Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
A Casa de Vidro lança a segunda parte do documentário “Tsunami da Balbúrdia”, retrato histórico a quente das manifestações em defesa da rede federal de educação (#30M)
Mais uma vez, no #30M, as aulas foram nas ruas. Nestas aulas de cidadania coletiva, nestas multitudinárias manifestações, as bandeiras eram muitas e o colorido humano terrestre superava em muito as cores do arco-íris celeste (como ensina Eduardo Galeano).
Queríamos “mais livros e menos armas”, “+ Freire – Guedes”, “Liberdade para Lula“, “Fora Bolsonaro”. Com entusiasmo e coesão, os “blocos” da luta carnavalizada fluíram pelas praças e avenidas, gritando palavras-de-ordem rimadas e ritmadas, feitas para chacoalhar toda a apatia dos fatalistas e todo o conformismo dos privilegiados. Entre os refrões, ressoavam:
– Trabalhador, preste atenção: a nossa luta é pela educação! – Trabalhador, preste atenção: o Bolsonaro só governa pra patrão! – Não é mole não! Tem dinheiro pra milícia, mas não tem pra educação!
– A nossa luta é todo dia, educação não é mercadoria!
Fotos acima: Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo no #30M
No documentário curta-metragem Tsunami da Balbúrdia, parte 2, tentamos captar um pouco destas efervescências cívicas que nos transformaram em gotas nesse mar de revolta. Pois, como Albert Camus ensinava, é na superação do individualismo típico do sujeito egoísta, fissurado em correr atrás de seu interesse privado, que podemos nos alçar para longe do pântano da absurdidade do mundo, rumo à esfera superior da revolta que nos solidariza: “eu me revolto, logo somos” (do livro L’Homme Revolté / O Homem Revoltado).
A vida só se renova com revolta contra as injustiças e as opressões que nos imobilizam. Quando animada por um espírito de solidariedade, a revolta é a força material que impele um princípio ético em sua tentativa de devir carne. Na Praça Universitária, enquanto os estudantes da EMAC (Escola de Música e Artes Cênicas) / UFG faziam a sua performance subversiva, vivi na pele aquela verdade dos existencialistas mais lúcidos e que ganhou sua mais bela expressão em Paulo Freire: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” (Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.)
A “Tropa de Choque” da Educação, empunhando escudos de papelão transformados em reproduções de capas de livros, vai na vanguarda da marcha, levando seus estandartes que sinalizam a vontade e o ímpeto de defender a cultura, a inteligência, a criatividade, nas figuras de George Orwell, Hilda Hilst, Michel Foucault, Cabral de Melo Neto, Mário de Andrade, Angela Davis, Paulo Freire, Augusto Boal, Cervantes, dentre outros.
Protestando também com muita arte, a galera da Faculdade de Artes Visuais deu expressão à palavra tsunami com uma grande onda que conectava os indivíduos ali presentes numa espécie de centopéia. O super-organismo da cidadania organizada e insurgente cantava canções irreverentes e ousadas como aquele adorável “ô Bolsonado, seu fascistinha, os estudantes vão botar você na linha!”
Em marchas repletas de beleza, em que ética e estética davam as mãos para fazer da cultura em movimento uma força de transformação social, estávamos unidos na diversidade. Questionávamos Weintraub, o Bobo dos Cortes, indignados com a tentativa de desmonte da rede federação de educação que está em curso. Assim como em Junho de 2013, não eram só 20 centavos, desta vez também podemos dizer: não são 3 chocolatinhos e meio.
Estar nas ruas fervilhantes de gente desperta e valente foi um bálsamo para as energias. É que nestes tempos de hegemonia da idiocracia neofascista e sua necropolítica, o pessimismo imobilizador poderia muito bem ter tomado conta, feito uma epidemia, matando no nascedouro qualquer capacidade de mobilização e resistência. Não foi o que aconteceu. Os Tsunamis da Educação foram gigantescos sopros de vida de um povo guerreiro e que não aceita o jugo do opressor, com protagonismo de uma “juventude que sonha sem pudor”, como canta a linda Flaira Ferro inspirada pelo tsunami recifense:
“na calada da noite
os estudantes fazem o futuro amanhecer
quem aprendeu a ler e escrever
sabe bem que analfabeto
jamais voltará a ser
mesmo que o destino
reserve um presidente adoecido
e sem amor
a juventude sonha sem pudor
flor da idade, muito hormônio
não se curva a opressor
pode apostar
a rebeldia do aluno é santa
não senta na apatia da injustiça
agita, inferniza e a rua avança
escola não tem medo de polícia
pode apostar
balbúrdia de aluno é o que educa
ensina ao governante que caduca
retroceder não é uma opção
respeito é pra quem dá educação.”
Aos historiadores do futuro que quiserem saber quais as causas da revolta destas gotas cidadãs que se uniram neste tsunami de gente, deixamos algumas pistas. Não se trata apenas de protestar contra os cortes nos investimentos públicos na rede federal de educação, mas de protestar um contexto mais amplo em que a educação já vive um “clima de Ditadura”, como argumentou Juan Arias em El País.
Através da idiocracia de extrema-direita encabeçada por Bolsonaro, Guedes, Damares, Moro etc., o que está em ascensão é uma Cruzada Obscurantista, uma lunática campanha para livrar o Brasil das várias faces de Satanás: na mente desses dementes, Satã é representado na face da Terra por Paulo Freire, Gramsci, o Marxismo Cultural, mas sobretudo o lulismo e o petismo. Gente de Deus? Damares, Edir Macedo, MC Reaça, Malafaia, Ustra… Há quem até mesmo diagnostique na loucura da “mitologização” de Jair Messias Bolsonaro um sintoma do cristofascismo à brasileira.
Estes fanáticos – tanto do Livre Mercado quanto de um Deus conexo à Teologia da Prosperidade – agora atacam numa espécie de Cruzada Anti-Iluminista, numa Aliança Terraplanista em prol do retorno da Inquisição, do fortalecimento da Klu Klux Klan, de “programas sociais” como o Arma Para Todos, o Escola Para Poucos e o Menos Médicos (especialidades Bolsonaristas).
A intentona de criminalização do pensamento crítico e dos docentes que facilitam o avanço da pedagogia crítica está a todo vapor, sendo que filósofos e sociólogos “esquerdistas” e “marxistas” são pintados como chifrudos comedores de criancinhas, “uma paranoia ideológica que enxerga ‘esquerdismo’ e ‘comunismo’ em tudo que cheire à defesa dos interesses populares pelo Estado, flertando com o fascismo e com o ‘darwinismo social’.” (FREITAS: 2018, p. 28)
Temos “movimentos destinados a cercear a liberdade docente como o Escola Sem Partido que, como bem destaca o prof. Luiz Carlos de Freitas, é financiado e apoiado por interesses empresariais e privatistas. Imensas maquinarias de desinformação e idiotização são postas em marcha – por exemplo pelo MBL, turbinado com os dollars dos Kocj Brothers – fortalecendo a viralização das fake news, do discurso de ódio e da noção de uma da “pós-verdade”.
Esse caos todo é destravado pela ação de uma “nova direita” repleta de “velhas ideias”, uma direita que fede a velharia por ser composta sobretudo por homens, brancos, ricos, pseudo-religiosos, ambiciosos e gananciosos até a patologia, e que idólatras de Mammon querem só saber da mercantilização de tudo. Quem tenta nos dominar hoje é uma Direita que une o neoliberalismo na economia e o conservadorismo tacanho na moral (ou “costumes”).
No âmbito educacional, além de desejar sucatear e precarizar as escolas públicas, para depois tentar justificar perante a sociedade a necessidade de privatização ou terceirização, esta Direita tende a idolatrar o Mercado com uma devoção cega com que também parece cair no abismo de idolatrias ainda mais estúpidas e nefastas. Para esses debilóides, Bolsonaro não é um calhorda apologista da tortura e da Guerra Civil, mas um “Mito” e um “Cidadão de Bem”, assim como MC Reaça é um “grande artista”, Olavo nosso “maior pensador” e Edir Macedo ou Silas Malafaia os próprios enviados do Senhor para conduzir-nos à salvação (desde que possamos pagar por ela).
Como escreve Freitas, em seu texto “Um Outro Horizonte Possível”, não podemos e não devemos nos submeter docilmente à lógica privatista e à tentativa de redução da escola ao modelo empresarial:
“A privatização da escola introduz formas de gestão empresariais e verticalizadas, ensina nossos jovens a praticar o individualismo e a competição, reforçando na sociedade formas de organização limitadas e injustas – sem falar da ampliação de processos culturais relativos à violência cultural e ao não reconhecimento das diferenças raciais e de gênero.
Por tudo isso, tal perspectiva é incompatível com a qualidade social que se espera de uma educação voltada para formar lutadores e construtores de uma sociedade mais justa, sob as bases da participação na vida coletiva – na escola e na sociedade – em estreita relação com sua comunidade, da qual a escola faz parte. A competição não é, nem do ponto de vista da convivência social, nem do ponto de vista educacional, um modelo que induza uma humanização crescente das relações sociais em uma ambiência democrática.
Se estamos compromissados com a democracia, todos os espaços da escola devem permitir a vivência da democracia; devem chamar os alunos para a participação em seu coletivo, permitindo o desenvolvimento de sua auto-organização e seu envolvimento com a construção coletiva, com espírito crítico. O conhecimento que se adquire nos processos escolares deve um instrumento de luta voltado para esses objetivos…
A escola pública, no presente momento histórico, é a única instituição educativa vocacionada a acolher a todos de forma democrática. As dificuldades que ela tem para cumprir essa tarefa devem nos mobilizar para uma luta que a leve a cumprir essa intenção com qualidade e não, pelo oposto, nos leve a apostar em sua destruição.”
LIÇÕES DE MILITÂNCIA: Florestan Fernandes e a escola pública
In: “Mutações do cativeiro: escritos de psicologia e política”,
de Maria Helena Souza Patto (São Paulo, Hacker/Edusp, 2000.)
Portador da palavra de despedida da USP a Florestan Fernandes, o professor do Departamento de Sociologia, José de Souza Martins, falou em agosto de 1995 da dificuldade de dizê-la, “porque nos despedimos de alguém que permanece e permanecerá.” (…) Conheço a coragem e a clareza com que esse “não-especialista longamente engolfado nas lutas pedagógicas”, como ele próprio se define, examina os descalabros crônicos da política educacional brasileira.
A crítica de Florestan Fernandes não é leve, condescendente, conciliadora ou epidérmica como costumam ser os diagnósticos dos problemas da educação escolar pública feitos por cientistas pouco críticos ou por tecnoburocratas que fazem carreira e defendem interesses particularistas em órgãos públicos que gerenciam o sistema educacional. Ele não soma com a idéia de que bastam mudanças técnicas superficiais aqui e ali para transformar o quadro desastroso da educação… Ele identifica os problemas pela raiz, nomeia-os e os combate de frente, sem meias palavras, sem eufemismos, embora sempre com intenção construtiva…
Em 1988, quando o governador paulista joga a polícia contra professores das 3 universidades estaduais em greve, a insolência de Florestan não fica atrás da de Marx em O 18 Brumário. O sentimento dominante em seus escritos sobre a escola é a indignação, pois “numa sociedade em que o Povo sempre foi zelosamente afastado dos direitos cívicos da cidadania”, a impostura de governantes e de suas equipes garante uma política educacional profunda e continuamente comprometida com a reprodução desse estado de coisas. (…) O compromisso de Florestan com os “de baixo” torna frequentes em seus textos expressões de combate: ele fala em “intransigência cívica”, “batalha sem quartel”, “protesto coletivo”, “luta com unhas e dentes”…
Ele sabe, como Agnes Heller, que quando se trata de fazer frente à injustiça, o oposto da personalidade autoritária não é a personalidade tolerante. É este traço que Antonio Candido exalta ao saudar no grande homem “a rara capacidade de criar o escândalo necessário e salutar, passando por cima do temível respeito humano quando se trata de afirmar o que é justo e verdadeiro.”
Silenciado pela violência policial-militar durante a década de 70, continuou a falar lá fora, incansável na análise e na denúncia da situação política do país, para voltar à carga aqui dentro nos anos 80 e 90, então como deputado federal constituinte, entre 1987 e 1990, e deputado federal reeleito para o período 1991-1994, no qual se prepara uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Palestras, conferências, artigos de divulgação e entrevistas dos tempos da Campanha e da volta ao país estão reunidos, retrospectivamente, em duas coletâneas: Educação e Sociedade no Brasil, publicada em 1966, e O Desafio Educacional, de 1989. As bases teóricas que articulam as idéias de Florestan nesses livros são radicalmente diversas, mas a causa é uma só: a luta intransigente em defesa da escola pública de boa qualidade em todos os níveis, sempre ameaçada pela tendência permanente – e tão atual – à “privatização do público”, que se concretiza em leis que desviam verbas públicas destinadas à educação escolar gratuita pela ação de um Estado “mecenas da escola particular e coveiro de suas próprias escolas”, que cede aos interesses comerciais de donos de escolas privadas, tidos por eles como “parasitas mal-intencionados”.
(…) No interior da reabertura política e do renascimento da organização operária nos anos 1980, a esperança de transformações sociais radicais se renova, e Florestan define a educação como meio da auto-emancipação coletiva dos oprimidos, para o que precisam de “uma consciência crítica e negadora do passado, combinada a uma consciência crítica e afirmadora do futuro.”
A escola de boa qualidade é um dos caminhos pelos quais as classes subalternas poderão adquirir consciência da espoliação. Não se pode defender a “educação para a liberdade” nos mesmos termos dos educadores liberais, uma vez que é preciso assinalar os limites da educação no mundo capitalista, o que as autoridades educacionais não fazem… Sem explicitar que numa sociedade de classes não se educa para a liberdade – pois que ela inexiste no plano social – entra-se no terreno da pura hipocrisia. “Educar para a liberdade”, no sentido socialista de Florestan Fernandes, significa lutar contra a exclusão do proletariado da esfera do ensino, não para incluí-lo numa escola qualquer, mas numa escola que veicule conhecimentos escolares voltados para a consciência social de classe e que tenha nos princípios democráticos o padrão da relação social entre professores e alunos.
Quando valoriza a escola como arma na luta de classes, Florestan não quer dizer que uma pedagogia socialista possa existir antes da sociedade socialista. Ele sabe que a sociedade capitalista impõe limites históricos à vida escolar e que a escola capitalista não pode ser incompatível com os interesses do capital. O que ele quer dizer é que “é possível operar na escola com valores socialistas”, ou seja, existe um âmbito maior ou menor de liberdade relativa que permite antecipar certas mudanças em direção a uma educação para a liberdade.
Ele também não quer dizer que a formação da consciência crítica do filho do trabalhador caiba à escola; ela cabe principalmente ao partido político e ao sindicato operário, podendo o professor juntar-se ao esforço sistemático de educar o trabalhador para que ele seja capaz de criticar a ordem social existente, isto é, de “manter posição ofensiva nas relações de classe, (…) superar a ‘capitulação passiva’ presente no dicionário de todos os brasileiros.”
Ao defender essa concepção de ensino, Florestan aproxima-se dos princípios da pedagogia do oprimido, a qual, para ele, “dialeticamente só pode ser uma pedagogia da desopressão”; aproxima-se também da educação para a resistência e a autonomia, tal como pensada por Adorno, com quem compartilha a preocupação com a desumanidade social: “o objetivo último da educação não está em ‘fazer a cabeça do estudante’, mas em inventar e reinventar a civilização sem barbárie.” São estas as palavras que encerram O Desafio Educacional…
(MARIA HELENA SOUZA PATTO: Edusp, 2000, pgs 119-123-138)
FLORESTAN FERNANDES: O SOCIÓLOGO MILITANTE,
por Vladimir Sachetta
“Antonio Candido, muito mais que um amigo de Florestan, distingue três momentos predominantes em sua trajetória: o primeiro, que se situa nos anos 40 – o momento do conhecimento – é o da construção do saber, com que Florestan constrói o seu e a possibilidade de saber dos outros; o segundo, nos anos 50 – o momento da pesquisa aplicada – é o da paixão pela aplicação do saber ao mundo e à sua compreensão; e o terceiro, a partir dos anos 60 – o momento do combate, o do saber transformado em arma.
É, portanto, a essas três etapas que ouso acrescentar uma quarta: o da radicalização plena, em que o cientista social, educador e pensador, assume a identidade de tribuno e publicista.
Desde os anos 40, Florestan sempre esteve ligado aos movimentos sociais e reivindicatórios, legais ou ilegais, às organizações políticas de esquerda, clandestinas ou não. Cerrou fileiras ao lado de portugueses e espanhóis antifascistas, fez agitação e propaganda em campanhas memoráveis, como a da Escola Pública, trabalhou com o movimento negro.
Pagou um alto preço por isso. Foi preso após o golpe militar em 64, acabou afastado da Universidade cinco anos depois. Partiu para o exílio e, lá fora, continuou a fustigar a ditadura em meetings de protesto ou através de conferências. Retornou ao país e recusou-se a solicitar sua reintegração à USP, de onde não pedira para sair. Voltou a este campus pela porta do Diretório Central dos Estudantes com um curso sobre Cuba e sua revolução.
Percorrendo-se sua obra é possível perceber no livro “Nova República?”,editado em 1986, o último trabalho de cunho ensaístico. A partir dali, topamos com uma série de coletâneas de artigos de imprensa – só na Folha de S. Paulo foram mais de trezentas colunas na página 2, entre 1989 e 1995 – que revelam um publicista vigoroso, agudo, implacável e coerente. Cumpriu uma pauta de questões candentes, tratando dos assuntos mais variados. Aperfeiçoou seu estilo e, com a humildade dos grandes homens, o velho professor despiu-se dos vezos da academia para tentar falar uma linguagem mais próxima do povo. Dos de baixo, como dizia.
Filiado ao Partido dos Trabalhadores, Florestan tornou-se deputado federal constituinte em 1986. Seria reeleito em 1990. Nas campanhas, paupérrimas em recursos financeiros, reuniam-se, sob sua inspiração aglutinadora, as mais diversas tendências do arco ideológico de esquerda. Irmanadas em torno de um mesmo sonho: o da construção de uma sociedade nova, com igualdade e, principalmente, felicidade, como frisava Florestan. “Contra as idéias da força, a força das idéias”, foi o mote da campanha em 86. “Sem medo de ser socialista”, a palavra de ordem em 1990.
Assumiu a atividade parlamentar numa perspectiva da oposição de esquerda e procurou defender convicções socialistas durante todo o período em que desempenhou os dois mandatos que lhe foram conferidos. Como sociólogo militante, nunca perdeu de vista a busca de transformações profundas para o país.
Na Comissão de Educação logrou fazer o que foi possível em favor do projeto pelo qual sempre lutou: expandir, modernizar e, em especial, fortalecer a escola pública. Participou ativamente da elaboração da Lei de Diretrizes e Bases, à qual procurou dar o máximo de si.
Referência para todo o campo da esquerda petista, nunca se ligou a qualquer tendência interna do partido, dialogando com todas elas, principalmente as comprometidas com o socialismo revolucionário. Colaborava, ao mesmo tempo e de forma generosa, com outros partidos e organizações de esquerda, do país e de fora dele.
Militante fiel e disciplinado, aceitava algumas tarefas partidárias de forma crítica, sem jamais deixar de manifestar suas posições, em geral à esquerda da direção. Preocupava-se com os rumos do PT – ou a falta deles – em especial com a ausência de um conteúdo programático de caráter marcadamente socialista.
Apontava os perigos da política profissional, do excesso de institucionalização, da burocratização. Conquistar o poder ou simplesmente ocupá-lo? Ser um partido da ordem ou colocar-se contra ela? Estas eram as grandes indagações de Florestan Fernandes com relação ao Partido dos Trabalhadores.
A natureza selvagem do filho de uma imigrante portuguesa explica sua postura e sua personalidade forte, ao mesmo tempo independente e rebelde. Cresceu entre os excluídos – sua maior escola de aprendizado sociológico, como dizia – e nunca perdeu a perspectiva de classe. Nem a crença no socialismo.
Bastante debilitado, driblou a doença até onde pôde. Transformava dor em indignação. Para sobreviver, lutou com a mesma garra daquele menino vindo da ralé, e a convicção de alguém que ainda tinha muitas tarefas a cumprir. Morreu seis dias após ter enfrentado, com a coragem que era sua marca, um discutível transplante de fígado, talvez a cirurgia mais violenta e agressiva a que um ser humano possa ser submetido.
Em nome de sua família, de seus amigos e de seus companheiros, aproveito a oportunidade desta homenagem para, na presença do magnífico reitor da Universidade de São Paulo, solicitar ao diretor da Faculdade de Medicina que leve à Congregação o debate sobre as questões médicas, éticas e morais que a operação envolveu. Que o caso possa trazer subsídios à pesquisa no país – em que Florestan acreditava e tanto prestigiou – aprimorando técnicas e procedimentos, democratizando a própria instituição e as relações médico-paciente. E que sua morte não tenha sido em vão. Afinal, Florestan Fernandes era, fundamentalmente, um educador.”
Apresentação por Vladimir Sacchetta: “Um dos mais importantes cientistas sociais brasileiros, com dezenas de livros publicados, Florestan Fernandes veio de família humilde e desde os 6 anos trabalhou duro para sobreviver e estudar. Da mãe de origem camponesa herdou o caráter combativo, independente e rebelde. Preso pela ditadura militar e aposentado compulsoriamente da universidade pelo AI-5, foi obrigado a se exilar. De volta ao país, retomou a luta pelos excluídos, em defesa da escola pública e do socialismo. Exemplo de pensador fiel aos seus princípios e à sua classe, fez do conhecimento científico um instrumento de transformação da realidade e deixou escritos para jamais serem esquecidos.” – COMPRAR LIVRO
Anos atrás, o discurso neoliberal padrão no Brasil afirmava que o Estado deveria deixar de intervir em áreas que não lhe diriam respeito para cuidar apenas daquilo que seria sua vocação natural, a saber, serviços como educação e saúde. Nessa toada, foram privatizados os serviços de transporte, de energia, de telefonia, entre tantos outros.
Os anos passaram e, claro, o discurso também passou. Agora, trata-se de afirmar que quanto mais pudermos tirar a educação e a saúde das mãos do Estado, melhor.
Gerir educação pública significa ter de debater a todo momento diretrizes com professores, ser cobrado pelas decisões equivocadas, ter de financiar um sistema universal e gratuito. Mas simplesmente privatizar escolas era uma operação de alto custo político.
Como explicar que, a despeito dos modelos de privatização branca, os melhores sistemas do mundo são radicalmente públicos?
Alguém poderia descobrir que países como a Finlândia, que aparece normalmente como o primeiro nos processos de avaliação de resultados, tem um sistema totalmente público, subsidiado pelo Estado, radicalmente inclusivo, igualitário, com altos salários para professores e com escolas próximas de seus alunos.
Ele não é muito diferente do que podemos encontrar em países de sólida formação educacional, como a França e a Alemanha.
Inventou-se, assim, as chamadas Organizações Sociais. A princípio, elas foram vendidas como estruturas capazes de dar mais agilidade à gestão, escapando dos entraves criados para entidades públicas. Começaram na área da saúde e agora estão sendo “testadas” na área da educação, a começar pelo Estado de Goiás.
O roteiro nós já conhecemos. O Estado irá terceirizar escolas que já têm boa infraestrutura e qualidade razoável de ensino. Algumas organizações investirão nessas escolas a fim de dar a impressão, à opinião pública, de que o modelo é um sucesso.
Quando a sociedade civil se der conta, ela terá um serviço generalizado com professores precarizados, que podem ser facilmente substituídos e submetidos a planos decididos por burocratas. Os mesmos burocratas que há décadas mudam os rumos da educação brasileira com seus projetos que nunca alcançam bons resultados educacionais. Suas escolas terão taxas de toda natureza e serão dirigidas por entidades que perseguem metas vazias e avaliações que nada dizem respeito a um verdadeiro projeto pedagógico.
Como se não bastasse, o plano goiano prevê ainda que a gestão de 24 escolas seja entregue à Polícia Militar, que será responsável por gestão, segurança e disciplina.
Vejam que interessante: uma instituição cuja extinção já foi recomendada pela ONU por sua ineficiência e violência, que forma policiais objetos da desconfiança de 64% da população brasileira por suas ações eivadas de preconceitos e banditismo, em suma, a Polícia Militar que some Amarildos será responsável pela gestão da escola do seu filho. Difícil conceber ideia mais absurda.
Em qualquer lugar minimamente sensato do mundo, mudanças dessa natureza seriam objeto de longas discussões com alunos, professores e pais. No Brasil, e em especial nos Estados governados pelo tucanato (Paraná, São Paulo, Goiás), decisões educacionais são impostas, inventa-se diálogos que nunca ocorreram, joga-se gás lacrimogêneo contra estudantes, prende-se professores que protestam.
Este é um país no qual a elite, que deveria ser taxada de maneira pesada para capitalizar o Estado e permiti-lo oferecer a seus cidadãos ensino público de qualidade, governa servindo-se de uma classe política corrompida (Goiás que o diga) e procurando de todas as maneiras livrar-se de obrigações de solidariedade social.
Já vimos em São Paulo como políticas dessa natureza escondem um fato bruto simples: o Estado tem gastado menos com educação. Talvez porque tenha outras prioridades mais importantes, como a sobrevivência financeira do partido no poder.
Quando comecei a dar aulas, há quase 30 anos, meu primeiro emprego foi como professor substituto na Escola José Carlos de Almeida, em Goiânia. Era uma dessas antigas grandes escolas construídas em um espaço nobre da cidade, ao lado de uma escola privada.
Ela tinha tudo para se impor como escola modelo. No ano passado, depois de ficar um ano fechada e esquecida, a instituição foi ocupada por alunos que se cansaram de nunca serem ouvidos sobre seu próprio destino.
Talvez essa escola expresse de maneira quase pedagógica o destino e descaso da educação nacional. Não por acaso, essa história começou a mudar quando a população começou a dizer “não”.
“Neste momento há 31 estudantes e professores presos em Goiás por protestarem pela educação pública. Dentre eles 13 menores. Na última segunda-feira (15), a PM goiana entrou violentamente na Secretaria de Educação – que estava ocupada – e prendeu o grupo.
Antes disso, o governador Marconi Perillo (PSDB) já havia despejado os estudantes secundaristas de 28 escolas ocupadas em uma onda de protesto contra a privatização do ensino estadual.
Tudo começou com um decreto do governador no final do ano passado repassando 30% das escolas goianas para gestão das famigeradas Organizações Sociais (OS). A iniciativa prevê a terceirização de serviços escolares, a contratação privada (sem concurso) de até 70% dos professores e 100% dos funcionários, dentre outras medidas.
Trata-se evidentemente de uma privatização “branca” do ensino. O próprio Ministério Público do Estado recomendou nesta semana o adiamento do edital das OS, por estar repleto de ilegalidades, incluindo o repasse de recursos do Fundeb para a iniciativa privada. Nas palavras do promotor Fernando Krebs: “Chegamos à conclusão que o projeto referencial é inconstitucional. Vai piorar a qualidade da educação. Vai promover a terceirização, a privatização às avessas da escola pública”.
Foi este despautério que motivou a mobilização de estudantes e professores, reprimidos com violência e prisões pela PM.
Mas não é de hoje a paixão do governador Marconi Perillo por tratar a educação como caso de polícia. Desde 2014, seu governo tem implementado um inacreditável processo de militarização das escolas, que também foi alvo das manifestações.
A polícia militar já havia assumido até o ano passado a gestão de 26 escolas, tornando Goiás o Estado com o maior número de colégios militares no país. Sob os princípios da “hierarquia e da disciplina”, oficiais da PM estabelecem a regra do medo, mandam e desmandam no ambiente escolar.
Nas escolas militarizadas passou a ser exigido o uso de farda militar por todos os alunos. Os meninos precisam ter cabelo curto e as meninas são obrigadas a prendê-los. As gírias foram proibidas, assim como o esmalte de unha, o beijo e os óculos com armação “chamativa”. A continência tornou-se obrigatória na entrada, para os professores e também entre os alunos.
Para completar foram inseridas novas disciplinas no currículo, como a “Ordem unida” – sabe-se lá o que seja isso, coisa boa não é. Assim como a “sugestão” de uma taxa de matrícula de R$ 100 e de mensalidade de R$ 50, em valores de 2014, possivelmente já reajustados nos dias de hoje. O governo pretende militarizar mais 24 escolas neste ano.
O capitão Francisco dos Santos, diretor da escola Fernando Pessoa, exalta numa matéria da BBC o fim da violência no colégio. Também pudera. Impondo estado de sítio e intimidação permanente o resultado seria esse. O preço é rifar o futuro, jogando o pensamento crítico e a democracia na lata do lixo. A gestão militar da escola adestra os jovens de hoje para a gestão militar da sociedade.
A repressão ao movimento dos estudantes secundaristas por essa mesma polícia é expressão cabal disso.
Perillo seguiu o exemplo de seu colega de partido Geraldo Alckmin ao tentar remodelar o ensino à força, sem qualquer debate com a sociedade. Que, enquanto é tempo, siga novamente Alckmin, desta vez para recuar das medidas perante o rechaço da comunidade escolar. É preciso libertar imediatamente os 31 presos e recuar do projeto de privatização e militarização das escolas.
Caso contrário, Goiás será lembrado como o laboratório da barbárie na educação brasileira.”
Esta semana, diante dos desmandos do governo estadual de Goiás, que conseguiu se superar no quesito “Quem manda aqui é ‘nóis’!”, assistimos passagens que, para quem conhece um pouco de história regional, compreende que o coronelismo fez, e segue fazendo, escola nas terras goianas.
(…) A abertura dos envelopes com propostas de empresas que disputam o grande negócio de assumir a privatização de vinte e três escolas públicas em Goiás foi feita em um espaço público –Centro Cultural Oscar Niemeyer (pobre Oscar) – longe do público. Impedir que um ato, considerado pelo próprio governo como ‘democrático’, seja mantido distante das vistas da sociedade, determina mais uma prática do autoritarismo bancada pela falta de transparência que não é estranha a esta gestão. Já conhecemos o processo de militarização das escolas estaduais, feitos ao toque de caixa e oferecidos para a polícia goiana, considerada um primor de referência da truculência.
Seguindo a prática coronelista, o governo que acaba de embarcar a ‘nobreza’ do Palácio das Esmeraldas no alegre (e branco) trem, que rumou ao brilho da Sapucaí, gastando o dinheiro público que falta neste estado, mandou ver em cima da meninada secundarista que exercia o direito, e a necessidade, de protestar contra as perversidades já tão conhecidas. Sim! Mandou prender os meninos e as meninas secundaristas, gente considerada, pelos donos da fazenda, de alta periculosidade, que ameaça constantemente a não democracia tão bem implantada no cerrado do Planalto Central.
Mas não basta só prender a meninada, os desavisados que apoiam o movimento legítimo, também precisam aprender que com ‘peixe grande’ não se brinca. Uai! Que trem é esse de professor ficar apoiando luta de jovens secundaristas? Professor não sabe que seu lugar é em sala de aula? Onde já se viu querer fazer da luta prática uma chave contra a falta de democracia? Sim, este governo que já tem o histórico de agredir docentes, agora manda prendê-los, alegando serem estes “chefes de quadrilha”, aqueles que estudaram, fizeram mestrado, doutorado, para comandar “delinquentes” que ocupam prédios públicos. Como se a meninada fosse incapaz de construir sua luta com seus elementos próprios.
(…) Em tempo: todos os posts do Facebook que denunciavam os horrores da semana, em especial os postados na noite do dia 16 de fevereiro, com as fotos das meninas secundaristas presas, DE-SA-PA-RE-CE-RAM!
A “ENVERGADURA MORAL” DAS O$s EMPRESARIAIS EM GOIÁS:
O Ministério Público (GO) afirma “que 11 (onze) instituições estão qualificadas como organização social na área de educação em nosso Estado, mas não cumprem as exigências contidas no art. 2º II, “d”, da Lei Estadual 15.503/2005 que exige notória capacidade profissional e idoneidade moral dos dirigentes das organizações sociais.
Para os Promotores e Procuradores, nenhuma dessas instituições têm, em seus quadros, dirigentes com notória capacidade profissional e a maioria é dirigida por pessoas sem idoneidade moral para tanto. Vejam, abaixo, o que diz os MPs.:
“A OS IDGE, qualificada pelo Decreto n.º 8.557/2016, tem como responsáveis Joveny Sebastião Cândido de Oliveira e Danilo Nogueira Magalhães, que figuram como investigados pela prática do crime de falsidade ideológica (CP, art. 299) nos autos do inquérito policial n.º 201504273898, em curso na 11ª Vara Criminal de Goiânia”.
“A OS GTR, qualificada pelo Decreto 8.556/2016, tem como responsáveis André Luiz Braga das Dores e Antônio Carlos Coelho Noleto. O primeiro é réu em ações penais e ações de improbidade administrativa decorrentes da rumorosa operação “Fundo Corrosivo” deflagrada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado – GAECO do Ministério Público do Estado de Goiás. O segundo é membro do PSDB-GO, servidor da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás cedido para a Governadoria de julho a 31/12/2015 e beneficiário de suspensão de processo (art. 89 da Lei 9.099/1995) em razão da prática do crime de concussão (CP, art. 316), conforme se vê da ação penal n.º 200603150017, delito praticado à época em que Antônio Carlos Coelho Noleto estava cedido para o Departamento de Fiscalização da Agência Goiana de Regulação, Controle e Fiscalização de Serviços Públicos – AGR”.
“A OS IBEG, qualificada pelo Decreto n.º 8.538/2016, tem como responsável Silvana Pereira Gomes da Silva. Tanto a OS quanto sua responsável não detém idoneidade moral, porquanto foram condenadas pela Justiça Estadual de Goiás em ação civil de improbidade administrativa em razão de fraudes perpetradas em concurso público realizado pelo Município de Aparecida de Goiânia-GO”.
“A OS ECMA, qualificada pelo Decreto n.º 8.510/2015, tem como responsável José Izecias de Oliveira, réu na ação penal n.º 201300509249 acusado da prática dos crimes de peculato e associação criminosa contra a Universidade Estadual de Goiás – UEG, processo decorrente da operação “Boca do Caixa” desencadeada pelo GAECO do MP-GO e que resultou, inclusive, em bloqueio de bens dos envolvidos”.
“A OS INOVE, qualificada pelo Decreto n.º 8.509/2015, tem como responsável Relton Jerônimo Cabral, veterinário, o qual tem contra si um boletim de ocorrência narrando suposta prática do crime de estelionato pela venda de um cão doente terminal da raça yorkshire. Prima facie, não há notícia de histórico na área de educação em favor de Relton”.
“A OS IBRACEDS, qualificada pelo Decreto 8.447/2015, tem como responsáveis André Luiz Braga das Dores e Antônio de Sousa Almeida. O primeiro é réu em ações penais e ações de improbidade administrativa decorrentes da rumorosa operação “Fundo Corrosivo” deflagrada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado – GAECO do Ministério Público do Estado de Goiás”.
• Empresas recém-criadas – Das 10 OSs qualificadas para o processo de terceirização, cinco delas foram abertas há menos de um ano: Inove, Consolidar, Olimpo, Ecma e Ibces.
• Pouca experiência em Educação – Os sites das entidades indicam falta de familiaridade com a Educação Básica. Ao menos sete deles apresentam pouca ou nenhuma informação sobre o tema. O Ecma menciona educação de trabalhadores em cultura, meio ambiente e sustentabilidade; a GTR fala em gestão de unidades de ensino, mas também de saúde, cultura e esporte; a Ibraceds cita a construção de uma escola padrão do MEC, mas destaca ações odontológicas e de saúde contra o xeroderma pigmentoso; o Ibeg aponta como missão “Prover soluções educacionais integradas no intuito de capacitar e desenvolver o capital humano com responsabilidade socioambiental”; Inove e Educar não possuem sites; o do Consolidar tem texto fictício.
• Equipes desconhecidas – Das 10 OS qualificadas, apenas o Consolidar informou nome e função de alguns membros do corpo técnico. O Instituto Ecma apresenta em seu site nome e biografia dos integrantes, sem especificar as funções que eles podem vir a desempenhar caso vença o edital. As outras oito entidades não enviaram os documentos pedidos por nossa reportagem.
Essas constatações não são um julgamento da competência e reputação das instituições ou de seus dirigentes. Mas lançam incertezas sobre o sucesso da terceirização. Diferentemente do que ocorre em iniciativas semelhantes na área de saúde, onde a presença das OS está mais bem consolidada, o certame de Goiás não atraiu grupos com atuação reconhecida na Educação Básica. ” SAIBA MAIS
Nem tudo está à venda! Eis um dos brados que os mercantilizadores-de-tudo estão sendo obrigados a ouvir nas manifestações e ocupações atuais, em várias frentes (do Occupy Wall Street aos Indignados espanhóis, da guerrilha síria em Rojava aos secundaristas-em-luta e passe-livristas em marcha no Brasil). As mobilizações em prol da educação pública também revelam outra das trincheiras de batalha contra os poderes que, como o Rei Midas da mitologia grega, querem transformar tudo o que tocam em ouro, instituindo o império universal daquele que Davi Kopenawa batizou de “o povo da mercadoria” (@ A Queda Do Céu). Vivemos sob o reinado daqueles que, como Oscar Wilde dizia, “sabem o preço de tudo mas não sabem o valor de nada.”
Um de nossos maiores pensadores da educação, Paulo Freire, sempre deixou muito explícita sua recusa daquilo que apelidou de “malvadez neoliberal”. Basta atentar para o que ele diz Pedagogia da Autonomia, onde Freire não deixa margem a dúvidas quanto a seu engajamento e sua “crítica permanentemente presente” à “malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia”:
Estamos de tal maneira submetidos ao comando da malvadez da ética do mercado que me parece pouco tudo o que façamos na defesa e na prática da ética universal do ser humano. (…) Não é possível ao sujeito ético viver sem estar permanentemente exposto à transgressão da ética. Uma de nossas brigas na história, por isso mesmo, é exatamente esta: fazer tudo o que possamos em favor da eticidade, sem cair no moralismo hipócrita, ao gosto reconhecidamente farisaico. (…) Quando falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana.” (PAULO FREIRE, Primeiras Palavras, p. 16-19)
Ainda que sua voz soe serena e amorosa em vários trechos de sua obra, Freire confessa que é um “tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo. Daí o meu nenhum interesse de assumir um ar de observador imparcial… Quem observa o faz de um certo ponto de vista, o que não situa o observador em erro. O erro na verdade não é ter um certo ponto de vista, mas absolutizá-lo… O meu ponto de vista é o dos ‘condenados da Terra’, o dos excluídos.” (op cit, p. 16)
Freire alia-se a uma decifração-do-real proposta, por exemplo, por Franz Fanon n’Os Condenados da Terra, onde a condição existencial e psico-física da legião de oprimidos é o foco de atenção e de compreensão. Contra a absolutização da chamada “ética do mercado”, posta pela ideologia dominante como irremediável e insuperável, Paulo Freire reclama não só a possibilidade, mas a urgente necessidade de instauração coletiva de uma outra ética, ou melhor, de uma eticidade, espraiada pelo cotidiano, que faça frente à hegemonia do capitalismo neoliberal globalizado, no qual a ética é cotidianamente transgredida pois vista apenas como obstáculo no caminho dos lucros (como prova a imensa irresponsabilidade empresarial, o grotesco desrespeito aos direitos humanos e às práticas ecologicamente sustentáveis, envolvidos na pior tragédia socioambiental da história do Brasil, por cortesia da privatizada Vale e sua subsidiária Samarco, amargas assassinas do Rio Doce).
Vivemos em meio à efervescência das lutas contra o avanço do capitalismo neoliberalizante na educação, com a privatização crescente das escolas e a restrição do educador ao papel limitado (e limitador) daquele que treina seus clientes para que adquiram competências técnicas valorizadas pelo mercado de trabalho capitalista. Uma pedagogia que é convidada a ser serviçal do capital, colocando ainda mais lenha na fogueira de um sistema grotescamente excludente, opressor e desumanizante. Segundo recente pesquisa da Oxfam, a desigualdade social e a concentração de riqueza em poucas mãos são males que não cessa de aumentar: os 62 indivíduos mais ricos do planeta já detêm mais capital que metade da humanidade (3,6 bilhões de pessoas). Meritocracia ou plutocracia?
Uma encarniçada batalha opõe o capitalismo neoliberal – novo Midas que quer privatizar tudo o que toca e pretende gerir e$cola$ como se fossem empre$a$, instituindo a epidemia de universidades que vendem diplomas na base do pagou, passou – às vertentes contra-hegemônicas e de resistência, que demandam a universalização do ensino gratuito e sem fins lucrativos.
Alguns dos capítulos mais interessantes desta História-em-curso foram escritos no continente americano dos últimos anos:
a ainda-pulsante maré brasileira de ocupações e manifestações que tomou conta dos estados do Paraná, de São Paulo e de Goiás, em 2015-2016, em protesto contra as “reorganizações” e privatizações impostas pelos novos paladinos da Privataria Tucana (os governadores do PSDB Beto Richa, Geraldo Alckmin, Marconi Perillo…).
Se há um brado que resume todas essas lutas, ei-lo numa fórmula: educação não é mercadoria!
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Realizou-se em Porto Alegre (RS), julho de 2004, o III Fórum Mundial da Educação, cuja conferência de abertura ficou a cargo do professor István Mészáros, que proferiu ali palavras preciosas para nos guiar rumo a uma Educação Para Além Do Capital(Google Livros). Segundo Ivana Jinkings, fundadora da Editora Boitempo, Mészáros – pensador húngaro nascido em 1930 em Budapeste e que foi assistente de Georg Lúkacs – “afirma que a educação não é um negócio, é criação; que a educação não deve qualificar para o mercado, mas para a vida.” [1]
“Mészáros ensina que pensar a sociedade tendo como parâmetro o ser humano exige a superação da lógica desumanizadora do capital, que tem no individualismo, no lucro e na competição seus fundamentos. Que educar é – citando Gramsci – colocar fim à separação entre Homo fabere Homo sapiens; é resgatar o sentido estruturante da educação e de sua relação com o trabalho, as suas possibilidades criativas e emancipatórias. E recorda que transformar essas ideias e princípios em práticas concretas é uma tarefa a exigir ações que vão muito além dos espaços das salas de aula, dos gabinetes e dos fóruns acadêmicos. Que a educação não pode ser encerrada no terreno estrito da pedagogia, mas tem de sair às ruas, para os espaços públicos, e se abrir para o mundo.
Ele alerta, porém, que o simples acesso à escola é condição necessária mas não suficiente para tirar das sombras do esquecimento social milhões de pessoas cuja existência só é reconhecida nos quadros estatísticos. (…) O que está em jogo não é apenas a modificação política dos processos educacionais – que praticam e agravam o apartheid social -, mas a reprodução da estrutura de valores que contribui para perpetuar uma concepção de mundo baseada a sociedade mercantil. (…) Pequeno em tamanho, A Educação Para Além do Capital é um livro imenso em esperança e determinação. Nele, o filósofo marxista condena as mentalidades fatalistas que se conformam com a ideia de que não existe alternativa à globalização capitalista.” IVANA JINKINGS (Leia também: Um caminho trilhado pela esquerda, Revista Saraiva)
A fotografia que ilustra a capa do livro é de Sebastião Salgado e retrata uma menina do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) que faz os deveres escolares e toma conta dos irmãos enquanto a mãe trabalha.
No reino do capital, tudo é mercadoria, e a educação não escapa a esta infecção: “daí a crise do sistema público de ensino, pressionado pelas demandas do capital e pelo esmagamento dos cortes de recursos dos orçamentos públicos”, lembra Emir Sader. “Talvez nada exemplifique melhor o universo instaurado pelo neoliberalismo, em que tudo se vende, tudo se compra, do que a mercantilização da educação. Uma sociedade que impede a emancipação só pode transformar os espaços educacionais em shopping centers, funcionais à sua lógica do consumo e do lucro.” EMIR SADER
Que o pensamento de Marx e Engels inclui uma dimensão educativa e uma preocupação pedagógica é algo revelado não só por Mészáros, mas também pela “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire ou por estudos como Marx e a Pedagogia Moderna de Mario Manacorda. Certos trechos conhecidíssimos do “cânone” materialista-dialético exploram diretamente o tema, por exemplo:
“a teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado.” KARL MARX e FRIEDRICH ENGELS
Aos que pregam que o capitalismo não merece ser extinto e revolucionado, mas só reformado e aprimorado, Mészáros afirma convicto que o capital é “irreformável” e “incorrigível” (p. 27) e que necessitamos mesmo é de uma “radical mudança estrutural” (p. 25). “O sentido da mudança educacional radical não pode ser senão o rasgar da camisa de força da lógica incorrigível do sistema: perseguir de modo planejado e consistente uma estratégia de rompimento do controle exercido pelo capital…” (p. 35).
István Mészáros
“A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu – no seu todo – ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes… A própria História teve de ser totalmente adulterada, e de fato frequente e grosseiramente falsificada para esse propósito.” (MÉSZÁROS, p. 36)
É bem verdade que, com sua distopia 1984, George Orwell pretendeu denunciar o totalitarismo, e não oferecer um manual de instruções. Porém, a realidade mostra o quanto o romance orwelliano é representação fidedigna dos mecanismos de funcionamento da ideologia, esta arte de inculcar, de condicionar, de fazer acreditar no falso, tão essencial à perpetuação do capitalismo e seu séquito de desigualdades e exclusões.
Apesar de ciente da força dos aparelhos ideológicos, inclusive os (des)educativos e (de)formadores que estão a serviço dos interesses das classes proprietárias, Mézsáros não é pessimista a ponto de propor que seja realizável a distopia de 1984, ou seja, uma sociedade totalitária, gerida por um Grande Irmão ou um führer, reinando inconteste sobre um rebanho de conformistas e submissos, que aceitaram fazer da ideologia a eles “pregada” – papagueada em púlpitos e jornais, em propagandas e teletelas – sua carne e coração.
O pesadelo – ufa! – não pode se realizar por inteiro! Por mais que tenebrosos poderes insistam em transformar salas-de-aula em celas-de-aula, escolas em cadeias, ensino em doutrinação, sabedoria em ideologia, há algo de incontrolável e de anárquico na ânsia de saber do ser humano e que romperá sempre as correntes limitantes que instituições tentem impor.
“O pesadelo em 1984, de Orwell, não é realizável precisamente porque a esmagadora maioria das nossas experiências constitutivas permanece – e permanecerá sempre – fora do âmbito do controle e da coerção institucionais formais. Certamente, muitas escolas podem causar um grande estrago, merecendo portanto, totalmente, as severas críticas de José Martí, que as chamou de ‘formidáveis prisões’. (…) ‘A aprendizagem é a nossa própria vida’, como Paracelso afirmou… Mas para tornar essa verdade algo óbvio, como deveria ser, temos de reivindicar uma educação plena para a vida, para que seja possível colocar em perspectiva a sua parte formal, a fim de instituir, também aí, uma reforma radical.” (MÉSZÁROS)
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EDUCAR PARA A VIDA – ÉTICA & PEDAGOGIA
Quando a educação cessa de servir à emancipação e passa a acorrentar-nos à camisa-de-força de uma ideologia classista, que falsifica a História, degrada a dignidade do presentee aniquila a possibilidade de um futuro melhor (pois aposta somente na continuação do mesmo,) podemos sem dúvida exigir das lutas populares que foquem sua atenção na tarefa de uma educação revolucionada, mas que só o será no interior de uma revolução social mais ampla. Mészáros fornece um bom plano, sintético, para a educação revolucionada de amanhã: ela deve educar para a vida, e não para o mercado.
Daí a importância crucial da ética, ou melhor, de uma educação ética, de uma formação que foque não apenas em fornecer treinamentos técnicos e saberes necessários ao Homo faber de uma certa especialização profissional, mas que enxergue como essencial e incontornável a própria conduta na vida, tanto privada como pública,como quintessencial a qualquer prática pedagógica libertária e sábia. Por essas e outras é que acredito que a filosofia nas escolas é um ingrediente imprescindível pra qualquer educação que seja autenticamente destinada à emancipação e não à opressão. Mas uma filosofia que inclua os rebeldes, os revoltados, os ímpios, os questionadores, os espíritos livres, os injuriados e caluniados (Epicuro, Spinoza, Voltaire, Nietzsche…)!
Desconfiar das idolatrias, pôr em dúvida os dogmatismos, refletir ao invés de se submeter a todos os catecismos, esses são alguns dos efeitos íntimos e psicoafetivos gerados por um contato duradouro com o fogo e o ânimo, irrefreáveis e fecundos, daqueles que podemos chamar de “filósofos rebeldes”, ou de “espíritos livres”. Como ler Nietzsche, deixando-se afetar pela potência de sua linguagem, sem sentir-se transformado em alguém com um senso crítico mais apurado, com um faro para as farsas que se torna aprimorado? Como seguir de joelhos diante da autoridade da moral, da razão, da ciência, após termos sido alertados por Foucault, Adorno, Horkheimer, Hans Jonas, e tantos outros, de todos os pesadelos que foram gerados quando estes ídolos foram sacralizados, quando nos rendemos acriticamente a ele?
Que superstições ignorantes sobrevivem ao benefício gerado por um convívio com Lucrécio, Comte-Sponville, Albert Camus? O perigo, porém, é aquele de transformar a filosofia em um novo ídolo, para em seguida fazer diante dela, de rosto baixo, uma genuflexão submissa e servil. Ao invés de exercitar o pensamento autônomo e ousado com a ajuda, na companhia, no debate, com os filósofos, corremos o risco de nos tornar dogmáticos papagaios do que outros pensaram, e que nós não fazemos senão repetir como um eco, tal qual a ninfa amaldiçoada por Hera e negligenciada por Narciso.
Não me parece ser jamais isso – subserviência e servilismo – aquilo que a filosofia que é digna desse nome demanda daqueles que a praticam. A filosofia não põe à toa entre o seu inventário de virtudes, de excelências humanas, de inestimáveis aretés, os valores e as práticas da justiça, da coragem, da generosidade, da tolerância, da responsabilidade, do amor.
O leque das “virtudes” filosóficas, que tanto merecem estar no currículo escolar de qualquer instituição educativa que busque educar para a vida e não só para o mercado, foram excelentemente exploradas no já clássico Pequeno Tratado Das Grandes Virtudes, de André Comte-Sponville, obra magistral e preciosa, inspirada nas reflexões de mestres éticos como Jankélévitch, Alain e Simone Weil.
Uma reflexão meramente teórica sobre as virtudes é uma infâmia, já que elas existem para serem postas em prática. Ética: indissolúvel dança, em sintonia, da reflexão e da ação, guiados pela sabedoria possível e pela amizade desejável que norteiam as mentes e as vidas dos filósofos (estes funcionários das forças da Sophia e da Philia). Ao menos é assim que estou tentando compreender, cada vez com mais afinco e mais visceralidade, esta tal de “ética”, que minha atual situação como professor (do ensino público e numa era de tragédias!) obriga-me a confrontar. Em termos mais concretos: não vejo como um professor de filosofia possa se esquivar da ética, dedicando suas aulas a outros assuntos mais “neutros” e supostamente dela desconectados.
Fernando Savater, em seu agradável livrinho Ética Para Meu Filho, sustenta que é imprescindível à pedagogia dos nossos jovens que falemos de ética, pois isto é o mesmo que refletir sobre o sentido da liberdade:
“Deve-se falar em ética no ensino médio? De início parece-me nefasto apresentar uma matéria com esse nome como alternativa à aula de doutrinamento religioso. A pobre ética não veio ao mundo para dedicar-se a escorar ou substituir catecismos… pelo menos não o deveria fazer. Mas não tenho nenhuma certeza de que devam ser evitadas algumas primeiras considerações gerais sobre o sentido da liberdade… A reflexão moral não é apenas um assunto especializado para quem deseja fazer cursos superiores de filosofia, sendo, antes, parte essencial de qualquer educação digna desse nome.” (SAVATER, 2012) [5]
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REVOLUCIONÁVEIS MANEIRAS DE SER
As maneiras-de-ser são revolucionáveis: eis uma das apostas da ética. Também é uma das esperanças do marxismo. Uma certa leitura reducionista e estreita do marxismo acaba por transformar este num “economicismo”, como se Marx e Engels estivessem sugerindo que a única coisa que importa é revolucionar o sistema de produção capitalista e mais nada, quando é evidente que a revolução envolve uma reestruturação radical também das chamadas “subjetividades”, no sentido da superação da alienação, na vitória sobre os véus ilusórios da ideologia internalizada, além das revoluções simultâneas no âmbito da cultura, das artes, das mídias etc. E “é aqui que a educação – no sentido mais abrangente do termo – desempenha um importante papel”:
“Desde o início o papel da educação é de importância vital para romper com a internalização predominante nas escolhas políticas circunscritas à ‘legitimação constitucional democrática’ do Estado capitalista que defende os seus próprios interesses. (…) A tarefa histórica que temos de enfrentar é incomensuravelmente maior que a negação do capitalismo… Tendo em vista o fato de que o processo de reestruturação radical deve ser orientado pela estratégia de uma reforma concreta e abrangente de todo o sistema no qual se encontram os indivíduos, o desafio que deve ser enfrentado não tem paralelos na história. Pois o cumprimento dessa nova tarefa histórica envolve simultaneamente a mudança qualitativa das condições objetivas de reprodução da sociedade e a transformação progressiva da consciênciaem resposta às condições necessariamente cambiantes. Portanto, o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para aautomudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente.” (MÉSZÁROS, p. 65)
A questão da educação está vinculada, nas sociedades capitalistas, à preparação para o mercado de trabalho, porém sabemos o quão desigual e injusto é todo o “mundo do trabalho” sob o capitalismo globalizado, que permite a coexistência de centenas de bilhões de trabalhadores que ganham salários-de-fome com um punhado de multibilhonários ociosos cujo único labor é apostar nos cassinos das bolsas de valores…
Já tem uma longa história a crítica aos ricos que coçam o saco enquanto os pobres derramam o suor, tanto que Paracelso (1493 – 1541), um dos modelos que inspirou o Fausto de Goethe, “chegou ao ponto de defender a expropriação da fortuna dos ricos ociosos, de forma a compeli-los a ter uma vida produtiva.” (p. 68)
Na verdade, o negócio não é exatamente o contrário do ócio para aqueles que detêm o capital roubado aos trabalhadores. Os produtores das mercadorias, sob o capitalismo, jamais têm seu trabalho pago com justiça: a mais-valia, que está na raiz da propriedade de capital, é em essência um roubo, como Proudhon, antes de Marx, já havia compreendido. O negócio do capitalista é seu pretexto para ficar “de papo pro ar” enquanto seus funcionários fazem os “corres” todos, gastando grande parte dos seus tempos-de-vida nas linhas de montagem frenéticas tão bem satirizadas por Chaplin em Tempos Modernos.
A própria existência de capitalistas é sinal de um mundo do trabalho regido pelo acinte da opressão, da desigualdade imposta pela violência, do apartheid social que fratura o social entre os que não trabalham e gozam com luxos e confortos, por um lado, e os que só trabalham e quase nada tem, por outro lado… É um pouco o que revela o samba de Elton Medeiros e Paulinho da Viola, “Maioria sem Nenhum”:
“Uns com tanto Outros tantos com algum Mas a maioria sem nenhum!”
Diante da urgência do tempo histórico – vivemos, como diz o título do novo livro de Isabelle Stengers, In Catastrophic Times – a educação também precisa colocar-se urgentemente em posição de luta em prol da emancipação, já que a omissão significaria a cumplicidade com as forças da destruição. “É suficiente apontar duas diferenças literalmente vitais que colocam em acentuado relevo a urgência do tempo em nossa própria época”, escreve Mészáros. “Em primeiro lugar, o poder de destruição antes inimaginável que se encontra hoje à disposição da humanidade, pelo qual se pode alcançar facilmente o completo extermínio da espécie humana por meio de uma variedade de meios militares. Isso é gravemente acirrado pelo fato de que testemunhamos, no último século, tanto a escala como a intensidade sempre crescentes de conflagrações mundiais efetivas, incluindo duas guerras mundiais extremamente destrutivas.” (p. 107)
Além da ameaça das armas nucleares que pesam sobre o cérebro dos vivos – apocalipse tecnocrático tão bem retratado e satirizado por Stanley Kubrick em Doutor Fantástico – soma-se hoje uma “segunda condição gravemente ameaçadora”, como também lembra Mészáros, que é “a natureza destrutiva do controle sociometabólico do capital em nosso tempo – manifesta pela predominância cada vez maior da produção destrutiva, em contraste com a mitologia capitalista tradicionalmente autojustificadora da destruição produtiva – e que encontra-se no processo de devastação do ambiente natural, arriscando com isso diretamente as condições elementares da própria existência humana neste planeta.” (p. 108)
Diante da “magnitude sem precedentes das tarefas em jogo e da urgência historicamente única de nosso tempo”, espremidos entre o perigo do militarismo desenfreado, por um lado, e da hecatombe ecológica, por outro, só resta a certeza, pulsante e urgente, da “necessidade de instituir com êxito uma alternativa historicamente sustentável à crescente destrutividade do modo de controle sociorreprodutivo do capital.” (p. 110) Estamos diante da encruzilhada do Antropoceno, na era do duelo épico que, na formulação de Naomi Klein, opõe capitalism vs the climate(o capitalismo versus o clima). Ou, como disse Hubert Reeves, “estamos em guerra contra a natureza: se vencermos, estamos perdidos”.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes Necessários à Prática Educativa. Ed. Paz e Terra. JINKINGS, Ivana. Apresentação de Educação Para Além Do Capital. SADER, Emir. Prefácio a Educação Para Além Do Capital. MARX, K; ENGELS, F. Teses sobre Feuerbach. MÉSZÁROS, István. A Educação Para Além do Capital. Ed. Boitempo. SAVATER, Fernando. Ética Para Meu Filho. Trad. de Monica Stahel. Ed. Planeta, 2012. COMTE-SPONVILLE. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Ed. Martins Fontes.
“O desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos do que navegantes.”
Eduardo Galeano, Las Venas Abiertas de América Latina
No mesmo ano de 1492 em que os conquistadores espanhóis aportaram nas praias do chamado Novo Mundo, a Espanha expulsou 150 mil judeus de seu território e re-conquistou Granada, arrancando-a das garras dos muçulmanos. As Monarquias Absolutas da península ibérica, calcadas na dogmática católica – em especial aquela falaciosa ideologia hoje quase completamente enterrada em descrédito do “monarca por decreto divino” – estavam envolvidas nas turbulências de guerras religiosas sanguinolentas. Quem chegou às Américas em 1492 não foram alguns cristãos pacifistas e benevolentes, como logo descobririam as populações nativas. Os índios não tardaram a fazer uma péssima descoberta: os invasores provinham de civilizações européias cujas elites dirigentes sabiam ser extremamente violentas, intolerantes, dogmáticas e embevecidas por delírios de etno-superioridade. Relembrando aqueles tempos, Galeano escreve:
“A Espanha adquiria realidade como nação erguendo espadas cujas empunhaduras traziam o signo da cruz. A rainha Isabel fez-se madrinha da Santa Inquisição. A façanha do descobrimento da América não poderia se explicar sem a tradição militar da guerra das cruzadas que imperava na Castela medieval, e a Igreja não se fez de rogada para atribuir caráter sagrado à conquista de terras incógnitas do outro lado do mar…” [Nota #1]
Em 1492, os milhões de habitantes deste continente que o invasor estrangeiro depois batizaria de América tiveram um encontro traumático: “descobriram que eram índios, que viviam na América, que estavam nus, que existia o pecado, que deviam obediência a um rei e a uma rainha de outro mundo e a um deus de outro céu, e que este deus havia inventado a culpa e a vestimenta, e havia ordenado que fosse queimado quem quer que adorasse o sol, a lua, a terra e a chuva que a molha…” (Galeano)
Corte para maio de 2007. O Papa visita o Brasil e discursa na basílica de Aparecida (custo desta construção: 37 milhões de reais). Joseph Ratzinger, o Bento XVI, autoridade-mor da Cristandade no princípio do 21º século depois do nascimento do Nazareno, pontifica:
“A fé cristã encorajou a vida e a cultura desses povos indígenas durante mais de 5 séculos. O anúncio de Jesus e de seu Evangelho nunca supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem uma imposição de uma cultura estrangeira. O que significou a aceitação da fé cristã pelos povos da América Latina e do Caribe? Para eles, isso significou conhecer e aceitar o Cristo, esse Deus desconhecido que seus antepassados, sem perceber, buscavam em suas ricas tradições religiosas. O Cristo era o Salvador que eles desejavam silenciosamente.” [Nota #2]
Comparados, os discursos de Galeano e de Ratzinger são explicitamente contraditórios, antagônicos, irreconciliáveis. Não há como ambos possam estar certos simultaneamente – o que equivale a dizer que, destes dois, um deles mente. A história da Conquista que nos narra o autor d’As Veias Abertas Da América Latina é repleta de chacinas, pilhagens e horrores; nela houve sim, indubitavelmente, uma cultura forçada goela abaixo dos nativos através da violência das armas-de-fogo e das espadas afiadas. Já a história, higienizada pelo Papa (que demitiu-se, dando lugar ao Papa Chico), fabrica um conto-de-fadas: nele, a fé cristã foi “aceita” na América por aqueles que “desejavam silenciosamente” abraçar o Cristo, e segundo Bento XVI os europeus que aportaram no Novo Mundo agiram de modo humanitário e generoso ao presentear os pagãos com a imensa benesse de seu catolicismo.
Diante da lorota papal, Jean Ziegler comenta, em Ódio ao Ocidente: “Raramente uma mentira histórica foi proferida com tanto sangue-frio. […] A população total de astecas, incas e maias era de 70 a 90 milhões de pessoas quando os conquistadores chegaram. Entretanto, um século e meio depois, restavam apenas 3,5 milhões.”[Nota #3]
A cidade de Potosí, na Bolívia, serve como um exemplo das ações dos predadores ibéricos e seu apetite voraz pelas riquezas alheias. Potosí, que fica a quase 4.000 metros de altitude, já foi uma das cidades mais populosas e ricas do mundo. No século XV e XVI, torna-se tamanho paradigma de um território abençoado com vastas riquezas naturais a ponto de no romance clássico de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha, o Cavaleiro da Triste Figura utilizar-se, em seus papos com Sancho Pança, a expressão “vale um Potosí”. Os invasores estrangeiros extraíram, durante 3 séculos, cerca de 40.000 toneladas de prata de suas montanhas [nota #4].
As comunidades quíchua e aimará do Altiplano andino foram escravizadas, empurradas para as minas e coagidas por guardas armados ao labor pesado em circunstâncias adversas. Os desabamentos eram frequentes e muitos mitayos (os escravos mineiros) acabavam enterrados vivos nas profundezas da montanha de prata. Estima-se que 8 milhões de pessoas morreram em Potosí no processo de butim que os invasores europeus promoveram. Para justificar o genocídio, o teólogo espanhol Juan Ginés de Sepúlveda (1489-1573) explica: “Os indígenas merecem ser tratados dessa maneira porque seus pecados e idolatrias ofendem a Deus.” Em outras palavras: na teologia imperial, Deus é espanhol, ama o capitalismo e aplaude a escravização e a chacina.
Potosí é apenas um caso dentre muitos outros e poderíamos contar uma estória semelhante sobre as Minas Gerais, em especial Vila Rica, hoje Ouro Preto, que foi pilhada de todo o seu ouro, assim como Potosí foi assaltada de toda a sua prata. Ao invés de multiplicar exemplos de horrores que sucederam à Conquista da América, ouçamos esta reflexão mais geral de Karl Marx sobre as conexões entre o desenvolvimento do capitalismo industrial europeu e o empreendimento colonial, escravocrata e genocida:
“O capital veio ao mundo suando sangue e lama por todos os poros. […] Em geral, a escravidão velada dos operários assalariados na Europa precisava, como pedestal, da escravatura notória no Novo Mundo. […] O tesouro capturado fora da Europa, diretamente por pilhagem, escravização, assassinato seguido de roubo, refluiu para a mãe pátria e transformou-se aí em capital.” [nota #5]
Em sua aurora, portanto, o capitalismo europeu nutriu-se de holocaustos coloniais, praticou a escravização em massa, sugou suas gordas mais-valias da exploração brutal do trabalho forçado, com as bênçãos de papas e reis. O que se seguiu à Conquista da América, aquilo de que ainda somos infelizmente contemporâneos, é uma história-ainda-presente de genocídio e etnocídio, entrelaçados e amalgamados. Não foi Hitler quem inventou a limpeza étnica. Os índios conheceram-na a partir de 1492 e talvez não haja absurdo algum em chamar a coisa por seu devido nome: holocausto. Em Arqueologia da Violência, Pierre Clastres explana o que entende pela palavra “etnocídio” e no que esta se distingue de “genocídio”: “O etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas inferiores e más; é a aplicação de um projeto de redução do outro ao mesmo…” Ouçamos mais longamente à argumentação de Clastres:
“Quem são os praticantes do etnocídio? Em primeiro lugar, aparecem na América do Sul, mas também em muitas outras regiões, os missionários. Propagadores militantes da fé cristã, eles se esforçam por substituir as crenças bárbaras dos pagãos pela religião do Ocidente. A atitude evangelizadora implica duas certezas: primeiro, que a diferença – o paganismo – é inaceitável e deve ser recusada; a seguir, que o mal dessa má diferença pode ser atenuado ou mesmo abolido. É nisto que a atitude etnocida é sobretudo otimista: o Outro, mau no ponto de partida, é suposto perfectível, reconhecem-lhe os meios de se alçar, por identificação, à perfeição que o cristianismo representa.
O etnocídio é praticado para o bem do selvagem. O discurso leigo não diz outra coisa quando enuncia, por exemplo, a doutrina oficial do governo brasileiro quanto à política indigenista: “Nossos índios, proclamam os responsáveis, são seres humanos como os outros. Mas a vida selvagem que levam nas florestas os condena à miséria e à infelicidade. É nosso dever ajudá-los a libertar-se da servidão. Eles têm o direito de se elevar à dignidade de cidadãos brasileiros, a fim de participar plenamente do desenvolvimento da sociedade nacional e de usufruir de seus benefícios”. A espiritualidade do etnocídio é a ética do humanismo.
Denomina-se etnocentrismo a vocação para avaliar as diferenças pelo padrão da sua própria cultura. O Ocidente seria etnocida porque é etnocentrista, porque se pensa e quer ser a civilização. […] O etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas inferiores e más; é a aplicação de um projeto de redução do outro ao mesmo. O índio amazônico suprimido como outro e reduzido ao mesmo como cidadão brasileiro. Em outras palavras, o etnocídio resulta na dissolução do múltiplo em Um.” [nota #6]
Ora, a Conquista da América foi um projeto genocida e etnocida, posto em prática por potências imperiais européias que chegaram aqui embevecidas com sua intolerância, embrutecidas por sua presunção de superioridade.
No filme espanhol Também A Chuva (También La Lluvia), da Iciar Bollain, temos a oportunidade de refletir sobre imperialismo e colonização em um contexto visceralmente contemporâneo: estamos na Bolívia do começo do século, às vésperas da eclosão da Guerra da Água de Cochabamba.
Gael Garcia Bernal encarna um dos espanhóis da equipe de produção do filme-dentro-do-filme, um desses blockbusters que pretendem fornecer um retrato épico e heróico da História. Pagam uma merreca para que os bolivianos participem como figurantes das filmagens e pretendem ordenar os rumos da película como se fossem ainda os poderosos chefões de outrora.
Só que as ebulições do presente suplantam o retrato sereno do passado: a equipe cinematográfica que queria apenas realizar um filme sobre os tempos de Colombo acaba envolvida pelo turbilhão da imensa revolta popular que seguiu-se à decisão, tomada pelo conluio governamental-corporativo, de privatizar a água na Bolívia.
O título do filme – Também a Chuva – refere-se a algo que até parece mentira, invenção satírica, paranóia de Bolivarista: a privatização de todas as formas de água, inclusive a da chuva. Ocorreu de fato: os bolivianos não só tiveram que engolir um aumento de 300% nas tarifas da água, após o cerceamento corporativo do commons; os bolivianos tiveram roubado até mesmo seu direito à chuva.
Em nossa era dita “neoliberal” (mas que talvez merecesse o nome “neocolonial”), a América Latina ainda batalha contra os gigantes do capitalismo global que aqui desejam faturar seus imensos lucros ao preço de nossa imensa miséria: na Bolívia, o acordo entre as mega-corporações transnacionais e o Estado elitista que as servia de joelhos, na era pré-Evo Morales, fez com que este direito humano básico à água, esta necessidade elementar para a sobrevivência física de qualquer ser humano, fosse transformado em mercadoria e pretexto para o lucro.
Fotos extraídas do artigo de Franck Poupeau, “La guerre de l’ eau – Cochabamba, Bolivie, 1999-2001” (Pg. 133 do seguinte livro, disponível em PDF: http://agone.org/lyber_pdf/lyber_401.pdf)
Assim que a privatização da água foi imposta pelo governo e efetivada pelas corporações, o que ocorreu foi que as empresas capitalistas
“aumentaram massivamente o preço da água potável e centenas de milhares de famílias viram-se na impossibilidade de pagar a conta. Elas tiveram que se abastecer nos riachos poluídos, nos poços envenenados pelo arsênico. As mortes infantis pela ‘diarreia sangrenta’ aumentaram potencialmente. Manifestações públicas começaram a explodir. Durante os confrontos com a polícia, dezenas de pessoas foram mortas e centenas ficaram feridas, entre elas muitas mulheres e crianças. Mas os bolivianos não se dobraram. O movimento se espalhou por todo o país. No dia 17 de outubro de 2003, cercados no palácio Quemado por uma multidão enfurecida de mais de 200 mil manifestantes, o presidente Lozada e seus comparsas mais próximos decidiram fugir do país. Destino: Miami.” [nota #7]
Também a Chuva tem entre seus méritos maiores o retrato destes eventos cruciais na história latino-americana recente. A excelência do filme está no modo como ele procura compreender o presente sempre vinculado ao passado histórico, estabelecendo paralelos eloquentes entre as atitudes de Cristóvão Colombo e seus asseclas, outrora, e dos novos conquistadores do capitalismo globalizado: ambos decretam-se os donos e os possuidores de recursos naturais, aos quais pretendem ter direito por terem sido escolhidos por Deus-Pai ou pelo Deus-Progresso (este último, diga-se de passagem, como nos lembrou a epígrafe Galeaneana deste texto, “é uma viagem com mais náufragos que navegantes…”).
Contando com mais uma atuação brilhante de Gael Garcia Bernal (que iluminou-nos e cativou-nos sobre a história latino americana também em filmes como No de Pablo Larraín e Diários de Motocicleta de Walter Salles), Tambéma Chuva é um dos melhores filmes a explorar a complexidade de nossa história recente, sendo dotado de uma vibe próxima à dos clássicos de cineastas como Gillo Pontecorvo (A Batalha de Argel, Quemada!) e Roland Joffé (A Missão, Os Gritos do Silêncio). É um filme que ajuda-nos a compreender as novas revoluções bolivaristas do continente sob a perspectiva daqueles que conquistaram, em especial na Bolívia e na Venezuela, algumas das mais significativas vitórias do movimento dito “altermundialista” nas últimas décadas.
Evo Morales, presidente da Bolívia (de 2006 até 2019)
O filme permite-nos entender o processo que conduziu a Bolívia a livrar-se do jugo de corporações (como a Bechtel e a Suez) e presidentes (como Lozada ou Banzer) que eram fanáticos praticantes da política “Privatização de Tudo” . Contestados e destronados, estes representantes do neo-imperialismo sofreram um revés com a eleição de Evo Morales em 2006, o primeiro presidente de raízes indígenas a ser eleito democraticamente na América Latina. Pachamama renasceu das cinzas. E com ela as centelhas de esperança.
Se as ocorrências em Cochabamba são tão relevantes para nosso presente e nosso futuro, acredito que é porque não escaparemos a um porvir onde os antagonismos e conflitos relacionados com a água vão se exacerbar e intensificar. A pior seca da história de São Paulo, por exemplo, já inspira alguns dos melhores analistas políticos brasileiros, como Guilherme Boulos (militante do MTST), a perguntar/provocar: “há quinze anos, na Bolívia, atitudes semelhantes às adotadas agora por Geraldo Alckmin provocaram levante popular. É isso que governador deseja produzir?” [nota #8]
Escrevendo no calor da hora, em novembro de 2000, Arundhati Roy reflete sobre a Batalha de Cochabamba como um símbolo de como opera atualmente o capitalismo oniprivatizante e como este é contestado por insurreições grassroots; em seu artigo Power Politics: The Reincarnation of Rumpelstiltskin, a escritora e ativista indiana escreve:
Arundhati Roy, escritora e ativista indiana, autora do romance “O Deus das Pequenas Coisas”
“What happens when you ‘privatise’ something as essential to human survival as water? What happens when you commodify water and say that only those who can come up with the cash to pay the ‘market price’ can have it? In 1999, the government of Bolivia privatised the public water supply system in the city of Cochacomba, and signed a 40-year lease with Bechtel, a giant US engineering firm.The first thing Bechtel did was to triple the price of water. Hundreds of thousands of people simply couldn’t afford it any more. Citizens came out on the streets to protest. A transport strike brought the entire city to a standstill. Hugo Banzer, the former Bolivian dictator (now the President) ordered the police to fire at the crowds. Six people were killed, 175 injured and two children blinded. The protest continued because people had no options—what’s the option to thirst? In April 2000, Banzer declared Martial Law. The protest continued. Eventually Bechtel was forced to flee its offices. Now it’s trying to extort a $12-million exit payment from the Bolivian government…” [nota #9]
Vale relembrar que a Bolívia do começo dos anos 1990 já havia dado sinais claros de que, naquelas terras de onde surrupiaram-se toneladas de prata de Potosí, naquelas terra onde o médico-gerrilheiro Che Guevara foi assassinado, a rebelião não dormia nem estava morta. Em 1992, por ocasião dos 500 anos do início da Conquista da América, iria acontecer em La Paz uma “suntuosa festa de aniversário” organizada pelas autoridades branquelas, com desfile militar, cerimônias diplomáticas, convidados vindos da Europa, coms Te Deumse améns destinados a celebrar a ideologia de uma colonizadores europeus, humanitários e filantrópicos, que fizeram o favor de nos trazer a verdadeira civilização – lorota que o imperialismo deseja inscrever como dogma em nossos livros, monumentos, consciências.
O espírito de resistência e insurgência, esse ímpeto revoltado à la Tupac Amaru, renasceu para mostrar que “nunca, durante esses últimos cinco séculos, a brasa se apagou debaixo das cinzas”, como escreve Jean Ziegler. Emergindo dos indígenas, que constituem mais de metade da população do país, nasceu um protesto colossal: “Várias centenas de milhares de aimarás, quíchuas, moxos e guaranís (…) vaiaram Cristóvão Colombo, derrubaram as tribunas de honra e ocuparam a capital durante quatro dias. Na manhã do quinto dia, pacificamente, voltaram para suas comunidades no Altiplano…” [nota #10]
Eis aí, pois, na Bolívia, algumas inspiradoras estórias de desobediência civil contestatória e mobilização transformadora. Thoreau e Gandhi aplaudiriam Cochabamba? Relembrar isto tudo, aprofundar os estudos sobre estes episódios, serve para a tarefa essencial de pôr em questão a história oficial e escrever em seu lugar uma história mais múltipla, que abrigue a voz e as lutas daqueles que podem até ser considerados por alguns como sendo parte de nosso passado. Em Até a Chuva, o político pontifica que, “se deixarmos, esses índios vão nos levar de volta à Idade da Pedra”. Ora, aqueles que alguns julgam como sobreviventes do passado talvez sejam, na verdade, os guias essenciais para nosso futuro. Se um outro mundo é possível e necessário, é preciso lembrar que uma outra história também é possível e necessária, como Walter Benjamin sugeria em 1940, nas Teses Sobre o Conceito de História, em que ele aponta: “em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo que quer apoderar-se dela” e “despertar no passado as centelhas da esperança” [nota #11].
Na Bolívia, imensos protestos contra a privatização da água tomaram conta das ruas de Cochabamba em 2000.
E.C.M. Goiânia, Dez 2014
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Capítulo: Febro do Ouro, Febre da Prata. Sub-capítulo: O signo da cruz nas empunhaduras das espadas. Trad. Sergico Faraco. Ed. L&PM. 2010. Pg. 30.
2. Le Monde, 15 de maio de 2007
3. ZIEGLER, Jean. Ódio ao Ocidente. Ed. Cortez, 2008, p. 188.
4. HAMILTON, Earl J. American Treasure and the Price Revolution in Spain, 1501-1650. Massachusetts, 1934.
5. MARX, Karl. Oeuvres Complètes, editadas por M. Rubel. Vol. II: Le Capital, tomo I, seção VIII. Paris: Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade.
6. CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência – Pesquisas de Antropologia Política. Ed. Cosac & Naify, 2004.
“In order to stablish conditions for free-market, and in order to sustain free-market, you need quite a lot of violence.”
SLAVOJ ZIZEK
O neoliberalismo, antes de ser implantado nos países capitalistas avançados, capitaneado por Tatcher no Reino Unido, Reagan nos EUA e Deng Xiaoping na China – como exposto em minúcia no livro Neoliberalismo de David Harvey (2008) – utilizou o Chile como seu “laboratório” experimental. Salvador Allende, desde sua eleição à presidência em 1970, havia realizado transformações amplas na sociedade chilena, pavimentando o caminho para uma sociedade socialista. Suas ações iam na direção oposta ao que recomendam os cânones neoliberais: ao invés de privatizações e desregulamentações favoráveis ao livre-mercado, o governo Allende trabalhou em prol da nacionalização de empresas, minas e terras.
Allende expropriou 15 milhões de hectares de terras que estavam concentradas nas mãos de latifundiários e as redistribuiu [vide nota 01 no fim do texto].Estatizou todos os bancos e retornou o controle de quase todas as fábricas ao comando dos próprios operários. Defendeu com punho-de-ferro a autonomia do Chile diante dos exploradores estrangeiros, em especial os EUA, que viam com muita desconfiança estas “iniciativas marxistas” que se assemelhavam a muitas instauradas em Cuba após a Revolução de 1959. Os militares, o partido Democrata-Cristão e os yankees fizeram tudo para boicotar e desestabilizar o regime de Allende, que resistiu por mais de 3 anos, respaldado por um apoio popular tão intenso e imenso. Com frequência massas que superavam 100 mil pessoas tomavam as ruas bradando a uma só voz: “Allende, Allende, el pueblo te defiende!” ou “Allende, tranquilo, o povo está contigo!”
O Chile havia vivido 41 anos de regime democrático quando, no fatídico 11 de Setembro de 1973, o presidente democraticamente eleito Allende é assassinado, o palácio de La Moneda em Santiago é bombardeado e um golpe militar instaura a ditadura Pinochet. Como nos lembra Naomi Klein, foi determinante neste evento histórico a ação nos bastidores de Milton Friedman, “considerado o economista mais influente do último meio século” (KLEIN: 2007, p. 15), um dos papas da doutrina neoliberal:
“Milton Friedman aprendeu a explorar os choques e as crises de grande porte em meados da década de 1970, quando atuou como conselheiro do ditador chileno, o general Augusto Pinochet. Enquanto os chilenos se encontravam em estado de choque logo após o violento golpe de Estado, o país sofria o trauma de uma severa hiperinflação. Friedman aconselhou Pinochet a impor uma reforma econômica bastante rápida – corte de impostos, livre-comércio, serviços privatizados, corte nos gastos sociais e desregulamentação. (…) Ficou conhecida como ‘a revolução da Escola de Chicago’, pelo fato de que muitos economistas de Pinochet tinham estudado sob a orientação de Friedman na Universidade de Chicago. (…) Desde então, sempre que os governos decidem impor programas radicais de livre mercado, o tratamento de choque [the shock doctrine] tem sido o seu método preferido.” (KLEIN, A Doutrina do Choque, p. 17)
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