O SAMSARA ROCKER: A gangorra entre egotismo e sororidade no filme “Her Smell” (2018)

Beijar o pó, flertar com a ruína, ir à falência, tudo isto pode destruir uma carreira artística de modo que ela nunca mais se levante. Mas pode também – o que é mais raro – ensinar preciosas lições para que da queda se faça uma reviravolta. Uma re-ascensão.

Se o sujeito é capaz de suportar vivo a seu queda, se sabe atravessar o declínio e não se deixar destruir por completo por sua fall from grace (para lembrar da bela canção do Blackberry Smoke), se conseguir tirar disso lições, pode voltar a subir. Como um Ícaro que tivesse recolado suas asas após o primeiro tombo para alçar vôo de novo.

A punk rocker Becky Something – em interpretação magistal de Elisabeth Moss – encarna este aprendizado com a queda em Her Smell (2018), o pulsante filme de Alex Ross Perry.

Atriz das mais impressionantes em atividade nos últimos anos, Elisabeth Moss (uma das protagonistas da série The Handmaid’s Tale – O Conto da Aia) empresta a Becky toda uma confusão de espírito e cacofonia de ideias que evoca aquela interpretação de Gena Rowlands no clássico A Woman Under The Influence – Uma Mulher Sob Influência (1974). Este filme, uma das obras-primas de Cassavetes, compartilha com Her Smell o desejo de erguer uma catedral fílmica onde o espectador possa mergulhar na decifração de um enigma em forma de mulher.

Mas o que em Cassavetes era focado na domesticidade, numa crônica das excentricidades domésticas da personagem pouco conformista de Rowlads (em uma das mais incríveis performances de uma atriz na história do cinema), em Her Smell torna-se um rolê pelos submundos da cultura rocker alternativa. Um passeio audiovisual que nos leva, aos turbilhões, aos camarins de backstage de uma estrela-do-rock em decadência.

Becky, afinal, é flagrada pelo filme em um momento de crise: tendo abandonado qualquer tipo de vida doméstica, ela está em uma turnê tensa e atribulada, liderando sua banda Something She, mas tretando feio com as outras duas minas que compõe o power-trio. A filha de Becky está sendo criada pelo pai, e este não tem recebido quase nenhuma ajuda de sua ex-esposa Becky – nem da financeira, nem da afetiva. Aquela criança, violentamente jogada ao turbilhão de um relacionamento difícil que ferve de mágoas e recriminações, que pega fogo em brigas nos camarins, também me evocou lembranças do enrolado enlace de Kurt Cobain e Courtney Love que gerou como prole Frances Bean Cobain.

Na época da gravidez, Courtney Love foi escorraçada na imprensa, sobretudo numa reportagem da Vanity Fair que denunciava que a vocalista do Hole teria usado heroína com Frances ainda em seu útero (saiba mais lendo o célebre artigo “Strange Love” de Lynn Hirschberg). O texto comparava o casal mais célebre do grunge com Sid Vicious e Nancy Spungen – e contribuiu para que Frances, por um breve período, tivesse sua custódia retirada dos pais pela justiça.

Em Her Smell, Becky também é flagrada em situações em que pode acarretar malefícios à sua prole – como naquela cena bem doida em que, interpretando as palavras de seu xamã, ela aponta o dedo para a criança, em atitude de Medéia, dizendo que aquela criatura seria a causa de sua queda.

Becky é descrita quase sempre num estado de chapação, de incontinência verbal e comportamental, a própria encarnação da falta de auto-controle. Mas aí está também seu charme, aí está o segredo de sua potência expressiva: ela se prodigaliza, ela não se economiza. Mas, continuando assim, vai se reduzir logo a cinzas. A menos que aprenda outra via. Queimando com este fogo, ela ameaça causar queimaduras na filha, além de quebrar os ossos das companheiras com quem tem tido dificuldade de coligar em autêntica aliança.

Na verdade, a causa da queda não é outra senão o egotismo: aquilo que leva o pop star a se achar o fodão ou a fodona, a crer que não precisa de ninguém em específico, que pode brilhar sozinho e todos ao seu redor são peças substituíveis. O filme é uma escola em que Becky aprende, a duras penas, a superar seu ego inflado, seu narcisismo doentio, que a faz ser tão desagradável a todos ao redor em várias cenas do filme.

Dinâmica, inquieta e ansiosa, a câmera acompanha a incontinência e a intemperança das atitudes de Becky, mostrando-nos sua ânsia insaciável por atenção e aplauso, flagrando seus choques e conflitos com os agentes culturais a seu redor. Com frequência ela destrata as outras musicistas, trata-as como se fossem substituíveis e pouco importante – já que ela, Becky, a fodona, seria a alma e a essência da banda, a única insubstituível.

As outras podem vazar, caso queiram, pois logo se encontram replacements. Nestas ocasiões, ela age como a patroa de uma banda vista como empresa – e o resto da sua banda é tratado como proletário que se pode despedir, pois tem muita gente na fila, padecendo no desemprego, que toparia este trampo.

Ao mesmo tempo que peca pelo excesso de auto-celebração e desprezo pelas outras, Becky está na escola da vida – e quando tomba ao chão, rasgando a testa, consegue re-erguer-se com a ajuda de outros. Ela saboreia esta experiência amarga e doce – amarga pois ninguém gosta de derramar o sangue da própria cabeça no chão após um tombo, mas doce pois é bom descobrir que, quando caímos, tem alguém que se preocupa o bastante para ir lá nos levantar, limpar nosso vômito e nos ajudar a encontrar uma estrada menos destrutiva.

E assim Becky vai aprendendo que os outros não são os meros coadjuvantes de sua história. Ela vai descobrindo, com crescente clarividência, que cada um é o protagonista de sua própria vida. Mas que qualquer vida pode certamente ir ao naufrágio quando este protagonista deseja que os outros sirvam apenas como coadjuvantes, submissos e subservientes diante da vontade tirânica da “estrela”.

Por isso, Her Smell nos joga no meio de toda a lama da fama. Uma lama que se recalca e se oculta nas narrativas tradicionais da Indústria Cultural, interessada em nos fazer crer em contos de fadas sobre as “estrelas”, em especial para que, através do consumismo, sejamos os idólatras que engordam os lucros destas empresas.

Keyart for Last Days.

Cabe aos cineastas de talento nos fornecerem um quadro mais realista da vida real dos famosos – como fez Gus Van Sant ao narrar os últimos dias antes do suicídio de Cobain em Last Days. Apesar da similaridade do contexto dos dois filmes, Her Smell Last Days distinguem-se enormemente: é que Her Smell, apesar de ser dirigido por um homem, é elevado, pelas atuações de Moss e suas companheiras de elenco, a uma espécie de emblema da sororidade (do latim soror, irmã, que torna-se, em francês, souer, e em inglês, sister). O filme é sobre a busca, através da música e usando como instrumento a “banda”, de um ruidosa sisterhood. 

De certo modo, o filme retrata um Samsara: Becky quase sempre ególatra, solitária em meio à multidão, criando obstáculos para a afeição com suas companheiras de banda, afundando-se em auto-destruição etc. Ela vai levando seus nervous breakdowns até perigosos limites, a ponto de, numa cena hiperbólica, acabarem por algemá-la. Como uma fera acuada por aqueles ao seu redor, que frequentemente se mostram oportunistas e control freaks, ela se revolta: Becky esperneia contra qualquer vontade que se oponha ao seu projeto egóico e grandiloquente de “brilhar”.

A tal da sororidade, da sisterhood, fica sendo, no filme, uma espécie de Nirvana inencontrável. Ou melhor: um ideal que paira no horizonte, em direção ao qual o aprendizado de Becky caminha, trôpego e cambaleante, e cuja vivência o filme reserva para poucos momentos de êxtase grupal sobre o palco.

Pois se Her Smell reserva ao espectador um final semi-feliz, uma catarse dos sofrimentos prévios, se após nos conduzir pelo labirinto, angustiados com Becky, nos conduz às explosivas cenas finais, onde as mulheres sobre o palco tornam-se unas através da música punk e dos bonds invisíveis entre elas, este desfecho-em-felicidade só é possível pelos sofrimentos que Becky pôde transformar em sabedoria. Ainda que esta possa ser provisória, precária e perdível, Her Smell nos entrega um final que comunica esperança: da cacofonia de irracionalismos em que estava atolada, em seu Samsara pessoal, Becky encontra jeitos de abrir caminhos para a união solidária através da arte. Descobre que sem suas amigas ela não é nada. Que ninguém é porra nenhuma sozinho.

Donde aquele “ritual” de sororidade que precede a entrada no palco para a cena final, ritual que aquece o organismo coletivo para o glorioso revival de uma “estrela” que, se segue a queimar, é pois aprendeu que ninguém queima sozinho – que uma fogueira artística exige incendiários unidos.

O ritual consiste numa roda de mulheres que expressam sua co-dependência e sua co-confiança, cada uma diz às outras: estou aqui para você, e agradeço por estarem aqui comigo. É uma terapia contra as solidões do egotismo, contra tudo que nos prende no desastroso desejo de gozar dos privilégios excludentes, ao invés de investir no benévolo acordo de compartilhar com outros dos bens comuns e dividíveis.

Esta punk rocker, falível, imperfeita e cheia de explosões, no rollercoaster de sua gangorra de ânimos, quase sempre chapada e um pouco confusa com seu próprio mundo subjetivo, aprende na sarjeta a valorizar os outros que, pela vida afora, destratou, feriu e magoou.

Através do filme, ela é mostrada no processo dinâmico e confuso de atravessar este seu Samsara não apenas como espectadora de uma catástrofe, mas como a protagonista de sua própria existência, responsável por forjar vias para algum satori possível. Aprendendo, na escola cruel e salutar das feridas, que um excesso de “protagonismo” aniquila qualquer projeto de coletivismo comunitário. Que querer ser protagonista demais expulsa os outros para a condição de subservientes coadjuvantes, mas que esta experiência, para os outros, por dentro deles, é inaceitável – pois são, como já dito, os protagonistas de suas próprias vidas e não querem ser relegados às sombras.

Aprendendo, como uma rolling stone do movimento riot grrrl, que o mais importante não é estar solitária sobre um pedestal frio, mas sim o estar solidária em um projeto de comunhão estética com suas amigas, Becky acaba se tornando símbolo de amadurecimento emocional.

Becky precisou tomar aquele tapão na cara de Marielle para dar uma acordada para o fato de que sozinha ela nunca estaria num pedestal, mas sim numa sarjeta. Se insistisse em seu egotismo, em sua vaidade, em seu pesado eu samsárico, ela seria ceifada pelo sistema e seria abandonada como uma uva passa podre, para que os próximos pop stars pudessem avançar na fila e ter seus 15 diazinhos de fama.

Elisabeth Moss plays Becky Something, a punk singer struggling with substance abuse, in the new film Her Smell. “It was the hardest dialogue I’ve ever had to learn,” she says.

O filme nos lança a este Samsara, a este labirinto, desta mulher lidando com seus demônios em público, rodeada por câmeras, com várias ocasiões em que está sob as atenções dos holofotes e permeada pelos gritos, uivos, vaias e palmas de uma platéia cacofônica.

Her Smell não consegue se alçar mais alto por causa da música, que não está à altura da performance da atriz – faltou, para Elisabeth Moss, uma trilha sonora à altura de sua atuação. Faltaram composições melhores, letras mais fortes, de modo que o filme vale mais por seu lado dramatúrgico do que propriamente por seu valor musical – em minha opinião, faltou ao projeto conseguir gerar uma trilha-sonora que tivesse algo daquilo que fez de Live Through This, do Hole, o lendário álbum grunge-punk de 1994, uma espécie de obra-prima da angústia feminina musicada.

“Even if you have serious reservations about punk-rock brats living on major-label largesse or believe profanity is the last refuge of the inarticulate, the sheer force of Love’s corrosive, lunatic wail — not to mention the guitar-drum wrath unleashed in its wake — is impressive stuff, a scorched-earth blast of righteous indignation as feral and convincing as anything in Johnny Rotten’s bark-and-spittle repertoire. (…) Even before she ascended to celebrity spousehood, Love was the scarred beauty queen of underground-rock society, a fearless confessor and feedback addict whose sinister charisma — part ravaged baby doll, part avenging kamikaze angel — suggested the dazed, enraged, illegitimate daughter of Patti Smith.” – DAVID FRICKE NA ROLLING STONE

Becky Something é de fato uma figura Courtney Lovesca: a gente não sabe se a ama ou se a odeia. Ambas são figuras polêmicas e polarizadoras. Estranhamente, apesar de sermos incapazes de contar com as mãos os defeitos destas mulheres pois acabam faltando dedos, em ambos os casos há algo extremamente sedutor, algo de irresistível mesmo, nas jornadas expressivas destas mulheres em seus Samsaras. Há o charme de subjetividades em incandescência que se recusam ao destino triste do mutismo.

Em um artigo para a Pitchfork em que deu nota 10.0 (máxima) para o álbum com que o Hole acabou por tatuar pra sempre a história da cultura de 1994, após o suicídio de Cobain e a morte súbita e precoce do Nirvana, Sasha Geffen explorou outro tema importantíssimo que está em Live Through This: o modo como a sociedade, machista e patriarcal, busca estigmatizar a expressão feminina de afetos como a fúria, a revolta ou a indignação como se fossem sinais de loucura, meros sintomas histéricos.

Courtney Love supostamente tirou o nome da banda – “Buraco” – da peça Medéia de Eurípides. Ao menos esta é a explicação intelectual que ela deu para um nome que também ressoa, como é evidente, repleto de conotações sexuais (uma piscadela de olhos para os orifícios genitais) e que pode evocar também algo da vida punk e sarjetosa de quem vive numa casa tão podre, tosca e insalubre que mais merece o nome de buraco.

A questão que Sasha Geffen destaca é o quanto, desde a tragédia grega, figuras como Medéia servem para encarnar o desatino feminino, a incapacidade de controle passional, a hýbris perigosa de criaturas pouco racionais, incapazes de sophrosyne, que cairiam frequentemente nos excessos funestos dos amores loucos e dos ódios selvagens. Visão masculina da mulher, permeada de paranóia falocêntrica.

Sasha, lendo Courtney Love como uma espécie de Medéia do grunge, afirma que ali não há delírio, mas sim anger. Se há hýbris (e como negar que haja?), pode ser o excesso de uma angústia justificada que quer se expressar. Como fez Cobain – e a história da música nunca seria a mesma. Courtney Love – que pôs sua foto de criança na contra-capa do álbum – foi em 1994 um emblema de mulher que ousa confrontar estereótipos de uma sociedade da dominação masculina que quer sempre domar a female anger através de estratagemas como a presunção de loucura. É mais fácil “tacar pedras na Geni” do que compreendê-la. Similarmente, é mais simples xingar Courtney Love de doida varrida, ao invés de ouvir o grito primal de catarse da angústia que atravessa sua arte em Pretty on the Inside, Live Through This e Celebrity Skin.

Evidente que a própria Courtney, rodeada pelas tentações de encarnar a boneca loura e sexy que faz sucesso nas paradas, muitas vezes se portou como a Marilyn Monroe do grunge, e até hoje vive dos louros e lucros de ter “se vendido” ao sistema, ao menos parcialmente. É esta gangorra entre o vender-se e o revoltar-se, e as contradições também de uma revolta cooptada e mercantilizada pelo próprio sistema que está sendo criticado pelas atitudes grunge-punk, que torna o destino de Courtney Love tão interessante.

“There’s no lunacy on Hole’s records. But there is anger, female anger, which, to a man’s ear, historically scans as madness. Lead singer Courtney Love often told reporters that she named her band after a line in Euripides’ Medea. “There’s a hole that pierces right through me,” it supposedly goes, though you won’t find it in any common translation of the ancient play. It’s apocryphal, or misremembered, or Love made it up to complicate the name’s obvious double entendre—either way, it makes a great myth. A band foregrounding female rage takes its name from the angriest woman in the Western canon, a woman so angry at her husband’s betrayal she kills their children just so he will feel her pain in his bones.

Like all female revenge fantasies written by men, Medea carries a grain of neurosis about how women might retaliate for their subjugation. It is easier, still, for men to express these anxieties by way of violent fantasy than it is for women to communicate their anger at all. ” – SASHA GEFFEN NA PITCHFORK 

Em Her Smell, temos algo bem similar ao universo Love-Cobainiano, e somos lançados também, por um cinema que parece honrar a tradição de Cassavetes, à tarefa difícil da empatia com uma mulher que seria mais simples – e mais cruel – simplesmente rotular de louca e pedir a camisa-de-força. É a tática dos poderes que, diante de mulheres excêntricas, diante de corpos insubmissos, diante de línguas com a lábia em chamas, tomam medidas para não ter que escutá-las, acolhê-las, ouvi-las em toda sua assustadora e maravilhosa dissonância.

Chamar uma mulher de louca é um subterfúgio canalha dos machos para não ter que reconhecer a legitimidade da expressão feminina, para forçar a tendência autoritária para que a mulher seja recalcada, trancada nos lares (ou nos hospícios), silenciada por psicotrópicos, tratado como mera louca, bruxa, feiticeira, a ser enjaulada para o bem da Sociedade dos Cidadãos de Bem…

Em Her Smell, este processo de expressão está no centro do foco: Becky Something não quer fazer apenas música pop chiclete, ela está em busca de algo explosivo, de algo impactante – e quando conhece as três Akergirls, que vão lhe servir de banda de apoio, ela revela toda a sua ambiguidade psíquica. A um só tempo, mostra-se extremamente ególatra e mandona, de um lado, mas intensamente ciente da importância do bonding entre as mulheres que ali tentavam fazer músicas juntas, por outro. Ela ali vacila, de modo humano demasiado humano, entre o egotismo e a sororidade.

Como jornada de aprendizagem da sororidade, o filme mostra de que maneira o ego polvilha obstáculos que nos prendem no labirinto do Samsara, sugerindo que a empatia e a solidariedade da sisterhood são o único caminho para a conquista, ainda que precária, de um êxtase ruidoso d’um Nirvana-mulher. O machismo estrutural reinante e a sociedade da dominação masculina não gostam de ser lembrados, mas é uma verdade autêntica: as mulheres muitas vezes aprendem melhor do que os homens as lições da escola da vida, conquistando uma sabedoria relacional que está vedada a todos os machos ainda presos na bolha horrenda e solitária da toxicidade machista, misógina e homofóbica.

Afinal de contas, todo o sofrimento samsárico de Her Smell é um processo purgativo, uma catarse fílmica, que a Psiquê de Becky atravessa, vivendo através disso como Courtney em 1994. Este atravessar de um Samsara, para sair transformado do outro lado desta mesma vida, parece-me ter tudo a ver com a descoberta de que a arte deve unir e não isolar. O aprendizado de que ser uma rock star sozinha com os ouropéis da glória é uma ganância cega e estúpida. Aquilo que conta de verdade é o que fazemos juntos, com forças somadas e vozes em coro, com instrumentos em sintonia e timbres em interrelação, no colorido caótico e lindo de vidas-em-teia, que só quando unidas tornam-se um organismo coletivo de energia indomável.

E aí, diante de filmes assim, dá vontade de lembrar ao Macho Man tóxico, ou ao Macho Palestrinha, ou ao Metaleiro Hiper Ogro, figuras que muitas vezes vomitam babaquices sobre a “masculinidade do rock”, que seria “viril em sua essência” ou alguma baboseira assim, que na verdade esta porra chamada rock’n’roll foi inventado por uma mulher negra e queer chamada Sister Rosetta Tharpe. E, desde então, através de Bessie, de Aretha, de Janis, de Big Mama, de Patti, de Siousxie, de Corin, de inúmeras outras mulheres roqueiras, revelaram-se ao mundo caminhos rock’n’roll para a expressão de uma atitude na vida onde a união faz a força (de fato e fora do slogan) – e onde a empatia é a única religião, já que tudo que realmente importa é fruto da ação coletiva e não da “genialidade” individual.

Sister Rosetta Tharpe, uma das precursoras do rock’n’roll.

Os movimentos punk e riot grlll empoderaram a voz feminina dissonante e subversiva. Propiciaram a ruptura dos estereótipos, em altos decibéis, fazendo arte belíssima através de artistas geniais como o Sleater-Kinney; como os projetos da galáxia Kathleen Hanna (Bikini Kill e Le Tigre) e da constelação Brody Dalle (The Distillers e Spinnerette); como o cometa The Gits (de trajetória tragicamente encurtada pelo assassinato contra Mia Zapata); do terromoto-popgrungy do Garbage (liderado por Shirley Mason); dentre tantos outros exemplos. São mulheres que ousaram romper com o modelo da beauty queen, que ousaram levar o tal do “lugar de fala” para um local bem menos delicado e domado do que os machistas desejavam.

E, no entanto, Samsara e Nirvana transcendem o gênero – e uma sabedoria que transcenda a egolatria, e que se abra para a ciência da interconexão entre nós, diz respeito a todos a despeito de nossas variadas genitálias e nossas diversas identidades de gênero e orientações sexuais. Obras de arte como Her Smell ecoam a mensagem de grandes álbuns da história da condição humana musicada por mulheres como Live Through This (Hole), como Sing Sing Death House (Distillers), como One Beat (Sleater-Kinney). Álbuns que amo e que muito me ensinaram – infelizmente, pouco ouvidos por aqueles que mais precisariam aprender com eles.

São álbuns que são monumentos à resiliência. Mas são também álbuns em que a mulher é protagonista não como indivídua isolada, mas como força coletiva. Mulheres pulsando na mesma batida, vivendo através dessa tragédia toda, aprendendo na prática os desafios de uma sororidade sempre por reconstruir. Lutadoras de um Samsara que só se faz Nirvana quando a força solidária do nós lança por terra a egolatria isolacionista do eu.

Esta encruzilhada fala algo sobre o destino trágico do Clube dos 27 (Kurt, Jimi, Janis, Jim, Amy…), mas aqui o que nos interessou foram as sobreviventes, as resilientes, as Ícaras. As que souberam pegar um ego que as conduziria à auto-destruição, que souberam estraçalhar este ego em pedacinhos e, de seus estilhaços no chão, souberam criar, com a ajuda dos cacos de outras, um cacofônico mosaico não só da condição feminina, mas da condição humana como vivida pelas mulheres. É arte que nos interessa a todos – e pobre de quem pensa que isso é “música para meninas”!

Nestas obras, manifestam-se mulheres que são diversas mas não dispersas – como gostava de dizer Marielle Franco. Mulheres cuja beleza se torna indomável e irresistível quando conseguem, enfim, na consumação da sisterhood através da arte que as coliga, atingir uma polifonia através da qual falam – sem mais medo, agora tão mais livres! – como mulheres ingaioláveis. Bucetas ingovernáveis. Forças de renovação em festa.

Quebrando as correntes da tragicomédia de uma existência onde não faltam forças alheias querendo reduzi-las à submissão, elas levantam-se juntas, pois pode ser clichê mas não deixa de ser o cerne do rolê: together we stand, divided we fall. Todo este grunge explodindo dos amplificadores, eletrizando o público, matando a apatia eletrocutada, é uma espécie de prova viva (e elétrica) de que sempre haverá anger de sobra para elas, mulheres insubmissas como Ana Tijoux e como Patti Smith, como Rebecca Lane e como Larissa Luz, como Joan Baez e como Bia Ferreira…

Mulheres que sabem da força que há na irmandade e que vão sempre se recusar, juntas, a aceitar caladas a subserviência. Elas seguirão, para o bem de todos nós (inclusive dos que pensam que estão sendo prejudicados ao terem feridos seus injustos privilégios), afirmando em alto e bom som uma autonomia sempre negada e sempre re-afirmada, sempre combatida por adversários escrotos e sempre renascida, do seio e das vísceras delas, refazendo seu vôo a partir de todas as cinzas.

Por Eduardo Carli de Moraes pra A Casa de Vidro
Goiânia, 16 de Março de 2020

“When women get angry, they are regarded as shrill or hysterical…One way around that, for me, is bleaching my hair and looking good,” Courtney Love told the New York Times in 1992. “It’s bad that I have to do that to get my anger accepted. But then I’m part of an evolutionary process. I’m not the fully evolved end.”




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRICKE, DavidLive Through This. In: Rolling Stone.

GEFFEN, Sasha. Hole’s Live Through This. In: Pitchfork.

HIRSCHBERG. Strange Love: The Story of Kurt Cobain and Courtney Love. In: Vanity Fair. 

SE LIGA NO SOM! – Jazz Liberatorz, Rincon Sapiência, Seun Kuti, Lenine, Madlib, Tássia Reis, A. Nóbrega, Francisco El Hombre e muito mais… [#1]

SE LIGA NO SOM!

Por Eduardo Carli de Moraes

Sou o tipo de criatura tão fissurada em música, o mais delicioso de todos os vícios, que dou razão à hipérbole Nietzschiana: “sem música, a vida seria um erro”. É como se a existência perdesse em qualidade e deleite sempre que o ar ao redor não está animado e vivificado com o som e o sentido (para lembrar a obra do mestre Wisnik) criados pela musicalidade humana em sua infinita inventividade.

No dia a dia, além de aprendiz de músico que arranha uns instrumentos de corda (violão, guitarra e ukelele) e assopra uma gaitinha, também compartilho várias canções e videoclipes na página d’A Casa de Vidro no Facebook, pondo na roda de convivas algumas das sonzeiras que tem encantado meus dias, compartilhando os meus pet sounds como uma espécie de radialista ou DJ da web.

Na série de posts que agora se inaugura e que escolhi intitular Se Liga No Som! em homenagem ao livro de Ricardo Teperman, que adoro e com o qual muito aprendi – planejo coletar num “postzão” os vários “postzinhos” dispersos pela página do FB. Pelo menos uma vez por mês, deve pintar aqui em www.acasadevidro.com uma nova “coletânea digital” com o que mais tem encantado meus tímpanos e instigado minha reflexão em termos de produção musical. Ofereço também alguns humildes comentários e pitacos que visam contextualizar as obras e esclarecer um pouco as razões que tenho para admirá-las, curti-las e recomendá-las.

Por hora, este é um catálogo de sons de estimação e estou me abstendo daquele viés da crítica musical que consiste em descer o cacete naquilo que a gente não gosta. Em futuras edições, talvez, eu me aventure à arte de falar mal daquilo que ofende meus ouvidos e que me parece enveredar por rumos lastimáveis. Por hora, convido a todos a subirem o volume e embarcarem em viagens nas asas do som, convocando à comunhão musical na vibe de alguém que chega a um amigo, na empolgação de uma fissura vigente, e diz: “pira nesse som!” ou “cê tá ligado nesta banda?”


CONEXÃO AFROBEAT TROPICAL

É hora da conexão Brasil / Nigéria nas Aerolíneas A Casa de Vidro: basta dar um play e viajar sônicamente na companhia do filho caçula do mito Fela Kuti, fundador e pioneiro do Afrobeat. Em “Black Woman”, cujo clipe foi inteiramente filmado em solo brasileiro, Seun Anikulapo Kuti e a banda Egypt 80 celebram o “black power” unido ao feminismo. Reverenciam não apenas suas mais célebres encarnações – Nina Simone, Angela Davis, Maya Angelou etc. -, mas também a cotidianidade do “struggle” e da “strenght” da mulher negra “comum”, que com tanta frequência encara uma vida em que é um espetáculo invisível de força, perseverança, fortitude…

ASSISTA O CLIPE:

“Black Woman”, com seus metais calientes, seus coros femininos, seu neo-Afrobeat de impecável apelo transcontinental, suas imagens de exuberância tropical e feminilidade em efervescência, parece-me que serve também para abrir novos horizontes para a arte do videoclipe filmado no Brasil no âmbito da música global.

Desde que Spike Lee subiu o morro com Michael Jackson – este último vestindo uma camiseta da Banda Olodum Samba Reggae – para filmar o clipaço de “They Don’t Care About Us”, atualmente com “apenas” 350.000.000 views no Youtube, tenho a impressão que o Brasil pode ser um “point” global para o avanço da arte da videoclipagem. Assistir aos trabalhos audiovisuais de um rapper como Rincon Sapiência (“Meu Bloco”, por exemplo) só fortalece essa impressão.

Para bombar esse cenário da afrolatinidade, resistente, em expressão transcultural e cosmopolita, como fazem Seun Kuti e Rincon Sapiência, como fez Spike Lee em seu joint-clipe, turbinemos a conexão com o Atlântico Negro (brilhantemente analisado por Paul Gilroy), seu passado, seu presente e sua futuridade! Esta aí, quem sabe, a mais fecunda fonte para a cultura brasileira seguir efervescendo e propondo caminhos inovadores para o resto do mundo. Nosso pioneirismo será estético ou não será!

“I write this song for you
(Black woman)
And I see everything you go through
(Black woman)
I see your tears and your joy and your pain and your fears
(Black woman)
And your strength to endure all the beatings and the war
(Black woman)
That’s why me respect you
and I believe in you and I see your struggle
I never fear your strength…”
Seun Kuti

BIOGRAFIA SEUN KUTI: http://www.allmusic.com/ar…/seun-kuti-mn0000999541/biography

 


LIBERTANDO O JAZZ PARA TRANSAS HIP

O trio francês Jazz Liberatorz, neste impressionante disco “Clin D’oeil” [literalmente, Pisco d’Olho] (2008), insere o jazz na era do movimento hip hop, libertando a tradição de quaisquer amarras dogmáticas e livrando o caminho para interessantes fusões. No Brasil, também tem gente explorando este casório: é só pensar em Tássia Reis e seu “Rap Jazz”  (veja o clipe abaixo) ou no radical fusion tropical do Metá Metá – Juçara Marçal pode não ser uma rapper, mas seu verbo está tão enraizado de ancestralidade que evoca, de fato, toda a história da expressão artística proveniente da diáspora pelo Atlântico Negro (cf. Gilroy).

Sobre esta bolacha do Jazz Liberatorz (dê o play abaixo), lê-se na AllMusic: “The album reclaims the brief love affair between hip-hop and jazz that took place in the U.S. in the mid-’90s, using deep basslines, sampled horns, and beat poet-styled phrasings from a slew of guest MCs. The sound is ultra-cool, combining European hip-hop’s love of slicker, more urban beats with the simplest jazz instrumentation — atomic chunks of sound and songs that are reworked to soften the edges of a rapped delivery and convert it to a strong flow through sheer musicality.” (Adam Breenberg)

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RITMO E POESIA: O VERBO QUE JOGA E DANÇA

Um artista que desponta no cenário hip hop brasileiro encarna à perfeição a união entre ritmo e poesia que, segundo a lenda, batizou o estilo musical rap (rhythm and poetry): Rincon Sapiência chega para mostrar toda a exuberância de um verbo que joga e dança, dando prosseguimento aos experimentos percussivos-linguísticos brilhantes de seus contemporâneos mais ilustres em terra brasilis, Criolo e Emicida. Rincon é de fato muito bom de rima, desliza bonito no flow e não deixa a contundência de sua mensagem impedir a manifestação de um senso de humor afiadíssimo e de uma miríade de referências. Estamos na era da música linkada e em cada uma de suas composições, repletas de fato duma Sapiência colhida em suas vivências como artista periférico e poeta dos guetos, Rincon ascende como uma das figuras que mais impressiona na nossa música. Um tiragosto:

LINHAS DE SOCO, de Rincon Sapiência [FB]

“O rap me deixa alto, tipo THC
E o palco é o octógono do UFC
A batida é um soco, rap, a voz da plebe
No flow, deslancho, tipo um gancho, um jab
Na rima, Jackie Chan, na Hora do Rush
E a dama pensando em mim, bem na hora do blush
Um trato nas duas, diz que me ama, idem
Fiel e amante, aí vocês decidem
Sem teclados, mouse, tive meu panorama
Lan house, não, sou do tempo do fliperama
Bote a ficha e jogue, muito antes dos blogs
Dava a cara a tapa e batia feito Balrog
Tipo GOG, rolo compressor passando
Eles ficam grogue, vendo estrelas girando
Linhas de soco, minha poesia irônica
Microfone é que nem o coelho na mão da Mônica
Corre, Cebolinha, ataco!
Se passam por malacos, mas escrevendo linhas são flacos
Cômico, rap chapa, hidropônico
Fome de rima, overdose de Biotônico
Queremos o “faz-me-rir”, então, corra
Mas, por enquanto, é só piada do Zorra
E nóis segue, assim, na humilde
Sem aquele “faz-me-rir”, estilo Mussum, cacildis
Ó, meu dom nas ruas se exibe
Tipo rei Roberto no calhambeque, bi-bi
Tô quebrando grilhões, mesmo sem os milhões
MCs Trapalhões, Dedé e Didi
Opiniões divide, ataques, revides
Meu corpo é fechado, eu sou que nem Thaide
Ouvidos são profundos, penetro que nem Kid
Sou raro, que nem os paletós no meu cabide
Vide bula, playboy, na moral
Rap tarja preta, efeito colateral
As cores no visual, que nem graffiti do OPNI
Dois tipos de MC, eu sou que nem um OVNI
Vou passeando nos discos, marciano
É a lua e eu, que nem Cassiano
Língua afiando, línguas fatiando
Dom é como vinho, deixe que passem anos
Mando o papo quente, não levo desaforo
Rap sem calor, não passam de calouros
Cuspo fogo, Dhalsim, no Street Fighter
Rap light, mas mata que nem Marlboro
Choro, o racista de olho vermelho
Nem olha no meu olho, eu sou que nem um touro
Hip-hop é a clínica onde fui internado
Música no sangue, África no soro
Sem jaco de couro, aqui estou
Na pegada punk, que nem Sex Pistols
Batida, rima, DJ e um bom flow
Quatro integrantes clássicos, que nem os Beatles
Longe da música, saudade, eu fico como?
Inseparáveis, como Lennon e Yoko Ono
Roube a música de mim, se quiser uma guerra
Não vai ter paz pelo Papa e nem pela ONU
O mundo não tem dono, Sampa não tem sono
Microfone broca, pistas eu detono
Na ZL, rap ruim, isso eu questiono
Xis é rei e eu serei sucessor do trono
Cena rap Malhação, isso eu cancelo
Minha cena é preta, clássica, Grande Otelo
Sem estresse, trabalho só me engrandece
Que nem Super Mario, depois do cogumelo!”

VEJA TAMBÉM:


EXCURSOM DO MADLIB PELO BRASIL 

“Me vê uma viagem sonora gratuita pela multidiversa musicalidade do Brasil, DJ!” É pra já; suba o volume e embarque nesta excitante excursom turística do Madlib:

 Flight to Brazil é um incrível álbum/mixtape, lançado em 2010, de 1h 20 min, parte da série “Madlib Medicine Show” – Número #2, assim resenhado por Thom Jurek:

“Madlib goes all out — all the way out — on this platter: there are elements of MPB, early folk styles and field recordings, funk, jazz, psychedelia, tropicalia, carnival, forro, bossa nova, samba, Afoxe, and more, from Brazilian sources. In addition to the killer found sounds from his four-ton stack of vinyl, the mad mixer produces a truckload of new beats and creates wave upon wave of phased atmospheres and textures to accent what he samples. His manner of taking recordings and artists and juxtaposing them to create something new is his trademark. Examples are as rich as segments of Hermeto Pascoal’s Slaves Mass against a track by O Quarteto from 1969, then adding a bit of trippy guitar, three different rhythm tracks, a flute solo by Carlos Jimenez, and some of Moacir Santos’ Opus 3, before touching on Emilio Santiago, Maria Bethânia, and on and on and on. There are psychedelic rock groups here whose music we may never hear anywhere but here, as well as some we already know — Som Imaginario, Modulo 1000, Inferno No Mundo, and many others. The entire thing is a wild head and heart trip, saturated in gorgeous melodies, killer, slippery rhythms, and sonics that are so spaced out, they could only occur on one of Madlib’s recordings. This second volume is more of a treat than its predecessor, perhaps because of, rather than in spite of, its exotic point of departure. This is a spliffed-out joy to listen to. Fans of Madlib’s more jazz-oriented modes may dig this a bit more than those who dig the hard-edged beats, but this is an adventure to appreciate as much for its ambition as what it offers.”

TRACKLIST >>>

Rio De Janeiro 0:00
Sao Paulo 12:13
Belo Horizonte 19:19
Porto Alegre 27:31
Salvador 33:16
Recife 40:43
Fortaleza 53:23
Brasília 1:04:24
Curitiba 1:14:20

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EN VIVANT – Grandes álbuns ao vivo

Odetta at Carnegie Hall (1960, Show Completo, 44 min)

“A towering figure of folk revival and Civil Rights Movement, the African-American singer-songwriter provided voice for the voiceless.” – AllMusic: http://www.allmusic.com/artist/odetta-mn0000888730/biography


UM SAMBA DE BOTECO

“Vou de boteco em boteco
Bebendo a valer
Na ânsia de esconder
As dores do meu coração

Conselhos não adiantam
Estou no final
Perdi o elã, perdi a moral
Meu caso não tem solução

Eu bebo demais pro meu tamanho
Arranjo brigas e sempre apanho
Isso me faz infeliz

Entro no boteco
Pra afogar a alma
As garrafas então batem palmas
Me embriago
Elas pedem bis…”

NELSON SARGENTO (FB)


“BOLSONADA”: IRREVERÊNCIAS ANTI-FASCISTAS

Duas das principais novidades do cenário musical cá de Pindorama – Francisco, el hombreLiniker e os Caramelows – juntaram suas forças irreverentes para um caliente petardo anti-fascista, “Bolsonada”. Presente no álbum Soltasbruxa, vemos nesta canção de bem-humorada contestação todo uma atitude que realiza, no campo estético, o que seria no âmbito político pura desobediência civil. Desrespeitando o “mito” da extrema-direita Brazileira, o asno vociferante Jair Bolsonaro, a música pretende reduzir a nada o discursinho de ódio, xenofobia, racismo, misoginia, armamentismo e homofobia daquele que pretende candidatar-se à presidência da República, ainda que não passe de uma caricatura grotesca de líder autoritário e desmiolado. Em um mundo em que vimos a eleição de Trump e em que a vitória da Frente Nacional de Le Pen na França é plausível, devemos ficar atentos e ativos diante da ameaça fascista que também aqui nos ronda; ao invés do militarismo do “às armas, cidadãos!”, super-estimado slogan bélico cantado na Marselhesa, sou mais um “às rimas e melodias, foliões!” Franciso El Hombre e Liniker apontam o caminho de um alegre sarcasmo, aguerrido e combativo, que faz da luta anti-fascista (por que não?) também uma festa.

“Esse cara tá com nada
sabe pouco do que diz
muito blablabla que queima quem podia ser feliz
desrespeito é o que prega
então é o que colherá!
jogo purpurina em cima
para o feio embelezar
esse cara escroto
mucho escroto!

Esse já não sei se bate bem
se é um fascista concedido
cargo alto e voz viril
vai lucrar do desespero
da loucura já civil
bolso dele sempre cheio
nosso copo anda vazio…

Mesquinhez, intolerância,
Bolsonada que pariu…

Esse cara escroto
mucho escroto!!!”

(FB)

Se a “Bolsonada” é pra embalar um quente e envolvente anarco-baile, “Triste Louca Ou Má” já é de outra vibe, uma canção e um clipes lindos de chorar. 



NAÇÃO PLURI-ÉTNICA, ARCO-ÍRIS TERRESTRE DA SOCIOBIODIVERSIDADE

Dois mestres que muito reverencio na cultura brasileira, ambos vivos e operantes, revelam em suas canções o quanto esta terra é de fato pluri-étnica, manifestação visível e audível de diversidade acachapante: Lenine e Antônio Nóbrega foram capazes de encapsular em canção aquilo que Eduardo Galeano chamou de “arco-íris terrestre”. Ouçam “Tuby Tupi” (em que Lenine brinca com o mote de Oswald de Andrade, “tupi or not tupi, that’s the question” e “Chegança” (umas das obras-primas de Nóbrega) e tenham contato com duas músicas que expressam com perfeição o conceito, tão propalado nos ideais e práticas do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, de sociobiodiversidade. 

(FB)

TUBY TUPI – Lenine

Eu sou feito de restos de estrelas
Como o corvo, o carvalho e o carvão
As sementes nasceram das cinzas
De uma delas depois da explosão
Sou o índio da estrela veloz e brilhante
Que é forte como o jabuti
O de antes de agora em diante
E o distante galáxias daqui

Canibal tropical, qual o pau
Que dá nome à nação, renasci
Natural, analógico e digital
Libertado astronauta tupi
Eu sou feito do resto de estrelas
Daquelas primeiras, depois da explosão,
Sou semente nascendo das cinzas
Sou o corvo, o carvalho, o carvão

O meu nome é Tupy
Guaicuru
Meu nome é Peri
De Ceci
Sou neto de Caramuru
Sou Galdino, Juruna e Raoni

E no Cosmos de onde eu vim
Com a imagem do caos
Me projeto futuro sem fim
Pelo espaço num tour sideral
Minhas roupas estampam em cores
A beleza do caos atual
As misérias e mil esplendores
Do planeta Neanderthal

“CHEGANÇA” – A. Nóbrega

Sou Pataxó
sou Xavante e Cariri
Ianonami, sou Tupi
Guarani, sou Carajá
Sou Pancaruru
Carijó, Tupinajé
Potiguar, sou Caeté
Ful-ni-o, Tupinambá

Depois que os mares dividiram os continentes
quis ver terras diferentes
Eu pensei: “vou procurar
um mundo novo
lá depois do horizonte
levo a rede balançante
pra no sol me espreguiçar”

Eu atraquei
Num porto muito seguro
Céu azul, paz e ar puro
Botei as pernas pro ar
Logo sonhei
Que estava no paraíso
Onde nem era preciso
Dormir para se sonhar

Mas de repente
Me acordei com a surpresa:
Uma esquadra portuguesa
Veio na praia atracar
De grande-nau
Um branco de barba escura
Vestindo uma armadura
Me apontou pra me pegar

E assustado
Dei um pulo da rede
Pressenti a fome, a sede
Eu pensei: “vão me acabar”
Me levantei de borduna já na mão
Ai, senti no coração
O Brasil vai começar


LISTAS


PSICOLOGIA DE MASSAS: VISLUMBRE DO DELÍRIO COLETIVO INDUZIDO PELA MÚSICA

Impressionante e acachapante o efeito que tem a espetaculosa “De Música Ligera”, do Soda Stereo, sobre a multidão em Buenos Aires: parece que o povo vira um megaorganismo, composto por 50.000 pessoas, saltando e delirando em uníssono. Os fãs de futebol que me perdoem, mas a música é capaz de realizar façanhas em termos de psicologia de massas que você nunca verá parecido em nenhum clássico Boca Juniors vs River Plate… (FB)


RAGIN’ AGAINST THE MACHINE

Nasceu o supergrupo perfeito para confrontar furiosamente o início da Era Donald J. Trump! Mesclando membros do Rage Against The Machine, do Public Enemy e do Cypress Hilll, nasceu o crossover de thrash metal, hip hop e punk dos Prophets of Rage. Com EP de estréia já lançado, e com Tom Morello sempre endiabrado nas seis cordas, a banda promete subverter o slogan oficial daquele fascista YanKKKe que hoje dorme na Casa Branca; eles querem botar na boca do povo um outro lema: “Make America RAGE again!”

“Prophets of Rage” (Official Video, 2016, +700.000 views)

por Eduardo Carli de Moraes – Abril de 2017


LEIA TAMBÉM EM A CASA DE VIDRO – SOBRE MÚSICA: 200 clássicos da MPB nos anos 60, 70 e 80Gil Scott-HeronNina SimoneJanis JoplinSergio SampaioBob DylanVioleta ParraFestival de Jazz de Montreal –  Bananada 2016 – Björk’s Biophilia.