Fred Di Giacomo: “Seguimos insistindo nesse estranho vício de transformar dor e morte em arte.” || Entrevista à Casa de Vidro

A CASA DE VIDRO ENTREVISTA FRED DI GIACOMO

Em 4 vídeos, o escritor revela suas vivências, processos criativos e críticas à conjuntura contemporânea

Por Eduardo Carli de Moraes

Com 8 livros publicados, Fred Di Giacomo Rocha descreve-se como um “caipira punk”, nascido em Penápolis/SP, em 1984, mas que atinge em 2020 a plena maturidade enquanto artista cosmopolita e polímata – como o classificou a reportagem da revista Vice (EUA). De fato, Fred exerce sua criatividade irrefreável em várias áreas: escreve contos, poemas, reportagens, ensaios históricos, crítica musical etc.

Seu romance de estréia, o impressionante Desamparo (Editora Reformatório, 2018, 248 pgs), inspira-se no realismo mágico celebrizado por Garcia Márquez para realizar uma radiografia da colonização do interior paulista no começo do século XX, em obra que “une a precisão ágil do jornalismo com a prosa poética” e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.

Seu livro de estréia, Canções Para Ninar Adultos (Editora Patuá, 2012), foi prefaciado por Xico Sá, responsável pela seguinte síntese da prosa giacomiana: “Fred Di Giacomo faz um free-jazz que junta o repertório de vasta leitura com a velocidade fragmentada da sua geração.” Algumas das influências de Fred – autores como Bukowski, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Nelson Rodrigues – integram o time de personalidades literárias homenageadas nesta ilustração do livro:

Ilustração por Leonardo Mathias

Fred ainda encontra tempo para compor e tocar na banda Bedibê (com dois álbuns lançados: Envelhecer [2016] América [2019]); para investigar os caminhos da felicidade na companhia de sua esposa Karin Hueck no Projeto Glück; para colaborar como designer de games interativos (o mais famoso deles, Filosofighters, desenvolvido em parceria com a Superinteressante); e pra arriscar-se como crítico de cinema – como fez na provocativa análise do Coringa publicada pelo UOL. Já foi também coordenador pedagógico da escola e agência de jornalismo ÉNóis.

Um caipira em Berlim: Fred Di Giacomo, que tem várias vivências na capital da Alemanha, esteve recentemente lá participando de uma das mais importantes feiras literárias do mundo, a Feira do Livro de Frankfurt. Saiba mais na Farofafá @ Carta Capital.

Nesta entrevista exclusiva que Fred Di Giacomo concedeu à Casa de Vidro, direto de Berlim, explora o tema da descolonização e as ressonâncias de teorias e práticas decoloniais nas obras literárias e jornalísticas que escreve. Reflete também sobre o conceito de escrevivências proposto pela Conceição Evaristo. Fala sobre o cenário de literatura brasileira contemporânea, explorando as similaridades e diferenças entre escritores já bem conhecidos, como Férrez e Paulo Lins, em relação a artistas hoje em atividade e que estão marcando a produção literária do Brasil – gente como Micheliny Verunschk, Mailson Furtado, Ana Paula Maia, Anderson França, Luisa Gleiser, Itamar Vieira Jr, dentre outros. Fred garante que “das bordas do Brasil nasce uma revolução literária no hemisfério sul.”

Fred Di Giacomo, escritor multimídia e polímata, é hoje uma das vozes críticas e contestadoras mais potentes do jornalismo e da literatura no Brasil. Em artigo para a revista Cult, falando sobre o que significa fazer arte em tempos de Bolsonaro, com o incremento assustador das práticas de censura, silenciamento e auto-exílios, Di Giacomo escreveu: “Eles não querem que existamos, que escrevamos nossos histórias, que cantemos nossas canções e façamos nossos filmes. Mas mesmo que estejamos longe de casa e de nossas raízes, seguimos insistindo nesse estranho vício de transformar dor e morte em arte.”

A CASA DE VIDRO ENTREVISTA FRED DI GIACOMO
Assista aos vídeos:

PARTE 1 – Apresentação

PARTE 2 – Descolonizando a Cultura

PARTE 3 – Escrevivências e Renovações dos Cânones

PARTE 4 – Censuras e Artistas na Resistência

Créditos do vídeo: Edição por Eduardo Carli de Moraes. Trilha Sonora: Bedibê.

NENHUM LIVRO É SAGRADO – E O ÚNICO PECADO É NÃO LÊ-LOS EM TODA SUA PROFANA DIVERSIDADE || A Casa de Vidro Livraria

A Livraria A Casa de Vidro (https://bit.ly/2u95fX1) deseja a todxs um futuro sempre repleto de leituras instigantes e diversificadas, provocativas e inquietantes, que sejam como “machadadas no mar congelado que temos por dentro” (Franz Kafkahttps://bit.ly/2rHvnY2) e que façam fluir melhor as águas da inteligência, da sensibilidade, da empatia.

“I think we ought to read only the kind of books that wound and stab us. If the book we’re reading doesn’t wake us up with a blow on the head, what are we reading it for? So that it will make us happy, as you write? Good Lord, we would be happy precisely if we had no books, and the kind of books that make us happy are the kind we could write ourselves if we had to. But we need the books that affect us like a disaster, that grieve us deeply, like the death of someone we loved more than ourselves, like being banished into forests far from everyone, like a suicide. A book must be the axe for the frozen sea inside us. That is my belief.” – FRANZ KAFKA

Precisamos de leituras que sejam como alarmes soando para despertar os mortos-vivos de sua letargia e do seu marasmo, infundindo-lhes coragem, como dizia Anais Nin (https://bit.ly/2FcqQji): 

“You live like this, sheltered, in a delicate world, and you believe you are living. Then you read a book (Lady Chatterley, for instance), or you take a trip, or you talk with [someone], and you discover that you are not living, that you are hibernating. The symptoms of hibernating are easily detectable: first, restlessness. The second symptom (when hibernating becomes dangerous and might degenerate into death): absence of pleasure. That is all. It appears like an innocuous illness. Monotony, boredom, death. Millions live like this (or die like this) without knowing it. They work in offices. They drive a car. They picnic with their families. They raise children. And then some shock treatment takes place, a person, a book, a song, and it awakens them and saves them from death.

(…) Some never awaken. They are like the people who go to sleep in the snow and never awaken. But I am not in danger because my home, my garden, my beautiful life do not lull me. I am aware of being in a beautiful prison, from which I can only escape by writing.” – ANAIS NIN

Leituras que nos salvem da “banalidade do mal” de que falava Hannah Arendt, aquela que só viceja num habitát de irreflexão e de submissão cega a pseudo-mitos e fake-líderes. Leituras que desenvolvam as antenas de um senso crítico sempre vigilante que nos impeça de sermos cúmplices ou coniventes com aqueles que nos oprimem – a ponto às vezes de não notarmos a opressão que sofremos e nos pormos na situação patética de lambermos as botas, sujas de sangue, dos que trucidam o futuro humano.

Que vocês possam ler muito e ler de tudo, nunca crendo na estúpida lorota de que há um livro “sagrado” que contenha a resposta para tudo e a verdade absoluta, pois crer no Livro Único, sacralizado e visto como melhor que todos os outros, é caminho seguro para alguém desperdiçar sua vida ao tornar-se um crente de mente fechada e atitude sectária. Que os livros abram novos horizontes ao invés de fechar corações e mentes nas celas estreitas dos dogmas!

Nesta publicação, que abre com ilustração maravilhosa do Ricardo Siri Liniers, convidamos todos à leitura, compartilhada por Brain Pickings, do seguinte texto inspirador sobre livros da Rebecca Solnit:

“Dear Readers,

Nearly every book has the same architecture — cover, spine, pages — but you open them onto worlds and gifts far beyond what paper and ink are, and on the inside they are every shape and power. Some books are toolkits you take up to fix things, from the most practical to the most mysterious, from your house to your heart, or to make things, from cakes to ships. Some books are wings. Some are horses that run away with you. Some are parties to which you are invited, full of friends who are there even when you have no friends. In some books you meet one remarkable person; in others a whole group or even a culture. Some books are medicine, bitter but clarifying. Some books are puzzles, mazes, tangles, jungles. Some long books are journeys, and at the end you are not the same person you were at the beginning. Some are handheld lights you can shine on almost anything.

The books of my childhood were bricks, not for throwing but for building. I piled the books around me for protection and withdrew inside their battlements, building a tower in which I escaped my unhappy circumstances. There I lived for many years, in love with books, taking refuge in books, learning from books a strange data-rich out-of-date version of what it means to be human. Books gave me refuge. Or I built refuge out of them, out of these books that were both bricks and magical spells, protective spells I spun around myself. They can be doorways and ships and fortresses for anyone who loves them.

And I grew up to write books, as I’d hoped, so I know that each of them is a gift a writer made for strangers, a gift I’ve given a few times and received so many times, every day since I was six.” (Rebecca Solnit)

https://www.brainpickings.org/2019/01/03/a-velocity-of-being-rebecca-solnit/

Leiam, leiam e leiam de tudo! Nenhum livro é sagrado, o pecado é não ler-nos em sua profana e profusa diversidade. Tomem um porre de livros, pois a ressaca é de cultura! E de coragem.

Carli,
Virando 2019 / 2020

 

CORNUCÓPIA DOS LIVROS – Sobre o valor da leitura e da escrita para a existência, Seguido de: “Diário de Leituras [Ano: 2017]”

O grande escritor argentino Ernesto Sabato costumava descrever a leitura como uma “busca febril”. Jamais um hábito gelado ou ato desinteressado, mas sim algo que engaja de maneira intensa a criatura que, como você e eu, está em embarcada “en este complejo, contradictorio e inexplicable viaje hacia la muerte que es la vida de cualquiera.”


Antes Del Fin (1998) 
é o livro em que Sabato, pressentindo o fim da viagem vital, escreveu febrilmente como testemunho de sua vida e como sessões-de-recomendações às gerações mais jovens. Sempre que lhe paravam em uma rua, uma praça ou um metrô, para perguntar a Sabato – já que era o autor de livros celebrados como O Túnel Sobre Heróis e Tumbas – quais os livros que deviam ser lidos, ele dizia sempre:

Lean lo que les apasione, será lo único que los ayudará a soportar la existência.” (p. 17)

É este tipo de devoração febril e apaixonada dos livros, buscados como vias de acesso a algo que pode modificar a existência, que me entusiasma. E este entusiasmo pelos livros eu não posso evitar em mim que venha acompanhado pela a vontade de que isso se torne contagioso, produza epidemia (a colheita será de poetas e cantores, não de cadáveres mas de vida revitalizada!).

Nutro a humilde utopia de que mais gente enxergue no ler uma das mais importantes e deleitosas atividades da vida, e passe a ler (mais e melhor) não porque alguém ordenou, não porque a professora mandona mandou (empunhando palmatórias ou provas!), não pois alguma autoridade que aplica testes ou concursos exigiu… Ler como ato autêntico da vontade que escolhe esforçar-me por auto-transcender-se e aprimorar-se.

Gosto da descrição que Sabato faz do ler como atividade que engaja coração e mente, que põe alertas todos os sentidos, que estimula a inteligência sem resfriar o coração, que nos catalisa para que entremos em um estado de intensa procura (e de preferência também descoberta) de verdades difíceis e percepções raras:

“He dedicado muchas horas a la lectura y siempre há sido para mí uma búsqueda febril. Nunca he sido un lector de obras completas y no me he guiado por ninguna clase de sistematización. Por el contrario, en medio de cada una de mis crisis he cambiado de rumbo, pero siempre me comporté frente a las obras supremas como si me adentrara en un texto sagrado; como se en cada oportunidad se me revelaran los hitos de un viaje iniciático. Las cicatrices que han dejado en mi alma atestiguan que de algo de eso se ha tratado. Las lecturas me han acompañado haste el día de hoy, transformando mi vida gracias a esas verdades que sólo el gran arte puede atesorar.” (SABATO, Antes Del Fin – Buenos Aires: La Nación, 2002, p. 42)

O escritor sai transformado de sua escrita, o leitor sai transformado de sua leitura, e estes posições invertem-se com frequência: quem muito lê, acaba escrevendo, ainda que seja para comentar os livros que leu, e por aí já vai ensaiando os passos que pode seguir se decidir levar a sério o ofício de escritor… Esta transformação íntima, psíquica, anímica, afetiva, propiciada pelos livros, é também algo evocado por uma muito disseminada citação de Franz Kafka, em que ele clama para que o livro se transforme em um machado com o qual devemos destruir “o mar gelado” que levamos por dentro.

Sou um leitor que não costuma forçar a barra com livros que não está apreciando, lançando-lhes longe para preferir aqueles livros que nos apaixonam, que nos lançam àquele estado de exaltação subjetiva, comovendo-nos e assim transformando-nos não só no sentido da suportação da existência, mas do aprendizado cada vez mais ampliado dos caminhos para o bem viver e o bem morrer.

Como livreiro e blogueiro, tenho tentado pôr minha formação profissional em jornalismo e filosofia a serviço da difusão dos bons conteúdos e da disseminação do excelente vício da bibliofilia. Gosto do meme, exposto acima sem pudor, que convida a encher uma taça de vinho, sentar-se à poltrona, ligar a luminária e “tomar um porre de livros pois a ressaca vai ser de cultura!” O professor de filosofia em mim já vem querendo adicionar: faço-lhes bons votos de que a ressaca seja também de sabedoria!

Se for um vício, a bibliophilia me parece um dos mais benignos – e que sentido haveria em chamar de vício uma coisa boa? Vamos dar asas, portanto, às bibliophilias, mas com o salutar senso crítico bem vigilante. Ler muito não faz milagre: há quem encerre sua cabeça, como o avestruz na areia, num círculo estreito de um único livro, considerado como “sagrado”. É um crime contra todos os livros já escritos na história do mundo. Você achar que toda a verdade está em um único livro, pois ditado por Deus, Alá, Buda, Xangô ou sei lá quem, produz a hecatombe da diversidade estonteante que também faz tanta da graça inesgotável da leitura.

Ler é viajar ao coração pulsante das alteridades em profusão. É conhecer por dentro o processo linguístico de criação, de expressão, de formação, que moveram o escritor a parir este seu rebento-livro. Ler é ter acesso a um diálogo com os mortos, ainda que de mão-única: posso tentar refutar o Macbeth de Shakespeare, questionando se ele de fato pensa que esta vida não passa de “a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing…”, mas não haverá resposta senão o próprio eco infindo da obra, nunca totalmente passada enquanto nós, do presente, a ressuscitamos, dando-lhe novo alento.


Um perigo que enxergo na bibliophilia está quando, levada ao excesso, ela conduz ao logocentrismo, à logorréia, à verbosidade solipsista – é o perigo de ficar de nariz tão afundado nos livros, que você passa a delirar que o mundo é feito de palavra… O mundo, sabemos pela parte dele somos, que constituímos, é também carne, osso, sangue, vômito, guerra, opressão, resistência… E sempre há imenso saber e sabedoria que necessitamos ir buscar para além dos livros – ou seja, nas vivências.

Como filósofo, não consigo me desviar de ter em mira aquilo que estimula a caminhada de filósofos há milênios: a sophia, que certamente pode ser comunicada em uma miríade de formas, sendo o livro apenas um dos possíveis veículos da sabedoria. É preciso sempre insistir na oralidade filosofante de figuras seminais como Sócrates, Diógenes de Sínope e Sidarta Gautama – que fizeram da fala o barco de transporte de suas respectivas sabedorias. A escuta atenta da fala do outro é via magna de acesso àquele incremento de sabedoria que é objetivo da filosofia promover incessantemente.  Sabato tem belíssimas palavras sobre o tema da sabedoria transmitida para além dos livros, em reflexões que somam-se de modo simbiótico com aquilo que disse Walter Benjamin sobre a função social do narrador:

“En las comunidades arcaicas, mientras el padre iba en busca de alimiento y las mujeres se dedicaban a la alfarería o al cuidado de los cultivos, los chiquitos, sentados sobre las rodillas de sus abuelos, eran educados en su sabiduría; no en el sentido que le otorga a esta palabra la civilización cientificista, sino aquella que nos ayuda a vivir y a morir; la sabiduría de esos consejeros, que en general eran analfabetos, pero, como um día me dijo el gran poeta Senghor, en Dakar: ‘La muerte de uno de esos ancianos es lo que para ustedes sería el incendio de una biblioteca de pensadores y poetas.'” (SABATO, Antes del Fin, Buenos Aires, La Nación, p. 18).

Léopold Sédar Senghor (1906 – 2001)

 



P.S. – Abaixo, procurei reunir num cyber-báu as leituras que marcaram minha travessia biblióphila pela vida neste ano de 2017. É um espécie de “diário” – que também atua como portal de entrada – onde registro a jornada pelos livros que atravessei do princípio ao fim. O que é sinal de que mantiveram minha atenção e meu interesse. Os abandonados pelo caminho, os que parei de ler no meio ou nas primeiras páginas, não figuram nesta lista. Eis alguns dos companheiros-de-papel (e de Kindle…) que me fizeram companhia e entusiasmaram a minha busca febril por uma viva vivível, linkados com os textos e artigos que pude tecer sobre alguns deles.

Eduardo Carli de Moraes / Goiânia, Jan. 2018

2017

01. ANTONIO SKÁRMETAA Insurreição (La Insurrección)2017-001-skamerta-insurreicaoEd. Francisco Alves, 1983, coleção Latino-América
trad. Reinaldo Guarany


02. VIOLETA PARRAPoesia (capa dura, 472 pgs)portadavioletaBelíssimo livro publicado pela Universidade de Valparaíso,
em parceria com
a Fundación Violeta Parra – Chile, 2016

SAIBA MAIS: Arder até as cinzas, renascer como Fênix:
A potência da palavra povoada de V. Parra


03. JOSÉ MARTÍ, Vibra el aire y retumba (Poesia)
[SAIBA MAIS – Leia o poema Yugo y Estrella]
2017-03-jose-martiBuenos Aires: Editorial Losada, 1997; 232 pgs.


04. ALFREDO SIRKISRoleta Chilenaroleta_chilenaRio de Janeiro: Record, 1981.


05. MARCELO ALVESCamus: Entre o Sim e o Não A Nietzsche


06. ANTONIO SKÁRMETA, O Dia Em Que A Poesia Derrotou um Ditador (Los Días Del Arcoíris) – Ed. Record, 2012

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07. VERONICA STIGGER
Onde a Onça Bebe Água

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08. ELIANE BRUM
A Vida Que Ninguém Vê
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AS VIDAS QUE QUASE NINGUÉM VÊ: Como o jornalirismo de Eliane Brum visibiliza a diversidade humana e a unicidade dos destinos >>> http://wp.me/pNVMz-1xx


09. ANGELI, O Lixo da História


10. ELENI VARIKASA Escória do Mundo
Leia um trecho em que Varikas trata da poetisa Phillis Wheatley


11. FRANCISCO ORTEGA, Amizade e Estética da Existência em Foucault

LER POST


12. BOB MARLEY – GUERREIRO RASTA
http://wp.me/pNVMz-3Ch


13. HANNAH ARENDTSobre a Revolução  (Cia das Letras)


14. IAN MCWEAN, Enclausurado (Nutshell)


15. OTTO RANK, O Trauma Do Nascimento


16. GABRIEL TARDE, As Leis Sociais


17. MICHEL FOUCAULT, A Coragem da Verdade 
Curso no Collège de France, 1984 (Ed. Martins Fontes)


18. MARILENA CHAUÍ, Introdução à História da Filosofia – Vol. 1: Dos pré-socráticos a Aristóteles


19. GABRIEL TARDE (1843 – 1904)A Opinião e As Massas
(Ed. Martins Fontes)


20. DIÓGENES, O CÍNICO
de Luis E. Navia 
Ed. Odysseus
CLICK E SAIBA MAIS


21 .MACHADO DE ASSIS – Ressurreição


22. MACHADO DE ASSIS – Helena


23. VLADIMIR SAFATLE – Só Mais um Esforço


24. ANTÔNIO RISÉRIO – A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros


25. ROSANA SUAREZ – Nietzsche e a Linguagem


26. LÚCIA NAGIB – A Utopia no Cinema Brasileiro


27. JORGE AMADO – Jubiabá


28. MARGARET ATWOOD – O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale)


29. BERNARDO KUCINSKI – K. – Relato de uma Busca


30. ROGER BASTIDE – O Sonho, o Transe e a Loucura


31. BELL HOOKS – Ensinando a Transgredir


31. PAULO FREIRE – Cartas a Guiné-Bissau


32. ELIZABETH KOLBERT – A Sexta Extinção


33. HANS JONAS – Matéria, Espírito, Criação


34. HANS JONAS – O Conceito de Deus Após Auschwitz


“A Dança dos Aldeões”, de P Paul Rubens

35. BARBARA EHRENREICH – Dançando nas Ruas


36. KATE EVANS – Rosa Vermelha


37. STEPHEN GREENBLATT – A Virada 


38. DORIAN ASTOR – Lou Andreas-Salomé


39. GEORGE ORWELL (1903 – 1959) – “O Que é Fascismo? E Outros Ensaios”


40. HEINE HEIN? POETA DOS CONTRÁRIOS – Heinrich Heine e André Vallias


41. MAURICIO RABUFFETTI – Mujica: A Revolução Tranquila


42. AUGUSTO BOAL – Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas


43. MARY WOLLSTONECRAFT – Reivindicação dos direitos das mulheres


 

44. ANDRÉ DAHMER – A Cabeça É A Ilha


 

Paulo Freire

45. MOACIR GADOTTI E JOSÉ EUSTÁQUIO ROMÃO – Paulo Freire e Amílcar Cabral – A Descolononização das Mentes





 

E.C.M. – 3/1/18

AS VIDAS QUE QUASE NINGUÉM VÊ: Como o jornalirismo de Eliane Brum visibiliza a diversidade humana e a unicidade dos destinos [A CASA DE VIDRO.COM]

AS VIDAS QUE QUASE NINGUÉM VÊ

Como o jornalirismo de Eliane Brum visibiliza a diversidade humana e a unicidade dos destinos

por Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro

I. ENSAIO SOBRE A INVISIBILIDADE E SUA SUPERAÇÃO

Eliane Brum devota-se a visibilizar os invisíveis. É uma professora do olhar que ensina a enxergar aquilo que cotidianamente passa desapercebido. Apesar de escrever sempre em prosa, dá a sensação de ser uma poetisa de mão cheia, com similaridades de percepção e visão de mundo com um Manoel de Barros (1916 – 2014), o “apanhador de desperdícios” e autor do Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo.

Ambos, Brum e Barros, buscam dar importância ao desimportante, transvendo o mundo, em uma operação que supera as saramaguianas cegueiras que nos cobrem de cataratas a mente, tornando invisíveis os mistérios e maravilhas do cotidiano. Fazendo-nos cegos às unicidades irrepetíveis dos destinos de cada um e de todos.

Encantadora em seu uso da palavra pois capaz de encantar-se com tudo o que de extraordinário pode-se descobrir por trás das névoas da cotidianidade cinza, esta é Eliane Brum, uma das escritoras em atividade que melhor consegue conjugar a sensibilidade mais apurada com o senso crítico mais mordaz.

Ela parece ter também como mantra algo semelhante ao “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, célebre canto do poeta Vinícius de Moraes. Cada reportagem de Eliane Brum é toda uma universidade do encontro, toda uma aula magna sobre a aventura de conhecer o outro. E ela tem o dom da contadora de histórias, que conquista o interesse do leitor-ouvinte com firmes garras, talento desenvolvido por um longo e fecundo convívio com os livros, desde a primeira infância como devoradora de Monteiro Lobato.

Eliane Brum têm revolucionado o jornalismo justamente pois subverte seus cânones, recusa seus clichês, revolta-se contra os estereótipos e realiza uma nova aventura no campo daquilo que convencionou-se chamar de jornalismo literário. Ela não refaz caminhos já pisados por um Gay Talese, um Tom Wolfe, um Eduardo Galeano, um Eric Nepomuceno, mas forja uma travessia própria, refulgente de originalidade.

Em seus textos, ainda que nunca percamos a sensação forte de que aquilo que está escrito tem forte ancoragem e enraizamento em um real vivenciado de corpo e alma, é vigorosa também a presença de um ímpeto de honestidade, de boa-fé, de autenticidade, que torna explícito novamente aquilo que o jornalismo institucionalizado, carcomido pelo capitalismo emporcalhante, esforça-se em esquecer: jornalismo é compromisso com a verdade.

capa_coluna_prestesEliane Brum é alguém que se recusa a mentir, a dourar a pílula, a semear ilusões. Tem pacto de compromisso com a realidade que ela desvela mas não inventa, que ela descreve mas não falsifica, que ela poetiza mas não transforma em quimera. Alguém que caminha pelo mundo em busca do avesso da lenda – nome, aliás, de seu livro-reportagem realizado ao seguir os rastros da Coluna Prestes.

Como relembra Marcelo Rech, uma das vivências de maturação mais cruciais na travessia da talentosa repórter gaúcha deu-se em 1993:

“Eliane havia ensaiado sua vida que ninguém vê numa histórica série de reportagens sobre a Coluna Prestes – ou melhor, sobre a Coluna Prestes que ninguém via. Ao percorrer 25 mil quilômetros empoeirados do Brasil, Eliane nutriu suas anotações com a matéria-prima das melhores reportagens: a gente comum. Das testemunhas anciãs da passagem da Coluna, a quem passou chamar de “o povo do caminho”, obteve o mais surpreendente e fiel relato sobre a marcha de homens que a parte do país com voz – 70 anos depois – considerava heroica mas que, na verdade da repórter, se delineava também como uma procissão de roubos e atrocidades. Ao contrapor seu “povo do caminho” à história oficial da esquerda, Eliane despertou a ira de quem erguia mitos com pés de barro, mas fez deitar em paz o maior patrimônio de um jornalista: sua própria consciência.” (RECH, prefácio à A Vida Que Ninguém Vê) [1]

A empatia que emana de Eliane Brum como uma aura invisível, nestes tempos em que é vigente uma persistente e onipenetrante crisis of perception (Fritjof Capra), é preciosa e inestimável para acelerarmos rumo ao ponto de mutação com alguma chance de que, desta vez, mutemos rumo ao melhor. Que mutemos na direção alguma possível evolução, ao invés de degringolarmos mais uma vez na fossa coletiva do pesadelo e do desespero, da discórdia e da guerra, da incompreensão e da incapacidade de diálogo e encontro.

A inestimável escola de humanidade que são os textos de Brum é uma que muito bem faríamos em frequentar mais e mais, em peregrino e perene aprendizado, aprendendo com esta aprendiz – ela que nunca se recusa a deixar-se ensinar por alguém (nem mesmo por um bicho detrás das grades de uma jaula de zoo).

Pois Eliane vê a miséria e a glória da vida, qualquer que esta seja, que com frequência demasiada não enxergamos. Ela vê o que pra quase todo mundo passa batido, e por isso ela – sua obra e sua práxis – é tão socialmente imprescindível quanto os médicos que operam cataratas e devolvem a visão aos olhos doentes. Aonde qualquer um de nós, num dia banal, no dissabor da sobriedade e do tédio, encontra somente um macaco na jaula ou um pedinte na rua, Brum encontra muito mais: encontra destinos. Entretecidos com outros destinos. Numa teia de acachapante complexidade – e beleza, e horror, e fascínio, e asco…

Ela sabe que cada indivíduo é parte de um todo, que não há pessoa desvinculável de um contexto. Pintora pertinaz e detalhista, sensível e empática, daquilo que eu chamei, em outro artigo, de Fios na Teia da Vida,  texto onde a defendo que a obra de Eliane Brum é um dos exemplos supremos de como o jornalismo pode ser uma práxis em prol da defesa e do incremento de nossa ameaçada sociobiodiversidade.

Há muita sabedoria a colher, como um néctar, nos textos de Brum. Ela parece veicular uma sophia que diz: apesar de todo o horror e injustiça que macula a vida humana em todas as latitudes e longitudes, algo reluz de sublime e misterioso nas vidas, até na mais aparentemente mísera; até um filhote de barata tem sua dignidade ontológica, por exemplo, como aquela baratinha que a criança Eliane matou e que lhe deu tais tormentos internos que ela precisou exorcizá-los escrevendo sua micro-versão d’A Paixão Segundo G.H. de Clarice Lispector (como narrado no posfácio de A Vida Que Ninguém Vê).

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“Sempre gostei das histórias pequenas. Das que se repetem, das que pertencem à gente comum. Das desimportantes. O oposto, portanto, do jornalismo clássico. Usando o clichê da reportagem, eu sempre me interessei mais pelo cachorro que morde o homem do que pelo homem que morde o cachorro – embora ache que essa seria uma história e tanto. O que esse olhar desvela é que o ordinário da vida é o extraordinário. E o que a rotina faz com a gente é encobrir essa verdade, fazendo com que o milagre do que cada vida é se torne banal. Esse é o encanto de A vida que ninguém vê: contar os dramas anônimos como os épicos que são, como se cada Zé fosse um Ulisses, não por favor ou exercício de escrita, mas porque cada Zé é um Ulisses. E cada pequena vida uma Odisseia.” – ELIANE BRUM [2]

Leiam, por exemplo, “O Cativeiro” e “O Sapo”: no primeiro, ela transforma uma reportagem sobre os bichos no zoológico em uma profunda reflexão sobre o ser humano em sua relação com o restante do reino animal; na segunda, revela quem é aquele pedinte, sempre grudado ao chão da rua como um sapo (o que rendeu-lhe o apelido), por quem os transeuntes passam, com ligeiros olhares de pena ou desdenhosas desatenções, alguns deixando cair alguns moedinhas de esmola, restituído pela reportagem à dignidade intrínseca e à unicidade de destino que, de verdade, são dons de nossa comum humanidade, tão espezinhadas por nós humanos…

eliane-brum-a-vida-que-ninguem-ve-capa“Celebradas pelo Prêmio Esso de Jornalismo – Regional Sul de 1999, Eliane e suas A vida que ninguém vê foram como o encontro do cálice com o vinho. Fenômeno de percepção jornalística, Eliane iluminou um mundo recluso, obscurecido pela emergência da notícia ou pela máxima de que, em jornalismo, a história só existe quando o homem é quem morde o cachorro. A série provou o contrário. Ao extrair reportagens antológicas de onde outros só enxergariam a mesmice, Eliane deu a zés e marias do sul do Brasil a envergadura de personagens de literatura tolstoiana e reverteu um dos mais arraigados dogmas da imprensa. Um dia, quem sabe, algum desses acadêmicos da comunicação que se debruçam sobre aquelas teses herméticas deslocadas da vida real das redações também encare a tarefa de trazer à luz como Eliane traçou uma parte da história do jornalismo brasileiro ao escrever notáveis reportagens (ou seriam crônicas?) extirpadas das ruas anônimas.” (MARCELO RECH, prefácio.) [3]

Eliane Brum, nestas magistrais reportagens que perfazem as páginas deste papador-de-Esso-e-Jabuti que é  A Vida Que Ninguém Vêescritas em Porto Alegre, em 1999, para coluna homônima do Zero Hora, foi atrás de conhecer aqueles que não costumamos julgar dignos de ser conhecidos. Descobriu tesouros de humanidade e humor, de resiliência e resistência, de tragédia e drama, nas vidas que nunca aparecem na TV. F

az-nos conhecer o colecionador de refugos urbanos, que infunde beleza àquilo que outros legaram à lixeira. Expõe trabalhadores em situações bizarras, como o funcionário do aeroporto, carregador de malas por mais de 3 décadas, mas que nunca havia voado – até que, enfim, perde a virgindade em matéria de avião (“Alair Quer Voar”).

Também vai perseguir histórias reais bem longe dos palácios e das coletivas de imprensa, vai aos fossos, vê as crianças saindo do poço do esgoto, frequenta os velórios e as UTIs. Em sua obra não há escassez de reflexões forjadas em cemitérios ou diante de cadáveres. Extraí daí não a morbidez, algum tipo de niilismo de desistente, mas sim a lição de que até diante da morte a multiplicidade de manifestações da vida humana embasbaca quem não é babaca e sabe abrir o olho pra enxergar. Ver a maravilhosa reflexão filosófica que vai de contrabando com a narrativa sobre o chorador profissional da aldeia ou no pungente Enterro de Pobre (click e leia na íntegra).

Nada nem ninguém lhe parece indigno de atenção. Histórias de vida dignas de serem contadas pululam por aí como pequeninos grilos saltitantes que não notamos pois estamos demasiado afundados, como avestruzes, na areia de nossos celulares e telas de PC. Eliane Brum, animada por sua estrela-guia íntima, sua irrefreável curiosidade em relação à multiplicidade da vida, habita um mundo polvilhado de prodígios narráveis que encontram-se largados pelo pó dos caminhos.

Mas não é só isso: seu olhar é tão penetrante, profundo, revelador, pois é um olhar todo mergulhado na história. E sua pena não é a de alguém que registra o presente, mas de alguém que sabe conectar-se ao passado, ao percurso transcorrido, de modo que sua prosa é a de uma memorialista. Isto é, de um combatente em franca insurgência contra as potências do esquecimento. Por isso, sua obra alinha-se ao formidável esforço jornalístico-memorialístico da Dani Arbex no livro Holocausto Brasileiro (click e saiba muito mais).

Ela está ciente de que muita glória, que pôde um dia ter parecido imorredoura, revela-se com o andar da carruagem do tempo como perecedoura, mera vanitas que se desfaz em névoa: diante da estátua do Conde de Porto Alegre, ela evoca alguém que foi glorioso outrora, alguém que quis ser celebrado em epopéias como um Aquiles ou Ulisses, reduzido a limada pedra onde mijam os mendigos e de quem às vezes comenta-se: “quem foi esse cara?!? o que será que ele fez na vida?”

Eliane Brum, ao invés de fazer-se memorialista dos grandes e privilegiados, parece sempre preferir aproximar-se daqueles de destino mais vulnerável, justamente aqueles que estão mais ameaçados por um olvido que não demora. Um olvido que chega a preceder a morte. Um olvido que se confunde com suas vidas. São as vidas que ninguém vê, as vidas dos esquecidos, cada um deles uma manifestação irrepetível e única da vida neste universo.

* * * * *

Eliane Brum em território Ianomâmi, em Roraima, em 2001. A reportagem é "A Guerra do Começo do Mundo", está em O Olho da Rua.

Eliane Brum em território Ianomâmi, em Roraima, em 2001. A reportagem é “A Guerra do Começo do Mundo”, está em O Olho da Rua.

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II. JORNALIRISMO REVELADOR DA POESIA POR TRÁS DA POEIRA COTIDIANA

O jornalismo e o lirismo dançam tão juntos no palco dos escritos de Eliane Brum que estes talvez mereçam o título de inauguradores do “Jornalirismo” brasileiro. Um professor ensinou-lhe que “jornalista era o homem (ou mulher) que estava lá, pessoalmente (e não por telefone ou por e-mail), com os dois pés enfiados na lama dos acontecimentos.” [4] A discípula seguiu a receita à risca: sem pudores, pôs seus pés nas agruras da realidade, na convicção de que “repórter de verdade atravessa a rua de si mesmo para olhar a realidade do outro lado de sua visão de mundo. Só assim pode chegar mais perto da verdade – ou das verdades – da história que se propôs a contar.” [5]

ebrum-0474Jornalista não é o papagaio de uma ideologia que a empresa que lhe emprega manda-lhe disseminar (e que ele, como cão amestrado e submisso, acata). Jornalista não é também aquele que brada “eu! eu! eu!” e quer ser a estrela da reportagem (argumento anti-gonzo que a obra de Brum discute e problematiza, já que ela também tem um texto que às vezes carrega alta carga confessional e “subjetivista”).

Jornalista é um bicho que, tal como Brum compreende este ofício (que ela hoje exerce no Brasil com raro e refulgente brilhantismo!), deve servir às verdades plurais, pôr-se a serviço daqueles que não são ouvidos, amplificar as vozes que são esmagadas ou silenciadas pelos poderes hegemônicos. Eliane Brum escuta a sinfonia da vida em todo seu desconcerto e polifonia; depois pinta em suas páginas alguns retratos, profundamente humanos, de gente que briga para criar sentido e graça em meio ao tsunami de nonsense, violência e descalabro.

Eliane Brum vai buscar seus personagens nas periferias, nos presídios, nas aldeias indígenas, nas estradas de terra distantes dos grandes centros urbanos, nas florestas repletas de bichos exóticos e parteiras xamânicas. Seu interesse etnográfico e sua disposição para escutar as diferenças torna-a assemelhada a Eduardo Coutinho, falecido documentarista brasileiro, que sabia fazer cinema – vejam Edifício Master, Jogo de Cena ou O Fim e o Princípio – com um lirismo que também encontramos às mancheias nas palavras de Brum. 

Escritora de talento comparável ao de Rubem Alves ou Lya Luft em seu manejo audaz do dom expressivo, Eliane Brum sabe pôr chama no verbo. Aquilo que ela escreve está simultaneamente animado com emoções intensas e diversas, de um lado, e ao mesmo tempo dotado de lucidez e clareza em seus diagnósticos críticos, de outro. Para o Brasil traz muito benefício ler, compreender, digerir, disseminar a obra (em processo, atualíssima!) de Eliane Brum. Eis um “remédio” – pharmakon de primeira qualidade! – que sugiro a todos que experimentem: serve para curar cataratas psíquicas, cegueiras do cérebro, preconceitos arraigados, dogmas imobilizantes. Oswald de Andrade recomendava “ver com olhos livres”. A obra de Brum indica o rumo para os que querem ver com olhos livres, e sem prescindir da indignação e da força criadora da união e da compaixão.

Além de repórter de rara capacidade de escuta, além de descomunais poderes de expressão verbal, Eliane Brum é uma pensadora – apesar d’eu suspeitar que ela talvez prefira um termo um tanto mais lúdico, como pensadeira. Seu texto carrega reflexões que a tornam digníssima de ser considerada uma das melhores filósofas brasileiras em atividade (na companhia de Marilena Chauí, Márcia Tiburi, Maria Rita Kehl, Maria Cristina Franco Ferraz, Viviane Mosé, dentre outras).

Brum é uma buscadora de respostas para alguns dos problemas que mais a solicitam e empolgam: em especial, ela busca descobrir, em cada pessoa que ela ouve e conhece, a maneira através da qual  a pessoa tenta criar sentido para sua vida. Pois Eliane é intensamente consciente da mortalidade que nos constitui, inescapavelmente, e sobre a qual realiza tantas de suas reportagens e investigações. Um de seus “nortes” na existência é conseguir o dom búdico de, diante de dores e prazeres, possuir a “serenidade de quem sabe que é efêmero.” [6] No trecho seguinte, ela revela alguns detalhes do que pesquisou sobre o tema do morte, citando o historiador Philippe Ariès, além do grande Rubem Alves:

História_da_morteA história humana pode ser contada pela maneira como cada sociedade, em diferentes períodos, lidou com a morte. O historiador francês Philippe Ariès escreveu uma das obras mais completas sobre o tema, primeiro num pequeno livro chamado História da Morte no Ocidente e depois em 2 volumes intitulados O Homem Diante da Morte. ‘A morte no hospital, eriçado de tubos, está prestes a se tornar hoje uma imagem popular mais terrífica que o trespassado ou o esqueleto das retóricas macabras’, afirmou.

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Rubem Alves

O psicanalista Rubem Alves deu um tom confessional à impotência do homem contemporâneo  diante da medicalização da morte: ‘Tenho muito medo de morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte. Muitos dos chamados ‘recursos heroicos’ para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da ‘reverência pela vida’, Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: ‘Liberta-me’.

Começamos a morrer no exato instante em que começamos a viver. E hoje estamos mais mortos do que estávamos ontem. Mas, neste momento, mais que em qualquer outro período histórico, nós, homens e mulheres do Ocidente, vivemos a morte como uma experiência marginal. Ela se passa, de preferência, oculta dentro do hospital. E, quando perdemos alguém, nossa dor deve ser superada rapidamente, de forma asséptica como um procedimento cirúrgico, sem muito barulho e sem perturbar os amigos.

Pela lei, se perdemos um parente direto, temos direito a nos ausentar por 3 dias do trabalho. Quem casa, tem 5. Quando nasce um filho, a licença é de 120 dias para a mãe. Como se chegou à conclusão de que três dias de luto é suficiente? Por que dois é pouco e quatro é demasiado? Seria o primeiro dia usado para enterrar o morto, o segundo para limpar os armários e o terceiro para chorar? E, depois, a vida continua?” [BRUM, 7]

Eliane Brum faz coro com outra das maiores pensadoras brasileiras – Maria Rita Kehl, em seu estudo sobre a depressão O Tempo e o Cão – na recusa da “solução medicamentosa”, ou seja, a resolução dos problemas por decreto bioquímico fornecido pela tecnociência hi-tech. Ambas – Brum e Kehl – põem em questão a medicalização excessiva da vida, que tanto agrada à multimilionária indústria farmacêutica. A consciência de nossa mortalidade, a percepção de nossa finitude, as angústias e temores que podem assolar a psiquê diante do reconhecimento pleno de nossa efemeridade, não são fenômenos que mereçam ser tratados como doença, nem “curados” com doses cavalares de Prozac. Um ente querido faleceu e o mundo só nos concede 3 dias de licença no trabalho; pior: “se sofremos além do período considerado socialmente aceitável, tornamo-nos um caso patológico. Os amigos mais queridos nos dão o telefone de um psiquiatra. O que nos falta não é um ombro humano, mas antidepressivo.” [8]

Contra este ideário, Brum fala da morte como de uma escola. Ela nos ensina, a morte, sobre “como lidar com dois fatos intrínsecos à vida humana: impotência e falta de controle. (…) Ela nos lembra do que gostaríamos de esquecer. Em nossa época vende-se a ilusão de que é possível controlar com pílulas sentimentos tão intangíveis como a melancolia e a tristeza, prender a juventude à força de bisturis e cosméticos, prescindir da tradição e construir-se a si mesmo sem dever nada a ninguém. A morte nos lembra que há algo de errado nessa equação. Podemos transformar o corpo, mas não evitamos que ele morra. Podemos decidir entre marcas na prateleira, mas não decidimos deixar de morrer. Podemos fazer nossas próprias regras, mas entre elas não está viver para sempre. A morte nos confronta com a questão fundamental de nossos limites.” [9]


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III. A CIDADE PARTIDA

Vivemos em cidades partidas, e o estranho é que nas selvas de concreto tão acostumados estamos a isso que quase nada nos estarrece, que as mais abomináveis injustiças não atiçam nossa “morna rebeldia” (Criolo). Eliane Brum, em A Vida Que Ninguém Vê, fez-se a cronista de uma Porto Alegre toda cindida. Cidade partida entre os privilégios e os andrajos, entre o morro e o asfalto, entre os popstars e os esquecidos. O destino da infância massacrada pela miséria no seio da megalópole – aquilo que o sociólogo José de Souza Martins chamou, em um livro que organizou, de O Massacre dos Inocentes – é um de seus temas recorrentes. Vejam, por exemplo, a reportagem-manifesto “Sinal fechado para Camila”, o tipo de texto que assombra o leitor muito tempo depois dele atingir a última linha. Ei-lo na íntegra:

“Sinal fechado para Camila 

– Tio lindo, tia linda do meu coração. Eu pergunto a você se não tem um trocadinho ou uma fichinha pra essa pobre garotinha

Quase com certeza você ouviu esse hino em algum cruzamento de Porto Alegre. Debaixo de um sinal vermelho, o som entrando pelo vidro fechado, ameaçador como um Alien. O som entrando pela janela que você cerrou para se defender do ataque à sua consciência. Você rezando para que o sinal mude de cor, fique verde, não de esperança, mas verde de fuga. Sinal livre para escapar do rosto da menina grudado na janela. Sujando seu patrimônio. Obrigando-o a tomar conhecimento da miséria dela. Você, que paga seus impostos em dia, colabora com a campanha do agasalho, que até é um cara bacana. Subitamente transformado em réu no tribunal do sinal fechado por um rosto ranhento de criança.

Você, quase com certeza, ouviu esse hino. Pois saiba. A menina que o compôs morreu no domingo. Nunca mais ela assombrará a sua janela. A menina se chamava Camila. Camila Velasquez Xavier. Tinha dez anos. Mas os dez anos dela equivalem a cem dos seus. Camila viveu muito, até. No bairro onde ela nasceu, o Bom Jesus, 17 como ela morreram antes de completar um ano em 1997. Camila nasceu na Fátima, uma vila da Grande Bom Jesus. Vila, modo de dizer. Becos e mais becos de barracos amontoados sobre o cimento. Lá, o controle da população é feito ao natural. Só em janeiro, já tombaram quatro. Assassinatos citados em notinhas de canto de página.

Camila nasceu na Fátima, num barraco de uma peça. Quando chovia, havia tanta água fora quanto dentro. Em dez anos a família progrediu. Conseguiu um barraco de duas peças. Camila dormia com os quatro irmãos num sofá esburacado ou no chão de tábuas podres porque não havia lugar para todos. Pai e mãe desempregados, o pai um homem triste, de olhos injetados, que descia o braço sobre a mãe sempre que bebia além da conta.

Aos seis anos Camila foi enviada aos sinais para ganhar a vida da família. Logo descobriu que a concorrência era enorme. Que as janelas dos carros eram a versão moderna das muralhas medievais. Camila começou a embelezar sua tragédia. Inventou versinhos que venciam fossos e arriavam pontes levadiças, arrancando um sorriso perplexo dos motoristas. Eu não posso ficar sem você, meu trocadinho. Essa tia, esse tio queridinho vai me dar um trocadinho. Camila conquistou a sua diferença nos cruzamentos da cidade. Seus hinos se espalharam pelas sinaleiras e, mesmo depois de sua morte, seguem ecoando pela boca de outras Camilas.

Aos seis anos, flagrada na rua, Camila entrou pela primeira vez no prédio sem cor da Febem. Entraria ainda outras duas vezes. Na sexta-feira, 15 de janeiro, ela e outras cinco meninas jogaram suas trouxinhas pela janela do prédio. Um ursinho Puff de segunda mão e algumas camisetas compunham o espólio coletivo. Quando a porta se abriu para brincarem na pracinha – uma ficção de armações de ferro que há muito perdeu os balanços e as gangorras, uma ficção como a infância de todas elas – iniciaram sua jornada rumo à liberdade. Que passou na forma de um ônibus lotado para o centro de Porto Alegre.

No dia seguinte, a direção da casa informou ao plantão do Conselho Tutelar. Que anotou. Estava cumprido o trâmite burocrático. Por todo o final de semana, Camila e suas cúmplices de desamparo vagaram pelas pontes da cidade sem que ninguém as buscasse. Crianças sob a tutela do Estado vagando ao léu sem que ninguém chorasse a sua falta. Fazia calor no domingo, todo mundo lembra. Um calor tão pesado que quase se podia tocá-lo. Às 14h, de calcinha e camiseta, Camila e duas das fugitivas mergulharam no Guaíba na altura do parque Marinha do Brasil. Camila não sabia nadar. Debatendo-se como fez durante toda a vida, Camila, a senhora dos cruzamentos, submergiu.

Às 8h de segunda-feira, a notícia da fuga e da morte de Camila despertou a família. Vai ter que esperar porque ainda não abrimos a menina, informou o funcionário do Departamento Médico Legal à mãe quando ela foi recolher o corpo da filha. Camila foi enterrada na manhã de terça-feira, no caixão branco dos inocentes. A Febem pagou o enterro, pagou até uma capela funerária com ar-condicionado. Que lugar mais lindo, repetiam os familiares, assombrados com o espaço tão grande e tão verde da morte. Acompanhada por um séquito de parentes de rostos derrotados, Camila foi enterrada no Jardim da Paz. No cortejo, um único terno. Puído e manchado, envergado por um homem em quem o sofrimento abriu sulcos no rosto. Um homem tentando agarrar a dignidade que escapava como o cós da calça maior do que ele. No cortejo, nenhuma flor para Camila.

Talvez você lembre de Camila. Talvez não. Sua marca registrada, além da cantoria dos cruzamentos, eram os dedos indicador e médio eternamente na boca. Sua imagem desvalida não voltará a assombrar as janelas sob os sinais. Camila morreu. Mas os versinhos de Camila cruzaram o ar e semearam as esquinas. Não se iluda. Você não vai escapar. Há um exército de Camilas pela cidade. Haverá sempre uma delas tentando arrombar o vidro do carro com a urgência de sua fome. Camila morreu. Você, e eu também, somos cúmplices de sua morte. Nós todos a assassinamos. A questão é saber quantas Camilas precisarão morrer antes de baixarmos o vidro de nossa inconsciência. Você sabe? E agora, tio lindo, tia linda, o que você vai fazer? [23 de janeiro de 1999] [10]

Na “cidade partida”, Eliane busca chaqualhar a apatia dos conformados ao reconstruir um fio narrativo que empreste ao menos farrapo de sentido às vidas destas vidas mutiladas, atropeladas, relegadas, abandonadas, sequeladas, invisibilizadas – e que tudo isso sofreram sem nenhum merecimento, sem nenhuma culpa que justificasse tal via-crúcis. Eliane Brum sabe escrever textos trágicos, pungentes de tragicidade sem açúcar nem consolo. Semelhante à reportagem “Sinal fechado para Camila” é “O Menino do Alto”, que foca a atenção no garoto que mora no topo do morro e acaba perdendo as pernas, tornando-se uma espécie de prisioneiro na torre da favela. Incapaz de transpor o fosso social entre o alto e o asfalto, torna-se protagonista de um texto-revelação, de uma reportagem-poema, onde iluminam-se os claros e escuros de uma existência que parecia destinada ao esconderijo e ao esquecimento.

A insurgência jornalística de Eliane Brum dirige-se contra o destino de serem esquecidos que parece ser imposto por forças superiores aos milhões de esquecidos da Terra – aqueles que Franz Fanon batizou de the wretched of the earth, les damnés de la terre. Dentre eles, Brum descobre um heroísmo secreto e nada ostensivo, lutas invisíveis e sem promessa de glória, de um pai que é um “Hércules subnutrido” e de moradores sofridos de uma comunidade obrigada a ser composta por “alpinistas da miséria”.

Na cidade das iniquidades solidificadas e da solidariedade na UTI, ela atenta para as “massas de crianças desvalidas”, mas sempre busca o delineamento de individualidades, com suas idiossincrasias, nunca decaindo no cinzeiro das abstrações pálidas e descarnadas. Todas as teses sociológicas ou filosóficas, psicológicas e existenciais, que Eliane Brum veicula através de seus escritos, parecem ancoradas firmemente em sua experiência vivida e em seus encontros reais com uma multiplicidade de outros. De cada outro ela constrói um emblema para uma de suas teses essenciais: a da unicidade de destino, ou seja, a noção de que cada um de nós é irrepetível, é uma travessia efêmera ímpar por esta rocha girante no cosmos pluridimensional.

Como aquele garoto, ladrãozinho de cavalos, destemido bandido mirim que parece saído de um faroeste. O menino rouba o pangaré do carroceiro, sai galopando por Porto Alegre em pleno delírio heróico, mas não tardam até que “os cascos da realidade esmaguem os sonhos do menino” (“O Encantador de Cavalos”). Com sua cabeça posta à prêmio por ser ladrão de equinos, poderia ser relegado a uma nota de pé de página no noticiário policial do Zero Hora. Poderia ter sido tratado com manchete de imprensa marrom, Recompensa-se pela cabeça do pequeno vândalo que rouba cavalos. 

Mas Eliane Brum nunca contenta-se com o beabá do jornalismo policialesco e proto-fascista que tanto pratica-se no Brasil. Ela quer ir atrás de um passado que ilumine o presente, e assim mergulha no destino do outro, desvelando no reles ladrãozinho um personagem digno de um romance infanto-juvenil de Charles Dickens ou Mark Twin. Após uma tragédia incendiária, em que uma vela acendida para iluminar sua casinha acabou por sepultar em trevas sua vidinha tão jovem, o pequeno perdeu sua companheira de infância, a égua Sabonete. O ladrãozinho, na verdade, era animado por sonhos de re-encontro com o cavalo perdido, e Brum transforma sua saga numa “busca por Pégasus” similar à de Alexandre, o Grande. A odisséia mirim de um audaz e temerário garoto que gostaria de ter asas para transpor o terrível fosso que separa, na cidade partida, o luxo da miséria, a vida fácil da via-crúcis dos esquecidos.

20080717 / Marcelo Min / Agência Fotogarrafa / Revista Época / Hospital Servidor Público Estadual Reportagem sobre o Cuidado Paliativo do Hospital dirigido pela Dra Maria Goretti Maciel. Internação de Ailce no Hospital do Servidor. Sedação paliativa. Eliane Brum.

Eliane Brum em ação na reportagem com a Sra Ailce, que acompanhou em seus últimos dias de vida.

Sabe-se também que Eliane Brum é uma das pessoas que melhor reflete sobre a loucura neste país, e não apenas como prefaciadora da magnum opus de Daniela Arbex sobre o hospício de Colônia (MG). Sondando a lucidez que há na loucura, o método que há na fantasia e mesmo a beleza que se esconde por trás de certos crimes, Eliane faz-nos estarrecidos cúmplices de uma reflexão a um só tempo psicológica, sociológica, filosófica, que se fosse resumível em uma frase lapidar talvez pudesse ser esta: “sempre que alguém não se encaixa no mundo da maioria, é logo chamado de maluco.” (“Frida”) Sobre empatia pelos malucos na prosa poética de Eliane Brum, que por vezes até escreve com sabor de humor Raul Seixista (vejam, por exemplo, a divertidíssima crônica “A Voz”).

Os rotulados como loucos, delinquentes, imprestáveis, merecem dela sempre a atitude mais demorada do que a rapidez estúpida dos preconceitos. Ela ensina a ver para além dos rótulos e a acolher a diferença “num mundo que se especializou em esmagar, eliminar e encarcerar a diferença” (“Frida”). Através de sua prosa, multifacetada como o caleidoscópio caótico-cósmico da Vida, ela comunica a revolta contra aqueles que agem como se destinos pudessem ser destinados à lixeira. E solidariza-se com tantas Evas – pobres negras mulheres cheias de cicatrizes – que recusam-se ao destino de meras coitadas.

Uma brilhosa chama de ativo ideário ético anima os escritos de Brum, problematizadora da caridade vendida como panacéia: “a mão da caridade”, escreve ela com pena pontiaguda de provocação, é “irmã da pena, prima da hipocrisia”, e é isto que Eva renega. Em textos que ainda não tiveram toda a sua potência enfatizada pela crítica literária feminista, Eliane Brum inaugura uma galeria de revoltosas que insurgem-se muito além dos limites delineados por Albert Camus. Poderiam integrar um futuro livro chamado La Femme Revolté, a merecer lugar nas livrarias e bibliotecas lado a lado com O Segundo Sexo de Beauvoir.

Brum revela no cerne de todos nós, pulsando junto com as sístoles e diástoles do coração, um pavor que não é somente da morte física, mas da amnésia dos que ficam, os sobreviventes, sempre tão mortais e esquecidiços. Frase emblemática, em “O Exílio”: “temeu que seu mundo fosse sepultado com ela”. Emerge destes escritos a imagem impressionante, pungente, avassaladora, de um mundo que é a um só tempo viveiro e morredouro. Onde nós, viventes-mortais, “seguimos nosso combate silencioso contra o naufrágio da vida.”  (“O Exílio”)

De acordo com ela, “a maior de todas as dores” é a “invisibilidade” (“O Homem Que Comia Vidro). E o que ela escreve sobre Venise e seu “talento singular” poderia ser dito da própria Eliane Brum: “tem o dom de dar importância ao desimportante, de dar significado ao insignificante.” (“O Álbum”) Cheia de tanto som e fúria, às vezes parecendo significar nada além de caótica cacofonia, nossa vida até parece fazer um fiapinho de sentido quando tecida na fina tapeçaria verbal desta magistral artista-da-palavra. Com as palavras que ela encerra A Vida Que Ninguém Vê, encerro também este breve percurso, na esperança de que tenha despertado apetite e curiosidade para que mais e mais leitores mergulhem nesta obra tão preciosa de Eliane Brum, alguém que sempre buscou

“estimular um olhar que rompesse com o vício e o automatismo de se enxergar apenas a imagem dada, o que era do senso comum, o que fazia com que se acreditasse que a minha, a sua vida fossem bestas. A hipótese era a de que o nosso olhar fosse sendo cegado, confundido por uma espécie de catarata, causada por camadas de rotinas, decepções e aniquilamentos, que nos impedisse de ver. Vemos o que todos veem e vemos o que nos programaram para ver. Era, com toda a pretensão que a vida merece, uma proposta de insurgência. Porque nada é mais transformador do que nos percebermos extraordinários – e não ordinários como toda a miopia do mundo nos leva a crer.

(…) Esse olhar que olha para ver, que se recusa a ser enganado pela banalidade e que desconfia do óbvio é o primeiro instrumento de trabalho do repórter. Só pode ser exercido sem a mediação de máquinas. Não pretendo fazer aqui uma análise sobre as razões dessa mudança que faz com que muitos repórteres só vejam a vida – e os fatos, as pessoas – pela tela do computador. Só diria ainda que aqueles que se dobram à nova regra não-escrita são tão facilmente substituíveis – porque descartáveis – quanto os componentes eletrônicos das máquinas que elegeram para intermediar seu olhar sobre o mundo. E os primeiros a ser deletados numa das cíclicas crises das empresas de comunicação – porque deletaram antes a sua singularidade.

(…) Olhar dá medo porque é risco. Se estivermos realmente decididos a enxergar não sabemos o que vamos ver. Quando saio da redação, tenho uma ideia de para onde devo olhar e o que pretendo buscar, mas é uma ideia aberta, suficiente apenas para partir. Tenho pena dos repórteres das teses prontas, que saem não com blocos, mas com planilhas para preencher aspas predeterminadas. Donos apenas da ilusão de que a vida pode ser domesticada, classificada e encaixotada em parágrafos seguros. Tudo o que somos de melhor é resultado do espanto. Como prescindir da possibilidade de se espantar? O melhor de ir para a rua espiar o mundo é que não sabemos o que vamos encontrar. Essa é a graça maior de ser repórter. (Essa é a graça maior de ser gente.)

Se de perto ninguém é normal, de perto ninguém é herói. Essa mania de mitificar gente, alçar fulano ou beltrano ao Olimpo porque supostamente fez algo sobre-humano, empata a vida. Faz com que os supostamente pobres mortais se sintam exatamente isso: pobres mortais. Ou losers, na expressão do que a cultura americana tem de pior. Um ser humano, qualquer um, é infinitamente mais complexo e fascinante do que o mais celebrado herói. Mesmo os super, dos quadrinhos e do cinema, pode reparar: o Homem-Aranha só consegue duas horas de filme por causa do atrapalhado Peter Parker e até o Super-Homem, que veio de outro planeta, só tem atenção por conta de suas fraquezas bem terráqueas (ou quantas voltas ao redor da Terra ele precisaria dar até todo mundo roncar?). Inclusive demônios como o Hellboy só são interessantes pelo que têm de humano, da ternura ao mau humor. Vou ao limite dos super-heróis para falar de uma obrigação de repórter. Meu professor de jornalismo, um baixinho-gigante chamado Marques Leonam, dizia: “Lei Leonam número um: repórter não tem o direito de ser ingênuo. Lei Leonam número dois: repórter não tem o direito de ser ingênuo…” Acho que ia até o número dez repetindo essa máxima leoniana. Eu faria alguns adendos a essa lei fundamental. Um deles é: desconfie dos heróis, dê uma boa cheirada num mito. Eles só se aproximam da verdade quando virados pelo avesso e promovidos a homens.

Somos todos mais iguais do que gostaríamos. E, ao mesmo tempo, cada um é único, um padrão que não se repete no universo, especialíssimo. Nossa singularidade só pode ser reconhecida no universal. Tudo é um jeito de olhar. Você pode olhar para o infinito, como Carl Sagan, e descobrir que é feito da poeira de estrelas. E pode olhar para o chão e acreditar que é um cocô de cachorro. É o mesmo homem que tem diante de si o infinito e o chão. Mas é nessa decisão que cada um se define. Como olhar para você mesmo é uma escolha. Um exercício da liberdade, da autodeterminação, do livre-arbítrio. Seja generoso. Arrisque. Ouse. Olhe.” – ELIANE BRUM [11]

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Fevereiro de 2017


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] RECH, Marcelo. Prefácio de A Vida Que Ninguém Vê. Porto Alegre: Arquipélago, 2012.
[2] BRUM, Eliane. Posfácio de A Vida Que Ninguém Vê.
[3] RECH, M. Op cit.
[4] BRUM, A Primeira Pessoa Sou Eu?p. 347. In: O Olho da Rua – Uma Repórter Em Busca da Literatura da Vida Real. São Paulo, Globo: 2008.
[5] Idem nota anterior.
[6] O Inimigo Sou Eu, 2008, p. 333.
[7] A Morte Envergonhada. P. 360.
[8] Op cit, p. 362.
[9] Op cit, p. 363.
[10] Sinal Fechado Para Camila. In: A Vida Que Ninguém Vê. Op cit.
[11] Posfácio de A Vida Que Ninguém Vê.


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De Eliane Brum e Debora Diniz

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INFINDAS MANEIRAS DE FINDAR – O que desvela Fernanda Torres em seu romance de estréia, “Fim” (Companhia das Letras, 2013)

INFINDAS MANEIRAS DE FINDAR

Fernanda Torres cometeu um romance de estréia que é um escândalo de bom. Uma prosa tão excitante e vivaz quanto a de Arundathi Roy ou Katherine Mansfield pulsa nas páginas de Fimlivro desta magistral multi-artista brasileira. Célebre por seus papéis na televisão e no cinema (com destaque para O Que É Isso Companheiro?, de Bruno Barreto, O Primeiro Dia, de Walter Salles, Eu Sei Que Vou Te Amar, de Arnaldo Jabor, Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, além de alguns filmes de seu marido Andrucha Waddingston), Fernanda Torres tem se revelado não somente como uma de nossas melhores atrizes e mais hilárias comediantes mas também como uma escritora de alta relevância e imensa capacidade expressiva.

Numa prosa apimentada e caliente como Nelson Rodrigues ou Henry Miller, Fernanda tece um panorama não só do Rio de Janeiro, mas de toda a condição humana, colecionando “causos” de gente que está findando. Não chamemos de “agonia”, que a palavra é muito soturna, enquanto que a prosa Fernandina é brincalhona e lúdica. Não são personagens agonizantes – no sentido Gritos e Sussurros de Bergman – o que o leitor acessa através da leitura de Fim. 

É muito mais um vívido retrato da vida humana em sua finitude, em sua pequenez, em sua inconclusão, já que os mortais muitas vezes não podem nem mesmo consolar-se pensando que morreram uma “boa morte”. Em Fim, há fins que são ridículos, patéticos, grotescos, horrorshow. Fernanda Torres não pinta auréolas de santidade sobre a cabeça de ninguém – nem mesmo do Padre Graça, este excelente personagem que, em Fim, fica “abalado pela quantidade de vezes em que Deus parecia dormir” (p. 41).

A prosa dela é capaz de inúmeras referências cinematográficas (Bruce Willis descalço sobre os cacos de vidro de uma explosão recente), musicais (as canções de Dolores Duran que embalam a fossa emocional de uma das personagens), teatrais e contraculturais (como a eventual aparição, no enredo, dos Dzi Croquettes e de Lennie Dale). Sobretudo, Fernanda  Torres demonstra ser uma contadora-de-histórias de grande audácia e criatividade, capaz de dialogar com algumas das magnum opus da literatura universal. No trecho seguinte, ela põe o romance para refletir filosoficamente de um modo que lembra o modus operandi de Milan Kundera e manda a seguinte descrição de Ruth (status no Facebook: “em um relacionamento enrolado”):

Fernanda Torres 2

“O ato supremo do romantismo é o suicídio. Ruth nasceu com o defeito de ser feminina ao extremo e, por consequência, romântica em excesso. Sempre viu nisso vantagem, mas agora que descobria a fragilidade de sua natureza, daria tudo para se livrar de si mesma. Se possuísse a audácia de Bovary, tomaria cicuta, a nobreza de Sônia, enfrentaria a Sibéria, se miserável, como Fantine, arrancaria os dentes. Mas não, era uma mortal carioca, classe média, como tantas. Célia, Irene, Raquel, todas tratavam seu sofrimento como algo vulgar, um mero desquite. O talho nos pulsos, a forca, o gás, eram fins grandiosos demais para alguém como ela. Decidiu ser humilde, matou o amor com descrição de vestal, fez do lar um convento. Já não planejava reconquistar o marido, queria, sim, se isolar do barulho lá fora, não se importar, não querer, não precisar, não sofrer. Morrer. Exercitou a indiferença até se tornar insensível ao cheiro, ao rosto e à voz da cara-metade.” (FERNANDA TORRES, Fim, pg. 120)

Além de evocar figuras femininas das páginas de Madame Bovary, de Flaubert, Crime e Castigo, de Dostoiévski, e Os Miseráveis, de Victor Hugo, Fernanda Torres faz algo mais: consegue dar densidade existencial ao que, nas mãos de um artista menos competente, de um escritor menos expressivo, poderia ter caído na vulgaridade de um desquite. Os vínculos afetivos, nas páginas de Fim, estão pintados com tremendo realismo, entrelaçados por nós complexos, numa maquinaria que não é fácil fazer com que trabalhe com harmonia a contento. Neste sentido o livro realiza algo também magistralmente conquistado por D. H. Lawrence em O Amante de Lady Chatterley e por Nathaniel Hawthorne em A Letra Escarlate: mostra todo o drama existencial por trás da suposta simplicidade da separação, do divórcio, do desquite, do rompimento do vínculo. Fim carrega em seu bojo uma constelação afetiva muito ampla – e Fernanda Torres é audaz o bastante para não dourar a pílula, expondo com adorável impertinência e irreverência os muitos erros e calhordices que cometem os humanos uns contra os outros.

Em Fim, a literatura de Torres debruça-se sobre a vida humana em sua finitude e sonda e as circunstâncias e situações tão diversas nas quais podemos findar. Que estes entes finitos que somos tenhamos que findar um dia (que não tarda), eis coisa certa, porém a vida reserva-nos um certo grau de suspense: o de não saber lá muito bem as características precisas em que se dará a morte de Fulano ou Sicrana (e o nosso próprio fim, sua “cara”, sua “peculiaridade”, é-nos desconhecido por boa parte da vida!). Tolstói, com seu A Morte de Ivan Ilich, ou Hermann Broch, com seu A Morte de Virgílio, são exemplos de artistas primorosos na “pintura” dos últimos momentos de um vivo que finda. Pois findar é nosso destino, e a arte imita a vida.

O interesse de Fim, o livro com o qual Fernanda Torres debuta no campo da prosa de longo fôlego, vai muito além de ser um panorama dos costumes do Rio de Janeiro, visto através do prisma daqueles que no Rio findam seus dias. O livro sonda a condição humana e depois entrega ao leitor um banquete de divagações existenciais, teses psicanalíticas (“a intimidade destrói a libido”, p. 164), piadas one-liners dignas de sitcom (herança que Fernanda traz dos anos contracenando com Luiz Fernando Guimarães na série Os Normais?).

Sobretudo o livro impressiona pelos personagens fortes, bem delineados e nada idealizados. Fernanda Torres fez um livro cujo sabor agradará mais aos misantropos que aos humanistas, e onde pulsa uma veia satírica que beira a língua ácida dum Céline ou o traço satírico de Crumb.

Mas dá pra sentir também que a mulher que segura a pena também é capaz de intensa empatia. Do emaranhado de prosa em que os personagens estão presos emana uma certa percepção da interconexão ontológica que tece nossos destinos de modo a ninguém ser um ilha e todos serem co-dependentes.

As pessoas – ou, melhor dizendo, os mortais que Fernanda Torres nos pinta, os episódios com os quais ela encena os despropósitos e as dificuldades destas vidas, mostram o ser humano sem idealização, sem máscara. O que não quer dizer que não reste mais nada de gostável neles. Muitas vezes são bastante simpáticos, apesar de calhordas. São extravagantes em seus desarranjos, como se quisessem nos provar que, olhando bem fundo, prestando bem a atenção, não dá pra dizer de ninguém que seja normal… E a manada dos normais muitas vezes nem suspeita do quanto há de loucura em sua normopatia…

As 5 partes de Fim são dedicadas a 5 criaturas humanas que estão no processo de findar. Todos estamos,  é verdade, mas eles estão, por assim dizer, na reta final: a morte já afia sua foice à espera de seus pescoços que se aproximam. A “morte de ávidos dentes”, como diz Sêneca, já está passando o azeite e o sal sobre a carne destes bifes humanos que ela está prestes a deglutir. Álvaro, o protagonista da primeira parte do romance, é um velhinho que já não se locomove com o vigor de sua juventude: “Depois dos setenta a vida se transforma numa interminável corrida de obstáculos. A queda é a maior ameaça para o idoso. A queda separa a velhice da senilidade extrema. (…) Em casa, vou de corrimão em corrimão, tateio móveis e paredes, e tomo banho sentado.” (pg. 14)

Ao situar Álvaro no cenário do Rio ultra-urbanizado, velhinho tentando atravessar a rua e sentindo-se profundamente desrespeitado pelo corre-corre ao redor, Fernanda Torres acaba por pintar um quadro sociológico muito interessante sobre as agruras da urbanidade e sobre as consequências práticas de nossa carrolatria (o endeusamento do automóvel individual):

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“Opa, abriu. Esse sinal demora uma eternidade para abrir e dois segundos para fechar. Lá vou eu, ágil como os cágados da Marília. Não acredito, já está piscando?… Fechou! Ainda falta um terço de faixa e essa porcaria fecha? Calcularam com quem esse tempo? Com o Ligeirinho? O que é? Vai passar por cima? Passa, desgraçado, parte o meu joelho no meio com o seu farol de milha. Eu já entendi que você quer passar, filhinho! Um dia você vai envelhecer, se tiver sorte você vai envelhecer, e um guri com pressa vai quebrar a sua perna em vários pedacinhos e você vai passar o resto dos seus dias de fraldão, com pânico de atravessar a esquina.” (pg. 20)

Essa sátira da speedfreakiness que assola nossos tempos – os carros peidando CO2 e buzinando contra velhinhos e ciclistas… – é apenas um exemplo, no livro de Fernanda, desta capacidade incrível da autora para revelar a torpeza de comportamentos. Álvaro, o velhinho que não consegue atravessar a rua, a tempo e a contento, mesmo que vá até a faixa de pedestres, é um representante de toda uma fração da população que encontra-se alijada de direitos na cidade segregada e carrólatra. O semáforo está programado para ir ao vermelho muito velozmente para que o velhinho Álvaro tenha tempo para atravessar a rua, e uma treta logo pipoca, com xingos e verbais violências. Álvora não é descrito por Fernanda como coitadinho. Pelo contrário, é um velho amargo, raivoso, que xinga e esbraveja, expressando todo o seu rancor e profetizando que o dono do carro, que contra ele dispara a buzina, irá, no futuro, ter a perna estropiada por um guri com pressa, um desses tipos Mad Max, “a full-injected suicide machine”…

Álvaro não é o velhinho coitadinho, é mais uma expressão dessa sociedade onde triunfa o individualismo a ponto de alguém ser capaz de confessar, como ele o faz: “Não separo lixo, não reciclo, jogo guimba no vaso, uso aerosol, tomo longos banhos quentes e escovo os dentes com a torneira aberta. Dane-se a humanidade. Não vou estar aqui para assistir.” (pg. 20)

Estes personagens de Fernanda Torres, se possuem algo em comum, é o fato de estarem findando sem sabedoria, ainda  envoltos nos samsaras de relações interpessoais complicadas, neuróticas, cheias de ressentimentos e vinganças. Se há um fio condutor que atravessa o romance inteiro, não é tanto um debate sobre a 3ª idade como ela é vivenciada no Rio de Janeiro, mas muito mais uma tentativa de abordar os problemas do amor de modo a debater, nas raízes, profunda e concretamente, questões de sexualidade (monogamia vs poligamia, por exemplo, é uma controvérsia que atravessa o romance) e indagações acerca da medicalização da vida.

Sobre este último ponto, o da medicalização, Fernanda Torres tematiza em sua obra de modo bem vivaz o modo como os velhinhos acabam enredados na teia das mega corporações farmacêuticas e da atual lógica hospitalar privatista. Um certo personagem, Silvio, está sofrendo com o mal de Parkinson. Em primeira pessoa, descreve o que significa viver com Parkinson, desvelando os detalhes de sua experiência subjetiva, com uma riqueza de detalhes e uma carga emocional que faz pensar em alguns dos melhores filmes de Eduardo Coutinho, em especial O Fim e o Princípio.

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“O Parkinson acaba com a iniciativa da gente. (…) O tratamento do Parkinson é muito pior do que o Parkinson. E não existe cura. As bombas aceleram a cabeça, dão suor frio e um medo do caralho. O médico carimba a receita e te manda para casa de mãos dadas com o Incrível Hulk. São uns tarados, esses doutores. Carbidopa 25 mg, Levodopa 250 mg, Cloridrato de benzerazida 25mg. Para o farmacêutico te entregar o pacote, você tem que apresentar CPF, carteira de identidade, título de eleitor, bons antecedentes, foto. É mais fácil comprar uma arma e se matar. Sem contar os antidepressivos, antiespasmódicos, antiácidos e associados; delírios extenuantes de carros andando pra trás, cortes no tempo e passamentos.” (pg. 68)

Fernanda Torres povoa as páginas do romance com referências à farmacopéia contemporânea: são personagens cujas vidas são marcadas pela disponibilidade de Viagras (contra a impotência sexual), Prozacs (contra a depressão, a melancolia, o tédio…), tranquilizantes e anfetaminas… Uma miríade de substâncias, entre as lícitas e as ilícitas, marca presença forte nesta vidas e mostra na prática porquê este é um dos ramos mais pujantes da economia globalizada (drogas e armas vendendo à beça… parabéns mundo!). Fernanda Torres fala de gente que está “economizando dinheiro para colocar silicone” (pg. 100), de médicos que recomendam, professorais, que o Viagra deve ser tomado “com umas três horas de antecedência, para não ter surpresas e já chegar calibrado” (pg. 101), de relacionamentos cujas feridas são tratadas na farmácia (“O fim do caso com a Suzana foi todo à base de Lexotan”, pg. 101). Aquilo que Kurt Cobain ironizava – “My heart is broke but I have some glue…” – aconteceu. Mas a “cola” para corações partidos agora está à venda nas mega-drogarias (que aceitam cartão de débito e crédito, acolhem pedidos pela internet, entregam a domicílio…).

Para instigar o leitor a conhecer este livro de Fernanda Torres também pelo mérito dele em radiografar nossa sociedade, basta citar também uma cena notável em que um personagem vai ao banheiro, deparando com a escova de dentes de uma mulher ausente, para em seguida abrir o armário para dar de frente com…

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“Ritalina, Lexapro, Frontal, Valium, Haldol, Seroquel, o resto do Pondera do ano passado e o Aropax, que o dr. Péricles planeja experimentar nos próximos meses. Os rótulos me encaram do buraco da parede. O Murilo insistiu que eu me tratasse. Por um ano respondi aos intermináveis questionários sobre os efeitos dos benzodiazepínicos no meu organismo. O dr. Péricles queria saber da compulsão, da ansiedade, do desânimo matinal; de acordo com as respostas, alterava as doses, o que provocava novas indagações. Um melhora, outro piora, eu respondia, como um aluno bem-comportado, até que, num rompante, me transformei numa cobaia arisca.

Decidi não mais colaborar com os laboratórios, me vinguei de forma sistemática, atrapalhando a preciosa pesquisa deles. Fornecia dados fraudulentos, alegava tonturas, dores no peito que não existiam. Me revelei um rato anárquico, perigoso, que planejava destruir a megalomania científica dos reguladores de humor, frustrar o delírio dos que pretendiam controlar meu desespero. (…) Um clínico saberia diagnosticar uma pancreatite fingida, mas o psico Péricles seguia à risca as estatísticas americanas, as tabelas de comportamento da Pfizer, da Roche, sem perceber que eu fazia o que o homem faz desde que se entendeu por gente: eu mentia e me divertia.

Minha alegria de acabar com as certezas do Péricles perdeu a graça recentemente, há duas consultas. Ele me entregou a receita, eu passei na farmácia e trouxe o carregamento pra casa. Guardei lacrado no armário trincado do banheiro. Desisti de tomar. Faz três semanas que meus humores agem livres. E eles têm tomado conta de mim. Recolho os tarja-preta e ponho no bolso, encho o copo água da bica. Pra que filtrar? Sento na cama e deposito os medicamentos e o copo sobre o criado-mudo.

A diferença entre um tarja-preta e um tarja-vermelha, me explicou o balconista da Droga Raia, é que se você tomar uma caixa inteira da preta, você empacota; da vermelha, não.” (pg. 138-139)

 Nossas vidas, parece dizer Fernanda Torres, já estão profundamente colonizadas pela lógica da indústria farmacêutica globalizada e tendemos a idolatrar o poder dos remédios para nos libertarem do mal-estar ou turbinarem nossa energia vital, mas diante da mortalidade e da finitude percebe-se sempre que não há remédio contra a morte, nem regulador de humor que cure o “luto perpétuo”. Por “luto perpétuo” Fernanda Torres compreende o afeto acarretado pela perda de um ente amado tido como insubstituível – como é o caso do personagem Neto quando perde Célia. Neto, após muitas doses de ansiolíticos, descobriu que eles não podem tudo. Jamais poderiam trazer de volta a pessoa amada que a gulosa da Morte deglutiu com ávidos dentes. Apesar de Fim estar repleto de cenas cômicas e provocações lúdicas, Fernanda Torres é sublime mesmo quando se mete a fazer tragédia:

“O desespero no velório da esposa foi um prenúncio do que viria mais tarde. Neto contorcia-se de angústia. Ajoelhou no chão, tentou arrancar as roupas, mordeu, gritou, bateu; os filhos correram para abraçá-lo. O pai diminuiu os ganidos, aplacou a fúria, mas a calmaria durou pouco. Mal a fila de condolências retomou o ritmo, Neto foi assolado por outro descontrole bestial. Agarrou Célia nos braços, quis tirá-la de lá, levá-la para casa, foi preciso ajuda para fazê-lo largar a defunta. (…) Neto nunca mais se acertou. Por conta própria, continuou a tomar o ansiolítico… Sóbrio, nem pensar, dizia. Quando a língua enrolada não permitiu mais que se entendesse o que o pai dizia, Murilo o levou a um psiquiatra. Neto enveredou na ciranda de tentativa e erro dos reguladores de humor. Nenhum funcionou a contento. O coquetel o transformou num efeito colateral ambulante. Vivia entre o eufórico e o deprimido, mais deprimido do que eufórico. Murilo tentou homeopatia, massagem, acupuntura, insistiu na psicanálise, mas nada demoveu Neto da fixação em Célia. Tratava-se de luto perpétuo.”

Por estas e outras, considero Fim uma obra-prima da literatura brasileira contemporânea e um livro de alta relevância social, já que discute muitos dos temas e problemas que fizeram de Maria Rita Kehl (O Tempo e o Cão) e Eliane Brum (O Olho da Rua) duas das intelectuais mais essenciais do Brasil. Fernanda Torres, uma de nossas melhores artistas, tem tudo para deslanchar uma carreira ainda mais brilhante do que aquela que já protagoniza como atriz e humorista. Ao exercitar seu prodigioso talento também no romance – a exemplo de Chico Buarque – ela realmente revela uma versatilidade na virtude que é impressionante. Fim foi um ótimo começo na carreira desta romancista que já nasceu cometendo uma obra-prima, como julgaram João Moreira Salles e Antonio Cicero:

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“O título é Fim, mas o livro trata mesmo é da vida – plena, forte, caliente e safada, dessas que caberiam numa comédia de Mario Monicelli, caso ele tivesse lido Nelson Rodrigues e Pornopopéia com o sol de Copacabana pelas fuças. Avisem aí: uma escritora entrou em cena.” – JOÃO MOREIRA SALLES

“Alternando técnicas narrativas, com destaque para magistrais instâncias de fluxo de consciência, Fim captura brilhantemente a dramática oscilação de tristezas e ilusões, grossuras e sutilezas, pequenos afazeres e grandes esperanças, cujo entrecruzamento compõem as tragédias e as comédias humanas de nossos dias.” – ANTONIO CICERO

Por ter pintado um retrato forte, vívido e pungente da condição humana e das infindas maneiras de findar, Fernanda Torres, acredito eu, merece nossos aplausos pela coragem e pela lucidez com que teceu este livro memorável. Mortais, rejubilai! Apesar da morte ser sem remédio, a arte existe e tonifica. E talvez um certo carpe diem, uma certa sabedoria trágica, emane de Fim, que parece dar constantes piscadelas de olho ao leitor sobre a vida e sua finitude: “aproveita, meu caro, aproveita que isso passa rápido.” We’re food for worms, lads…

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Setembro de 2015

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COMPRE “FIM” DE FERNANDA TORRES NA LIVRARIA CULTURA (35 reais, entrega foguete)

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A MORTE COMO ESCOLA: Eliane Brum visita os limites da condição mortal

R.I.P. ANTONIO ABUJAMRA (1932 – 2015) – Assista alguns dos melhores episódios do “Provocações”: Safatle, Laerte, Stédile, J. Wyllys, R. Alves, V. Mosé, Tom Zé etc.

Em homenagem ao provocador-mor da TV brasileira, o recém-falecido “Abu”, compartilhamos aqui algumas das melhores entrevistas do programa Provocações, que atravessou 14 anos no ar, sempre “idolatrando a dúvida” e agindo como “um periscópio sobre o oceano do social”. Além disso, uma série de poemas declamados por ele no programa. Voilà:

Antonio Abujamra – Poemas Declamados no Provocações

Rubem Alves

Jean Wyllys

João Pedro Stédile

Renato Janine Ribeiro

Vladimir Safatle

Laerte Coutinho

Mino Carta

Viviane Mosé

Roberto Freire

Nicolau Sevcenko

Ricardo Abramovay

Tom Zé

Márcia Tiburi

José Miguel Wisnik

Zé Celso Martinez Correa

O DESEQUILÍBRIO É A NORMALIDADE: uma relembrança d’O Alienista de Machado de Assis

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Que exista a palavra “loucura” no singular talvez seja uma doidice da linguagem. Pois no mundo das gentes, quer parecer-me, só há loucuras no plural, doiduras das mais várias e múltiplas, e quase sempre cada um de nós tem dentro si pelo menos uma meia dúzia.

Quase ninguém é doido igual aos mentecaptos ilustres como Dom Quixote ou Rei Lear. As pessoas sempre dão um jeito de inventar uma loucura bastante singular e própria.

O que não impede que os profissionais da área gastem as pontas de seus lápis e as tintas de suas canetas em intermináveis catalogações, classificações, rotulamentos. Dá para encher um dicionário (e já existem) só contendo termos como histeria, psicose, depressão, megalomania, sadomasoquismo e que tais.

Nenhum dicionário esgota todas as potencialidades de diferenciação das mentecaptices humanas. Há as insânias de amor e as de ódio, há as de ganância e as de frugalidade, as de ascetismo e as de libertinagem. Há os que alucinam que são Napoleões e há aqueles que querem enfiar a cabeça na areia, como avestruzes pudorosos, de tanta vergonha de serem quem são…

(Caro leitor, favor levar a sério as reticências que acabo de antepor a vosso caminho, e pareis para pensar por três segundos, ou até minutos, ou até horas, uma para cada ponto, no tanto de gente doida que você já conheceu…).

Se tivesse escrito somente O Alienista, Machado de Assis já mereceria um lugar de destaque naquela seleta galeria de criadores dotados de alta perspicácia em matéria psicológica – como eram Stendhal e Dostoiévski, segundo a avaliação de Nietzsche – ele, que dizia ter aprendido psicologia sobretudo com os mestres da literatura.

A novela tem algo de Fausto, o Doutor Simão Bacamarte sendo também um obcecado pela ciência, pela leitura, pelo saber alquímico capaz de curar os males d’alma… Mas em Machado não há tanto da soturnidade goethiana, já que o brasileiro faz por todas as páginas dúzias de cabriolas e molequices de deixar até um Mefistófeles sentindo-se careta.

Se fosse mais tenebrosa, a obra poderia até passar por um conto de Hoffman ou Edgar Allan Poe. Mas é leitura leve, aprazível, que convida a uma alegre apreciação das irracionalidades humanas, que passam em desfile nesta carnavalesca procissão de doidos, enquanto a narrativa vai desenrolando uma pergunta destinada a tornar-se pulga atrás da orelha do leitor: “se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?” (2007, pg. 59)

Simão Bacamarte, homem de ciência, de nobreza, nascido em berço d’ouro, servidor de Vossa Majestade em Lisboa, torna-se uma espécie de tirano em Itaguaí ao inaugurar seu hospício, A Casa Verde. Doutor Simão garante que não tem interesses capitalistas ao encerrar tanta gente na casa dos doidos, mas ele enriquece velozmente a ponto de poder mandar a esposa, Dona Evarista, para um passeio ao Rio de Janeiro, de onde ela retorna toda adornada de vestidos de seda e pedras preciosas.

Simão Bacamarte atravessa a obra sendo alguém que julga os outros sem antes ter parado para julgar a si mesmo. O alienista considera-se tão evidente e indubitavelmente são, já que está em plena posse do equilíbrio de suas faculdades mentais, que não questiona quase nunca se realmente é são o bastante para ter o direito de sair trancando gente adoidada no hospício.

E o narrador nos garante: foi uma “coleta desenfreada” a que realizou Doutor Simão, agindo um pouco como se fosse o Poderoso Chefão de uma instituição pública que se assemelha à carrocinha que recolhe cães vira-latas – com a diferença de ser destinada aos humanos. Itaguaí apelida o doidódromo de Simão Bacamarte como “Bastilha” e o equivalente Itaguaiense da Revolução Francesa não tarda a estourar: é o levante dos Canjicas!

O Alienista  retrata um amálgama perigoso entre a psiquiatria e o presídio: na novela, a autoridade em psicologia torna-se o executor de um plano quase kafkiano de totalitarismo em que o encarceramento em massa não tarda a surgir como resultado.

A ironia que Machado despeja sobre esta situação provêm da percepção do artista do quão insana seria uma sociedade onde há mais gente presa detrás de grades do que solta ao ar livre – e tudo em nome da preservação da sanidade e segurança públicas.

Machado de Assis analisa com seu sagaz brilhantismo a figura do “cientista maluco”, no caso um doutor em psicologia que acredita fanaticamente que a austeridade, a impassibilidade, a imperturbabilidade, a condição de ser não-emocionável e imune às paixões, como uma estátua de mármore, é o supra-sumo das virtudes.

Bacamarte considera que normal é aquele que está com o cérebro equilibrado; porém, quanto mais conhece o ser humano, mais convence-se de algo diferente: quase todo mundo é um desequilibrado. Logo, aquele que, como Bacamarte, tem um equilíbrio psíquico que não se perturba… esse aí é o maior dos anormais.

O alienista descobre-se alienado. O déspota faz-se libertador daqueles que havia falsamente condenado à sina de anormalidade, e o sábio, de modo até um pouco socrático, diz algo semelhante ao “só sei que nada sei”: louco devo ser eu, de tão equilibrado que sou!

O Alienista é também o retrato de uma sublevação social, com golpes de Estado e massacres, alianças e traições. A maníaca campanha de aprisionamento dos cidadãos de Itaguaí, posta em marcha por Simão Bacamarte e seus paus-mandados, desperta a resistência e a rebeldia popular.

Em uma cena memorável, a sublevação dos Canjicas vai à Câmara para demandar que o tirano Bacamarte cesse de possuir tamanhos poderes de encarceramento. Uma turba desequilibrada e passional exige que o Doutor pare de enterrar vivos em cubículos todos aqueles que manifestam desequilíbrio emocional e furiosas tempestades psíquicas.

“A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da rebelião, e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis, algumas distintas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto que os loucos, ou supostos tais, não eram tratados de graça: as famílias, e em falta delas a Câmara, pagavam o alienista…” (pg. 58)

Há quem acuse Machado de ser um pouco misantrópico, ou seja, de ser desses doidos que odeiam a humanidade, já que escreveu frases imorredouras como “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.” (Memórias Póstumas de Brás Cubas)

Mas O Alienista me deixa com outro sabor na boca que não é o da misantropia, mas muito mais de uma fascinação bem-humorada diante dos comportamentos e crenças humanos. Para Machado de Assis, o homem é um animal fundamentalmente irracional, e como escritor Machado vincula-se a uma longa genealogia de autores – que inclui Luciano, Horácio, Cervantes, Chamfort, Voltaire, Sterne… – daqueles que  proponho chamar de ironistas das irracionalidades de que a condição humana está repleta.

Não é que gente não preste, é só que entre as gentes quase nunca se encontra alguém que não seja singularmente doido. Olhando de perto, ninguém é normal. Ou melhor, como logo descobre, em um insight quase epifânico, o Doutor Simão Bacamarte:  a loucura é quase universal, e quem não é louco portanto é o mais anormal dos anormais.

A quase universalidade da loucura é o que Machado põe-se a examinar, com todas as ironias bem alertas, narrando-nos um causo que não tem poucas ocasiões que nos fazem rir às bandeiras despregadas. Aqui, quem se pretende são é tanto mais suspeito de ser louco por isso. E quem pretende ser louco pode ser que seja são.

Machado embaralha as categorias rígidas a golpes de poesia e arruaça. Pois esse é um texto tão arruaceiro que pode-se dizer que prenuncia a estética punk em quase um século. Tem até 11 mortos e 45 feridos fornecendo o banho-de-sangue que é sempre necessário para uma obra-de-arte alçar-se aos ouropéis gozados por Macbeth, a Ilíada ou Os Miseráveis.

Sangue em profusão jorra quando a rebelião dos Canjicas choca-se contra os dragões armados da legalidade; lendo esta cena, descobrimos que no Rio de Janeiro de Machado já haviam, guardadas as devidas proporções, um caldeirão de hostilidades e loucuras sempre às beiras de degringolar em chacina.

O gênio de Machado de Assis aparece como que concentrado em O Alienista, uma narrativa que nos conduz por uma montanha-russa de ideias estéticas, éticas, políticas, psicológicas, sócio-econômicas.

Por exemplo, a noção de que aqueles que se distinguem por suas perfeições morais são também um pouco malucos, já que desviantes da norma. O normal é ser moralmente imperfeito, cheio de vícios vários, arrastado por  diversas paixões desequilibrantes, de tal modo que Simão Bacamarte, a certo ponto, escolhe curar aqueles “cruelmente afligidos de moderação e equidade” para “restituí-los ao perfeito desequilíbrio das faculdades” (pg. 78).

Uma vida inteira devotada à ciência, à pesquisa do comportamento, para que o Alienista chegasse à este conclusão (bem-louca!): “se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos os casos em que  aquele equilíbrio fosse ininterrupto.” (pg. 72)

O próprio Machado de Assis, decerto um dos maiores escritores da história da América Latina, figura monumental na Literatura Universal, é grandioso também por causa de sua genial loucura. Simão Bacamarte é um símbolo de uma ironia tão lúcida que beira a insanidade: depois de passar uma vida a analisar o ser humano, descobre que aquilo que de mais certo podemos dizer é que nada é mais normal que o desequilíbrio e a irracionalidade. Todo sábio e todo gênio é tão desviante da norma da mediocridade que periga ser rotulado de doido pela turba insana dos normais.

Por Eduardo Carli de Moraes
Para A Casa de Vidro

Todas as citações: 50 Contos de Machado de Assis, selecionados por John Gledson, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.