 1964.

O livro de Carol Bauer nos convida a pensar sobre “um passado que não passa”, “uma expressão cunhada por Henry Rousso” que descreveria à perfeição a atualidade brasileira. O retorno do autoritarismo, o descaso pela soberania e pela legitimidade concedidas pelo sufrágio universal, o desdém pela participação popular nas decisões públicas, tudo isso recoloca na mesa de jogo, no campo de batalha, a questão dos usos políticos da memória. 

Mas tem mais: outra questão crucial que precisamos colocar é a de nossos aprendizados com o passado: a História pode ser mestra da vida? Estudar sobre o passado pode ter um efeito pedagógico, de orientação para nosso presente? Só através de um trabalho que se esforce por “melhorar o ontem”, na expressão de J. Rusen (p. 110), nos permitirá ter um futuro melhor? Disso poderia decorrer inclusive um imperativo ético, ou seja, o dever de memória? E disso decorreria também o direito à verdade como direito cívico básico? Poderíamos, para retomar o mito grego, criar políticas públicas que instituíssem a necessidade de um esforço coletivo contra sermos submergidos pelas águas de Lethe, o esquecimento, filha de Éris, a Mãe das Discórdias?

Nos mitos gregos, encontramos também uma deusa da memória, Mnemosyne, a mãe das musas (e, por conseguinte, da música). É de Mnemosyne que escorre, como de uma fonte exuberante, a capacidade humana para a mnese, a recordação, o trazer-de-volta-ao-presente de fragmentos do vivido pretérito, em um processo que os helenos chamavam de anamnese. Seria um desvio digressivo desnorneante tecer comentários sobre a importância da anamnese para filósofos gregos como Pitágoras e Platão, mas vale a pena relembrarque o próprio conceito de Verdade deles tinha a ver com a negação do esquecimento: o termo grego alethéia refere-se à negação de lethes, o olvido.

Verdade exige memória, acesso ao passado, sem os interditos que autoridades culposas desejam antepor aos museus, às bibliotecas, aos arquivos, aos fotogramas, aos documentos e documentários. Estamos, em todo e qualquer presente, em plena guerra da memória, ou seja, as narrativas sobre o passado histórico são concorrentes, antagônicas, opostas. Não faltam historiadores, por exemplo, que desejam empurrar para o olvido o fato de que agentes do Estado, durante a ditadura, praticaram crimes contra a humanidade que são, segundo a Constituição de 1988, imprescritíveis e não passíveis de anistia.

Uma possível  apologia da História – para lembrar o título do livro de Marc Bloch – veria no passado não o imutável, mas aquilo que está em disputa. E mais: aquilo que ainda não se cumpriu, aquilo que os seres humanos tentaram realizar sem sucesso, não está acabado e perdido – promessas de justiça que foram feitas outrora podem e devem ser reavivadas agora. No passado, onde jaz “o cemitério de promessas não cumpridas”, como diz Ricouer, também as sementes de utopias não desabrochadas estão largadas ao solo. Falta só abrirmos um buraco na terra e começarmos a re-cultivá-las. Rumo ao mundo possível e viável de uma sociedade da transparência – e não da vigilância; da busca comum pela verdade, e não pelos acessos restritos ao conhecimento, autoritariamente impostos pelos guardiões das Portas da Lei; de convívio filantrópico com a Outridade em sua louvável e defensável sociobiodiversidade. Ricouer e Benjamin concordam que é função do intelectual “despertar no passado a centelha de esperança”, pois:

“Não somente os homens do passado, imaginados em seu presente vivido, projetaram um determinado porvir, mas também sua ação teve consequências indesejadas que frustraram seus projetos e decepcionaram suas esperanças mais caras. O intervalo que separa o historiador desses homens do passado aparece, portanto, como um cemitério de promessas não cumpridas. Não é mais tarefa do historiador de gabinete, mas certamente daqueles que poderíamos chamar de educadores públicos, aos quais deveriam pertencer os homens políticos, despertar e reanimar essas promessas não cumpridas.” (RICOUER, Condenação, Reabilitação, Perdão. Apud BAUER, op cit, p. 21)

 

Eduardo Carli de Moraes
Abril de 2018




SIGA VIAGEM:

Eliane Brum e Maria Rita Kehl são outras das melhores pensadoras do tema no Brasil de hoje, como evidenciam os trechos abaixo:

O general Eduardo Villas Bôas afirmou, em 19 de fevereiro, que os militares que atuarão na intervenção no Rio precisam de “garantias para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. O que significa essa declaração? Que haverá torturas, sequestros e assassinatos de civis nas favelas e comunidades do Rio de Janeiro como houve na ditadura civil-militar (1964-1985)? Que o general quer “garantias” para que as tropas possam torturar, sequestrar e assassinar civis em nome do Estado, na operação do Rio, sem responder por isso? Que o general quer quebrar a lei e oficializar o Estado de exceção?

crise da democracia é global, mas há algo de particular na crise de cada país. Já escrevi em artigo anterior que acredito que as raízes da atual crise da democracia no Brasil estão no próprio processo de retomada da democracia, após 21 anos de ditadura. As raízes da atual crise brasileira estão no apagamento dos crimes do regime de exceção e na impunidade dos torturadores e assassinos a soldo do Estado.

Ao retomar a democracia sem lidar com os mortos e os desaparecidos da ditadura civil-militar, o Brasil seguiu adiante sem lidar com o trauma. Um país que, para retomar a democracia, precisa esconder os esqueletos no armário – ou em covas clandestinas – é um país com a democracia deformada, no qual as fardas são sempre um ponto de instabilidade assombrando o cotidiano. Uma democracia deformada está aberta a mais deformações, como a história recentíssima do Brasil é pródiga em provar.

A desmemória não é um traço banal na história do Brasil. Ela costuma ser defendida como um “agora não é hora”, “este não é o momento”, “depois a gente cuida disso”. Foi assim com a Lei da Anistia, de 1979, que até hoje grupos da sociedade lutam para rever com o objetivo de fazer a justa responsabilização dos torturadores e assassinos do regime. O ato mais significativo para lidar com a memória do período de exceção foi justamente a Comissão da Verdade sobre os crimes da ditadura, que tanto preocupa o general, e a série de movimentos em torno dela, como as Clínicas do Testemunho pelo Brasil afora.

Esse processo de produção e documentação da memória sobre a ditadura foi, porém, interrompido pelo atual governo. O fato de que a democracia no Brasil supera os 30 anos sem lidar com o passado autoritário é um forte fator de desestabilização que costuma ser minimizado. Os efeitos do apagamento estão visíveis hoje nas ruas.

ELIANE BRUM.
Leia o artigo completo em El País: Esquerda, Direita e o embargo da memória

Maria Rita Kehl

“Todos Estados totalitários se apóiam na supressão do direito à informação. Só assim conseguem silenciar, pelo menos por um tempo, a propagação das violações, dos abusos, das violências contra o cidadão praticadas em “nome da ordem”, a revelar que na vida social, não há direito perdido que não tenha sido usurpado por alguém. Falta de liberdades, de direitos e de acesso à informação são elementos fundamentais na consolidação do terrorismo de Estado. Se o estabelecimento da verdade histórica, nas democracias, está sujeito a permanente debate, o direito de acesso a ela deve ser incontestável. A garantia do direito à verdade opõe-se à imposição de uma versão monolítica, característica dos regimes autoritários de todos os matizes. Ela exige a restauração da memória social, estabelecida no debate cotidiano e sempre exposta a reformulações, a depender das novas evidências trazidas à luz por ativistas políticos e pesquisadores.

Este é o estatuto da verdade buscada pela CNV: além da revelação objetiva dos crimes praticados por agentes do estado contra militantes políticos, estudantes, camponeses, indígenas, jornalistas, professores, cientistas, artistas e tantos outros – cuja prova está documentada em arquivos públicos, muitos deles considerados ultra-secretos – o relatório final produzido pela Comissão da Verdade pode restaurar um importante capítulo da experiência política brasileira.

A verdade social não é ponto de chegada, é processo. Sua elaboração depende do acesso a informações, mesmo as mais tenebrosas, mesmo aquelas capazes de desestabilizar o poder, e que por isso se convencionou que deveriam ser mantidas em segredo. Se o reconhecimento dos fatos que um dia se tentou apagar não costuma trazer boas notícias, em contrapartida a supressão da verdade histórica produz sintomas sociais gravíssimos – a começar pela repetição patológica de erros e crimes passados. Melhor encarar as velhas más notícias e transformar a vivência bruta em experiência coletiva, no sentido proposto por Walter Benjamin.

Para isto é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada, capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em experiência coletiva. “Para que se (re)conheça, para que nunca mais aconteça”.

MARIA RITA KEHL
LEIA O ARTIGO COMPLETO:
http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/mkt_direito_a_verdade.pdf



EPÍLOGO

“A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas.

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”

Walter Benjamin (15 de julho de 1892 — 27 de setembro de 1940)

Leia o texto “Artigos Sobre História” em A Casa de Vidro:

https://acasadevidro.com/2015/07/15/walter-benjamin-1892-1940-teses-sobre-a-historia/





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Ilustração: Carlos Latuff

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE – Relatório completo (2014)

ACESSE JÁ – VOLUME 01: http://bit.ly/1Hhtxcz.
VOLUME 02:http://bit.ly/1GIXnbI.
VOLUME 03: http://bit.ly/1IMTBgT.

SINOPSE: Instalada em maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade procurou cumprir, ao longo de dois anos e meio de atividade, a tarefa que lhe foi estipulada na Lei no 12.528, de 18 de novembro de 2011, que a instituiu. Empenhou-se, assim, em examinar e esclarecer o quadro de graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.

Com apoio de um diligente conjunto de consultores e assessores, e de colaboradores voluntários, nós, conselheiros da Comissão, por designação presidencial, dedicamo-nos à busca de um grande volume de documentos, tomamos centenas de depoimentos, realizamos audiências públicas por todo o território nacional, dialogamos intensamente com a sociedade, buscando fazer de nossa missão fator de mobilização da sociedade brasileira na defesa e na promoção dos direitos humanos.

Agora, também em cumprimento à lei, apresentamos, em três volumes, o relatório que contém a enumeração das atividades realizadas pela Comissão, a descrição dos fatos examinados e nossas conclusões e recomendações.

Integraram a CNV: José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti, Maria Rita Kehl, Pedro Dallari, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Cardoso.SITE OFICIAL: http://www.cnv.gov.br/



TESTEMUNHOS

Dulce Pandolfi (historiadora) e Lúcia Murat (cineasta)

HISTÓRIA DA ARTE PARA DUMMIES

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A ARTE DE PABLO AMARINGO (1943 – 2009)

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Amazónica Romantica By Pablo Amaringo.
Angeles Avatares By Pablo Amaringo

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Ayahuasca Raura By Pablo Amaringo

Pablo Amaringo Painting

Featured in the book 'The Ayahuasca Visions of Pablo Amaringo' by Howard G Charing & Peter Cloudsley

Los Grados del Curandero By Pablo Amaringo.
Misterio Profundo By Pablo Amaringo

Nukno Maschashka By Pablo Amaringo

Featured in the book 'The Ayahuasca Visions of Pablo Amaringo' by Howard G Charing & Peter Cloudsley

VA5.06 EncantoCuraturo, 10/21/09, 1:14 PM, 8C, 6992x9727 (973+1173), 138%, wtemp3, 1/12 s, R67.3, G38.5, B50.6

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Sumac Icaro by Pablo Amaringo Templo Sacrosanto By Pablo Amaringo
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Unicornio Dorado By Pablo Amaringo. Featured in the book The Ayahuasca Visions of Pablo Amaringo by Howard G Charing
Yana Huarman By Pablo Amaringo.

PABLO AMARINGO (1943 – 2009), artista peruano. Obras reproduzidas do livro de Howard Charing e Peter Cloudsley. “The Ayahuasca Visions of Pablo Amaringo”. Inner Traditions. Vermont. 2011. Site oficial: http://www.ayahuascavisions.com/

“Pablo Amaringo is one of the world’s greatest visionary artists, and is renowned for his highly complex, colourful and intricate paintings of his visions from drinking the Ayahuasca brew. Pablo Amaringo trained as a curandero in the Amazon, healing himself and others from the age of ten, but gave this up in 1977 to become a full-time painter and art teacher at his Usko-Ayar school.” Amazon Convergence

Siga viagem:

PABLO NERUDA ILUSTRADO: PALAVRAS DESENHADAS

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“Prêmio Nobel de Literatura, o chileno Pablo Neruda foi não só um dos maiores poetas da história humana, mas também um homem de extraordinário insight sobre o espírito humano – por exemplo, a sua notável reflexão sobre o que um encontro da infância lhe ensinou sobre por que fazemos arte, bastante possivelmente a mais bela metáfora para o impulso criativo já confiada ao papel. Pablo Neruda: Poeta do Povo, de Monica Brown, traz ilustrações absolutamente deslumbrantes e lettering pelo artista Julie Paschkis. A história começa com o nascimento do poeta no Chile em 1904 e traça sua evolução como escritor, seu despertar político como ativista, seu profundo amor por povos e línguas e pela luminosidade da vida.” – Maria Popova, Brain Pickings

‪#‎PensamentoVivo! >>>‬ “A vida sem festas é um longo caminho sem hospedarias.” – DEMÓCRITO (460 a.C. — 370 a.C.)

Demócrito em pintura de Antoine Coypel, 1692.

Demócrito em pintura de Antoine Coypel, 1692.

O FILÓSOFO SORRIDENTE: Uma lenda famosa contrasta o riso de Demócrito ao choro de Heráclito. Demócrito jovial, Heráclito deprê: são as caricaturas dos filósofos que, atravessando as gerações, tornaram-se proverbiais. Até Vieira dá sermão mencionando-os:

Hendrick ter Brugghen_Heraclitus & Democritus (1628)“Entrando pois na questão, se o mundo é mais digno de riso ou de pranto; e se à vista do mesmo mundo tem mais razão quem ri, como ria Demócrito, ou quem chora, como chorava Heráclito; eu, para defender, como sou obrigado, a parte do pranto, confessarei uma cousa e direi outra. Confesso que a primeira parte do racional é o poder rir; e digo que a maior impropriedade da razão é o riso. O riso é o final do racional, o pranto é o uso da razão… Quem conhece verdadeiramente o mundo, precisamente há-de chorar; e quem ri, ou não chora, não o conhece.” (VIEIRA, Antonio. Sermões. Leia-o inteiro aqui. )

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SEMPRE NA ESTRADA: Demócrito gastou todo seu patrimônio em grandes viagens, feitas com o desejo de se instruir em diversas regiões e com uma multiplicidade de povos. Tanto que chegou a viver 5 anos no Egito.

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NÃO SE DISPENSAM AS FESTAS: “O homem é sábio porque se educou a apreciar mais determinados prazeres do que outros. Demócrito, em suas sentenças, demonstra um sentido estético da vida e propõe uma educação estética também. Ele privilegia o prazer de contemplar belas obras. São belas as ações virtuosas, e ficam ainda mais belas cantadas pelo sopro sagrado de um poeta inspirado. (…) Demócrito também aprecia especialmente os prazeres que são mais raros… aqueles prazeres que se adequam perfeitamente a determinadas ocasiões (kairós), não os prazeres cotidianos mas aqueles da celebração, os prazeres sagrados. Por isso, Demócrito não dispensa a festa.” FERNANDO SANTORO em Arqueologia dos Prazeres, da editora Objetiva.

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William Adolphe Bouguereau (1825-1905) – The Youth of Bacchus (1884)

“A vida sem festas é um longo caminho sem hospedarias.” – DEMÓCRITO

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Selo postal grego em homenagem a Demócrito

NO FUNDO DO POÇO: “Na realidade não sabemos nada, já que a verdade jaz no fundo do poço.”

SEU DISCÍPULO ILUSTRE: KARL MARX: O autor d’O Capital devotou, em sua juventude, sua pesquisa de doutorado a uma análise comparativa entre as filosofias da Natureza de Demócrito e de Epicuro. Leia em PDF nas seguintes línguas: inglês (The Difference Between the Democritean and Epicurean Philosophy of Nature).

“ÀS CHAMAS COM O HEREGE!”: “Em um movimento de ardor fanático, Platão quis comprar e queimar todos os escritos de Demócrito.” (LANGE, F. História do Materialismo, pg. 11) // “Platão pretendeu queimar as obras de Demócrito pela incompatibilidade entre as ideias nelas expendidas e as suas próprias.” (LINS, Ivan. O Epicurismo.)

OBRA PRINCIPAL: Demócrito escreveu 50 obras, nenhuma das quais sobreviveu. A principal chamava-se “Diakosmos”.

PRINCIPAIS COMENTADORES: Bacon de Verulam, Frederich Lange, K. Marx.

democrito-bustoHARMONIA INTERIOR: A serenidade ou paz-de-espírito é o mais durável dos bens e só pode ser obtida por pensamentos e ações virtuosos. Assim rezava a cartilha ética de Demócrito, prefigurando a “ataraxia” epicurista.

SEM TEMOR NEM ESPERANÇA: Aquele que faz o bem sem ser empurrado pelo temor nem pela esperança tem a certeza de uma recompensa íntima.

QUEM EXPLICA A VIDA… é a física, e não a mitologia. Demócrito é um dos pais da ciência e muitos cientistas revolucionários, como Giordano Bruno (1548 – 1600), serão influenciados por ele.

COSMOLOGIA ATOMÍSTICA: Os átomos são imortais e infinitos em diversidade; movem-se velozes pelo espaço imenso; chocam-se, combinam-se, produzem turbilhões, separam-se, desintegram conjunções para formar novos agrupamentos… E assim “mundos inumeráveis se formam para depois perecer.” (LANGE, p. 17)

RECUSA DO NADA: “Nada vem do nada; nada do que existe pode ser nadificado. Toda mudança não é senão agregação ou desintegração de partes.” Demócrito

[“Rien ne vient de rient; rien de ce que existe ne peut être anéanti. Tout changement n’est qu’agrégation ou désagrégation de parties (16).” In: LANGE, Pg. 12]

CORTANDO A MAÇÃ: Segundo Demócrito, só é possível cortar uma maçã com uma faca pois há espaços vazios entre os átomos.

Demócrito
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“TUDO QUE EXISTE SÃO OS ÁTOMOS E O VAZIO: TODO O RESTO É HIPÓTESE.”
Demócrito

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“O Banquete” (Symposium) de Platão

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Pintura de Anselm Feuerbach que representa O Banquete ou Simpósio, diálogo de Platão

O Banquete, também conhecido como Simpósio (em grego antigo: Συμπόσιον), é um diálogo platônico escrito por volta de 380 a.C.. Constitui-se basicamente de uma série de discursos sobre a natureza e as qualidades do amor (eros). O Banquete é, juntamente com o “Fedro”, um dos dois diálogos de Platão em que o tema principal é o amor.

Tò sumpósion, em grego, é em geral traduzido como O Banquete, mas, no sentido atual, equivaleria a uma festa mundana, em que quase sempre se bebe mais do que se come. Trata-se, pois, de um festim na casa de Agatão, poeta trágico ateniense. Sócrates é o mais importante dentre os homens presentes. Entre outros, também ali estão Aristodemo, amigo e discípulo de Sócrates; Fedro, o jovem retórico; Pausânias, amante de Agatão; o médico Eriximaco; Aristófanes, comediante que ridicularizava Sócrates, e o político Alcibíades.

O exagero cometido na festa do dia anterior, sobretudo o excesso de bebida, fatigara os convidados de Agatão. Pausânias propõe, então, que, em lugar de beber, ficassem ali a conversar, a discutir ou que cada um fizesse algo “diferente”. A proposta de Pausânias é aceita por todos. Eriximaco sugere que fossem feitos elogios a Eros: os convidados deveriam fazer discursos para louvar o amor… – WIKI

O “MITO DOS ANDRÓGINOS”, EXPOSTO NO DIÁLOGO POR ARISTÓFANES, TRANSFORMADO EM ANIMAÇÃO

PAPO COM O PROF. ADRIANO RIBEIRO MACHADO (FFLCH/USP) NO PROGRAMA DA UNIVESP TV, “LITERATURA FUNDAMENTAL

TELE-PEÇA DA BBC, BASEADA NO BANQUETE:

BBC // Jonathan Miller’s play “The Drinking Party”

“LER É VIAJAR DE GRAÇA”, por Eduardo Carli @ A Casa de Vidro.com

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“Atlas of Wander”, de Vladimir Kush

Ler é viajar de graça, no espaço e no tempo. Viajar ao epicentro sangrento da Guerra de Tróia com Homero. Ir fazer turismo em meio aos tumultos revolucionários de 1830 a 1848 em Paris embarcando n’Os Miseráveis de Victor Hugo. É visitar o litoral da Argélia e conhecer a cidade de Oran em meio à Peste, nas páginas de lucidez pontiaguda de Albert Camus (e nas quais podemos nos relacionar com os empestados em quarentena, sem risco de contágio…).

É desperdício viajar só de carro ou avião, deixando atrofiar as asas da imaginação, se trens e bikes, livros e discos, transas e amores, filmes oníricos e substâncias psicotrópicas (para me limitar a somente alguns exemplares de um vasto reino de possíveis!) também fornecem-nos oportunidades preciosas de viagem. Com O Fauno de Mármore, passeei na Itália de modo meio feérico por uma semana, na companhia encantadora da prosa de Hawthorne, testemunhando Donatello e Miriam, casal que tem seu destino interconectado pelo sangue derramado, já que foram cúmplices na produção de um cadáver esmagado contra o chão do abismo a que foi lançado…

Quem já esteve na Itália para testemunhar um crime de tal pathos trágico como pude fazer nas asas de The Marble Faun através de alguma agência de viagem usada pela Classe A? Livro, minha gente, é que é veículo. Meio de transporte espantoso em sua capacidade de nos levar também em uma viagem pelo passado, pelo ausente, presentificado pelo verbo que permanece mesmo quando seu autor já é caveira na tumba. Ó paisagens lidas, ó lugares onde nunca estive mas pude vislumbrar através da janela dos livros, evoé!

Muitos dos escritores que eu adoro eram também adoradores de viagens, deleitando-se não só em realizá-las mas também em escrevê-las: de Melville a Cervantes, de Joseph Conrad a Mark Twain, viagens de toda estirpe são legião e recheiam algumas das mais célebres páginas já produzidas por pena humana. Algumas destas viagens são sinistras: dirigem-se rumo Ao Coração das Trevas do colonialismo ou à caçada insana a uma fera mítica como Moby Dick. Lendo O Vermelho e o Negro, fui levado pela mão por Stendhal a conhecer aquela região montanhosa, entre a França e a Suíça, onde Julien Sorel têm seu mundo íntimo lançado ao caos dos ímpetos díspares: o que escolher, a ambição mundana e a ânsia por enriquecimento – idolatrar Napoleão – ou abraçar os mistérios excessivos do amor nos braços de Mademoiselle Rênal? E não há trip ao Rio de Janeiro que se compare à viajar nos contos e romances de Machado…

Às vezes convêm desconfiar do escritor, que às vezes pode estar escrevendo sobre viagens mais com a fantasia desabrida do que rigoroso em sua consulta aos mapas e aos atlas. A viagem à Amérika que Kafka descreve em seu romance de estréia não pretende ser verossímil: seu autor nunca esteve in loco nos EUA e dá-se a liberdade de subverter a realidade, como naquela cena em que a Estátua da Liberdade, na baía de Manhattan, é descrita kafkianamente empunhando uma espada (símbolo da violência, da opressão) ao invés da tocha (pretensamente iluminista… a Statue of Liberty, afinal, é presente-de-francês e deveria servir para entoar um Liberté, Egalité, Fraternité em anglo-saxonês…). 

Embarcando em livros assim, nós expandimos nossos horizontes como se tivéssemos viajado de fato pelo espaço, na companhia dos atos e destinos de Kurtz ou Ahab, Ulisses ou Quixote. Ler é viajar de graça pra conhecer gente que no mundo não há, mas que vive uma vida que atravessa as gerações através de sua proliferação temporal e espacial pelas biliotecas, livrarias, HDs repletas de ebooks. Viajar pelo tempo e pelo Espaço, pela História e pelo Cosmos, é um dos serviços maiores que a literatura pode nos prestar. Seguir o chamado e responder “sim” ao convite é o jeito melhor para seguir à risca, ainda que sob restrições orçamentárias, as injunções exploratórias tão bem expressas por Mark Twain (e dotadas de um espírito que ecoa no Walden de Thoreau ou no filme Into the Wild – Na Natureza Selvagem):

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Dito isso, posso partir para a descrição de minha última viagem gratuita, cujo bilhete custou-me a bagatela de 6 dólares (graças ao abençoado sebo de Toronto, o MBV Books da Bloor Street). Como grande admirador da prosa de Hawthorne – em especial os livraços A Letra Escarlate (publicado em 1850) e The Blithedale Romance (já resenhado por mim no blog paralelo Awestruck Wanderer), devorei em poucos dias O Fauno de Mármore. Eis o último dos grandes livros do autor, publicado em 1860, 4 anos antes da morte de Hawthorne (e que na Inglaterra saiu com outro título: Transformation). O romance é o fruto literário mais significativo que Hawthorne criou enquanto morou na Europa e é publicado em uma época em que seu país de origem (os EUA, ou “Nova Inglaterra”, cuja realidade puritana é tão belamente exposta por A Letra Escarlate) estava prestes a vivenciar as fúrias da Guerra Civil (1861-1865).

Ler O Fauno de Mármore equivale a passar uma semana intensiva de imersão na Itália. Quem nos acompanha nesta jornada é um caudaloso rio narrativo, brilhantemente tecido pelo talento de Hawthorne. É um daqueles livros que fisga o leitor com seu verbo encantador e nos força a atravessar as páginas com velocidade e voracidade, em busca da solução dos mistérios que nos são propostos (alguns deles destinados a permanecer envoltos por uma neblina indevassável, enigmas sem resposta). O livro nos carrega, como se fosse um guia turístico de lábia altamente sedutora, por uma Itália repleta de estátuas e ruínas, crimes e pecados, seduções e conflitos.

A espessura descomunal do Passado deixa o Presente com outra cara: longe de estar “desconectado” do que foi, como ocorre na experiência tão epidêmica no mundo contemporâneo e resumível no termo imediatismo, o tempo Presente de Hawthorne está a todo momento em contato com o que sobreviveu hoje das épocas já transcorridas. O palco está montado para uma reflexão ampla sobre a vida e a arte (quem imita quem?); o pecado e a redenção; o acaso e o destino; a passagem do Tempo e as caveiras e estátuas que este processo deita pelo caminho.

A Roma de Hawthorne  é um espaço no território planetário repleto das ruínas de várias civilizações; lá descansam os ossos de etruscos, romanos e cristãos; lá o poder Papal não descansa de sua rixa contra os hereges e os pagãos; lá, a multidão deleita-se com a carnificina e não cessa de agonizar o Gladiador cuja estátua tanto estarrece os personagens de O Fauno de Mármore. Na companhia dos quatro personagens principais – Miriam, Donatello, Hilda e Kenyon – o leitor tem a chance de ser levado a uma vasta exploração de alguns dos tesouros artísticos da humanidade – e isso em meio às urgências de um presente de intriga e de crise.

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Roma

As catedrais e piazzas, os museus e galerias, por onde circulam os personagens desta intricada trama, são descritas pelo narrador com tanta arte que ficamos mesmo com a impressão de que a Itália é um grande museu a céu aberto, onde estão congregadas e iluminadas pela luz do sol e das estrelas algumas das mais significativas produções artísticas já geradas pela grande (e fratricida) Família Humana. A primeira característica do livro que salta aos olhos, logo nas primeiras páginas, é a densidade temporal que a narrativa carrega; o tamanho do passado é enfaticamente exposto por Hawthorne como imenso, demasiado esmagador:

“The state of feeling which is experienced oftenest at Rome is a vague sense of ponderous remembrances; a perception of such weight and density in a by-gone life, of which this spot was the centre, that the present moment is pressed down or crowded out, and our individual affairs and interests are but half as real, here, as elsewhere. (…) Side by side with the massiveness of the Roman Past, all matters, that we handle or dream of, now-a-days, look evanescent and visionary alike.” HAWTHORNE, The Marble Faun, Oxford World Classics, Chapter I, p. 8

Diante da enormidade do passado, o presente parece oprimido por um fardo: os vivos sentem-se indignos de durar – e de criar – diante de tal grandeza dos tempos idos. É difícil, em especial, ser um artista contemporâneo em um local onde a grandeza do passado com tanta loquacidade esmaga as evanescentes pretensões dos vivos à criação de algo digno de durar. Em O Fauno de Mármore, três estrangeiros em Roma estão engajados em uma existência artística, criativa, criadora: Hilda é uma pintora que dedica-se ao estudo e à reprodução das obras dos Grandes Mestres do Passado; Kenyon é um escultor em busca do segredo para animar o mármore bruto com a chama da vida; Miriam é uma misteriosa femme fatale que carrega consigo nos subterrâneos de seu íntimo algum segredo inconfessável e trágico. Os três – Hilda, Kenyon, Miriam – estabelecem laços de amizade com um italiano misterioso, Donatello, que na primeira cena do livro é descrito por seus companheiros como quase idêntico ao Fauno esculpido por Praxíteles, na Grécia de dois milênios atrás, obra exposta no Museu do Capitólio em Roma, onde passam-se os primeiros episódios d’O Fauno de Mármore.

Em suas primeiras páginas, Hawthorne já desvela seu gênio ao situar sua narrativa simultaneamente nos terrenos histórico e mítico. O realismo estrito – como praticado pela escola naturalista de Émile Zola ou em certos romances “sociológicos” como As Vinhas da Ira de Steinbeck – é deixado para trás em prol de uma narrativa que beira o fantástico, mas que está sempre de raízes bem plantadas no solo do passado histórico da Humanidade (sobretudo o Passado que sobrevive como legado artístico).

Na estátua do Fauno, contemplada pelo quarteto de personagens, brilham certos mistérios que será o deleite de Hawthorne explorar através deste romance-viagem. Por exemplo: como é possível que uma matéria-prima bruta e sem vida, como o mármore, possa ser esculpida a ponto de parecer animada e a ponto de termos a ilusão de que ali habita o calor da vida? A obra-de-arte – representada aqui pelo Fauno de Mármore, que os personagens testemunham enquanto caminham e conversam pelo museu do Capitólio – parece estar

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“imbued with actual life. The whole statue conveys the idea of an amiable and sensual creature, easy, mirthful, apt for jollity, yet not incapable of being touched by pathos. (…) Perhaps it is the very lack of moral severity, of any high and heroic ingredient in the character of the Faun, that makes it so delightful an object to the human eye and to the frailty of the human heart. The being, here represented, is endowed with no principle of virtue… We should expect from him no sacrifice nor effort for an abstract cause; there is not an atom of martyr’s stuff in all that softned marble; he has a capacity for strong and warm attachment… and it is possible, too, that the Faun might be educated through the medium of his emotion. (…) Only a sculptor of the finest imagination, the most delicate taste, the sweetest feeling, and the rarest artistic skill – in a word, a sculptor and a poet too – could have first dreamed of a Faun in this guise, and then have suceeded in imprisoning the sportive and frisky thing in marble. Neither man nor animal, and yet no monster, but a being in whom both races meet, on friendly ground! If the spectator broods long over the statue, he will be conscious of its spell; all the pleasantness of sylvan life, all the genial and happy characteristics of creatures that dwell in woods and fields, will seem to be mingled and kneaded into one substance… After all, the idea may have been no dream, but rather a poet’s reminiscence of a period when man’s affinity with Nature was more strict, and his fellowship with every living thing more intimate and dear.” HAWTHORNE, The Marble Faun, Oxford World Classics, Chapter I, p. 10-11

O fauno é uma figura mítica, silvestre, mezzo homem e mezzo animal, que procura a companhia de sátiros e adoradores de Baco; costuma estar acompanhado por flautas ou outros instrumentos musicais portáteis, como grande apreciador que é das melodias, dos ritmos, das cadências, das danças; sua vida parece toda devotada às alegrias da carne e às jovialidades festivas e anárquicas. De bom humor, inspirados a dialogar de modo desembaraçado e poético, Miriam, Hilda e Kenyon, manifestam estarrecido sua impressão a Donatello de que este é parecidíssimo com a estátua do Fauno. Hawthorne tratará de sublinhar com recorrência este paralelismo, até mesmo para tornar mais intenso o contraste entre o Donatello que inicialmente conhecemos e aquele outro Donatello em que ele vai acabar se metamorfoseando como efeito de seu relacionamento com Miriam.

O que vale para o Fauno de Mármore, vale para sua encarnação Donatello. Este italiano, crescido em região pastoral e bucólica, é uma espécie de estrangeiro em sua própria pátria: Roma não é seu ambiente originário, o território familiar, para Donatello. Donatello, o fauno contemporâneo, representa a figura, sadia em sua simplicidade, sábia em sua gaia ciência, que aceita sem neura sua natureza híbrida, mescla de animal e de humano. Donatello encarna a aptidão para celebrar a existência em meio à natureza selvagem, não-domada, junto a companheiros de carnaval e bacanal. No romance, Donatello aparece como encarnação de um certo hedonismo, de uma tendência epicurista e pagã; é um caráter que não foi estragado por uma educação moralista, severa e puritana como aquela que forja a personagem Hilda, virginal mas severa, pura mas solitária, a Mulher Pomba devotada à Virgem Maria e ao ideal ascético….

Donatello é o bon vivant capaz de pôr regras morais em suspenso para cair na folia; é aquele capaz de fruição ampla de sua comunhão com a Natureza e com o outro. Fora do eixo em seu presente, Donatello é pintado pela pena de Hawthorne como representante de algo de ancestral, de arcaico, já quase perdido. Não seria despropósito relacionar Donatello, o Fauno redivivo, com o princípio dionisíaco de que fala Nietzsche e que era tão exuberante e potente nas obras-de-arte dos poetas trágicos gregos (em especial Sófocles e Ésquilo), sendo depois soterrado pela maré montante do racionalismo socrático e do moralismo judaico-cristão.

Hawthorne procura registrar as crises existenciais por que passa Donatello em suas experiências, algumas delas bem traumáticas, nesta Roma repleta de ruínas, acossada pelas malárias, perigosa pelo excesso de crimes que nela foram cometidos e que ainda se cometem. O que impele a narrativa avante, desde o começo, é o fascínio mútuo, cheio de pitfalls, entre Donatello e Miriam. Tanto é assim que O Fauno de Mármore contêm uma sublime descrição de relacionamento, em que Donatello e Miriam são descritos no fluxo de seus afetos, na correnteza de suas conexões e desconexões, nos precipícios da paixão e da violência.

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Pintura de Caravaggio, “Judith Decapitando Holofernes”

Se Donatello é comparado ao Fauno de Praxíteles, Miriam, por sua vez, é descrita como se pertencesse a uma linhagem de mulheres a um só tempo fortes e amaldiçoadas, oprimidas e vingativas. Miriam é equiparada à rainha egípcia Cleópatra, à lendária e bíblica Judith, ou à personagem histórica Beatrice de Cenci, executada em 1599 após ter participado, junto com as outras mulheres de sua família, do assassinato de seu pai abusivo, estuprador e incestuoso. Esta  última figura – Beatrice Cenci – estampa a capa do livro em sua edição da Oxford World Classics e, durante a narrativa, Hawthorne debruça-se sobre a pintura de Guido Reni para estabelecer vínculos misteriosos entre a Beatrice da pintura e a personagem Miriam. Pesquisando sobre o tema, descobri um artigo de  Charles Nicholl no London Review of Books que lança luz sobre o quadro (e a mulher nele representada):

Cenci

Pintura de Guido representando Beatrice Cenci (1577-1599), condenada a morte por parricídio.

 “Beatrice Cenci was – to take a sample of soundbites over the centuries – a ‘goddess of beauty’, a ‘fallen angel’, a ‘most pure damsel’. She was also a convicted murderer. This is a charismatic combination, not least here in Italy, and her name has lived on, especially in Rome, where she was born and where she was executed in 1599. The story as it comes down to us has the compactness of legend. It tells of a beautiful teenage girl who kills her brutal father to protect her virtue from his incestuous advances; who resists interrogation and torture with unswerving courage; and who goes to her execution unrepentant and borne along on a wave of popular sympathy. There have been many literary treatments of the story, the most famous of which is Shelley’s verse-drama, The Cenci, written in 1819. Other writers drawn to the subject include Stendhal, Dickens, Artaud and Alberto Moravia. The appeal of the story is partly lurid – a pungent mix of Renaissance sex and violence; a sense of dark deeds behind the closed doors of a prominent Roman family. It affords a glimpse, in Shelley’s words, of ‘the most dark and secret caverns of the human heart’. There is also the ethical conundrum it poses, its puzzle of legal guilt versus moral innocence….” – Charles Nicholl. Screaming in the Castle: The Case of Beatrice Cenci. Leia na íntegra

O tema pisado e repisado que apregoa “os opostos se atraem” aparece também em O Fauno de Mármore. Donatello e Miriam parecem sentir um magnetismo conduzindo-os à interconexão de seus destinos que é diretamente proporcional às suas radicais diferenças de caráter. Donatello, como o paralelo com a figura do Fauno insiste em nos contar, é alguém transbordante de energia animal, fisicamente vigoroso, surdo à moralidade, indiferente às leis, dizendo sim somente aos ímpetos de seu coração juvenil. “He made no impression of incompleteness, of maimed or stinted nature. In social intercourse, these familiar friends of his habitually and instinctively allowed for him, as for a child or some other lawless thing, exacting no strict obedience to conventional rules, and hardly noticing his eccentricities enough to pardon them. There was an indefinable characteristic about Donatello, that set him outside of rules.” (Chapter II, p. 13)

Já Miriam, talentosa pintora, é uma mulher que defende-se atrás de uma fortaleza, que esconde-se detrás de uma nuvem de mistério, que age como se não pudesse permitir a ninguém que lhe roube seus segredos inconfessáveis. “She kept people at a distance, without so much as letting them know that they were excluded from her inner circle. (…) Miriam, as fair as she looked, was plucked up out of a mystery, and had its roots still clinging to her. She was a beautiful and attractive woman, but based, as it were, upon a cloud, and all surrounded with misty substance…” (Chapter III, p. 20)

O mistério que envolve o passado de Miriam é uma das atrações que seduz o leitor a seguir virando as páginas de O Fauno de Mármore. Em um episódio magistral, que tem a força sinistra que encontramos na obra de um Edgar Allan Poe ou Hoffman, Miriam e Donatello vão em uma jornada subterrânea pela Catacumba de São Calixto. A obra de Hawthorne, nestas páginas, ganha uma dimensão arqueológica e antropológica: seus personagens estão em relação com um passado ainda mais antigo do que aquele representado pelo legado artístico que Roma abriga e defende. Penetrando nas entranhas da terra com suas pequeninas tochas em punho, descobrem a tenebrosa realidade que restou dos vivos de um outrora muito distante, agora reduzidos a ossos e caveiras, abrigados em sarcófagos e outros baús de restos.

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Sarcophagus of Junius Bassus, from Rome, Italy, ca. 359 CE. Marble, 3′ 10 1/2″ X 8′. Musei Storico del Tesoro della Basilica di San Pietro, Rome. SAIBA MAIS.

“Among all extinct dust, there might perchance be a thigh-bone, which crumbled at a touch, or possibly a skull, grinning at its own wretched plight, as is the ugly and empty habit of the thing. (…) They found two sorcophagi, one containing a skeleton, and the other a shrivelled body, which still wore the garments of its former lifetime.

“I hate it all!” – cried Donatello, with peculiar energy.  “Dear friends, let us hasten back into the blessed daylight!”

From the first, Donatello had shown little appetite for the expedition; for, like most Italians, and in especial accordance with the law of his own simple and physically happy nature, this young man had an infinite repugnance to graves and skulls, and to all that ghastliness in which the Gothic mind loves to associate with the idea of death. He shuddered, and looked fearfully round, drawing nearer to Miriam, whose attractive influence alone had enticed him into that gloomy region.” (CHAPTER III, p. 22)

Donatello é demasiado jovem para interessar-se pela morte, mas o magnetismo que emana de Miriam convoca o fauno a penetrar nos mistérios da mortalidade. O Fauno de Mármore está interessado a descrever os mecanismos do Destino que podem levar um amor a atingir tal intensidade de pathos que ele acaba dando como frutos ações criminosas. Como Otelo faz ao estrangular Desdêmona, ou como Clitemnestra vingando-se de Agamêmnon. Os ingredientes de uma tragédia estão postos: a vivacidade exuberante dos afetos de Donatello somam-se aos radicais mood swings de Miriam (personagem que um psiquiatra de nossos dias talvez diagnosticasse como vítima de transtorno bipolar) e o livro Fauno de Mármore logo é conduzido ao precipício do assassinato. A figura persecutória, saída das catacumbas, que passa a assombrar Miriam como uma sombra tenebrosa e malsã, será lançada ao abismo por este casal – Donatello e Miriam – que tornam seus destinos irremediavelmente entrelaçados através de sua cumplicidade no crime. Hawthorne não se apressa a aclarar os mistérios – pelo contrário, deleita-se em multiplicar os pontos de interrogação, conforme progredimos na leitura, pasmos diante das transformações radicais que acometem personagens que pensávamos conhecer bem…

O Fauno de Mármore relata-nos relacionamentos mutuamente transformadores: Donatello e Miriam, Kenyon e Miriam, são dois casais que servem à Hawthorne para exemplificar os complexos vínculos estabelecidos pelos humanos e de que modo estes forjam destinos e produzem fatalidades. Nem Donatello nem Miriam são figuras propriamente diabólicas ou malévolas, mas são conduzidos pelas circunstâncias e pelas relações humanas a uma situação onde um crime é cometido pelos dois, em cumplicidade, o que funciona no romance como uma espécie de clímax ou momento crítico. É a partir deste crime, deste pecado, que Hawthorne porá sua prosa altamente filosófica e reflexiva a meditar sobre “one of those fatalities which are among the most insoluble riddles propounded to moral comprehension; the fatal decree, by which every crime is made to be the agony of many innocent persons, as well as of the single guilty one.” (CHAPTER XI, p. 73) O que Hawthorne formulará mais adiante em termos ainda mais míticos: “Every crime destroys more Edens than our own!” (Chapter XXIII, pg. 165)

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Miriam e Donatello, unidos pelo sangue que derramaram (ele com as próprias mãos, ela com um olhar súplice), passam por altas reviravoltas íntimas. Um dos temas principais de Hawthorne é o quanto a experiência da transgressão, o cometimento do ato proibido, gera uma catarata de consequências, entre elas a vivência íntima de um remorso torturante. Donatello, que no começo do livro é descrito como jovial e alegre sátiro dançante, depois de seu crime parece perder toda sua joie de vivre. Isolado em sua torre, carrega em seu íntimo um segredo devastador, que afasta-lhe da comunidade antes vivenciada tão intensamente e impede-lhe a continuação das comunhões com os entes naturais e humanos. Torturado pelas angústias, sentindo o peso da culpa inconfessada, Donatello se metamorfoseia em um personagem aparentado com o Raskolnikóv de Dostoiévski em Crime e Castigo. Esta transmutação que acomete Donatello é uma das mais impressionantes ocorrências narradas por Hawthorne, que como um pintor que sabe contrastar a luz e as sombras, retrata mudanças radicais:

“In his sportive childhood, he had played among the little rustics, and been at once the wildest and the sweetest of them all; in his very infancy, he had plunged into the deep pools of the streamlets, and never been drowned, and had clambered to the topmost brances of tall trees without ever breaking his neck. No such mischance could happen to the sylvan child, because, handling all the elements of Nature so fearlessly and freely, nothing had either the power or the will to do him harm. He grew up, said there humble friends, the playmate not only of all mortal kind, but of creatures of the woods… It could be imagined that the valleys and hill-sides about him were a veritable Arcadia, and that Donatello was not merely a sylvan Faun, but the genial wine-god in his very person. (…) But Donatello was sadly changed, since he went to Rome. The village-girls now missed the merry smile with which he used to greet them…”(XXVI, p. 184)

Roma em 1860

Roma em 1860

De contrabando, Hawthorne também comunica toda uma crítica social, embutida em alguns dos pensamentos do personagem Kenyon, o escultor que dedica-se intensamente à criar um busto de seu amigo Donatello. A força do mito da Idade de Ouro, do Éden perdido, manifesta-se intensamente em Hawthorne – que não é escravo desta mitologia, mas sim emprega-a de modo idiossincrático e poético.  Kenyon julga que hoje o mundo é mais triste do que foi um dia. A Humanidade perdeu em alegria conforme cresceu em idade. Na era dos businessmen que papagueiam sem cessar seu time is money, na época de atrozes capitalistas que exploram a mais valia em sweatshops na Ásia e na África, encontramos nas páginas de Hawthorne uma singular defesa de uma vida mais lúdica, menos respeitadora de labutas cronometradas e jornadas de trabalho de 12 horas diárias. A impressão de Kenyon é a de que outrora a terra foi florida, hoje é mais uma wasteland repleta de ruínas, onde os vivos estão esmagados pelo Passado. Um hino à harmonia com a Natureza e a uma sábia hédonê ética parece-me emanar das seguintes palavras, que parecem, de certo modo, endereçadas a alguém no Olimpo… Quem sabe Gaia?

“…the once genial earth produces, in every successive generation, fewer flowers than used to gladden the preceding ones. (…) Mankind are getting so far beyond the childhood of their race, that they scorn to be happy any longer. A simple and joyous character can find no place for itself among the sage and sombre figures that would put his unsophisticated cheerfulness to shame. The entire system of Man’s affairs, as at present established, is built up purposely to exclude the careless and happy soul. The very children would upbraid the wretched indivual who should endeavour to take life and the world as (what might naturally suppose them meant for) a place and opportunity for enjoyment.

It is the iron rule in our days, to require an object and a purpose in life. It makes us all parts of a complicated scheme of progress, which can only result in our arrival at a colder and drearier region than we were born in. It insists upon everybody’s adding somewhat to an accumulated pile of usefulness, of which the only use will be, to burthen our posterity with even heavier thoughts and more inordinate labour than our own. No life now wanders like an unfettered stream; there is a mill-wheel for the tiniest rivulet to turn. We go all wrong, by too strenous a resolution to go all right.”

HAWTHORNE. The Marble Faun.
Chapter XXVI – The Pedigree of Monte Beni. Pg. 186.

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