O SAMSARA ROCKER: A gangorra entre egotismo e sororidade no filme “Her Smell” (2018)

Beijar o pó, flertar com a ruína, ir à falência, tudo isto pode destruir uma carreira artística de modo que ela nunca mais se levante. Mas pode também – o que é mais raro – ensinar preciosas lições para que da queda se faça uma reviravolta. Uma re-ascensão.

Se o sujeito é capaz de suportar vivo a seu queda, se sabe atravessar o declínio e não se deixar destruir por completo por sua fall from grace (para lembrar da bela canção do Blackberry Smoke), se conseguir tirar disso lições, pode voltar a subir. Como um Ícaro que tivesse recolado suas asas após o primeiro tombo para alçar vôo de novo.

A punk rocker Becky Something – em interpretação magistal de Elisabeth Moss – encarna este aprendizado com a queda em Her Smell (2018), o pulsante filme de Alex Ross Perry.

Atriz das mais impressionantes em atividade nos últimos anos, Elisabeth Moss (uma das protagonistas da série The Handmaid’s Tale – O Conto da Aia) empresta a Becky toda uma confusão de espírito e cacofonia de ideias que evoca aquela interpretação de Gena Rowlands no clássico A Woman Under The Influence – Uma Mulher Sob Influência (1974). Este filme, uma das obras-primas de Cassavetes, compartilha com Her Smell o desejo de erguer uma catedral fílmica onde o espectador possa mergulhar na decifração de um enigma em forma de mulher.

Mas o que em Cassavetes era focado na domesticidade, numa crônica das excentricidades domésticas da personagem pouco conformista de Rowlads (em uma das mais incríveis performances de uma atriz na história do cinema), em Her Smell torna-se um rolê pelos submundos da cultura rocker alternativa. Um passeio audiovisual que nos leva, aos turbilhões, aos camarins de backstage de uma estrela-do-rock em decadência.

Becky, afinal, é flagrada pelo filme em um momento de crise: tendo abandonado qualquer tipo de vida doméstica, ela está em uma turnê tensa e atribulada, liderando sua banda Something She, mas tretando feio com as outras duas minas que compõe o power-trio. A filha de Becky está sendo criada pelo pai, e este não tem recebido quase nenhuma ajuda de sua ex-esposa Becky – nem da financeira, nem da afetiva. Aquela criança, violentamente jogada ao turbilhão de um relacionamento difícil que ferve de mágoas e recriminações, que pega fogo em brigas nos camarins, também me evocou lembranças do enrolado enlace de Kurt Cobain e Courtney Love que gerou como prole Frances Bean Cobain.

Na época da gravidez, Courtney Love foi escorraçada na imprensa, sobretudo numa reportagem da Vanity Fair que denunciava que a vocalista do Hole teria usado heroína com Frances ainda em seu útero (saiba mais lendo o célebre artigo “Strange Love” de Lynn Hirschberg). O texto comparava o casal mais célebre do grunge com Sid Vicious e Nancy Spungen – e contribuiu para que Frances, por um breve período, tivesse sua custódia retirada dos pais pela justiça.

Em Her Smell, Becky também é flagrada em situações em que pode acarretar malefícios à sua prole – como naquela cena bem doida em que, interpretando as palavras de seu xamã, ela aponta o dedo para a criança, em atitude de Medéia, dizendo que aquela criatura seria a causa de sua queda.

Becky é descrita quase sempre num estado de chapação, de incontinência verbal e comportamental, a própria encarnação da falta de auto-controle. Mas aí está também seu charme, aí está o segredo de sua potência expressiva: ela se prodigaliza, ela não se economiza. Mas, continuando assim, vai se reduzir logo a cinzas. A menos que aprenda outra via. Queimando com este fogo, ela ameaça causar queimaduras na filha, além de quebrar os ossos das companheiras com quem tem tido dificuldade de coligar em autêntica aliança.

Na verdade, a causa da queda não é outra senão o egotismo: aquilo que leva o pop star a se achar o fodão ou a fodona, a crer que não precisa de ninguém em específico, que pode brilhar sozinho e todos ao seu redor são peças substituíveis. O filme é uma escola em que Becky aprende, a duras penas, a superar seu ego inflado, seu narcisismo doentio, que a faz ser tão desagradável a todos ao redor em várias cenas do filme.

Dinâmica, inquieta e ansiosa, a câmera acompanha a incontinência e a intemperança das atitudes de Becky, mostrando-nos sua ânsia insaciável por atenção e aplauso, flagrando seus choques e conflitos com os agentes culturais a seu redor. Com frequência ela destrata as outras musicistas, trata-as como se fossem substituíveis e pouco importante – já que ela, Becky, a fodona, seria a alma e a essência da banda, a única insubstituível.

As outras podem vazar, caso queiram, pois logo se encontram replacements. Nestas ocasiões, ela age como a patroa de uma banda vista como empresa – e o resto da sua banda é tratado como proletário que se pode despedir, pois tem muita gente na fila, padecendo no desemprego, que toparia este trampo.

Ao mesmo tempo que peca pelo excesso de auto-celebração e desprezo pelas outras, Becky está na escola da vida – e quando tomba ao chão, rasgando a testa, consegue re-erguer-se com a ajuda de outros. Ela saboreia esta experiência amarga e doce – amarga pois ninguém gosta de derramar o sangue da própria cabeça no chão após um tombo, mas doce pois é bom descobrir que, quando caímos, tem alguém que se preocupa o bastante para ir lá nos levantar, limpar nosso vômito e nos ajudar a encontrar uma estrada menos destrutiva.

E assim Becky vai aprendendo que os outros não são os meros coadjuvantes de sua história. Ela vai descobrindo, com crescente clarividência, que cada um é o protagonista de sua própria vida. Mas que qualquer vida pode certamente ir ao naufrágio quando este protagonista deseja que os outros sirvam apenas como coadjuvantes, submissos e subservientes diante da vontade tirânica da “estrela”.

Por isso, Her Smell nos joga no meio de toda a lama da fama. Uma lama que se recalca e se oculta nas narrativas tradicionais da Indústria Cultural, interessada em nos fazer crer em contos de fadas sobre as “estrelas”, em especial para que, através do consumismo, sejamos os idólatras que engordam os lucros destas empresas.

Keyart for Last Days.

Cabe aos cineastas de talento nos fornecerem um quadro mais realista da vida real dos famosos – como fez Gus Van Sant ao narrar os últimos dias antes do suicídio de Cobain em Last Days. Apesar da similaridade do contexto dos dois filmes, Her Smell Last Days distinguem-se enormemente: é que Her Smell, apesar de ser dirigido por um homem, é elevado, pelas atuações de Moss e suas companheiras de elenco, a uma espécie de emblema da sororidade (do latim soror, irmã, que torna-se, em francês, souer, e em inglês, sister). O filme é sobre a busca, através da música e usando como instrumento a “banda”, de um ruidosa sisterhood. 

De certo modo, o filme retrata um Samsara: Becky quase sempre ególatra, solitária em meio à multidão, criando obstáculos para a afeição com suas companheiras de banda, afundando-se em auto-destruição etc. Ela vai levando seus nervous breakdowns até perigosos limites, a ponto de, numa cena hiperbólica, acabarem por algemá-la. Como uma fera acuada por aqueles ao seu redor, que frequentemente se mostram oportunistas e control freaks, ela se revolta: Becky esperneia contra qualquer vontade que se oponha ao seu projeto egóico e grandiloquente de “brilhar”.

A tal da sororidade, da sisterhood, fica sendo, no filme, uma espécie de Nirvana inencontrável. Ou melhor: um ideal que paira no horizonte, em direção ao qual o aprendizado de Becky caminha, trôpego e cambaleante, e cuja vivência o filme reserva para poucos momentos de êxtase grupal sobre o palco.

Pois se Her Smell reserva ao espectador um final semi-feliz, uma catarse dos sofrimentos prévios, se após nos conduzir pelo labirinto, angustiados com Becky, nos conduz às explosivas cenas finais, onde as mulheres sobre o palco tornam-se unas através da música punk e dos bonds invisíveis entre elas, este desfecho-em-felicidade só é possível pelos sofrimentos que Becky pôde transformar em sabedoria. Ainda que esta possa ser provisória, precária e perdível, Her Smell nos entrega um final que comunica esperança: da cacofonia de irracionalismos em que estava atolada, em seu Samsara pessoal, Becky encontra jeitos de abrir caminhos para a união solidária através da arte. Descobre que sem suas amigas ela não é nada. Que ninguém é porra nenhuma sozinho.

Donde aquele “ritual” de sororidade que precede a entrada no palco para a cena final, ritual que aquece o organismo coletivo para o glorioso revival de uma “estrela” que, se segue a queimar, é pois aprendeu que ninguém queima sozinho – que uma fogueira artística exige incendiários unidos.

O ritual consiste numa roda de mulheres que expressam sua co-dependência e sua co-confiança, cada uma diz às outras: estou aqui para você, e agradeço por estarem aqui comigo. É uma terapia contra as solidões do egotismo, contra tudo que nos prende no desastroso desejo de gozar dos privilégios excludentes, ao invés de investir no benévolo acordo de compartilhar com outros dos bens comuns e dividíveis.

Esta punk rocker, falível, imperfeita e cheia de explosões, no rollercoaster de sua gangorra de ânimos, quase sempre chapada e um pouco confusa com seu próprio mundo subjetivo, aprende na sarjeta a valorizar os outros que, pela vida afora, destratou, feriu e magoou.

Através do filme, ela é mostrada no processo dinâmico e confuso de atravessar este seu Samsara não apenas como espectadora de uma catástrofe, mas como a protagonista de sua própria existência, responsável por forjar vias para algum satori possível. Aprendendo, na escola cruel e salutar das feridas, que um excesso de “protagonismo” aniquila qualquer projeto de coletivismo comunitário. Que querer ser protagonista demais expulsa os outros para a condição de subservientes coadjuvantes, mas que esta experiência, para os outros, por dentro deles, é inaceitável – pois são, como já dito, os protagonistas de suas próprias vidas e não querem ser relegados às sombras.

Aprendendo, como uma rolling stone do movimento riot grrrl, que o mais importante não é estar solitária sobre um pedestal frio, mas sim o estar solidária em um projeto de comunhão estética com suas amigas, Becky acaba se tornando símbolo de amadurecimento emocional.

Becky precisou tomar aquele tapão na cara de Marielle para dar uma acordada para o fato de que sozinha ela nunca estaria num pedestal, mas sim numa sarjeta. Se insistisse em seu egotismo, em sua vaidade, em seu pesado eu samsárico, ela seria ceifada pelo sistema e seria abandonada como uma uva passa podre, para que os próximos pop stars pudessem avançar na fila e ter seus 15 diazinhos de fama.

Elisabeth Moss plays Becky Something, a punk singer struggling with substance abuse, in the new film Her Smell. “It was the hardest dialogue I’ve ever had to learn,” she says.

O filme nos lança a este Samsara, a este labirinto, desta mulher lidando com seus demônios em público, rodeada por câmeras, com várias ocasiões em que está sob as atenções dos holofotes e permeada pelos gritos, uivos, vaias e palmas de uma platéia cacofônica.

Her Smell não consegue se alçar mais alto por causa da música, que não está à altura da performance da atriz – faltou, para Elisabeth Moss, uma trilha sonora à altura de sua atuação. Faltaram composições melhores, letras mais fortes, de modo que o filme vale mais por seu lado dramatúrgico do que propriamente por seu valor musical – em minha opinião, faltou ao projeto conseguir gerar uma trilha-sonora que tivesse algo daquilo que fez de Live Through This, do Hole, o lendário álbum grunge-punk de 1994, uma espécie de obra-prima da angústia feminina musicada.

“Even if you have serious reservations about punk-rock brats living on major-label largesse or believe profanity is the last refuge of the inarticulate, the sheer force of Love’s corrosive, lunatic wail — not to mention the guitar-drum wrath unleashed in its wake — is impressive stuff, a scorched-earth blast of righteous indignation as feral and convincing as anything in Johnny Rotten’s bark-and-spittle repertoire. (…) Even before she ascended to celebrity spousehood, Love was the scarred beauty queen of underground-rock society, a fearless confessor and feedback addict whose sinister charisma — part ravaged baby doll, part avenging kamikaze angel — suggested the dazed, enraged, illegitimate daughter of Patti Smith.” – DAVID FRICKE NA ROLLING STONE

Becky Something é de fato uma figura Courtney Lovesca: a gente não sabe se a ama ou se a odeia. Ambas são figuras polêmicas e polarizadoras. Estranhamente, apesar de sermos incapazes de contar com as mãos os defeitos destas mulheres pois acabam faltando dedos, em ambos os casos há algo extremamente sedutor, algo de irresistível mesmo, nas jornadas expressivas destas mulheres em seus Samsaras. Há o charme de subjetividades em incandescência que se recusam ao destino triste do mutismo.

Em um artigo para a Pitchfork em que deu nota 10.0 (máxima) para o álbum com que o Hole acabou por tatuar pra sempre a história da cultura de 1994, após o suicídio de Cobain e a morte súbita e precoce do Nirvana, Sasha Geffen explorou outro tema importantíssimo que está em Live Through This: o modo como a sociedade, machista e patriarcal, busca estigmatizar a expressão feminina de afetos como a fúria, a revolta ou a indignação como se fossem sinais de loucura, meros sintomas histéricos.

Courtney Love supostamente tirou o nome da banda – “Buraco” – da peça Medéia de Eurípides. Ao menos esta é a explicação intelectual que ela deu para um nome que também ressoa, como é evidente, repleto de conotações sexuais (uma piscadela de olhos para os orifícios genitais) e que pode evocar também algo da vida punk e sarjetosa de quem vive numa casa tão podre, tosca e insalubre que mais merece o nome de buraco.

A questão que Sasha Geffen destaca é o quanto, desde a tragédia grega, figuras como Medéia servem para encarnar o desatino feminino, a incapacidade de controle passional, a hýbris perigosa de criaturas pouco racionais, incapazes de sophrosyne, que cairiam frequentemente nos excessos funestos dos amores loucos e dos ódios selvagens. Visão masculina da mulher, permeada de paranóia falocêntrica.

Sasha, lendo Courtney Love como uma espécie de Medéia do grunge, afirma que ali não há delírio, mas sim anger. Se há hýbris (e como negar que haja?), pode ser o excesso de uma angústia justificada que quer se expressar. Como fez Cobain – e a história da música nunca seria a mesma. Courtney Love – que pôs sua foto de criança na contra-capa do álbum – foi em 1994 um emblema de mulher que ousa confrontar estereótipos de uma sociedade da dominação masculina que quer sempre domar a female anger através de estratagemas como a presunção de loucura. É mais fácil “tacar pedras na Geni” do que compreendê-la. Similarmente, é mais simples xingar Courtney Love de doida varrida, ao invés de ouvir o grito primal de catarse da angústia que atravessa sua arte em Pretty on the Inside, Live Through This e Celebrity Skin.

Evidente que a própria Courtney, rodeada pelas tentações de encarnar a boneca loura e sexy que faz sucesso nas paradas, muitas vezes se portou como a Marilyn Monroe do grunge, e até hoje vive dos louros e lucros de ter “se vendido” ao sistema, ao menos parcialmente. É esta gangorra entre o vender-se e o revoltar-se, e as contradições também de uma revolta cooptada e mercantilizada pelo próprio sistema que está sendo criticado pelas atitudes grunge-punk, que torna o destino de Courtney Love tão interessante.

“There’s no lunacy on Hole’s records. But there is anger, female anger, which, to a man’s ear, historically scans as madness. Lead singer Courtney Love often told reporters that she named her band after a line in Euripides’ Medea. “There’s a hole that pierces right through me,” it supposedly goes, though you won’t find it in any common translation of the ancient play. It’s apocryphal, or misremembered, or Love made it up to complicate the name’s obvious double entendre—either way, it makes a great myth. A band foregrounding female rage takes its name from the angriest woman in the Western canon, a woman so angry at her husband’s betrayal she kills their children just so he will feel her pain in his bones.

Like all female revenge fantasies written by men, Medea carries a grain of neurosis about how women might retaliate for their subjugation. It is easier, still, for men to express these anxieties by way of violent fantasy than it is for women to communicate their anger at all. ” – SASHA GEFFEN NA PITCHFORK 

Em Her Smell, temos algo bem similar ao universo Love-Cobainiano, e somos lançados também, por um cinema que parece honrar a tradição de Cassavetes, à tarefa difícil da empatia com uma mulher que seria mais simples – e mais cruel – simplesmente rotular de louca e pedir a camisa-de-força. É a tática dos poderes que, diante de mulheres excêntricas, diante de corpos insubmissos, diante de línguas com a lábia em chamas, tomam medidas para não ter que escutá-las, acolhê-las, ouvi-las em toda sua assustadora e maravilhosa dissonância.

Chamar uma mulher de louca é um subterfúgio canalha dos machos para não ter que reconhecer a legitimidade da expressão feminina, para forçar a tendência autoritária para que a mulher seja recalcada, trancada nos lares (ou nos hospícios), silenciada por psicotrópicos, tratado como mera louca, bruxa, feiticeira, a ser enjaulada para o bem da Sociedade dos Cidadãos de Bem…

Em Her Smell, este processo de expressão está no centro do foco: Becky Something não quer fazer apenas música pop chiclete, ela está em busca de algo explosivo, de algo impactante – e quando conhece as três Akergirls, que vão lhe servir de banda de apoio, ela revela toda a sua ambiguidade psíquica. A um só tempo, mostra-se extremamente ególatra e mandona, de um lado, mas intensamente ciente da importância do bonding entre as mulheres que ali tentavam fazer músicas juntas, por outro. Ela ali vacila, de modo humano demasiado humano, entre o egotismo e a sororidade.

Como jornada de aprendizagem da sororidade, o filme mostra de que maneira o ego polvilha obstáculos que nos prendem no labirinto do Samsara, sugerindo que a empatia e a solidariedade da sisterhood são o único caminho para a conquista, ainda que precária, de um êxtase ruidoso d’um Nirvana-mulher. O machismo estrutural reinante e a sociedade da dominação masculina não gostam de ser lembrados, mas é uma verdade autêntica: as mulheres muitas vezes aprendem melhor do que os homens as lições da escola da vida, conquistando uma sabedoria relacional que está vedada a todos os machos ainda presos na bolha horrenda e solitária da toxicidade machista, misógina e homofóbica.

Afinal de contas, todo o sofrimento samsárico de Her Smell é um processo purgativo, uma catarse fílmica, que a Psiquê de Becky atravessa, vivendo através disso como Courtney em 1994. Este atravessar de um Samsara, para sair transformado do outro lado desta mesma vida, parece-me ter tudo a ver com a descoberta de que a arte deve unir e não isolar. O aprendizado de que ser uma rock star sozinha com os ouropéis da glória é uma ganância cega e estúpida. Aquilo que conta de verdade é o que fazemos juntos, com forças somadas e vozes em coro, com instrumentos em sintonia e timbres em interrelação, no colorido caótico e lindo de vidas-em-teia, que só quando unidas tornam-se um organismo coletivo de energia indomável.

E aí, diante de filmes assim, dá vontade de lembrar ao Macho Man tóxico, ou ao Macho Palestrinha, ou ao Metaleiro Hiper Ogro, figuras que muitas vezes vomitam babaquices sobre a “masculinidade do rock”, que seria “viril em sua essência” ou alguma baboseira assim, que na verdade esta porra chamada rock’n’roll foi inventado por uma mulher negra e queer chamada Sister Rosetta Tharpe. E, desde então, através de Bessie, de Aretha, de Janis, de Big Mama, de Patti, de Siousxie, de Corin, de inúmeras outras mulheres roqueiras, revelaram-se ao mundo caminhos rock’n’roll para a expressão de uma atitude na vida onde a união faz a força (de fato e fora do slogan) – e onde a empatia é a única religião, já que tudo que realmente importa é fruto da ação coletiva e não da “genialidade” individual.

Sister Rosetta Tharpe, uma das precursoras do rock’n’roll.

Os movimentos punk e riot grlll empoderaram a voz feminina dissonante e subversiva. Propiciaram a ruptura dos estereótipos, em altos decibéis, fazendo arte belíssima através de artistas geniais como o Sleater-Kinney; como os projetos da galáxia Kathleen Hanna (Bikini Kill e Le Tigre) e da constelação Brody Dalle (The Distillers e Spinnerette); como o cometa The Gits (de trajetória tragicamente encurtada pelo assassinato contra Mia Zapata); do terromoto-popgrungy do Garbage (liderado por Shirley Mason); dentre tantos outros exemplos. São mulheres que ousaram romper com o modelo da beauty queen, que ousaram levar o tal do “lugar de fala” para um local bem menos delicado e domado do que os machistas desejavam.

E, no entanto, Samsara e Nirvana transcendem o gênero – e uma sabedoria que transcenda a egolatria, e que se abra para a ciência da interconexão entre nós, diz respeito a todos a despeito de nossas variadas genitálias e nossas diversas identidades de gênero e orientações sexuais. Obras de arte como Her Smell ecoam a mensagem de grandes álbuns da história da condição humana musicada por mulheres como Live Through This (Hole), como Sing Sing Death House (Distillers), como One Beat (Sleater-Kinney). Álbuns que amo e que muito me ensinaram – infelizmente, pouco ouvidos por aqueles que mais precisariam aprender com eles.

São álbuns que são monumentos à resiliência. Mas são também álbuns em que a mulher é protagonista não como indivídua isolada, mas como força coletiva. Mulheres pulsando na mesma batida, vivendo através dessa tragédia toda, aprendendo na prática os desafios de uma sororidade sempre por reconstruir. Lutadoras de um Samsara que só se faz Nirvana quando a força solidária do nós lança por terra a egolatria isolacionista do eu.

Esta encruzilhada fala algo sobre o destino trágico do Clube dos 27 (Kurt, Jimi, Janis, Jim, Amy…), mas aqui o que nos interessou foram as sobreviventes, as resilientes, as Ícaras. As que souberam pegar um ego que as conduziria à auto-destruição, que souberam estraçalhar este ego em pedacinhos e, de seus estilhaços no chão, souberam criar, com a ajuda dos cacos de outras, um cacofônico mosaico não só da condição feminina, mas da condição humana como vivida pelas mulheres. É arte que nos interessa a todos – e pobre de quem pensa que isso é “música para meninas”!

Nestas obras, manifestam-se mulheres que são diversas mas não dispersas – como gostava de dizer Marielle Franco. Mulheres cuja beleza se torna indomável e irresistível quando conseguem, enfim, na consumação da sisterhood através da arte que as coliga, atingir uma polifonia através da qual falam – sem mais medo, agora tão mais livres! – como mulheres ingaioláveis. Bucetas ingovernáveis. Forças de renovação em festa.

Quebrando as correntes da tragicomédia de uma existência onde não faltam forças alheias querendo reduzi-las à submissão, elas levantam-se juntas, pois pode ser clichê mas não deixa de ser o cerne do rolê: together we stand, divided we fall. Todo este grunge explodindo dos amplificadores, eletrizando o público, matando a apatia eletrocutada, é uma espécie de prova viva (e elétrica) de que sempre haverá anger de sobra para elas, mulheres insubmissas como Ana Tijoux e como Patti Smith, como Rebecca Lane e como Larissa Luz, como Joan Baez e como Bia Ferreira…

Mulheres que sabem da força que há na irmandade e que vão sempre se recusar, juntas, a aceitar caladas a subserviência. Elas seguirão, para o bem de todos nós (inclusive dos que pensam que estão sendo prejudicados ao terem feridos seus injustos privilégios), afirmando em alto e bom som uma autonomia sempre negada e sempre re-afirmada, sempre combatida por adversários escrotos e sempre renascida, do seio e das vísceras delas, refazendo seu vôo a partir de todas as cinzas.

Por Eduardo Carli de Moraes pra A Casa de Vidro
Goiânia, 16 de Março de 2020

“When women get angry, they are regarded as shrill or hysterical…One way around that, for me, is bleaching my hair and looking good,” Courtney Love told the New York Times in 1992. “It’s bad that I have to do that to get my anger accepted. But then I’m part of an evolutionary process. I’m not the fully evolved end.”




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRICKE, DavidLive Through This. In: Rolling Stone.

GEFFEN, Sasha. Hole’s Live Through This. In: Pitchfork.

HIRSCHBERG. Strange Love: The Story of Kurt Cobain and Courtney Love. In: Vanity Fair. 

A ARTE DE DINAMITAR BINÔMIOS: Sobre as revoluções filosóficas e ético-políticas de Preciado || A Casa de Vidro

“Não creio na nação nem em Deus. Se sou homem ou mulher? Esta pergunta reflete uma obsessão ansiosa do ocidente. Qual? A de querer reduzir a verdade do sexo a um binômio. Eu dedico minha vida a dinamitar esse binômio. Afirmo a multiplicidade infinita do sexo!” – PRECIADO [1]

A pessoa nunca se reduz a seu nome – “e se a rosa tivesse outro nome, ainda assim teria o mesmo perfume”, como ensinou o bardo Bill Shakespeare. Mas comecemos por aí, pelas relações entre nomes e identidades, a questionar algo crucial para o desvendamento e transformação do mundo de que somos contemporâneos: aquela que um dia chamou-se Beatriz, e que hoje atende ao chamado de Paul, mantendo-se neste entretempo da transição de gênero com o sobrenome Preciado, é uma pessoa que revoluciona a filosofia?

À primeira vista, a originalidade de Preciado estaria num devir-trans da filosofia, na revelação confessional e reflexiva da experiência de transexualização através de testosterona em gel que ela realiza pondo em prática a ética da cobaia-de-si que está no cerne de Testo Junkie, uma obra-prima da queersofia. Mas para além destas vivências, é preciso perguntar mais a fundo: como Preciado faz para transtornar e tirar de órbita toda a história do pensamento “ocidental” hegemônico? Quais são as práxis subversivas que ela propõe no âmbito da filosofia prática, ou seja, da ética – considerada como campo dos “estilos de vida”, das múltiplas artes do viver?

Preciado diz que está devotada à tarefa “dinamitar os binômios” que tentam dizer a verdade definitiva sobre o sexo. Para levar a bom termo o processo de dinamitar os binômios redutores (como macho/fêmea, homem/mulher, homo/hetero etc.), como procede Preciado em sua obra e em sua vida? Como faz para propor ao futuro humano as alternativas práticas e as metodologias táticas para que, no real concreto, possamos de fato “afirmar a multiplicidade infinita do sexo”?

Se a ética é uma estilística da existência, como dizia Foucault, Preciado ilumina as revoluções em curso nesta área em nossa época – esta que é por ela intitulada “farmacopornográfica”. Uma obra que revela toda a extensão do choque dos dissidentes sexuais contra os conservadorismos heteropatriarcais que desejariam manter tudo em estado estacionário. A obra de Preciado fornece alguns mapas para navegar neste confuso clash entre os subversores da heteronormatividade (com seu reinado de binômios opressores), digladiando com os defensores da velha ordem maniqueísta-teocrática do patriarcado impositor da heterossexualidade compulsória e de uma redutora leitura do sexo legítimo: aquele que se destina unicamente à procriação – situação descrita ironicamente pela banda God Is My Co-Pilot em seu álbum de título sarcástico, Sex Is For Making Babies.

A n-1 edições tem feito um trabalho primoroso na divulgação da obra de Preciado no Brasil, tendo já publicado o Manifesto Contrassexual: Práticas subversivas de identidade sexual (2017, 224 pgs) e Testo Junkie: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica (2018, 448 pgs). Ao ler estes livros, ficamos impressionados pela inteligência crítica que manifestam – e mais impressionados ainda pelos possíveis efeitos práticos que estas obras podem produzir. Em especial no que diz respeito a revoluções culturais, que são sempre também revoluções comportamentais. 

Nascida na Espanha, hoje Preciado é uma potência intelectual-prática no cenário francês, onde seu destino cruza-se e entremescla-se com o da escritora e cineasta Virginie Despentes.  Com um texto provocativo, de sabor literário subversivo, mobilizando uma sagaz prosa que eu apelidaria de beatnik-queer, Preciado vem levantando debates também entre os amantes de literatura – pois o tratamento literário da sexualidade que produz evoca similaridades mas também dissonâncias com a obra de figuras como Michel Houllebecq.

Transitando entre Barcelona e Paris, Preciado é hoje uma espécie de encarnação do parisiense cosmopolita. Destaca-se no cenário filosófico como herdeiro e subversor de Derrida, Foucault, Deleuze, Guattári, Judith Butler, Wittig etc. Segundo Marie-Hélène Bourcier, “o que Preciado faz com a filosofia se parece com o que o punk ou mesmo o rap fizeram com a música.” Bourcier – autora dos três livros da série Queer Zones – avalia que:

“O trabalho de desconstrução contrassexual realizado por Preciado, alinhado com projetos alternativos de modernidade, como o empirismo radical ou o espinosismo, rompe com toda uma série de binômios oposicionistas: homossexualidade / heterossexualidade, homem / mulher, masculino / feminino, natureza / tecnologia, que serviram até agora não só de fundamento da filosofia moderna, mas também como centro de reflexão das teorias feministas, assim como de certas teorias gays, lésbicas e inclusive queers. (…) Preciado utiliza com agilidade os recursos da desconstrução derridiana (…) e perfila-se em sua obra uma filosofia do corpo em mutação…” (BOURCIER, p. 13) [2]

Se Preciado de fato realiza algo capaz de “fazer com a filosofia” algo similar ao que o rap e o punk fizeram com a cultura, talvez seja pelo efeito de contestação das identidades fixas e das caixinhas binárias onde costumamos encerrá-las como que em gaiolas. Pensemos, por exemplo, no que põe Preciado em sintonia com o Punk.

Sabe-se que o movimento Punk é um dos mais libertários em relação à inclusão das mulheres nos espaços de expressão e no acolhimento espontâneo das dissidências sexuais e subversões de gênero. Tendo sido marcado por bandas pioneiras lideradas por travestis (o The New York Dolls, banda-matriz de onde nasce também a obra do ícone Johnny Thunders), ou que continham mulheres na liderança tanto nos vocais quanto nas composições (X-Ray Spex, The Slits, Blondie etc.).

Além disso, nascem dentro do punk sub-estilos inteiros – como o riot grrl de grupos como Bikini Kill, Sleater-Kinney, L7, Hole, Lunachicks, Babes In Toyland, Six Year Bitch etc. – marcados por uma revolta contra a heteronormatividade, o machismo e a opressão patriarcal.

riot grrrl transcendia a música pois, inspirando-se no ethos punk, desejava ser uma força de transformação social, demolindo uma hegemônica divisão sexual na arte que queria impor o rock and roll como algo exclusivamente acessível aos homens urrantes e ogros. Com o surgimento do riot grrrl, na esteira do estouro grunge, por volta de 1991-1992,

“a new generation of feminist musicians stopped accepting the “beergutboyrock” status quo and started making their voices heard. As loudly as possible. Riot Grrrl sent a ripple effect through culture with an influence that can be seen today in the proliferation of zines, pro-inclusivity spaces and plenty of sharp, hard-rocking all-girl bands to carry the torch.” (PAGET, Erika.) [3]

As atitudes de Kurt Cobain – criticando os rednecks escrotos, os machistas, os racistas, os homofóbicos, dizendo a eles no encarte de In Utero para que não comprassem os discos nem consumissem ingressos para shows do Nirvana – é uma das principais encarnações grunge-punk deste ethos de afirmação dos desviantes e outsiders. Assim como, no cenário contemporâneo, a impressionante trajetória do Against Me!, à frente de um cenário queercore que tem no álbum Transgender Dysphoria Blues um marco contemporâneo (um guia pode ser encontrado na Revista O Grito).

A transição identitária-corpórea envolvida em processos de transexualização tem cada vez mais exemplos encarnados de gente que tem a coragem de fazê-la em público: o Against Me!, que um dia foi uma banda punk liderada por um cara cis chamado Tom Gabel, e que hoje quer ser conhecido como a banda punk liderada por uma mina trans chamada Laura Jane Grace, faz parte do mesmo processo sócio-cultural complexo revolucionante de que Preciado participa.

Beatriz ou Paul? A própria confusão sobre como nomear esta pessoa, a proliferação de contraditórias descrições desta pessoa que a certo ponto foi “filósofa” e hoje é “pensador”, serve à esta dinamitação de certezas, dogmas e identidades com pretensão ao status pétreo de estátua. Ler a obra de Preciado, escutar Against Me! ou assistir à série True Trans (com Laura Jane Grace) é essencial para quem quiser, nesta vida, ser mais como mel do que como estátua.

Se Preciado tem algo de punk no âmago não é somente pois gosta de ir aos shows de Lydia Lunch e não tem pudores de escrever em seus livros expressões nada acadêmicas como “dar o cu”. Sua punkidade está essencialmente na sua “rebelião de gênero” que aponta para “o crepúsculo da heterossexualidade”; aquela que foi declarada, no nascimento, como mulher cis, chamada de Beatriz, criada com brinquedos “femininos” como bonecas e panelas, cresceu para tornar-se dinamitadora deste sistema, como evidencia o seguinte trecho de Testo Junkie, de impressionante radicalidade, em que ela segue os rastros de Butler, Federici e Fanon:

“Podemos dizer que a heterossexualidade feminina branca é, antes de tudo, um conceito econômico que designa uma posição específica no centro das relações biopolíticas de produção e de troca baseadas na transformação do trabalho sexual, do trabalho de gestação, do cuidado dos corpos e outras atividades não remuneradas no capitalismo industrial. É próprio desse sistema econômico sexual funcionar por meio do que Judith Butler chamou de coerção performativa: processos semiótico-técnicos, linguísticos e corporais de repetição regulada que são impostos por convenções culturais.

É impossível imaginar a rápida expansão do capitalismo industrial sem o comércio de escravos, a expropriação colonial e a institucionalização do dispositivo heterossexual como modo de transformação em mais-valia dos serviços sexuais não remunerados historicamente realizados pelas mulheres. É razoável falar de uma dívida de trabalho sexual que os homens heterossexuais teriam historicamente contraído com as mulheres da mesma forma que países ocidentais deveriam, de acordo com Franz Fanon, ser forçados a ressarcir os povos colonizados com uma dívida colonial. Se houvesse interesse em pagar a dívida por serviços sexuais e saques coloniais, todas as mulheres e povos colonizados do planeta receberiam uma renda vital que os permitiria viver sem trabalhar durante o resto de suas vidas.” (p. 133) [4]

Preciado, que dá a impressão de conhecer a fundo todas as vertentes de dissidência sexual, todas as marés do feminismo, todas as propostas de descolonização, também é uma grande conhecedora da arte underground dos dissidentes sexuais, dos outsiders da caixinha do gênero binarizado. Uma pequena lista de produções artísticas audiovisuais, literárias, performáticas e musicais fornece um panorama da riqueza e da diversidade desta produção cultural dinamitadora de binômios:

Preciado & Butler

“Por meio dos filmes pornôs feministas de Annie Sprinkle; dos documentários e ficções de Monika Treut; da literatura de Virginie Despentes, Dorothy Allison e Kathy Acker; das tirinhas cômicas de Alison Bechdel; das fotografias de Del LaGrace Volcano e Axelle Delauphin; das performances de Diana Pornoterrorista, POst-op e Lady Pain; das performances queer de Tim Stüttgen; das políticas zine e ready made de Dana Wise; dos shows selvagens dos grupos Tribe 8, Le Tigre ou Chicks on Speed; das pregações neogóticas de Lydia Lunch; e dos pornôs transgêneros de ficção científica de Shu Lea Cheang, cria-se uma estética feminista feita de um tráfico de signos e artefatos culturais e da ressignificação crítica de códigos normativos que o feminismo tradicional considerava como impróprios à feminilidade.” [5]

Não tenho dúvida de que Preciado quer contribuir para a libertação humana em relação à opressão dos binômios que nos trancam em uma vida que não flui. Em entrevista a Jesús Carrillo, Preciado afirma-se conectada à toda a galáxia da interseccionalidade: “Trata-se de estarmos atentos, diria Bell Hooks, ao entrecruzamento de opressões (interlocking opressions)”:

“Não é simplesmente questão de se ter em conta a especificidade racial ou étnica da opressão como mais uma variante junto à opressão sexual ou de gênero, mas de analisar a constituição mútua do gênero e da raça, o que poderíamos chamar a sexualização da raça e a racialização do sexo, como dois movimentos constitutivos da modernidade sexo-colonial.

Kimberly Crenshaw indicará a necessidade de evitar a criação de hierarquias entre as políticas de classe, raça, nação, sexualidade ou de gênero e, ao contrário, apelar ao estabelecimento de uma ‘interseccionalidade política’ de todos esses pontos de estratificação da opressão.

Trata-se, disse Avtar Brah, ‘de pensar uma política relacional, de não compartimentar as opressões, mas formular estratégias para desafiá-las conjuntamente, apoiando-se na análise de como se conectam e se articulam’.” (PRECIADO @ Revista Poiésis da UFF) [6]

por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro, Janeiro de 2020
A ser continuado…

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. In: “Entrevista a Víctor Amela, La Vanguardia, 1 de abril de 2008″. N-1 Edições, pg. 223.

[2] BOURCIER, Marie-Hélène. Prefácio ao Manifesto Contrassexual. Pgs 9, 13.

[3] PAGET, Erika. The 10 Best Riot Grrrl Albums To Own On Vinyl. 2017. Acesse no site Vinyl Me Please.

[4] PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica.N-1, 2018, p. 132.

[5] Ibidem, p. 359.

[6] PRECIADO. Entrevista a Jesús Carrillo. In: Revista Poiésis / UFF, n 15, p. 47-71, Jul. de 2010. Acesse PDF.

PLAYING THE PAIN AWAY – Sobre a arte prodigiosa de Tash Sultana e sua prática da catarse musicoterápica

Fico impressionado, de queixo caído, com os múltiplos dons musicais da Tash Sultana. Esta multi-instrumentista australiana, nascida em 1995 lá em Melbourne, vem se destacando no cenário cultural global como uma “banda-duma-mina-só” que esbanja inovação e feeling através dum som viajado, complexo, irrotulável. Sobretudo inspirador.

Virtuose da sinergia, Tash revigora como poucas artistas atuais os domínios do Rock Alternativo e da “cultura neo-hippie”. No processo, semeia fascínio em relação aos poderes da juventude humana quando pode deixar florescer sua criatividade e curiosidade. Com seu controle ímpar de instrumentos múltiplos e pedais de loop, ela chegou pra provar que é possível o surgimento de novos “guitar heroes” que não sejam apenas os que repisam nas pegadas de Clapton, Hendrix, Jeff Beck ou Eddie Van Halen.

Esta guitar heroine despontou com a viralização de seu vídeo caseiro da música “Jungle”, há 3 anos atrás (hoje ele possui cerca de 30.000.000 de visualizações no YouTube – assista abaixo). Com uma câmera estática filmando seu processo de “maga” dos sons, ela mostrou ao mundo que o cenário do indie-rock da Austrália ia muito além do Tame Impala. A performance de Tash, adicionando camadas e mais camadas de sons ao seu caldo de bruxa, voodoo child da novíssima generation, estarreceu muita gente com uma espécie de orquestra rock de uma mulher só:

Natasha (vulgo Tash) empilha sons em camadas superpostas sem precisar para isto do recurso de estúdio do overdub. Ela é capaz de criar, ao vivo, as “paredes de som” Phil Spectorianas que muitos pensavam só serem produzíveis em um contexto de estúdio e overdubbing. Ela é mestra na produção de um fluxo sônico onde os primeiros sons que ela produz na canção entram em estado de loop (repetição cíclica), repetindo-se como um eco do passado que segue presente, e os próximos sons adicionam-se a estes sons tocados no passado que seguem ressoando por proeza da tecnologia digital.

Conforme a canção progride, o que temos é uma espécie de câmara de ecos que poderia chafurdar na confusão mais caótica se não houvesse, no controle do processo, uma “regente” genial de si mesma como esta moça é. A revista Rolling Stone publicou uma crítica onde demonstrou toda sua admiração por um disco de estréia descrito como “deeply impressive”, onde sobressai a “guitar wizardry” da moça que é uma faz-tudo (cantora, compositora, multi-instrumentista, produtora, e por aí vai):

This Melbourne-based busker-gone-legit raises the “do it yourself” stakes with her debut, which is a top-to-bottom showcase of her varied virtuosity; she’s the lone musician credited on the album, as well as its producer and songwriter. Given Sultana’s playing-for-tips roots, it’s probably appropriate that Flow State whirls through styles — “Cigarettes” starts as loose-limbed R&B then speeds things up to a near-frantic pace, “Salvation” recalls the marriage of big beats and gossamer voices that dominated indie discos in the late Nineties, and the simmering “Seven” showcases Sultana’s violin skills over plush synth-pop and agitated chase-scene scores. Sultana can play 20 instruments, but her guitar wizardry is the clear star here; the yearning solo on “Pink Moon” yawps and shudders, while the gathering-storm riffage of “Blackbird” stretches out over nearly ten minutes, all thrilling. After years of being a festival and YouTube sensation, Sultana’s thrown down the gauntlet forcefully. (ROLLING STONE)

Parece-me que este é um procedimento estético que, além de dialogar com aquilo que o Radiohead fez de mais vanguardístico em sua carreira (a exploração cada vez mais arrojada de patterns rítmicos e ambiências que rompessem todas as caixinhas fechadas dos dogmas e paradigmas), aproxima Tash da “lógica” dos mantras budistas. Além disso, faz com que ela dialogue com a filosofia do Eterno Retorno Nietzschiana, como se seu imperativo categórico enquanto musicista fosse: “toque cada nota e cante cada frase como se você quisesse que aqueles compassos se repetissem eternamente no futuro da canção”.

Mas ninguém precisa intelectualizar demais a sua “stésis” (ou seja, seu aprendizado a partir da experiência sensorial) pra apreciar esta música: ela é capaz de fazer algo de benigno com nosso cérebro se simplesmente nos abrirmos a ela, sem pensamentos inúteis servindo de barreira para o impacto de seus encantos. Seus dois primeiros álbuns, Notion (2016) e Flow State (2018) – que A Casa de Vidro disponibiliza para dowload gratuito – penetram por nossos sentidos como uma avalanche sensorial complexa e inebriante, uma espécie de hippie-prog-rock do século 21.


“Synergy”, canção que abre o EP de estréia de Tash Sultana, Notion 

A habilidade rítmica da moça faz com que ela seja mestra em nos conduzir ao transe místico. Como uma neo-hippie pilotando a tecnologia da atualidade com maestria poucas vezes vista, Tash Sultana abre novos horizontes para uma percepção mais fluida de mundo e para uma redescoberta da música como mística. Ouvir os álbuns é uma vivência que recomendo, mas antes de ir a eles seria interessante uma imersão nos vídeos, pois neles se explicitam melhor os procedimentos técnicos e performáticos que permitem que uma musicalidade de tamanha complexidade possa nascer, ao vivo, de uma única pessoa, extraordinariamente jovem, que toca todos os instrumentos que se ouvem em seus shows e discos – o que alguns ouvintes vão julgar inacreditável. Tash Sultana toca como se quisesse nos conduzir, pela via dos sons, a alguma espécie nova de iluminação búdica.

FAÇA O DOWNLOAD DA DISCOGRAFIA DE TASH SULTANA EM MP3 – Notion EP (2016) e Flow State LP (2018)

Pra se ter uma noção do que são Notion e Flow State, são necessárias repetidas imersões em seus complexos sons. As explorações de territórios novos no indie rock, como Velvet Underground, Talking Heads ou Pixies fizeram no passado, convivem na obra de Sultana com influências culturais orientais, vibes meio rasta, flertes com o dub e o trance, tudo impregnado de uma espiritualidade meio búdica. Uma neo-hippie no perfeito comando da tecnologia a seu dispor, ela é também capaz de explorações existenciais e mergulhos psicológicos que expressam sua subjetividade conturbada. Uma de minhas prediletas fala sobre tudo aquilo que nos oprime por dentro, nos confunde a subjetividade, nos esmaga invisivelmente – tudo que é “assassinato pra mente” (“murder to the mind”):



“I was only screaming out for help
It was murder to the mind
It was blood on my hands
Fire in my soul…”

“Murder to the Mind” é uma das músicas que mais impressionam em Flow State, um dos álbuns de estréia mais ambiciosos do século 21. O videoclipe é primoroso e revela ao espectador toda a densidade da experiência sensorial envolvida em Tash Sultana. Ela, em operação, é um corpo pulsando intensamente com a música, com seu organismo inteiro movimentado pelo estado-de-fluxo que a música propicia quando se é capaz de cometer, com ela e através dela, “abraço místico”, tema de outra das lindas canções do disco, “Mystic”, que evoca Van Morrison e sua música que nos conduz a “velejar into the mystic” em obras-primas da história da música como Moondance e Astral Weeks:


“There’s a natural mystic in the air…”

Na guitarra de Tash, repercutem os ritmos do dub, do ska, do reggae, do R&B, enfim: da diversidade abraçada, celebrada, praticada. Ela vai criando riffs onde também se manifestam toda a maestria Sultânica para a arte do loop. E acima de tudo isso, evidências de sobra de que ela sabe rockear: sua atitude nos palcos e na vida é de alguém que sabe também ser confrontacional. Outro de seus méritos enquanto musicista é que, não importa quão experimental seu som se torne, ela é sempre groovy em seu processo de ir experimentando… Não se trata apenas duma geek privilegiada que está com tempo livre de sobra pra aprender uns gimmicks com pedais-de-guitarra e softwares de sequenciamento de beats. Em Tash Sultana, estes instrumentos estão a serviço da maestria expressiva e interpretativa:


Estamos em uma era, na música, onde se agigantam de novo as teens fenomenais, dando uma nova versão da angústia adolescente através de uma Billie Eilish, mas igualmente através da imensa sabedoria que Tash Sultana já manifestava aos 21 anos de vida. Isso se evidencia na TED Talk em que ela, em clima confessional (similar àquela linda sessão TED com Flaira Ferro), relembra de certos episódios de sua vida pregressa em que lidou com a “psicose”, a confusão mental, a insociabilidade, a incapacidade de funcionar corretamente em meio à sociedade careta. Toda aquela dor, ela diz, foi sendo trabalhada através do tocar música, até que ela tenha alcançado um pouco de “clareza” [clarity] sobre os afetos [passions].

Aí, parece-me, está se exprimindo algo que também marcou a trajetória de Kurt Cobain, aquele irônico e icônico ídolo juvenil suicidado aos 27 e que cravou versos inesquecíveis como aquele que agora acorre à memória: “teenage angst has paid off well” (de “Serve the Servants”, magistral faixa de abertura do “In Utero”). Talvez Sultana possa dizer que conheceu a teenage angst cobainiana, que esteve tentada a auto-destruir-se devido a suas suicidal tendencies, mas que conseguiu, ao contrário do líder do Nirvana, encontrar saúde e clareza através da catarse musicoterápica. O que a aproxima também de Laura Jane Grace, mulher-trans à frente de uma das mais importantes bandas punk do mundo, o Against Me, que também fala no processo de “buscar claridade” em meio ao caos, através de sua arte, em álbuns incríveis como Searching For a Former Clarity e Transgender Disphoria Blues.

Ela não buscou esta catarse através da expressão por vontade de se conformar aos padrões e paradigmas da sociedade careta, mas ao contrário foi “playing the pain away” em sessões de performance-de-rua [streetperforming] que ela foi burilando seu estilo e aprendendo a comandar a impressionante aparelhagem que ela opera. Multi-instrumentista capaz de tocar mais de 10 instrumentos diferentes, ela é prova da vivacidade extasiante da capacidade de aprender humana manifestando-se na flor da juventude. Skateira, pouco conformada aos padrões de gênero que propõe à mulher que seja dócil e comportada, sempre de trejeitos “femininos” (ou seja, delicados…), ela traz na pele tatuada os signos de uma ânsia por sentido, diante da morte, construída com arte.

Aquela TED Talk, neste contexto, ensina uma imensidão: uma mente humana, há 21 anos no mundo, é uma das coisas mais complexas e fascinantes do cosmos – e pobres dos velhos que, prepotentes e arrogantes, ousam desprezar a juventude e supõe que ela é sempre mais tola e estúpida do que a geração que está a mais tempo no mundo. Na verdade, pode ser que o apego às velharias conhecido pelo nome de conservadorismo seja uma esclerose senil e que as forças da renovação da existência encarnam-se na geração juvenil. Isto é tão óbvio e evidente mas precisa ser reafirmado diante de uma faceta que nos esfaqueia no fascismo da atualidade: os fascistas são quase sempre velhos, opressores da juventude, apegados ao dogma de que os mais velhos devem mandar, numa espécie de gerontocracia. 

A música e a pessoa de Tash Sultana é pra dar um pontapé nesses arrogantes gerontocratas. A juventude pode muito e ainda vai poder mais: Rimbaud já tinha marcado para sempre a história da poesia francesa com 17 anos de idade, e eu afirmaria sem medo de errar que a música “pop” nos EUA poucas vezes foi marcada por uma obra prima artística tão primorosa quanto foi pelo lançamento de Tidal, disco de estréia gravado por uma Fiona Apple  que havia criado aquilo após apenas 16 giros de seu corpo ao redor do Sol.

Na esteira dos Beatles e do mantra “Can’t Buy Me Love”, ela realizou “Can’t Buy Happiness” (Não Se Pode Comprar Felicidade), sugerindo que só se é feliz, nesta vida, quando utilizamos a criatividade para lidar com os sofrimentos inevitáveis que a vida comporta.

A salvação não precisa ser privilégio dos crentes, nem ser necessariamente post mortem: pra salvar-se em vida de uma morte travestida de existência, de uma meia-viva apagadinha e meia-boca, é preciso que a arte seja convocada para infundir beleza e sentido ao que de outro modo poderia chafurdar no nonsense e na insignificância confusa. Para além de ser uma wizard dos instrumentos musicais, de ser brilhante no controle dos aparatos tecnológicos, Tash Sultana é também alguém que vivencia a arte como espiritualidade – o que é laico, secular, acessível a qualquer ateu. A beleza é um deus terreno que não exige de nós crença na transcendência sobrenatural, nem sacrifícios ascéticos em louvor a esta. Salvação, aqui e agora, através da criação, pela arte, de um mundo mais belo e mais habitável, de uma vida mais fascinante e envolvente.

É claro que, de um viés crítico, há o que se dizer sobre esta hipérbole do protagonismo que é o método do-it-yourself de Sultana levado ao extremo de um do-it-alone (with no one else). Alguns podem ler excesso de individualismo nesta estratégia artística de alguém que quer fazer tudo, estar no controle de todos os elementos, levando a questão da expressão individual à elefantíase. Avessa à especialização de funções, Tash não quis chamar uns brothers ou sisters para tocarem baixo, batera, trompete com ela. Ela toca consigo. Será isso solipsismo? Mesmo numa artista que, em “Mystic”, nos fala de uma sabedoria que consiste em botar o ego pra dormir?

“I guess I laid my ego to rest.” (“Mystic”)

Ela corre o risco de se embrenhar numa jornada egóica, como muito guitar hero já fez, fazendo a ostentação de seus feats técnicos para platéias embasbacadas. Ela é prodigiosa e sabe disso, mas isto coloca o perigo de um ego que cresça como um balão que se enche de ar e se desprega do chão. De todo modo, como o clipe de “Cigarettes” indica, Tash é um exemplo vivo do que pode acontecer com alguém que tem sua iniciação musical bem cedo, que tem seus dons expressivos incentivados desde o berço, e que ademais consegue trilhar como estudante os caminhos do aprendizado auto-didata (ela se diz self-taught):

Em seu pertinente e provocante documentário The Century of the Self, Adam Curtis sugeriu que vivemos no “século do self” no último centênio. Tash Sultana é expressão isso, de uma self made woman que conseguiu tornar-se “sozinha” um fenômeno transnacional da música. Só que este self é nela questionado pelos tropismos que ela manifesta pelas vertentes da sabedoria oriental que colocam a felicidade justamente na transcendência do ego e numa mística da re-união. Búdica religião do re-ligare, que através da arte faz o eu transbordar de si e encontrar-se com outros na mística profana e maravilhosa da comunicação estética. Através de sua arte, como uma blueswoman tecnizada, ela segue a caminhada da vida playing the blues away, na descoberta de uma catarse musicoterápica.

 

Por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 20/12/2019

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A ODISSÉIA DUM PEIXE DANÇARINO PRA FUGIR DE UM AQUÁRIO-PRESÍDIO – Sobre o filme “FISH TANK” (U.K., BBC Films, 2009), de Andrea Arnold

“I’m good at being uncomfortable
So I can’t stop changing all the time.”

FIONA APPLEExtraordinary Machine [ouça]

O desconforto com o atual enrosco, o inconformismo diante de situações intragáveis, são motores dos movimentos de auto-transcendência. A superação-de-si exige de nós que tenhamos uma boa dose de discórdia conosco mesmos, uma vontade de deixar-se para trás rumo a uma melhor versão de si.

Eis alguns dos ensinamentos possíveis de sugar da narrativa cinematográfica arrojada, comovente e impactante de Fish Tank. Através do belo filme da Andrea Arnold, lançado pela BBC Filmes em 2009, temos acesso a uma vivacidade juvenil intensa, ingovernável, que lida com as opressões à sua volta com o sadio desrespeito pelas correntes que têm, quando capturados, os animais que haviam sido antes selvagens – e que passaram todas as suas vidas correndo livres e soltos pela floresta.

Em um filme que aposta em metáfora bastante significativas, a mensagem parece ser um conclame ao amadurecimento criativo que envolve, sempre, revoltas contra limitações e travas socialmente impostas e que bloqueiam o nosso crescer. A protagonista de Fish Tank é uma peixona adolescente faz de tudo para romper com o confinamento em um aquário que é seu presídio. Melhor dizendo: Mia é uma espécie de símbolo de uma juventude que, caso as velhas gerações ainda vivas, em sua autoritária gerontocracia, tentem encerrar na jaula de uma tanque de peixes onde a ração são só migalhas, explode em revolta.

Mia dá conta, no processo, de que fazer com que esta revolta, para além dos elementos destrutivos que carrega, refulja como uma revolta criativa, uma criatividade revoltada. Uma femme revolté que talvez agradasse a Camus ou Beauvoir, caso estivessem vivos para espiarem com olhar existencialista esta bela obra do cinema contemporâneo. Em Mia, refulge algo à la Emma Goldman,  pulsa no anarquismo espontâneo de Mia a determinação a ir dançando sua revolução.



Ao assistir ao filme, por vezes me lembrei do que canta Fiona Apple na bela canção que dá título a seu maravilhoso álbum em parceria com Jon Brion, Extraordinary Machine: quem é “bom em sentir desconfortável não pode parar de mudar o tempo todo”.

Em Fish Tank (Aquário), filme de Andrea Arnold , a vida de uma adolescente britânica chamada Mia (interpretada por Katie Jarvis) é explorada nos meandros de seu labirinto existencial. Nós somos lançados direto para o epicentro deste labirinto que é Mia, desnorteada e enfurecida, irrompendo na tela com a fúria de uma punk urbana que taca pedras em vidraças e quebra o nariz dos desafetos a cabeçadas. Algumas cenas adiante, a mãe anuncia a Mia que, em 2 semanas, ela irá para a “casa de correção”.

Fish Tank revela, de maneira instigante, o labirinto em que Mia se debate feito um peixe-dançarino em revolta contra as dimensões estreitas demais de seu aquário-presídio, repleto de opressões que a rodeiam e tentam esmagá-la. Envolta numa miríade de opressões, ela vai dando um jeito de driblar as adversidades da vida, um pouco no remelexo, um pouco na irrupção de raiva reativa. Com os beats do hip hop bombando em seus fones-de-ouvido e soundsystem, esta peixa irritada com o confinamento em aquário demasiado estreito debate-se querendo fugir.

Um dos símbolos supremo que o filme ergue para representar este ímpeto de fuga é a égua de seu amigo, sempre acorrentada e raquítica. A égua que ela tenta roubar, arrojando contra o cadeado que mantêm o animal preso a golpes de pedras e marteladas. Esta égua, que ela fracassa em libertar através da martelada, faz com que ela descubra-se confrontada, mais uma vez, pelo “monstro” social onipervasivo, Minotauro de seu labirinto: uma cultura onde as relações sociais são brutas, sem delicadeza, norteadas pela ofensa mútua. À semelhança da estética dos Sex Pistols, ficamos com a impressão inicial de que esta é uma Inglaterra da Juventude No Future e que todos estão cuspindo uns nas caras dos outros.

Incapaz de resgatar a Égua, com quem ela provavelmente fugiria pra bem longe de sua vida-inferninho nos subúrbios de Londres, esta princesa-punk tem que encarar o Minotauro da macheza tóxica. Vemos uma gangue de três caras e um rottweiler tentando estuprá-la. Ela se debate com todas as forças de seu corpo, briga com eles esperneando e desferindo socos. Até que se liberta o bastante para correr na velocidade de um atleta dos 100m raso nas Olimpíadas.

Ter escapado de uma tentativa de estupro não a torna muito predisposta a ser gentil com os homens em geral – muito menos com o novo namorado de sua mãe, Connor (interpretado por Michael Fassbender). Se ela, de cara, antipatiza com ele e o trata como inimigo, é pois isto tornou-se sua reação emocional padrão diante dos humanos em geral. Ela tem antipatia por gente. Uma antipatia que engloba os que tem pica e os que tem buceta numa mesma onda de misantropia adolescente. Tanta fúria precisa expressar-se, caso contrário este aquário explodirá pelos ares como uma panela de pressão esquecida por tempo demais no fogão.

Se me permitem uma digressão pela Cultura Pop contemporânea que me parece significativa como chave de leitura do filme, é importante notar a semelhança do nome da protagonista de Fish Tank, Mia, com a artista, de nome bastante semelhante e de imensa repercussão no Reino Unido neste últimos anos: M.I.A., originária do Sri Lanka, hoje uma das mais provocativas artistas britânicas do séc. 21.

Assim como M.I.A. horrorizou muitos – e atraiu processos contra si que quase a levaram à falência – quando mostrou o dedo médio, em cima do palco com Madonna, no famigerado show da NFL, a Mia do filme também gosta de uma cultura que provoque, que confronte, que não seja demasiado “boa-moça”. Com vínculos fortes com a cultura hip hop, seu corpo, quando tem tempo livre, dedica-se a treinar-se nas artes do breakdancing. 

INDIANAPOLIS, IN – FEBRUARY 05: MIA performs during the Bridgestone Super Bowl XLVI Halftime Show at Lucas Oil Stadium on February 5, 2012 in Indianapolis, Indiana. (Photo by Christopher Polk/Getty Images)

Mia está animada pelo sonho deem tornar-se uma dançarina de sucesso, uma artista de renome. Diante da tela da TV onde assiste a videoclipes sacolejantes da black music globalizada, ela sacode o esqueleto nos interstícios desta vida que parece oprimi-la por todos os lados.

Primeiro e sobretudo, a opressão materna, que explode na tela logo nos primeiros momentos de um filme que explora, a fundo e com densidade poética, a metáfora entre a adolescente rebelde de 15 anos, que protagoniza o filme, e um peixe aprisionado num aquário. Um peixe cheio de inquietude, querendo expressar seus encantos de sereia. Mas, assim como M.I.A., radicalizando no confronto com as situações materiais do mundo em que vive, socialmente convulsionado por conflitos e antagonismos que polvilham por toda parte a praga das relações de dominação e subalternidade, de opressor e oprimido, trava suprema para a superação humana da atual nossa fase de fratricidas no labirinto.

O filme não está interessado na vida de quem é pop star, mas sim na vida anônima que sonha em sair dum pântano de anonimato. A filmagem de Andrea Arnold é bastante realista, lembrando o estilo de mestres britânicos do cinema realista sobre a riff raff como Mike Leigh e Ken Loach, mas o olhar atento à juventude de uma mulher em seu aquário de opressões transforma a obra em algo que toca fundo na questão do feminino no mundo contemporâneo. Dificilmente Fish Tank poderia ser considerado feminista, o que não o impede de ter muita food for thought sobre as relações sociais entre mulheres. A começar por mãe e filha, que estiveram um dia em simbiose tão intensa, fundidas num organismo, e que na adolescência são descritas como extremamente arredias.

Algumas vertentes do feminismo, por centrarem a mira de suas críticas no Patriarcado, acabam por pintar o retrato do opressor como sinônimo de macho, o que dificulta a apreensão da realidade inegável que são as mulheres que oprimem mulheres, a começar pelas mães que oprimem suas filhas, irmãs-mais-velha que oprimem suas irmãzinhas, dentre outras manifestações disso que é o avesso da sororidade. A irmãzinha de Tyler, ao despedir-se de Mia que se vai para o País de Gales, diz: “I hate you”, ao que a irmã responde: “I hate you too.” É uma das cenas mais fofas do filme.

Instantes antes, a mãe, ao ser avisada que a filha maior estava de partida, com malas feitas e uma carona para outro país, lança-lhe na cara um “fuck off!” A mãe, cansada de reter no aquário aquela rebeldia indomável, enfim concede a Mia o direito de vazar. Antes, esta mãe era sentida como carcereira, agora transmuta-se de súbito numa mulher, falível como todas, humano demasiado humana, e que tenta driblar com dança as deprês dessa vida. Mãe e filhas entram na dança da despedida e, sem palavras, estão temporariamente em trégua em sua longa guerra doméstica.

O modo como o filme articula o tema da dança no tecido vital da protagonista. Mia parece se identificar com a figura do animal que tem seus movimentos impedidos: é o caso da Égua que ela tantas vezes tenta salvar, e cuja morte lamenta com lágrimas que ela não derruba, através do filme todo, para nenhum humano. A dança parece estruturar sua subjetividade em transformação como uma espécie de espinha dorsal da fantasia que motiva o caminhar-adiante. Ela faz planos de tornar-se alguém no mundo da dança, articula com Connor uma ajuda para que ela possa participar de um teste, consegue uma câmera com ele pra que filme um vídeo (pré-condição para ser uma das candidatas desta audition que passa a servir como isca para esta peixona louca para saltar de seu aquário direto para a vastidão do oceano.

Desde seu título, Fish Tank demonstra um certo desejo de metaforizar sua narrativa através de peixes e éguas, evocados em relações com Mia que vão revelando para nós as características de seu labirinto. Numa cena chave, Connor leva as 3 mulheres para um rolê de carro que termina numa estranha pescaria. Connor entra no lago a fim de catar um peixão com as próprias mãos e Mia é a única a topar o desafio (ainda que não saiba nadar). A captura do peixe, seguida por um quadro em que o animal agoniza no solo, fora de seu habitat aquático, revela a Mia o poder daquele homenzarrão charmoso capaz de carregá-la nas costas, gentilmente, quando ela corta os pés.

A caminho da daquele episódio de queer fishing, Connor toca no carro a sua canção predileta de todos os tempos, “California Dreaming” na voz de Bobby Womack. A canção traz um eu-lírico que, no Inverno, sonha com uma Califórnia ensolarada – semelhante àquela que, na casa de Mia, decora a sala-de-estar como papel de parede. Mia decide escolher esta canção para dançar. Bola uma coreografia. Todos os incentivos de Connor surtem um certo efeito sobre a auto-estima de Mia, ela vai caindo para os encantos daquele cara que há poucos dias era um completo estranho que dançava com a mãe nas festanças domésticas e que ela observava transando, escondida na obscuridade do corredor.

Fish Tank é um filme desprovido de moralina e retrata comportamentos dificilmente aplaudíveis com tanta empatia que a gente é lançado para além do bem e do mal, como queria Nietzsche. É um filme que não quer nem crucificar nem inocentar sua protagonista – quer que viajemos com a vida dela, com empatia ligada no talo, mas sem perder a capacidade crítica. Nem santa, nem puta: Mia apenas. Mia, cheia de tesões, dançando seu caminho para fora do aquário, rompendo certos limites temíveis – como transar com o namorado da mãe…

Com a mãe desmaiada no quarto após um porre, Connor e Mia transam na sala logo após a performance dela de “California Dreaming” (papel de parede todo Californiano servindo de plano de fundo). A vida de Mia é o próprio inverno, e sua dança é a Califórnia. But the fantasy comes crashing down. No clímax dramático do filme, Mia vai atrás de saber mais sobre a vida de Connor, este cara que já esteve com a pica dentro dela e de sua mãe – e que de repente sumiu. Vazou. Escafedeu-se.

Mia invade a casa de Connor saltando o muro dos fundos e penetrando por uma janela. A câmera com filmagens enfim revela a Mia que Connor é casado e tem uma filha, o que inspira a reação instintiva de tacar a câmera longe e depois mijar no tapete da sala. Na sequência, Mia tenta sequestrar a filha de Connor, que a certo momento escapa pela mata. Em uma das cenas que deixa o espectador gasping for breath, após uma briga violenta em que a criança tenta ser libertar de seu cativeiro aos pontapés contra sua carcereira, Mia empurra a criança na água. Aos 15 anos, Mia quase se torna uma sequestradora e uma assassina.

Evocando outros filmes da história sobre rebeldias juvenis, como Vidas em Fuga de Lumet (com Marlon Brando) ou Rebelde sem Causa de Nicholas Ray (com James Dean), Fish Tank é a crônica de várias pequenas rebeliões contra os jugos opressores. Mia se debatendo para escapar da garra de seus estupradores é uma cena análoga à filha de Connor debatendo-se para escapar da fúria vingativa de Mia. Os elos na cadeia da opressão estão bem encadeados. E este filme não vende falsas esperanças – tanto que o caminho do sucesso permanece vedado para Mia. Não se trata de uma ascensão para o estrelato como dançarina – não estamos diante de nenhum fenômeno semelhante ao de M.I.A., de Janelle Monae ou de Flaira Ferro.

O filme nos frustra ao focar no fracasso de Mia na conquista de seu sonho de ser dançarina – chegando na audition, ela descobre que de fato eles estavam selecionado strip dancers, que ela estava no lugar errado, que ali não havia espaço para sua expressão corporal nem como breakdancer, nem como coréografa dos Sonhos de Califórnia. Ela abandona aquele palco onde o corpo da mulher agita-se apenas para instigar o tesão dos machos e parte para outra.

A atitude de Connor, que comete um adultério duplo, com mãe e filha, antes de abandoná-las e voltar para sua “família tradicional britânica” numa “Safe European Home” (The Clash), é retratada sem panfletagem feminista, mas a mensagem da narrativa é clara: Mia não aceita calada ser comida e depois jogada de lado como uma casca de banana. Mia está disposta a uma irrupção no cenário proibido da família feliz de Connor, para demarcar com seu mijo e sua presença disruptiva aquele território de que está segregada. A área proibida, que Connor impede que ela acesse, temeroso da revelação da verdade, instiga Mia a cometer seu “crime” de sequestro e quase assassinato da filha de Connor.

A cena em que Mia é apedrejada pela criança que dela busca fugir, essa cena que ressoa fortemente na memória pois ali Mia está em full throttle na posição de “opressora” vingativa, é uma das cenas-chave que mostra a disposição do filme em sublinhar o Inferno não é exclusivamente masculino. Quero dizer, com isso, que uma vertente reducionista do feminismo torna-se incapaz de ir mais profundo à raiz dos antagonismos das relações humanas quando culpabiliza unicamente o Patriarcado e “o Macho” por todos os males do mundo, quando é óbvio que também as mulheres são capazes de serem maléficas e opressoras umas com as outras, em diferentes situações onde diferenças de poder propiciem oportunidades para os abusos de autoridade – seja na relação mãe e filha, professora e aluna, médica e paciente, adolescente e criança etc.

Através de seu cinema do fluxo, da transmutação, Andrea Arnold inaugura novos horizontes para a senda dos filmes problematizadores da Juventude na sociedade contemporânea. Há algo de Larry Clark ou de Gus Van Sant em seu cinema, mas algo também singular – e que ela seguirá explorando com maestria em seu próximo filme, Docinho da América. Um Oceano Atlântico inteiro separa EUA e U.K., mas as semelhanças entre eles ainda sobressaem devido ao mesmo caldo de cultura anglo-saxã, protestante e “liberal”. Em seus filmes, Andrea Arnold registra o movimento de reinvenção da juventude nas sociedades contemporâneas através de um cinema de alta intensidade, rica rítmica, montagem de dinamismo videoclíptico e capacidade de propor metáforas de largo alcance.

Ainda sobre o tema da revolta, ou do comportamento revoltado desta figura feminina inconformada e agressiva que é Mia, vale lembrar aos espectadores mais apressados que o filme não está nos convocando para um tribunal, não interessa julgar se Mia é do bem ou do mal, se é uma menina-bandida ou se podemos adorá-la sem culpa. Mia é uma vida complexa que nos oferece seu labirinto para que possamos tentar decifrá-la, e aí percebemos, como fez Jon Savage em seus estudos sobre a Youth, que o individual é indissociável do social. Mia é assim por causa do Patriarcado, da masculinidade tóxica, da cultura do estupro, sim, é possível, mas ela não é redutível a isto, pois estes elementos da cultura, disponíveis a todos os sujeitos que compartilham desta mesma cultura, será “sintetizado” por ela de maneira específica, singular e única.

Seja reproduzindo explosões de agressividade e de dispêndio de força física contra o outro que ela provavelmente aprendeu com os machos da espécie, de certo praticando a mimese das atitudes machomen, seja criando maneiras de empoderamento feminino para sobreviver na selva de intentos de estupro e de irresponsabilidades gerais, tanto masculinas quanto femininas. A ausência completa da figura do pai na família de Mia dá também o que pensar sobre o tema das “famílias desestruturadas” pela falta daquilo que supostamente deveria ser, desta família, a “espinha dorsal”, o pai.

De todo modo, o filme não convida à abstração, não fala sobre o geral, não pretende ser um tratado sobre a família britânica na era contemporânea, é muito mais um dispositivo de ativação de afetos. Mia ativa justamente nossos afetos ativos, nossos afetos que conduzem a ações, nossos afetos que tem um ímpeto inerente de predileção pelo ritmo, pelo movimento, pela mudança, pelo fluxo.

Eis um cinema com alto teor de corporalidade, um cinema que flagra o corpo de Mia movendo-se e agindo-se com uma espécie de volúpia libertária pela captura de imagens onde os gestos falam mais que as palavras. Um filme digno de estudo para quem quer que se interesse por expressão corporal danças contemporâneas. Na esteira de Paul Gilroy e seu livro abre-horizontes O Atlântico Negro, o filme de Andrea Arnold fala também sobre uma Inglaterra das culturas híbridas, que inclui uma forte expressividade da cultura hip hop, esse fruto tardio e hiper contemporâneo da diáspora dos africanos escravizados que pelo mundo se espalharam, sempre criando e recriando a cultura humana em seus movimentos, mesclas, miscigenações e aventuras de fuga.

Com a sabedoria de William Blake já pulsando em seu corpo de 25 anos, Mia sabe: “He who desires but acts not, breeds pestilence.” (“Aquele que deseja e não age gera uma prole de pestilência.”) Não sei se o que pesou foi a sinapse que conectou a personagem Mia à rapper real M.I.A., mas fiquei com a impressão de que o filme sugeria, para além dos créditos finais, que a protagonista não ficaria presa ao pântano. Que esta peixona estava destinada, num futuro que o filme não conta, a arrasar nas artes.

Mina-rebelde na Inglaterra no future forjada pelo neoliberalismo econômico somado ao puritanismo moral, a Mia encarnada por Katie Jarvis é uma força feminina exuberante, quebra-correntes, como que a anunciar ao mundo, com seus gestos e suas danças, a relevância deste episódio supremo na história da linguagem humana que são os Provérbios do Inferno de Blake:

In seed time learn, in harvest teach, in winter enjoy.
Drive your cart and your plow over the bones of the dead.
The road of excess leads to the palace of wisdom.
Prudence is a rich ugly old maid courted by Incapacity.
He who desires but acts not, breeds pestilence.
The cut worm forgives the plow.
Dip him in the river who loves water.
A fool sees not the same tree that a wise man sees.
He whose face gives no light, shall never become a star.
Eternity is in love with the productions of time.
The busy bee has no time for sorrow.
The hours of folly are measur’d by the clock, but of wis­dom: no clock can measure.
All wholsom food is caught without a net or a trap.
Bring out number weight & measure in a year of dearth.
No bird soars too high, if he soars with his own wings.
A dead body, revenges not injuries.
The most sublime act is to set another before you.
If the fool would persist in his folly he would become wise.
Folly is the cloke of knavery.
Shame is Prides cloke.

WILLIAM BLAKE

 

A contracultura e suas urgentes responsabilidades – Sobre a turnê cancelada dos Dead Kennedys e o grito punk de um poster

“Don’t hate the media, become the media.” JELLO BIAFRA

Uma cultura ajoelhada diante do altar do conformismo é uma cultura com rigor mortis. E é disso que sofre a cultura hegemônica sob o império do capetalismo neoliberal que hoje em dia anda flertando desavergonhadamente com o fascismo: é uma cultura engessada na forma-mercadoria, quando a bagaça sempre esteve conectada, para o artista revolucionário, com o ato explodir a gaiola da mercadoria e instaurar no mundo a experiência sensorial inédita que é vocação da arte autêntica propiciar.

A Cultura Viva é balbúrdia anticonformista, e não – nunca! – cumplicidade com os tiranos. Diante das injustiças, os artistas são os berram, não os que se calam. Em nossos tempos de neofascismo e de democracias golpeadas pras cucuias, a Contracultura tem sua responsa e sua urgência. Até porque o Coiso que hoje tem por função ser presidente da república é tão “culto” que não fala uma palavra em homenagem a Chico Buarque pelo prêmio Camões, não dá seus pêsames após a morte de Beth Carvalho, mas presta suas homenagens ao MC Reaça depois que este espancou sua amante grávida e depois se suicidou…

O Brasil de 2019, sob a batuta insana do Bolsonarismo, raiou já com a extinção do MinC perpetrada pelos que, no palanque, faziam o gesto das armas de fogo, instrumentos da morte. A arte, que é o sim da vida à criatividade que é intrínseca a tudo que prospera e evolui, é o contrário do armamentismo destrutivo que pregam aqueles que poderiam repetir como o célebre dito nazista: “quando ouço a palavra Cultura, puxo meu revólver”. Quando Bolsonaro ouve a palavra Paulo Freire, puxa seu lança-chamas. E o Museu Nacional ardeu mesmo em chamas até as cinzas no país do pós-Golpe, desgovernado pela barbaridade desses “cidadãos-de-bem” que aniquilam a cultura no altar de Mammon, ou seja, da mercantilização geral de tudo e da imposição da política de terra-arrasada para a educação e a cultura…

Contra tal barbarismo, somos os que levantam uma contravoz, dissonante em relação à monocórdica voz dominante: quando nos falam em revólver, sacamos nossa cultura. Somos os que se armam de livros e se livram de armas. Os que se armam de grafites e beats, de teatro e de poemas, de cinema e de canções, para resistir à canalhização geral da vida. Assim coletivamente e sem muito programa vamos parindo a contracultura da atualidade, cultura-do-contra que é essencial para a cultura viva. Como Gilberto Gil e Juca Ferreira sonharam e começaram a concretizar, antes de tal utopia ser (também ela!) golpeada. Tantos golpes, e ainda assim nos levantamos (and still we rise!). A contracultura enquanto organismo indomável e insurgente é prova viva de que o devir histórico é Movimento irrefreável e serão levados pela correnteza os que desejam imobilizá-lo.

Em seu cartaz para a turnê dos Dead Kennedys no Brasil, Cristiano Suarez criou a A Grande Carapuça, obra endiabrada em que evoca clássicos da banda hardcore californiana como “Kill The Poor” e “Nazi Punks Fuck Off”. O artista parodia o Cidadão-de-Bem, vulgo Coxinha ou Bolsominion, que está todo aderido ao projeto-de-país miliciano-torturador hoje em voga:

O polêmico cartaz realizado por Cristiano Suarez já se tornou uma das imagens mais emblemáticas do Brasil de 2019 (quer comprar um poster, em tamanho A2 e por apenas 30 pilas? Siga o link >>> https://bit.ly/2Ji6fgL). Emblema de um país desgovernado pela extrema-direita Bolsonarista que tomou o Estado de assalto para impor uma fusão caótica e imbecilizante de neoliberalismo selvagem e neofascismo.

Emblema também de um território contaminado pela disseminação massiva de odientas ideologias que foram inoculadas nesse pessoal que relincha slogans como: “bandido bom é bandido morto!”, “o Lula tá preso, babaca!” e “nossa bandeira jamais será vermelha”. Originalmente criado para a turnê-que-não-rolou dos Dead Kennedys – na formação atual, que não inclui o vocalista original Jello Biafra (líder do Guantanamo School of Medicine) -, o poster foi renegado pela banda de hardcore californiana (a despeito de um entusiasmo inicial do qual eles depois arregaram).

Os Kennedys Mortos cancelaram sua vinda ao Brasil devido a todas as tretas vinculadas à disseminação viral desta provocativa peça de propaganda antifa saída da pena de Suarez. Uma arte rapidamente reapropriada, via hacking cibernético, por outras bandas – a exemplo dos Ratos de Porão, dos Garotos Podres e do francisco, el hombre. Sobre o episódio, Biafra assim se manifestou:

Sim, nós estamos preocupados com o Brasil. Porque nós nos importamos com o Brasil. E porque nós nos preocupamos com o mundo. Nós tememos pela situação dos brasileiros, tememos pela Amazônia. Tememos pelas tribos indígenas que poderão ser massacradas. Nós não queremos que mais nenhum inocente morra como aconteceu com a Marielle Franco. Sim, a notícia de seu assassinato chegou até os noticiários americanos. E, meus caros amigos, nós admiramos e respeitamos muito cada um que tenha a coragem de se posicionar contra o Bolsonaro e seus apoiadores fascistas metidos a valentões. – JELLO BIAFRA, Leia na íntegra em Tenho Mais Discos Que Amigos

 

Com o cancelamento da tour, choveram críticas contra os Dead Kennedys (sem Jello, os fake kennedys…) por terem “amarelado” – e não faltaram antigos entusiastas da banda, responsável por discos clássicos como “Fresh Fruit for Rotting Vegetables”, que os xingaram, cuspindo e dizendo que não se fazem mais punks como ultimamente…

A produtora EV7 Live teve que arcar com os custos astronômicos vinculados ao cancelamento da turnê e, para isso, está vendendo camisetas e pôsteres A2 com a arte de Suarez, numa curiosa estratégia mercadológica de transformar em commodity aquilo que o poder hegemônico desejaria censurar e silenciar.

A viralização do poster não foi à toa: ele encapsula toda a insanidade coletiva que conduziu ao triunfo provisório do que existe de mais sórdido e péssimo entre nós: a cultura do ódio e do irracionalismo, da segregação e da desunião, da intolerância e do chauvinismo cego, da subserviência acéfala ao Tio Sam e seus tanque$ e dollar$ – todo o “caldo” mórbido que serviu de substrato para o assalto-ao-poder que empoderou a Necropolítica mais brutal.

Não é preciso ser um ás da semiótica para ler, no centro do quadro, a presença da Família Tradicional Brasileira, pequeno-burguesa e que sonha em enriquecer mais, conservadora nos costumes e liberal na economia, idólatra das armas de fogo e das soluções truculentas para os problemas sociais. A Família, muitas vezes bestificada por religiões instituídas e por lógicas evanjegues, que reúne-se diante da TV para sua dose diária de alienação com sitcoms e filmes de ultraviolência made in Hollywood.

A Família Tradicional Brasileira que, aos milhões de exemplares, é o sustentáculo do Estado de Exceção que hoje nos desgoverna propondo o desmonte dos bens públicos e dos direitos sociais duramente conquistados. A Família Tradicional Brasileira que, durante a fraude do golpeachment, teleguiada pela rede Globo e demais integrantes do P.I.G., bateu panelas e encheu as ruas do país para “protestar contra a corrupção”, sem notar no absurdo que era fazer isso vestindo camisetas da CBF, votando em Aécio Neves e apoiando um golpe parlamentar liderado pelo gangster Eduardo Cunha.

Ecoando a ironia de “Kill The Poor”, porrada hardcore em que Jello Biafra exibia toda sua endiabrada e cáustica crítica social repleta de um cinismo indomável, o cartaz fala da Família Bozólatra como adoradora do cheiro de pobres mortos na manhã que fede à gasolina e óleo diesel. Tudo pega fogo no país em que os incêndios na favela são comemorados de dentro das BMWs e dos apartamentos de luxo onde se juntam, na Varanda Gourmet, os eleitores do Homem-de-Bem (aquele mesmo, que idolatra torturadores e defende grupos de extermínio… aquele mesmo, que até agora não sabemos que relações tinha com seu vizinho, assassino de Marielle Franco, miliciano dos mais de cem fuzis domésticos…).

O cartaz é brilhante por mostrar em uma cápsula imagética todo o tragicômico de nossa desastrosa situação. Em situações normais de temperatura e pressão, uma figura como o Coiso não passaria de fato de uma piada de mau gosto, de um Bozo da política, não muito diferente de um Tiririca anazistado. Em um país que estivesse são da cabeça e são do coração, uma figura como Jair Bolsonaro seria apenas uma espécie de Novo Enéas e não teria conquistado nem 5% dos votos para a eleição presidencial, tamanho o grau de sadismo, crueldade e desconsideração com os parâmetros mais básicos de ética e civilidade que ele manifestou nestes 28 anos de vida pública. Aliás completamente pífia e nula em matéria de quaisquer benefícios prestados à população.

Em suma, qualquer mente lúcida sabe que esse cara nunca fez merda nenhuma em prol de ninguém a não ser a favor de seu enriquecimento familiar e do favorecimento de conglomerados empresarias de que é o títere e o bem-remunerado cafetão.

Este poster incendiário, retrato hiperbólico da Bozolatria (mas que também remete ao Coxinismo), serve também como um retrato caricatural da Base Eleitoral que foi usada como trampolim por aquela minúscula fração da elite brasileira tão bem cognominada por Jessé de Souza como “Do Atraso”.

A Elite do Atraso composta por homens brancos e ricos, herdeiros dos senhores de escravos e capitães-do-mato, que se notabilizam por misoginia, racismo, LGBTfobia, supremacismo, armamentismo, para não falar na apologia da tortura e dos grupos de extermínio, tudo isso portando a máscara do “cristão” e do “cidadão-de-bem”.

Aos que se sentiram incomodados e ofendidos com a arte, talvez seja pois a carapuça serviu. Aos que gritaram por censura e mordaça, talvez seja pois vocês tem saudades do AI-5 e do totalitarismo repressor que foi o fruto amargo, em 1968 (início dos Anos de Chumbo), do golpe desferido contra o governo Jango em 1964.

Aos que acham que isto não é arte, mas propaganda política, eu diria que as noções de arte de vocês estão muito quadradinhas: a arte está aí também pra incomodar, pra instigar o debate, pra provocar reações emocionais, pra sacudir as apatias, pra cutucar as onças com varas curtas.

Aos que desejariam acender fogueiras para queimar este pôster junto com seu autor, vocês são a Nova Inquisição e integram a vergonhosa Cruzada por um Brasil Medieval – e contra vocês, só nos resta desejar que os artistas do Brasil resistente e insurgente prossigam sendo, e cada vez mais, deliciosamente endiabrados.

Fellipe Fonseca foi outro artista que, nada sutil e seguindo na senda de Vitor Teixeira, botou a boca no trombone, ou melhor, meteu as tintas no papel pra gritar #EleNão, porra (e seus minions muito menos!):

São claros os sinais de que a Cultura se insurge, apesar do decreto de extinção do MinC. Como organismo social de vida que transcende o âmbito institucionalizado, a cultura (selvagem) é indomável, resiste à domesticação. O mesmo fogo que incendeia as favelas no poster de Cristiano Suarez – um fogo-no-morro que vem somado às cataratas de sangue que fluem por debaixo dos tanques no asfalto – é convocado para outras funções pelo Francisco El Hombre, a banda neotropicalista latinoamericana que cometeu dois álbuns de extrema caliência e incandescência: Soltasbruxa Rasgacabeza.

O ato de botar fogo na monotonia, expressa pela banda, é sinal desta vivacidade da ContraCultura, organismo indomável e insurgente, prova viva de que o devir histórico é Movimento inescapável e serão arrastados pela correnteza aqueles que tiverem pretensões de estagnação. Algumas obras de arte do Brasil contemporâneo parecem-me expressá-lo com uma admirável beleza queer de intenso fascínio:


Queimando os velhos mapas pra vida renovar, Ju Strassacapa teve a genialidade criativa suprema ao parir “Triste Louca ou Má” – uma tão bela poesia, e que encontrou sua perfeita expressão musical nesta canção destinada ao cânone da MPB do Futuro. O Francisco El Hombre é um coletivo utópico, neohippie, purpurinado, pós-binário, que demonstra a vitalidade desta cultura que estou chamando de selvagem e indomável.

Num país que observa também brutais retrocessos nas políticas de drogas, com o incremento das internações compulsórias em “Comunidades Terapêuticas” de forte marca teocrática-sectária, o “Parafuso Solto” francisco-el-hombreano, somado ao jornalismo-subversivo do Gregório Duvivier, são salutares doses de cultura insurgente:


Pra terminar, queria lembrar de algo aparentemente estúpido, mas que tem seu interesse: o termo Bozo, que alguns usam para apelidar Bolsonaro, remete a um famoso palhaço televisivo brasileiro, mas também na língua inglesa existe o termo Bozo e este possui toda uma carga semântica dentro do movimento punk. Os Dead Kennedys, por exemplo, têm uma canção chamada “Rambozo, The Clown”, fusão de Rambo com Bozo, perfeitamente atual para a descrição de muitos brucutus Bolsonaristas.

Tanto que, em fins de 2018, com a ascensão do Capetão, o Rambozo fã do Ustra, “California Übber Allez” foi reavivada pela vigorosa versão, transposta pro Brasil em incendiário videoclipe em p&b pelo Projeto Rambozo:



Retrocedendo ainda mais na História da Contracultura, encontramos pulsando no epicentro do Movimento Punk a entidade inglesa The Clash; numa adorável entrevista concedida a Steve Walsh e publicada em Sniffin’ Blue em Setembro de 1976, Joe Strummer, Mick Jones e companhia já se manifestavam explicitamente como Anti-Bozos:

– Some people change and some people stay as they are, bozos,  and they don’t try to change themselves in any way. (…) I think people have got to find out where their direction lies and channel their violence into music or something creative.  (…) The alternative is for people to vent their frustrations through music, or be a painter or a poet or whatever you wanna be. Vent your frustrations, otherwise it’s just like clocking in and clocking out. (Mick Jones, In: Let Fury Have The Hour, p. 26)

Eles que foram um dia conhecidos como A Única Banda Que Importam ensinam lições que nada perderam de seu valor à contracultura da atualidade: em uma das mais icônicas faixas de London Calling, de 1979, “Clampdown”, Joe Strummer pede que a gente dê uma chance à fúria:

“Let fury have the hour
Anger can be power
D’you know that you can use it?”

 

REINVENTANDO A VIDA EM TEMPOS CONTURBADOS – Francisco, El Hombre lança novo disco “Rasgacabeza” (2019)

O novo álbum do francisco, el hombre desembarca entre nós com o estrondo de uma nave espacial repleta de aliens incendiários cujas armas são o som. Segundo a Rolling Stone, a banda “incendiária e combativa joga gasolina na monotonia com novo disco Rasgacabeza“, em que “usa a influência do punk rock para lidar com os tempos conturbados no Brasil” (nas palavras de Pedro Antunes).

Tudo pega fogo – literal e metaforicamente – nos primeiros ritmos e melodias de um disco que começa com altas doses de adrenalina e convocando a acender e acordar todos os rituais da “pulsão de vida”:

“Queima o véu da sua vista
Abana essa monotonia
Autonomia chama
Combustão que sana
Acende, acorda, acorda, acorda…”

Mas nem tudo no álbum é assim fogoso e esta festa inicial da incandescência encontra seu ponto de serenidade e sabedoria na belíssima “O Tempo É Sua Morada”, prova inconteste de que Ju Strassacapa é uma gênia da nossa música e uma das melhores cantoras e compositoras em atividade no Brasil. Mergulhe na viagem audiovisual:

A canção, explica Mateo Piracés-Ugarte à Rolling Stone Brasil, foi “criada a partir das experiências deles no Dia de Los Muertos (ou Dia dos Mortos), no México, no ano passado. O Dia dos Mortos tem uma ideia interessante de dar um novo significado para a morte. De nunca se esquecer, de celebrar as pessoas que morreram. A ideia era essa, matar o Soltasbruxa“, explica Mateo.

É por estas vias que o álbum “Rasgacabeza” (2019), sucessor do já lendário “Soltasbruxa” (2016), vem pra propor outros caminhos culturais e comportamentais a um país sem rumo. Como um Cavalo de Tróia cultural, destinado a hackear por dentro a cultura mainstream podre e pustulenta do Bolsonarismo relinchante, o Francisco el Hombre chega com toda sua exuberância pra cumprir com a recomendação de Emma Goldman: “Se eu não posso dançar, não é minha revolução…”

Em menos de 30 minutos, breves mas de alta intensidade, o álbum novo mostra a alta temperatura da arte fogosa realizada com tanta maestria pelo quinteto composto por Juliana Strassacapa, Mateo Piracés-Ugarte, Sebastián Piracés-Ugarte, Andrei Martinez Kozyreff e Rafael Gomes. Neo-tropicalista e conectado ao que de melhor se faz na música latina (de Perotá Chingó a Muerdo, de Churupaca a Anita Tijoux), o Francisco El Hombre revela-se uma banda tropicaliente irresistível e em metamórfica evolução artística.

Uma trajetória que enche-nos de fascínio e que faz crer na pulsação indomável da cultura brasileira, apesar das desgraças ocasionadas pela avalanche de retrocessos nos direitos sociais duramente conquistados, e hoje avassaladoramente detonados.

Como oráculos de uma festança revolucionária ou insurreição orgiástica, os músicos do Francisco se lançam no transe, numa cultura da exuberância, num neobarroquismo cheer que quase flerta com os Dzi Croquettes, mas que sabe também investir num classudo indierock intimista (em diálogo com Carne Doce e Flaira Ferro).


Uma banda quer nos fazer sentir o “calor da rua” e que tornou-se talvez a mais emblemática agremiação da atual arte brasileira a manifestar o que eu chamaria de Espírito Queer. Um ethos de subversão de todos os paradigmas de comportamento impostas pela tirania careta. Uma atitude neo-hippie, com um ritmado que também recupera temperos à la Madchester e Primal Scream, que torna a máquina rítmica da banda algo como um Convite para o Eldorado, para a utopia La Belle Verte, para outro mundo possível…

Uma música onde pulsa diversidade e incandescência, realizada por jovens cheios de vida que sentem que nossa morada (provisória) é o Tempo e que ele é escasso demais para o desperdiçarmos com arranca-tocos destinados a impor a Ditadura da Caretice, da Uniformidade, do Modelo Único a que todos deveriam conformar-se.

Com “Bolso Nada”, fizeram história ao conceder ao Brasil a mais significativa canção de rebeldia e escracho contra o fascista calhorda que se elegeu fraudulentamente em 2018, impulsionado pela prisão injusta de Lula. Chamaram Bolsonaro de “cara escroto”, mas fizeram uma crítica alegre, cheia de capetices e glitter: “desrespeito é o que prega, então é o que colherá! / jogo purpurina em cima para o feio embelezar!” Historiadores do futuro poderão evocar a época do Pesadelo Bozonazi que ora atravessamos evocando tais versos emblemáticos:

“Se ao fascista é concedido
Cargo alto e voz viril
Vai lucrar do desespero
Essa loucura já se viu
Bolso dele sempre cheio
Nosso copo anda vazio
Mesquinhez, intolerância,
Bolsonada que pariu!”

Se um espírito punk, escrachado, pulsa em “Bolsonada” e arrasa com a monotonia em vários momentos de Rasgacabeza, o Francisco também vem se notabilizando por reinventar o folk. “O Tempo é sua Morada” é a investida de 2019 que dá sequência à obra-prima “Triste, Louca ou Má” de 2016.

Nesta última, os músicos inscreveram pra sempre o nome na história da MPB com uma canção que já virou um hino queer, propiciador de momentos de transe coletivo quando interpretada ao vivo, sensível e inteligente manifesto em defesa de todos aqueles que a sociedade rotula, estigmatiza e vilipendia por terem se recusado a seguir a “receita cultural” (machista, heteronormativa, patriarcal, autoritária, binária, monocromática, monótona, Bozoasnal…). A literatura brasileira ganhou, com esta canção, uma das melhores poesias do século 21:

“Triste louca ou má
Será qualificada
Ela quem recusar
Seguir receita tal
A receita cultural
Do marido, da família
Cuida, cuida da rotina

Só mesmo rejeita
Bem conhecida receita
Quem não sem dores
Aceita que tudo deve mudar

Que o homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar

Ela desatinou
Desatou nós
Vai viver só

Eu não me vejo na palavra
Fêmea: Alvo de caça
Conformada vítima
Prefiro queimar o mapa
Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar…”

Com o novo álbum, Francisco El Hombre mostra que, somado ao BaianaSystem e seu magistral O Futuro Não Demora (já esmiuçado aqui n’A Casa de Vidro),  o grupo é no Brasil contemporâneo um dos poucos capazes de shows que são autênticos rituais xamânicos. Um dos poucos que merece o elogio que se dirigia ao The Clash: “a band that matters”.

Cientes da importância de suas propostas estético-comportamentais de ruptura, de transgressão de normalidades confinantes, os músicos ainda assim sabem abandonar-se ao deleite inocente da dança lúdica, deliciosamente absurda, celebração da dinâmica sem sentido de corpos que movem-se em sintonia com o planeta e seus elementos.

Em Rasgacabeza, música de confronto, o que sobressai é o elemento Fogo. É o Francisco el Hombre em incandescência. Deixando o Gelo pra depois. Derretendo com um lança-chamas de música a peste emocional do fascismo, já performando na prática uma estética e uma ética do Liquidificador.


Joga tudo no Liquidificador e se joga na mescla! E aí “multidão vira maré”… Talvez aí esteja uma súmula da ética que pulsa nesta música. A Revista NOIZE já soube reconhecer neste novo trampo a centralidade do Fogo. O fogo das chamas dinâmicas, a um só tempo destruidoras e renovadoras: 

“Aqui, o Fogo é tanto símbolo da destruição do que não serve mais quanto de algo que se acende dentro do ouvinte a cada faixa que passa. Urbano, contemporâneo, ácido e visceral, Rasgacabeza é um disco feito para desacomodar suas certezas. Um álbum histórico que merece lugar na sua coleção.” (Noize)

Baiana System e Francisco el Hombre nos trazem boas novas: a Cultura brasileira não se cala, nossa subversão não se doma, nossa criatividade não aceita o amargo cálice do “cale-se!”

O futuro não demora e nele o Bolsonazismo será apenas as cinzas de um pesadelo superado. O inverno é deles, a primavera será nossa.

Convite à utopia que já se pratica desde já, “Rachacabeza” e “Soltasbruxa” são as Dionisíacas Tropicalientes de um novo tempo em gestão, cheio de gente que pulsa empatia e criatividade, preferindo sempre o colorido ao monocromático, o múltiplo ao binário, o amor ao ódio.

O tipo de música que importa tanto pois deseja incandescer as atitudes daqueles que, queimando os mapas, tratam de juntos a vida reinventar.

 

 

OUÇA:

SOLTASBRUXA

RASGACABEZA

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VISITE O SITE OFICIAL: Sonoridades latino-americanas e pe na estrada. Letras em espanhol com sotaque brasileiro. Portugues com sotaque latino. Coco, cumbia, maracatu, salsa, samba e sopros de ciranda. Uma corrente musical nomade e transcultural em forma de banda. Prazer, francisco, el hombre. >>>https://www.franciscoelhombre.org/

A Casa de Vidro – www.acasadevidro.com // por Eduardo Carli de Moraes

OS MELHORES ÁLBUNS DA MÚSICA BRASILEIRA EM 2018: Ouça a todos na íntegra [Seleção A Casa de Vidro]

“Eles querem um preto com arma pra cima
Num clipe na favela, gritando cocaína
Querem que nossa pele seja a pele do crime
Que Pantera Negra só seja um filme
Eu sou a porra do Mississipi em chamas
Eles têm medo pra caralho de um próximo Obama
Racista filha da puta, aqui ninguém te ama
Jerusalém que se foda, eu tô a procura de Wakanda.”
BACO EXU DO BLUES

Tudo junto e misturado, compartilhamos aqui um apanhado geral com alguns dos grandes discos da MPB (sigla considerada no sentido o mais amplo possível) que consideramos os mais significativos da safra 2018. Um ano em que tivemos o retorno de divas e gênios consagrados, como Elza Soares, Gilberto Gil e Gal Costa; tivemos bandas veteranas do cenário manguebeat pernambucano de volta com lançamentos, como Mundo Livre S.A., Eddie e Cordel do Fogo Encantado; tivemos a revelação e consolidação de novos talentos do hip hop (Baco Exu do Blues, Edgar) e no folk-rock (Joe Silhueta, The Baggios, Bemti) etc.

As mulheres arrasaram com discos de alta qualidade: Mulamba, Luiza Lian, Anelis Assumpção, Ava Rocha, Iza, Ceumar, Ana Cañas, Mahmundi, todas marcaram um ano que teve em Deus É Mulher uma de suas obras mais emblemáticas, reafirmando Elza como lenda viva.

Em específico no cenário goiano, que acompanho mais de perto, tivemos a consolidação do Carne Doce com seu terceiro álbum Tônus, o retorno do Cambriana com Manaus Vidaloka e o primoroso álbum de estréia do Ave Eva. Além disso, fortaleceram-se muito no cenário figuras como Adriel Vinícius, Vitor Hugo Lemes (assista ao video-clipe abaixo), Diego Mascate, Pó De Ser – que prometem excelentes lançamentos para 2019.

Além disso, o documentário Novos Goianos (de Isaac Brum) foi lançado, conquistando o prêmio de melhor curta nacional no Lobo Fest de Brasília, uma relevante premiação para um filme dedicado ao novo cenário musical autoral goianiense, encabeçado pelo sucesso de Boogarins, Carne Doce e Diego de Moraes.

Na sequência, aprecie os bons sons destes álbuns magistrais – uma seleção que A Casa de Vidro realizou baseada nas seleções e listas de melhores do ano de Tenho Mais Discos Que Amigos, Rolling Stone Brasil, Multimodo, Miojo Indie, Eu Escuto, dentre outras fontes. Suba o volume pro talo e boa fruição!

Vale mencionar, entre os eventos memoráveis de 2018, também a conturbada turnê brasileira do Roger Waters @ Pink Floyd, que marcou época em seus protestos contra Bolsonaro. Waters pediu resistência, ironizou a censura e aderiu ao movimento#EleNão, a principal mobilização cidadã ocorrida no Brasil em 2018.

Ao mandar no telão frases como Resist The Unholy Alliance of Church and State – Resistam Contra a Ímpia Aliança da Igreja e do Estado – o tiozão tornou-se um emblema de artista engajado na luta contra o fascismo. De lambuja foi entrevistado por Caetano Veloso em um excelente programa da Mídia Ninja (assista abaixo) e estes episódios renderam um dos melhores artigos de reflexão na crítica musical neste ano: Para o duplipensar brasileiro, Roger Waters é uma ameaçade Maurício Angelo na Revista Movin’ Up.

– Por Eduardo Carli de Moraes

ELZA SOARES – Deus é Mulher


GILBERTO GIL – Ok Ok Ok


BACO EXU DO BLUES – Bluesman


ANDRÉ ABUJAMRA – Omindá


MULAMBA


ANELIS ASSUMPÇÃO – Taurina


IZA – Dona de Mim


THE BAGGIOS – Vulcão [DOWNLOAD]


CAMBRIANA – Manaus Vidaloka


TUYO – Pra Curar


MATEUS TORREÃO


EL EFECTO – Memórias do Fogo


BIG PACHA – 11:11 [DOWNLOAD]


ILLY  – Vôo Longe


EDDIE – Mundo Engano


EDGAR – Ultrasom


JOE SILHUETA – Trilhas do Sol


DISASTER CITIES – Lowa


BLACK PANTERA – Agressão


MENORES ATOS – Lapso


CARNE DOCE – Tônus


AVE EVA


MARIA BERALDO – Cavala


LUIZA LIAN – Azul Moderno [DOWNLOAD]


WADO – Precariado [DOWNLOAD]


GAL COSTA – A Pele do Futuro [DOWNLOAD]


PENSE – Realidade, Vida e Fé


DINGO BELLS – Todo Mundo Vai Mudar


ANA CAÑAS – Todxs


MAHMUNDI – Pra Dias Ruins


HAMILTON DE HOLANDA TOCA JACOB DO BANDOLIM


MAURÍCIO PEREIRA – Outono no Sudeste


MUNDO LIVRE S/A – A Dança dos Não Famosos


AVA ROCHA – Trança


VIOLINS – A Era do Vacilo


TATÁ AEROPLANO – Alma de Gato [DOWNLOAD]


JOSYARA – Mansa Fúria [DOWNLOAD]


FELIPE RET – Audaz


INQUÉRITO – Tungstênio


NEGRA LI – Raízes


RODRIGO CAMPOS – 9 Sambas


E A TERRA NUNCA ME PARECEU TÃO DISTANTE – Fundação


ADORÁVEL CLICHÊ – O Que Existe Dentro De Mim


CATAVENTO – Ansiedade na Cidade


BEMTI – Era Dois


MARCELO CAMELO – Sinfonia Número 1


MARRAKESH – Cold as a Kitchen Floor


CEUMAR, LUI COIMBRA E PAULO FREIRE – Viola Perfumosa
https://open.spotify.com/embed/album/3QngmgwnfNw5sQhvZ7iW5X


A SER CONTINUADO…
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PEDRAS QUE ROLAM NÃO CRIAM MUSGO – 50 anos da Revista Rolling Stone em documentário da HBO

Lançada em 1967, em plena efervescência do movimento hippie em San Francisco, a lendária publicação Rolling Stone (Site oficial: https://www.rollingstone.com/), ao comemorar seus 50 anos de existência em 2017, foi honrada com um excelente documentário.

Dividido em 2 partes e com cerca de 4 horas de duração, “Rolling Stone: Stories From the Edge” foi produzido pela HBO e dirigido por Blair Foster e Alex Gibney. O filme é um concentrado alucinante, eletrizante e provocativo do que de mais louco ocorreu na cultura dos EUA nas últimas 5 décadas.

Primeira edição da revista, em Novembro de 1967, com John Lennon na capa e matéria de fôlego sobre o Grateful Dead.

Eis um filme que vai muito além de ser apenas uma crônica histórica de um órgão essencial da imprensa cultural estadunidense (e que depois abriu filiais em outros países, inclusive a Rolling Stone Brasil). O doc é um sobrevôo intenso e comovente sobre alguns dos fatos e agitos sócio-políticos mais fulminantes das últimas décadas: aborda o nascimento do “Gonzo Jornalismo” com os escritos chapados de Hunter S. Thompson; as mobilizações sociais contra a Guerra do Vietnã e em prol da Liberdade de Expressão (Free Speech Movement); o relacionamento do ex-beatle John Lennon com sua parceira Yoko Ono, além das ressonâncias do assassinato de John em 1980; a conversão de Patty Hearst (neta do “Cidadão Kane) à guerrilha que a sequestrou; as lendárias fotografias de Annie Leibovitz que estrelam várias das capas da revista; as reportagens também antológicas do Cameron Crowe (que depois se tornaria um dos grandes cineastas norte-americanos, realizando filmes como “Singles” e “Quase Famosos”). E por aí vai…

Batizada em homenagem à esta imagem emblemática na história do rock – “a rolling stone gathers no moss” -, a revista californiana criada por Jann Werner e seus colaboradores tirou seu nome dessa célebre imagem da Pedra Rolante. Esta aparece primeiro em blues elétrico do lendárioMuddy Waters que inspirará o nome de uma das principais bandas da história do rock inglês: The Rolling Stones. A Pedra Rolante depois vai parar na lendária canção do poeta folk-rock laureado com o Nobel Bob Dylan, na canção que abre o álbum “Highway 61 Revisited”, música que seria também re-interpretada pelo gênio da guitarra Jimi Hendrix (que abre o filme com sua magistral abordagem de “Like a Rolling Stone”).

O filme tem uma montagem espertíssima e uma trilha sonora maravilhosa. Inclui cenas raras e incríveis de artistas como Janis Joplin, Tina Turner, Bruce Springsteen, Ramones, Sex Pistols, dentre muitos outros. Aborda as relações da revista com movimentos como o hippie, o punk, o grunge, o hip hop, mas também tematiza as relações polêmicas com o mercadão da música pop (pois a Rolling Stone também teve seu lado caça-níqueis e estampou muita “propaganda” de boybands popstars, travestidas de jornalismo, para figuras como Britney Spears e NSync… ainda que também soubesse explorar o lado sombrio do “Sonho Americano” com o colapso da fama de Britneys e Amys…).

No filme, as relações da publicação com o establishment político também são abordadas, mostrando uma certa “gangorra” entre a tendência a alianças com a “mainstream politics” (como a adesão um tanto condescendente a Bill e Hillary Clinton) e posturas muito mais subversivas e contraculturais (como ocorreu nas diatribes e críticas disparadas contra Richard Nixon). Recentemente, jornalistas como Matt Taibbi se notabilizaram pelas grandes reportagens, de sabor gonzo e teor subversivo, sobre a ascensão da extrema-direita, a eleição de Donald Trump e o “racha” entre os democratas (a onda Bernie Sanders sendo derrotada pela escolha de Hillary nas Primárias).

O mérito maior do filme está em transcender a música, ou melhor, em inserir as manifestações musicais em um contexto mais amplo, em um horizonte expandido. A Rolling Stone nunca quis ser apenas uma publicação “especializada” e dirigida apenas para fissurados em música; sempre meteu o bedelho em temáticas sócio-políticas, ousando nas suas abordagens dos fenômenos contraculturais, dando voz a movimentos sociais e ensinando ao mundo o escopo amplo da ressonância da Cultura Rocker em vários âmbitos da vida social.

Neste filmaço, podemos conhecer um pouco mais à fundo a história desta publicação lendária que ensinou ao mundo que a música era uma força social, mobilizadora e transformadora, capaz de gerar abalos sísmicos no âmbito do comportamento e da expressividade. Cinquenta anos depois, esta pedra segue rolando pra não juntar musgo e seguir servindo de caixa de ressonância para o que de mais extraordinário se passa na Babel de nossa globalizada cultura de massas. Um filmaço!

Saiba mais: https://www.imdb.com/title/tt7604980/

Baixar em torrent: PARTE 1 e PARTE 2 (via Making Off)

Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro:www.acasadevidro.com

GRUNGY FEELINGS – Songs From Generation X [Coletâneas / Playlists em Spotify]

GRUNGY FEELINGS – Songs From Generation X [Volume 1]
Coletânea / Playlist @ Spotify

01. SCREAMING TREES, “Dying Days”
02. NIRVANA, “Heart-Shaped Box”
03. SOUNDGARDEN, “The Day I Tried To Live”
04. LIVE, “Lakini’s Juice”
05. DAYS OF THE NEW, “Touch, Peel and Stand”
06. ALICE IN CHAINS, “Down in the Hole”
07. STONE TEMPLE PILOTS, “Meatplow”
08. BUSH, “Machinehead”
09. SILVERCHAIR, “Freak”
10. PEARL JAM, “Do The Evolution”

SENTIMENTOS GRUNGY NA ERA TRUMP – O suicídio de Chris Cornell, a Renascença do Stone Temple Pilots, e a redescoberta do Hole

Como a mítica Fênix, que não cessa de renascer das cinzas, o GRUNGE renasce de suas tragédias. Sua maré no mainstream já passou, mas os sentimentos grungy sejam vivos na Era Trump. Fazendo frente ao baque tremendo que foi para este cenário pós-grunge o suicídio de Chris Cornell (Soundgarden / Audioslave), o cenário tenta se reinventar.
Stone Temple Pilots renasce agora após duas outras mortes: a de Scott Weiland (vocalista dos 6 primeiros álbuns) e a de Chester Charles Bennington (do Linkin Park, que gravou apenas 1 EP como cantor do STP, em 2013, tendo se suicidado em 2017). São os corações ensombrecidos pelas tragédias reais, que recolocam tudo em clima de “Hunger Strike”:

“I don’t mind stealing bread
From the mouths of decadence
But I can’t feed on the powerless
When my cup’s already overfilled…”

Temple Of The Dog (1991) – Com Eddie VedderChris Cornell, Jeff Ament, Mike McCready, Jeff Ament, Matt Cameron.

Somando-se neste caldo as mortes trágicas de Kurt Cobain e Layne Stanley, pra não falar na overdose fatal de Andrew Wood (do Mother Love Bone) nos primórdios da saga Pearl Jam), temos um microcosmo cultural assombrado pela recorrência de fins-da-vida violentos, de pungente tragicidade, o que também se expressa nas sombrias e intensas paisagens sônicas que marcaram para sempre a estética contemporânea com as obras de Screaming Trees, Mudhoney, Nirvana, The Gits, dentre tantas outras bandaças.

“Roll Me Under” traz todo o peso e intensidade dos grandes dias do grungy noventista de novo ao primeiro plano, ilustrando sua mensagem sônica impactante com um clipe meio Into the Wild, evocando a vertente Steppenwolfiana que sempre nutriu o estilo grunge, este ethos do rock’n’roll que tão bem entremesclou o punk, o heavy metal e o indie-garage, reinventando para sempre a estética musical dos anos 1990.

Quem assume os vocais neste retorno do STP em 2018 é Jeff Gutt, que vem sendo chamado por alguns críticos de “um Scott Weiland bem-comportado”: “He nails how the late singer could slide from a snarl to a sigh, conjuring a bit of a snaky sexuality while still seeming a bit safe”, escreveu Stephen Thomas Erlewine em sua crítica para a AllMusic.

As 12 músicas novas demonstram uma banda ainda vigorosa e re-colocam o Stone Temple Pilots no epicentro do rock mainstream global para disputar as atenções com as mega-bandas Foo Fighters, em que Dave Grohl decolou após o naufrágio do Nirvana, e o Pearl Jam, já uma instituição consagrada da música global, que em breve completa 30 verões, merecendo um lugar de honra na História do Rock na companhia de um Neil Young & Crazy Horse ou de um Grateful Dead.

Já o STP, que sempre soou mais despretensioso e menos grandiloquente que o Pearl Jam, retorna para mostrar que um dos caminhos mais interessantes para a evolução do estilo grunge estava na tentativa de mesclá-lo com a new wave, o punk rock 77, o glam à la T.Rex. O poderio guitarrístico da banda sempre foi impressionante, desde os estupendos álbuns iniciais “Core” e “Purple”, e em 2018 eles não demonstram nenhum desejo de se aquietar. Os amps continuam no talo, o batera continua batendo forte, os riffs continuam te enganchando pelo queixo e batendo contigo nas paredes até tirar sangue.

O STP é uma daquelas raras bandas que pode soar alegremente subversiva como atos punk seminais como Johnny Thunders and the heartbreakers ou Richard Hell & The Voidoids, e na próxima faixa já se transmutar num denso e desesperador propagador de um estilo de rock grave e angustiante, à maneira das bandas históricas do movimento como Screaming TreesSoundgarden e Alice in Chains.
É um álbum que agrada e empolga por mostrar artistas grunge em plena forma, e prometendo ainda muito futuro. O grunge resiste! Ainda que o melhor álbum lançado ultimamente na estética grunge não tenha sido feito por uma banda que assim se rotule, ou que a este cenário cultural se vincule: me refiro ao “Wilderness Heart”, do Black Mountain, que fez neste álbum uma obra-prima do gênero, com canções magníficas como “Rollercoaster” e “The Hair Song”.

Com muito gosto ouvi este comeback do STP, um disco tão agradável de ouvir, tão lindamente executado, tão “radiofônico” (até mesmo no sentido Bon Joviano do termo), que quase nos convida a abandonar qualquer pose de crítico musical e simplesmente recomendar aos amigos: “ouve lá, é um discaço da porra!” A música fala bem em sua própria defesa e até nos desarma da iniciativa inglória de perguntar pelos interesses econômicos que possam estar envolvidos nesta empreitada, certamente acusável pelos críticos mais “cricos” de ser um “caça-níqueis”.

A indústria da música é de fato uma mina de ouro e não está fora de cogitação que o STP se enxergue como uma empresa, e das mais lucrativas. Mas isto não significa que estes caras não tenham algo a dizer artisticamente. Seria bem injusto, aliás, taxar de “comercial” uma banda que nunca abriu as pernas para o Sistemão do Rock Mainstream como fizeram os Creeds e Nickelbacks. O Stone Temple Pilots seguiu com seus fios elétricos plugados nas tomadas do Grunge noventista, soando como banda independente que teve acesso aos estúdios de gravação do Big Business – e soube se aproveitar disso.

Se o cérebro coloca estas questões, questionando se há vontade de grana alta por trás da nova encarnação do STP, os tímpanos e o coração simplesmente embarcam no rollercoaster deste álbum pulsante e cheios de belos thrills. Fazia tempo que um álbum de estilo grungy chegava com tamanho estrondo – que o Queens of the Stone Age  se cuide, pois tem rival forte de volta na cena!

Saudamos a chegada deste álbum como uma bela anfetamina musical para nossos tempos em que o Grunge segue tendo muitas razões para existir. Pois temos direito à divergência e a dissonância. E queremos nossa fúria tomando de assalto as ondas do rádio!

A alucinógena borboleta que estampa a capa do disco, e que parece a obra de algum artista das HQs que tomou um peiote, indica de modo simbólico o poder desta banda: dentro da borboleta, há uma teia de aranha.

A aparência mais englobante, da bela butterfly, é atraente e sedutora, mas na essência mais interna esconde-se o perigo, o aracnídeo.

Entre as asas desta borboleta, parece caber todo o caos e maravilha do mundo – e o som que fazem estas asas ao voar indica que, por mais agradável que seja esta rock-sinfonia, propulsionada pelos músicos como um foguete, pulsa aqui também algo de perigoso.

Algo que morde, que devora, como um aranha faz com o inseto que cai em sua teia.

As reações iniciais da imprensa musical parecem ser muito positivas, com reviews que destacam o quanto o álbum traz “a banda lidando emocionalmente com suas tragédias”:

The album comes after STP’s tragic last few years which saw the deaths of Scott Weiland and Chester Bennington. Losing two singers in such a short period is really one of the biggest tragedies in rock history, to see STP come back with a new album with some really triumphant sounding songs is powerful especially on the first few listens. Scott and Chester’s spirits are definitely felt throughout the album.” – Alternative Nation

Chester e Scott, dois mortos precoces do rock contemporâneo, somados à ausência monumental de Chris Cornell, também recentemente suicidado, mostram que a Era Trump, nos EUA, está sendo também a de uma maré cultural de redescoberta do grunge, em tudo aquilo que ele tem de problemático e obscuro. A Geração X ainda está entre nós, assim como o Fantasma de Kurt Cobain, assombrando com sua poesia atormentada a propaganda do cartão postal chamado American Dream, aquele em que só acreditam os que estão dormindo.

O grunge parece passar pela história da cultura humana como uma espécie de híbrido entre tragédia e resiliência. Um movimento cultural que sobrevive a todas as suas tragédias, que se reinventa na mudança: Mark Lanegan cantando com o QOTSA, Josh Homme e Dave Grohl (dos Foo Fighters) flertando com o que restou do Led Zeppelin (Them Crooked Vultures), Alice In Chains seguindo em frente com novo vocal após a morte de Layne Stanley… Para não falar da farta colheita que foram as passagens de Cornell e Weiland pelo mundo, já que eles também povoaram nosso horizonte artístico com as criações de Audioslave e Velvet Revolver, além dos respectivos álbuns-solo…

Enquanto seus heróis vão caindo mortos, o grunge segue em frente como pode, aos trancos e barrancos. E no epicentro deste drama, segue queimando supremo o inesgotável Nirvana: Cobain não precisou de mais que 27 anos de idade para causar um terremoto cultural que não dá sinais de que irá simplesmente desaparecer, e em pleno 2018 aquele som que smells like teen spirit está por aí, pulsando no coração do Império decadente!
O retorno, em tão boa forma, do Stone Temple Pilots nos mostra isso: o ímpeto nirvânico está sendo re-acendido. A Fênix grunge alça vôo outra vez. E ela vem enraizada no passado, atenta ao novo e disposta a ser ouvida em toda sua dissonância e dissidência.

Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro

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