Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
“Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.”
Conceição Evaristo
“Quando Marielle Franco morreu”, diz a advogada e ativista Sara Macêdo Kali, “fizemos um compromisso de que seríamos semente”. Cerca de um ano após o assassinato da deputada do PSOL e seu motorista Anderson Gomes, tanto o 8M quanto o 14 de Março levaram às ruas do Brasil (e do mundo) a estrondosa e multidiversa voz destas coligações-de-sementes que garantem: Marielle vive, Marielle presente!
O Dia Internacional das Mulheres foi mobilizado não só pela memória de Marielle e pela demanda de justiça (afinal, apesar da prisão dos assassinos, a pergunta que não quer calar permanece: quem mandou matar, e porquê?), mas pela denúncia da opressão de gênero e pelos alarmantes índices de violência contra as mulheres: o Brasil registrou 60.018 casos de estupro em 2017, o que corresponde a uma média de 164 por dia, ou um a cada 10 minutos, segundo o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Um estudo divulgado em novembro de 2018 pelo UNODC (Escritório das Nações Unidas para Crime e Drogas) mostra que a taxa de homicídios femininos global foi de 2,3 mortes para cada 100 mil mulheres em 2017. No Brasil, a taxa é de 4 mulheres mortas para cada grupo de 100 mil mulheres, ou seja, 74% superior à média mundial.
Diante de um cenário como este, agravado pelo empoderamento da extrema-direita misógina nas últimas eleições, fomos às ruas com as câmeras e microfones em sincronia e sintonia com esta ideia manifestada por Rosângela Aguiar, jornalista e ativista que integra o Jornal Metamorfose: “mulheres comportadas não fazem história!”
LEITURAS SUGERIDAS: ELIANE BRUM E JUAN ARIAS EM EL PAÍS; LAURA CARVALHO NA FOLHA DE S. PAULO; BLOG DO SAKAMOTO
“A semente de Marielle Franco vive em nós hoje e sempre”, dizia a faixa na vanguarda da marcha 8M aqui em Goiânia. Marcadas pela Mangueira, cujo desfile de carnaval, campeão na Sapucaí, havia honrado a memória de Marielles e Malês, celebrando também os ícones culturais (Lecis e Jamelões), as manifestantes botaram a boca no trombone.
“Ai ai ai, Bolsonaro é o carai!”, cantavam em alegre insurgência musical. A preocupação era geral com os alarmantes índices de homicídio. E na boca de todos se dava voz à indignação contra a Reforma da Previdência que o governo Bolsoasno e o Congresso dos 300 Picaretas com Anel de Doutor pretende ao nosso povo impor.
Eis aí o curta-metragem documental que rodamos nas ruas de Goiânia/GO em 08 de Março de 2019, durante o ato do Dia Internacional das Mulheres: “MULHERES COMPORTADAS NÃO FAZEM HISTÓRIA”, disponível em várias plataformas (Youtube, Vimeo, Facebook):
Um filme de Lays Vieira e Eduardo Carli de Moraes; uma co-produção Jornal Metamorfose e A Casa de Vidro. Entrevistas com Sara Macêdo Kali, Mariana Lopes, Rosângela Aguiar. Músicas por Larissa Luz, Tássia Reis, Samba-enredo da Paraíso do Tuiuti 2018, canção “Bella Ciao” versão #EleNão. Prestigie e apoie o jornalismo e o documentarismo independentes! Dissemine e divulgue o midiativismo de relevância!
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FOTOGRAFIAS – por Eduardo Carli e Érika Borba / Mídia Ninja
A publicação – colorida, repleta de lindas fotos e diagramada com primor – busca revelar em minúcias o que ocorreu em 2015, durante o XV Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, uma realização da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge. Naquela ocasião, ocorreu ali a reunião da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, com representantes de todo o Brasil reunidos para pensar as potencialidades e os obstáculos no contexto do programa Cultura Viva.
O conceito chave e fio condutor do livro é a participação social, de modo que buscamos dar voz a muitos dos ponteiros, artistas, produtores culturais, jornalistas, ativistas, agentes comunitários, dentre outros, que participaram desta Polifonia Participativa dentro do “Encontrão”. No manifesto gerado pela Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, nesta ocasião – a Carta de São Jorge – os trabalhadores da cultura escreveram:
“A Política Nacional Cultura Viva (Lei n. 13.018/2014) é a afirmação de que, sem diversidade com base nos direitos humanos, não há cidadania. Essa política é essencial para combater o avanço conservador em marcha e construir uma sociedade emancipada. Chamamos os governos federal, estaduais e municipais a assumirem seu compromisso com a política e o cumprimento das metas do Plano Nacional de Cultura. Mais do que resistir, convocamos o movimento cultural brasileiro a exercer protagonismo na luta, organizando a sociedade nas redes e nas ruas por mais democracia e mais direitos, unificando esforços de mobilização.” – Carta de São Jorge (Leia na íntegra – imagem na abertura deste post)
O livro também visa frisar a relevância do trabalho deste Pontão de Cultura que há 20 anos vêm realizando um trabalho de imenso mérito na região da Chapada dos Veadeiros: a Cavaleiro de Jorge, sempre atuando em defesa da sociobiodiversidade, da inclusão social participativa e da expressão cultural múltipla e multifacetada das comunidades tradicionais da região.
A obra funciona como grande reportagem, documento histórico e reflexão crítica sobre as políticas públicas de cultura no Brasil, abordando o cenário cultural brasileiro nos arredores do ano de 2015, época de frutificação de muitas das sementes plantadas pela gestão Gilberto Gil & Juca Ferreira no Ministério da Cultura. O trabalho é fruto de uma parceria IFG & MinC, estabelecida através dos esforços do pessoal coordenado pela então secretária Ivana Bentes.
Lançamos esta obra em Setembro de 2017, primeiramente em cerimônia no Teatro do IFG – Câmpus Goiânia, em 01º de Setembro, ocasião em que a editora do IFG lançou 10 novas publicações. Também estivemos lançando este rebento durante as festividades dos 20 anos de existência da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, na Chapada dos Veadeiros, em 07 de Setembro de 2017. Agora, convidamos a todos à leitura e à discussão!
No ano de 2016, participei da equipe de voluntários de Comunicação, selecionados por edital para realizarem a cobertura do 16º Encontrão – uma vivência extraordinária e inesquecível. Naquela ocasião, fui flagrado nesta foto pelo hermano Santi Asef – um fotógrafo argentino magistral – filmando um pouco dos agitos do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros na Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge. Apesar da total ausência de fotogenia de minha parte, guardo com carinho esta foto que me traz com Raul Seixas no peito e olhando para o quadro de Luiz Gonzaga no alto. Um vislumbre do que foram aqueles 15 dias de intensas e memoráveis convivências e aprendizados, tanto na Aldeia Multietnica 2016 quanto no festival da Vila de São Jorge, na correria boa da criação intensa de reportagens (umas 20, no total), todas elas reunidas em A Casa de Vidro:
Na toada da relembrança, um maremoto de memórias invade a mente e me garante que esta foi uma experiência das mais incríveis poder trabalhar, como voluntário de jornalismo, deste eventaço junto com a equipe de comunicação constituída também pela Fernanda Verzinhassi no texto e pela Bruna Brandão e pelo Pedro Henriques na fotografia. Satisfação, galera! Também aprendi uma imensidão com o trabalho da Narelly Batista, da Ana Ferrareze, do Juliano Basso, de toda a galera responsável pelo Encontrão e pela Cavaleiro de Jorge.
Neste 2017, em que compromissos de trabalho no Instituto Federal de Goiás (IFG) – oficial me impediram de participar da Aldeia Multiétnica e do Encontro de Culturas, deixo aqui este tributo de gratidão por tudo o que vivi ali. Na esperança de que o livro Encontros no Encontro e a série de reportagens possam somar algo à iniciativas tão louváveis para a Cultura e as Artes no Brasil, este cidadão-do-cosmos, debaixo do céu estreladíssimo de São Jorge, entusiasmado com as múltiplas efervescências e intercâmbios propiciados pelo Encontrão, convida à leitura e deseja: longa e fértil vida ao Encontro de Culturas, à Aldeia Multiétnica e à Chapada dos Veadeiros!
Obra do artista Moacir, morador da Vila de São Jorge, Alto Paraíso de Goiás
“Hoje eu vou comer pão murcho, o padeiro não foi trabalhar / A cidade tá toda travada, é greve de busão, tô de papo pro ar!” É o que canta Criolo em “Fermento Pra Massa”, canção do álbum “Convoque Seu Buda”, convocada para inaugurar e batizar este doc em clima de samba-resistente. “Eu que odeio tumulto não acho insulto manifestação / Pra chegar um pão quentinho com todo o respeito a todo cidadão!”
A multidão em Goiânia, estimada pelos jornais Daqui em cerca de 30 mil pessoas – número inflado pela CUT a exagerados 70 mil manifestantes – era polifônica, multifacetada, pulsante como um mega-organismo da reXistência, parte de um todo-humano enigmático – “nós somos os 95%”! – que esparrama-se como um Octopus de mil tentáculos pelo território nacional.
Goiânia
São Paulo
Recife
Rio de Janeiro
Na Goiânia das dez vanguardas, nesta data, decerto houve caos e cacofonia. O tecido da sociedade está mesmo todo esgarçado, polvilhante de antagonismos. Em uma das vanguardas, onde as bandeiras negras dos movimentos anarquistas e antifascistas misturavam-se a cartazes coloridos propugnando “AMAR SEM TEMER”, ouviam-se em altos brados palavras-de-ordem como: “É barricada, greve geral, ação direta que derruba o capital!”
Re-aquecendo as brasas da Primavera Secundarista que fez História em 2016, com mais de 1.000 ocupações, a estudantada botou de novo a boca no trombone e cantou em alto e bom som todos os punk-hits da temporada. O hit do ano passado voltou a dar as caras neste dia de strike: “acabou a paz, mexeu com estudante, mexeu com Satanás! Olha o capeta!” Já o brado desafiador também não faltou: “o Estado veio quente, nóis já tá fervendo! Quer precarizar? Não tô entendendo! Mexeu com estudante, você vai sair perdendo!” Os batuques comiam soltos enquanto os coros de brados ressoavam pelo centro, informando a todos que “em Goiás tem escola de luta! Fica preparado: precariza nóis ocupa!”
Na frente da Assembléia Legislativa, a multidão concentrou-se pela manhã do dia nacional de paralisação e alguns traziam caixões de isopor – ecos do protesto do Acampamento Terra Livre diante do Congresso Nacional. Nos caixões se lia: “Morreram Antes de Se Aposentar”. Os nomes ali inscritos eram tantos que aquilo que parecia ser um caixão tamanho individual mostrou-se logo como símbolo de uma vala comum. A vala comum que o desgoverno em curso pretende impor com suas deformantes Reformas.
O “Fora Temer” parecia ser um consenso ruidosamente reafirmado em dúzias de ruas e esquinas, mas os Fora Iris e Fora Marconi também não ficaram atrás. Explosões de indignação diante da truculência da PM goiana também não tardariam, quando o sangue do estudante da UFG, Mateus Ferreira, seria derramado pelo brutal cassetete de um capitão da PM.
Em estado grave, na UTI, com traumatismo craniano, respirando por aparelhos, o estudante com o crânio esmagado serve como emblema do autoritarismo irracional daqueles que se fazem cães-de-guardas de um regime golpista que cada vez demonstra mais que seu único argumento contra a dissidência é a barbárie da porrada.
Esgoelando-se sobre o carro de som, Davi Maciel, professor de História da UFG, esbravejou:
“A Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista não visam apenas bater a mão na nossa carteira, não é apenas um estelionato pra tirar direitos, pra nos fazer trabalhar mais tempo e nos fazer trabalhar mais barato, mas visa sobretudo baratear nosso salário.” Evocando os 150 anos em que já estamos convivendo com o espectro de Karl Marx e das análises de seu “O Capital”, o professor conclamou ainda: “Temos que derrotar esse Governo estelionatário, esse Congresso estelionatário, que bate a mão na nossa carteira, que nos dá um golpe barato… Fora com essa pauta de reformas anti-populares, favoráveis ao capital! Greve geral enquanto essas reformas não forem vetadas! Fora Temer!”
Houve quem desfilasse pelas ruas seu catolicismo, re-aproximado da Teologia da Libertação pelas idéias e práticas de Jorge Bergoglio (o Papa Francisco). Este era celebrado no cartaz de uma manifestação por sua frase de utopista: “Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos.”
Em escudos, faixas e camisetas também prestava-se solidariedade a Rafael Braga. Quando a senhora pergunta “quem?”, a moça explica: “É o cara que foi preso numa manifestação por porte de Pinho Sol…”. De cima do carro de som, estudantes gritarão: “Eu falo por Amarildo, falo por Rafael Braga!”
Os estandartes vermelhos arrastados pela avenida eram também de várias faces: do MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto ao SINTEGO, o escalarte era uma das cores mais vistas no dia da Greve Geral, também pela profusão de camisetas da CUT Brasil.
Infelizmente, outro vermelho marcaria este dia: o sangue derramado pela truculência brutal da Polícial Militar. O estudante da UFG, Mateus Ferreira, que curta Ciências Sociais / Políticas Públicas”, sofreu uma violenta agressão por parte de um capitão da PM; a história deste crânio esmagado e da banalidade do mal está neste outro texto:
O sangue derramado sobre o asfalto pode até ter sido lavado, junto com o resto dos refugos da Greve Geral, mas ele não será esquecido tão cedo.
Ao escarlate do sangue misturavam-se as lágrimas indignadas que eu via correrem de muitas faces enquanto Mateus era atendido pelo Corpo de Bombeiros, estirado na Avenida Goiás, enquanto a galera gritava a plenos pulmões para a PM: “Polícia, fascista, você que é terrorista!”.
Passei as últimas horas obcecado com o pensamento de que aquele crânio esmagado poderia ter sido o meu. Ou o de algum amigo querido. Ou o de alguma companheira de midiativismo. A brutal agressão policial, furiosa irrupção de um autoritarismo brucutu, explicitação da completa incapacidade de reflexão e auto-controle por parte do criminoso fardado, poderia ter atingido qualquer um de nós.
Este texto poderia nunca ter sido escrito pois seu autor poderia estar agora numa UTI, com o crânio esmagado, pelo fato de estar nas ruas com uma câmera… O sangue entre as sobrancelhas da Júlia Aguiar, agredida por um policial enquanto tirava fotografias, não me deixa mentir.
Ao meio-dia deste 28 de Abril, enquanto o helicóptero da polícia sobrevoava baixo sobre nossas cabeças, ostentando o barulho de suas hélices e a metralhadora de seus soldados, eu filmava aquilo com as mãos tremendo: Mateus, desmaiado, a cabeça ensanguentada, carregado pelos companheiros desde a Anhanguera, através da Avenida Goiás, enquanto a Tropa de Choque e a Cavalaria já realizavam suas manobras para “dispersar” a multidão, usando aqueles métodos aprendidos com aquela Ditadura que alguns conjugam no passado, como se fosse matéria de livros de História, mas que ainda estamos longe de ter superado. A PM não só esmagou o crânio de um estudante de Ciências Sociais/Políticas Públicas; deixou-o ali para sangrar em praça pública.
Tudo isso aconteceu sob o olhar impiedoso da estátua do Anhanguera, genocida de pedra que decora o epicentro de Goiânia como um lembrete das autoridades ao povo: aqui tratamos como heróis e batizamos com nomes de avenidas aqueles que, no passado, marcaram época pelo sangue que derramaram em seus propósitos colonizadores. Se aquela estátua pudesse aplaudir, os PMs teriam tido as únicas palmas do dia. Agora, na cibercultura de nosso mundo cada vez mais insanizado e mais próximo de Black Mirror, fãs de Bolsonaro e fascistas de Facebook fornecem os aplausos ao horror…
Quem tenta justificar uma agressão homicida, que deixou o estudante da UFG com traumatismo craniano e respirando por aparelhos, já pôs-de do lado dos carrascos, já filiou-se como cúmplice do fascismo, já é funcionário inconsciente da banalidade do mal. “Se ele tivesse ficado em casa, isso não teria acontecido”; “Ele provavelmente quebrou umas vidraças de banco, caso contrário não teria apanhado da polícia”; “Ele teve sua cabeça destroçada por um cassetete da PM, é verdade; mas quem mandou cobrir o rosto com uma máscara?” Nem é preciso ter estudado a “Psicologia de Massas do Fascismo” de Wilhelm Reich pra perceber nestes argumentos a manifestação do fascismo cotidianizado, que enxerga vidraças como mais sagradas do que vidas humanas, que aplaude a crueldade fardada como se esta fosse panacéia pra pôr ordem em nosso caos… – LEIA MAIS
Sobre o episódio da lamentável brutalidade do policial contra o manifestante, a Faculdade de Ciências Sociais da UFG publicou a seguinte nota de solidariedade:
Vou buscar explicar com o máximo de clareza que posso, nesta era histórica em que beira o impossível que o baterista do tórax não se exalte e não inunde meu corpo com os afetos intensos da indignação, da rebeldia e do senso de justiça ofendida, os porquês de sentir-me solidário aos que gritam “golpe!”.
O Brasil terminou 2016 como uma espécie de cena-do-crime em tamanho continental, com digitais dos criminosos espalhadas por toda parte. Os meliantes eram Robin Hoods ao avesso, que pretendem (re)institucionalizar aquela lei do criminoso endinheirado: roubar dos que tem pouco, para enriquecer um pouco mais os que já tem demais.
Quem ainda não entendeu que o golpe não foi “contra o PT”, talvez descubra tarde demais, depois: o golpe foi contra eu e você, que pertencemos aos 99% e que mais uma vez estamos vendo o triunfo da crueldade e da canalhice do 1% no tope da pirâmide de capital. A elite econômica, que prefiro chamar, para ser delicado, de plutocracia (quando mereceria o título de cleptocracia), instaura no Brasil uma política de terra-arrasada para os bens públicos. O lucro é o único deus, todo o resto é resto.
Não precisa ser Sherlock ou Miss Marple para compreender que não pode ser tido como um impeachment normal e legítimo algo que, desde o princípio, foi articulado e chefiado por um bandidão mafioso, aliás já preso, como Eduardo Cunha (PMDB). Sabemos que não sobra nem sombra de legitimidade à base de apoio deste notório corrupto do Cunha, com suas inúmeras contas na Suíça, cheias de dinheiro público desviado de nosso patrimônio comum, e com o qual o crápula comprava parlamentares para suas “causas” mesquinhas, privatistas e interesseiras.
O golpe foi cunhado por gentinha dessa laia, sumarizáveis com o termo não tão chulo quanto eles merecem de ricos sem escrúpulos. Se ainda existissem instituições de Justiça dignas desse nome, a única medida razoável e cabível seria a de restituir ao cargo a presidenta legitimamente eleita e ilegitimamente derrubada – o que decerto não ocorrerá, pois os golpes, com tanques ou sem tanques, não costumam dar marcha-à-ré.
O banditismo por trás do impeachment começa pelo prontuário policial de suas figuras de proa – muitas delas rapidamente empossadas pelo vice usurpador, alçado à presidente biônico por vias escusas e com o favor de suas cumplicidades criminosas. Romero Jucá, José Serra, Mendonça Filho, Alexandre de Moraes: todos eles foram presenteados com cargos no Machistério do Golpe, aliás uma grotesca cusparada de Michel Temer na cara das mulheres, dos negros, dos jovens, da imensa maioria das populações de nossos Brasis. Além de uma revelação explícita da farsa e da hipocrisia do discurso “anti-corrupção” que levou muitas das massas-de-manobra às ruas e às redes, clamando pelas cabeças de petistas.
Que tenha sido possível convencer tantos crédulos a um credo fantasticamente falso – “a culpa pela corrupção, pela recessão econômica, por tudo que não presta neste país, é todinha do PT e de nada nem ninguém além desses petralhas!” – é uma amostra do grau de estupidificação que os bombardeios midiáticos de calúnias, os linchamentos e os assassinatos de reputação combinados com os vendilhões de justiças promocionais, é capaz de acarretar no país dos 30 Berlusconis (o Brasil, segundo Repórteres Sem Fronteiras).
Um Machistério inteiro composto de machos, brancos, velhos, ricos, heteros, muitos deles reús por corrupção e má gestão pública, posando de salvadores da pátria e resguardadores da ordem e do progresso! Sem amor, é claro, riscada de nossa bandeira (somos positivistas, mas nem tanto…). Só a ordem (plutocrática) e o progresso (rumo ao abismo), defendidos com muita PM, cassetete, presídio, bomba tóxica, invasão armada de escola do MST, esculacho pra cima de estudante que ocupa escola… Um país, como dizia Millôr Fernandes, com um longo passado pela frente.
O que os golpistas não imaginaram, ou temeram pouco, foi que, meses depois da grotesca usurpação de poder ocorrida no Brasil, eles se veriam diante de episódios sem precedentes na história do movimento estudantil e juvenil não só no Brasil, mas no planeta. As ocupas de 2016 – chegaram a ser mais de 1.000 escolas e universidades sob ocupação – foram aquilo que o roteiro do golpe não previu. Das ocupas emerge um modelo alternativo de gerir o espaço público – toda ocupa é uma temporária comuna, onde o auxílio mútuo e o engajamento em uma causa comum é que dão o tom, e não o individualismo do eu-mônada, fechado em si, que compete com os outros numa bélica selva feroz.
A maré “ocupista” que tomou conta do Brasil é a preciosa afirmação do protagonismo juvenil-estudantil, em levante justo e necessário contra a P.E.C. (Proposta de Estupro à Constituição) 241/55, que querem impor aqueles que pensam que a boca da moçada serve só pra se calar (“não fale em crise, trabalhe!”), pois assim não vai tomar tapa, pipoco ou baculejo.
Os gestores do Golpe, consumada sua artimanha, com beneplácitos da mídia e das Fiesps, distribuíram cargos lucrativos e ricas retribuições aos seus fiéis apoiadores. Imaginem o quanto não “molharam a mão” de muita gente na imprensa, no empresariado, nos tribunais, para conquistar a base parlamentar que deu o putsch sem tanques e chutou Dilma Rousseff pra escanteio. Pra escanteio também varreram os farrapos de 54 milhões de títulos eleitorais, tratados como lixo, trapos de papel sem relevância, adiáveis até outra época, ou mesmo até o dia de São Nunca. Que Lula volte ao poder, aclamado pela maioria do povo brasileiro, é o fantasma que agora cabe a eles exorcizar – e eles nunca foram de recusar métodos como o assassinato (ou a misteriosa queda de aviões…). O golpe tem sim as mãos sujas de sangue, só não enxerga quem não quer. Eles deixaram novamente abertas nossas veias latinas, jorrando.
Nossos adiáveis títulos eleitorais serão válidos em 2018? Não dá pra saber, pois foram tratados como adiáveis tal qual a própria democracia, que no pós-estupro foi posta em sursis e tenta recuperar-se na UTI de um hospital público… Hospital que, nem preciso insistir, nos próximos 20 anos, vocês sabem, os golpistas desejam precarizar até a asfixia, até a morte. No Brasil, o genocídio dos pobres está sendo assumido como programa de governo. Já a taxação de grandes fortunas ou a punição das grandes empresas sonegadoras (como a Globo ou a Vale, que tantos malefícios fazem ao país), isto é tratado só como perigoso discurso comunista. Taxar os ricos e democratizar a mídia?!? Quem propor uma absurdo disso merece tomar porrada dos novos CCC (Comando de Caça aos Comunistas) ou morrer torturado nos novos DOI-CODIS (depois vão dizer que nos enforcamos nas nossas próprias gravatas… garanto desde já: não tenho gravata!).
A morte de escolas e hospitais não virá por acidente, muito menos o genocídio material, artístico, cognitivo, criativo e civilizatório que isso acarretará. Esta morte coletiva, este assassinato da saúde e da educação enquanto bens públicos, é parte do programa desses caras. É sobre o cadáver dos pobres que eles vão querer construir a Ponte Para o Futuro. Patrocinado pela Bancada BBBB (Banco, Bíblia, Boi e Bala) e apoiado por aqueles que empreenderam a derrubada de Dilma na fraude do golpeachment. “Defendido” com a força inclusive de milícias extra-judiciais formadas pelo MBL e outras organizações ultraliberais da direita anarcocapitalista tupiniquim. A Ponte Para o Futuro é um atalho para a barbárie. Estamos acelerando nesta estrada, com uma perigosa massa que vê em figuras fascistas como Bolsonaro uma solução para o nosso caos.
Não importa quem estiver lá na White House, estes lambe-botas e vende-pátrias do Brasil (a começar pelo entreguista-mor José Serra, que demitiu-se do Itamaraty…) querem o destino glorioso de estar de joelhos diante dos Yankees. Querem o Brasil-colônia, fornecedor de petróleo pra financiar a hecatombe ecológica global, enfim consumada. E fodam-se Bangladesh, a Índia, a China, onde as catástrofes do aquecimento global farão com que morra muito mais gente do que em Manhattan ou Washington D.C…
O Brasil depois do golpe não é um país, é um barril de pólvora. Em meio à maior insurreição estudantil e movimento ocupista da história da jovem república, é triste mas necessário constatar que “a cadela do fascismo que está sempre no cio”, como dirá Brecht, e segue a mostrar os dentes de sua barbárie militarista-policialesca-repressiva. A criminalização dos movimentos sociais, como a invasão da escola do MST, a impunidade aos massacradores que têm as mãos sujas de sangue pelo que fizeram no Carandiru, as des-ocupações que tiveram o MBL como milícia armada de neo-capitães-do-mato, tudo isso mostra que a Primavera Secundarista e outras marés de resistência popular libertária são na atualidade a nossa mais preciosa, inestimável, luz-de-fim-de-túnel no meio destas eras trevosas.
O levante de 2016 em prol da Educação Pública, em repúdio à PEC apocalíptica, é um exemplo daquilo que dá alento pra continuar a viver e a lutar, apesar dos desânimos que nos causam este cotidiano triunfo da estupidez e da crueldade. A Primavera Secundarista refulge como aquilo que é nossa melhor esperança, e acontece, como bem descreveu o Boaventura Sousa Santos, neste “contexto mais amplo de intensificação de ataques a direitos, impulsionado pelo recente golpe parlamentar, jurídico e midiático que culminou com uma troca ilegítima no comando do Executivo Federal e na adoção de uma agenda regressiva e conservadora levada a cabo pelo contestado governo atual. Nos últimos tempos, no Brasil, repetem-se notícias e ocorrências de perseguições e criminalização de movimentos e organizações sociais, de cerceamento da liberdade de expressão e manifestação política por parte de artistas, estudantes e professores, bem como de desrespeito de direitos fundamentais, reforçando um quadro repleto de traços daquilo que temos denunciado amplamente como “fascismo social”.” (BOAVENTURA SOUZA SANTOS, em Outras Palavras)
Nosso risco mais palpável é o de que as escolas ocupadas e as manifestações de resistência sejam compreendidas pelas “ôtoridades” em Brasília, inclusive dentro do MEC sequestrado pelo DEM, como “problema a resolver pela via militar”. Seja através de PMs fardados, seja por milícias civis conexas a MBLs ou que tais, isso será igualmente grotesco, mas desvelará a verdadeira face destes capitães-do-mato da neo-Plutocracia brazuca. Em Goiás, como mostra recente reportagem da Ponte, o Big Brother orwelliano ganha contornos de coroné, uma espécie de versão piorada, ou adaptação western spaghetti, da distopia de 1984.
Só que o sangue não é de molho de tomate, não é fake e mero efeito especial,é o nosso próprio sangue escorrido que eles desejam esparramar como molho por cima deste macarrão de nação que estão urdindo estes gourmets da catástrofe planejada. Naomi Klein talvez nem suspeite quanto futuro ainda tem – infelizmente – sua elucidação da Doutrina do Choque. Os regimes Macri e Temer são a Shock Doctrine que marcha e vai fazendo macarrão dos ossos de oprimidos e desvalidos, considerados indignos de qualquer coisa senão de uma miséria quiçá consolada por algumas esmolas e migalhas caídas da mesa farta dos ricos e poderosos.
No mundo onde chegaremos caso sejamos coagidos a atravessar a sinistra Ponte Para o Futuro, não faltarão os mortos de fome e os que estão desprovidos de médicos e remédios. Mas os banquetes no palácio, meus caros, estes deixariam salivantes e cheios de apetite até os mais aristocráticos dos bambambams que outrora encheu a pança no Palácio de Versalhes. Os pobres fornecerão a carne moída; os ricos degustarão no palácio seus deliciosos banquetes, tendo como pratos: sopa de tripas de proletas; churrasco dos mortos por falta de atendimento no SUS; papinha de cérebros daqueles que a “PEC do Teto” relegou ao analfabetismo e à indigência cognitiva imposta de cima pelos gestores da estupidez coletiva.
Eles comerão até explodir, e ainda irão mandar algum serviçal depositar todo o lixo e toda a merda nos bairros pobres, no território dos excluídos da festa. A Ponte Para o Futuro é uma tenebrosa farsa que conduz ao Planeta Favela, ao Planet of Slums de que fala em seu livro Mike Davis. Felizmente, em meio a este lodaçal todo, despontou a chamada Primavera Secundarista, que em Outubro e Novembro de 2016, ainda que sofrendo com um criminoso apagão midiático por parte das empresas de mass media no país, fizeram história. O Brasil fez mais que “virar o Chile” quando este vivenciou, a partir de 2011, uma onda irresistível de ativismo em prol da educação pública, gratuita e de qualidade. A juventude do Brasil – com destaque para o movimento no Paraná, que realizou mais de 850 ocupações de colégios – protagonizou uma espécie de auge inédito da mobilização “ocupista” no mundo.
A mídia, não podendo criminalizar com facilidade um movimento desta magnitude, tão convicto de estar defendendo uma causa justa, preferiu silenciar – ou fazer breves menções àquilo que o Estadão, velho bandeirantão, andou chamando de “invasões”. Mas o emblema desta época histórica talvez será Ana Júlia Ribeiro, este estrondoso relâmpago de lucidez e autenticidade, brilhando onde a gente menos espera (a Assembléia Legislativa – PR). Garota corajosa e comovedora, que calou a boca dos bonecos-fala-bosta que diziam: “nas ocupas só tem orgias e drogas, só tem baderna e desordem!”
Eliane Brum: “Os estudantes da escola pública estão no meio do caminho do projeto de poder de muita gente inescrupulosa. Com seus corpos franzinos. Com sua voz trêmula. Tão sós num momento em que os adultos que poderiam estar ao seu lado têm dificuldade para compreender a gravidade do momento e assumir responsabilidades.” (BRUM, El País, A Palavra Encarnada)
Aí vem – watch out! – o Pacote de Crueldades do (des)governo Temer, um governo tão péssimo, mas tão péssimo, que parece querer legar às futuras gerações uma antologia de asneiras – uns 5 novos volumes para atualizarmos o Febeapá de Stanislaw Ponte Preta. O Festival de Besteiras Que Assola O País – versão golpista – é de deixar a gente quase tão sufocado pela lama tóxica quanto os mortos de Mariana. A gestão Temerária faz pensar naqueles que, diz Fontenelle, “não podem, de qualquer modo que seja, chegar a algo de razoável, senão depois de ter esgotado todas as tolices imagináveis”. Mas é duvidoso que um governo Temer jamais consiga chegar a ser razoável. É um estrupício que só merece ser derrubado, já que derrubou nossa jovem e frágil democracia num ippôn de plutocratas.
Safatle têm tido que agora somos governados por uma “junta financeira”, que instaurou aquilo que na Europa se conhece como “regime de austeridade” – uma austeridade que vale para a massa da população, mas nunca para o top da pirâmide. Trata-se de punir os pobres e privilegiar os ricos, ao mesmo tempo que se aplica o dogma neoliberal que ordena cortar todos os cortes públicos e retirar todos os freios e regulações que pretendem controlar a barbárie do mercado livre. Em um livro recente, vertido ao português por Vladimir Safatle, Viviane Forrester dá nome a este austero boi: Uma Estranha Ditadura. Nesta obra, Forrester descreve as entranhas apodrecidas de um sistema
“a serviço da onipotência da economia privada, que, sob a etiqueta casta e tranquilizadora de ‘economia de mercado’, serve de anteparo a uma economia dominante, cada vez mais especulativa, atolada em uma economia de cassino… Daí a implantação brutal, em regiões incompatíveis e segundo moldes colonizadores, de mercados ávidos por custo de trabalho a preço de esmola, da ausência de toda garantia de trabalho e de toda forma de proteção social, agora julgada ‘arcaica’. São mercados ávidos por essa ‘liberdade’ tão pregada pelos adeptos do liberalismo; uma ‘liberdade’ que permite a supressão da liberdade dos outros e dá, a alguns, todo o direito sobre a maioria.” (FORRESTER: 2000, Ed. Unesp, p. 19)
Já a nossa dita Justiça, em terra brasilis, seria cômica se não fosse trágica: mas ela não tá só dando pano pra manga de comediantes e sátiros, está mais é reclamando o surgimento de novos Kafkas dos Trópicos, que dêem conta de descrever as engrenagens de Processos tão kafkológicos. Não dá pra rir de juízes que inocentam os PMs responsáveis pelo massacre do Carandiru, nem dá pra levar na esportiva os aumentos de salários que conquistaram por serem serviçais de um golpe de Estado sem tanques.
Essa é uma Justiça (por assim dizer… não sei se ela ainda merece esse nome!) que não tem graça. Uma Justiça mais pra “justiceira” que pra “justa”, uma “justicinha” que nem merece letra maiúscula. Há quem tenha prometido honrar a virtude da Justiça, da boca pra fora e na hora de pegar o diploma, mas que no cotidiano chão-a-chão vende-se pra quem pagar mais, ainda que o produto em questão seja o comércio de indulgências e impunidades. Não importam o tamanho dos crimes de Serras ou Aécios, de Temers e de Cunhas, de Samarcos e de Globos, estes importantes senhores e empresas sempre podem contar com a cumplicidade e a camaradagem de uma justicinhazinha vendida – e, confessemos, muito bem propinada.
Sem educação, esta barbárie só piorará. Só a “instrução pública”, argumentava o pensador iluminista francês Condorcet, é capaz de aprimorar a espécie humana no caminho sem fim da perfectibilidade destes seres que somos: inconclusos mas aprimoráveis. Co-ensinantes num processo pedagógico interminável e de via dupla. Dialogantes em um mundo comum a construir com nossos melhores esforços. O golpe contra o Público é inaceitável, intragável, injusto. Pretende consagrar o elitismo – ou seja, o acesso diferencial, limitado às elites, à instrução de qualidade, à securidade social, à saúde pública, à aposentadoria digna. Deseja fazer da escola e do hospital de qualidade áreas VIP, da qual estão excluídas as amplas maiorias de nosso Brasilzão de mais de 200 milhões….
Seremos dóceis súditos de sinistros mandões? É cômodo pros tiranos que ao povo seja imposta a ignorância que estupidifica. Governam os truculentos também com a arma de uma educação negada, proibida, eliminada do cardápio cotidiano daquilo que alimenta a massa. Dar-lhes o pão (mofado) e o circo (imbecilizante) das sensaborias massmidiáticas é mais vantajoso aos manda-chuvas do que ofertar, aos que eles eles anseiam que prossigam dóceis súditos, o perigoso avanço das lúcidas luzes d’um senso crítico alerta e operante.
Não tenho dúvida de que aquilo que mais adoro no ofício de professor é a possibilidade de não parar nunca de aprender. Estagnar no aprendizado adquirido seria-me destino amargo. Lecionar permite permanecer perene aprendiz. Já que a gente também não para de aprender a arte de ensinar. Ensinar aos outros requer que a gente aprenda sempre, no próprio processo prático deste esforço pedagógico, na busca insistente por estabelecer os fecundos canais de diálogo que são os meios indispensáveis de qualquer relação-ensinante. Gosto da noção, que me parece a um só tempo em sintonia com Paulo Freire e Condorcet, de que a educação vale para toda a vida, para todas as idades, não tem como parar um dia a não ser pela imposição de um ponto final que a todos nós fará a impiedosa morte e sua foice sem clemência. Na vida, somos sempre inconcluídos, sempre aprendizes perenes, sempre aperfeiçoáveis indefinidamente.
“Se esse aperfeiçoamento indefinido de nossa espécie for, como eu creio que é, uma lei geral da natureza, o homem não deve mais se considerar um ser limitado a uma existência passageira e isolada, condenada a desaparecer após uma alternância de felicidade e infelicidade para si, de bem e de mal para aqueles que o acaso colocou junto dele; ele se torna uma parte do grande todo e colaborador numa obra eterna. Numa existência de um momento, num ponto do espaço, ele pode, por seu trabalho, unir-se a todos os séculos e agir ainda por muito tempo depois que sua memória tiver desaparecido da terra.” (CONDORCET, Cinco Memórias Sobre a Instrução Pública, Ed. Unesp, p. 29)
Hoje, posso dizer, com ninguém aprendo mais, nem de ninguém sou aprendiz mais devotado, do que destes que tem experimentado renovar a política, revolucionar a escola, retomar o poder que nos foi usurpado. Em especial aos que na escola são alunos mas nas ruas são mestres e que estão nos ensinando valiosas lições sobre solidariedade, fraternidade, ativismo, gestão comunitária, assembleísmo, mutualismo, desobediência civil, mobilização em ruas e redes. É a vocês, com quem tanto aprendo, que dedico estes docs (assista na sequência), vislumbres da Primavera Secundarista, das Batalhas da PEC55 em Brasília e do Março de 2017 em Goiânia. Saúdo com estes vídeos a todos aqueles que não querem só passar de ano ou embolsar um salário, mas estão juntos, ativos, co-laborantes no parto histórico de um melhor mundo possível. Façamos juntos.
“Há homens e mulheres que, ao viverem intensamente o seu tempo, transcendem-no e se tornam referência em outros tempos e em outros lugares”, escreve o prof. Danilo R. Streck (Unisinos), “e José Martí é um destes homens.” (STRECK, 2007, p. 13-14)
Tendo vivido por somente 42 anos, transcorridos na segunda metade do século XIX, Martí realizou ditos e feitos impressionantes como pensador, jornalista, poeta e militante político, a ponto de ter sido convertido não só em estátuas e monumentos, mas em um autêntico mito no século seguinte.
Esta travessia de Martí, da carne ao mito, deu-se sobretudo, mas não somente, através do Movimento 26 de Julho, fundado por Fidel Castro, Ernesto ‘Che’ Guevara, Camilo Cienfuegos, dentre outros exilados políticos que, no México, em 1955, começaram a tecer a mobilização revolucionária que viria a triunfar contra a ditadura de Fulgencio Batista em 1959.
Vidas como a de Martí transcendem sua época justamente pela devoção existencial intensa e indomável que as move no sentido da transformação da época de que são contemporâneos. Como pontua Streck, “o preço disso é que a sua pessoa e as suas idéias se fundem em mitos que, como tais, são suscetíveis tanto da idolatria quanto da execração.” (op cit, p. 13)
Pessoa de carne-e-osso, tombada no túmulo precocemente por seu envolvimento nas lutas anticoloniais e independentistas, José Martí transcende sua morte em campo-de-batalha para transformar-se em mito vivo da História Latinoamericana. Esta, aliás, que o Brasil reluta em conhecer e abraçar, incapaz de reconhecer os outros povos do continentes como legítimos hermanos – tanto que a maior parte da população brasileira segue desconhecendo até mesmo as figuras históricas que mais impacto prosseguem tendo sobre a vida do subcontinente (como Bolívar, San Martin, Hidalgo e o próprio Martí, ainda sub-representados e mal estudados em nossas escolas).
Nascido em Cuba, no dia 28 de Janeiro de 1953, José Julian Martí Pérez teve uma excelente crônica cinematográfica filmada sobre seus anos de formação: trata-se do filme El Ojo Del Canario (O Olho do Canário), de 2009, realizado pelo cineasta Fernando Pérez. A obra é uma espécie de Bildungsroman (romance de formação) que revela Martí em sua infância e adolescência, focando no período entre os 9 e os 16 anos.
Tanto seu pai, Mariano Martí, quanto sua mãe, Leonor Pérez Cabrera, eram espanhóis emigrados para Cuba, ainda sob domínio da Espanha. José Martí nasce cubano, mas numa Cuba ainda serva da Espanha e onde a abolição da escravidão ainda não havia sido conquistada.
Desde cedo o pequeno Martí, apelidado de “Pepe”, demonstra ser o melhor aluno da escola, o que não o impede de tomar altos safanões, bofetadas e palmatórias de figuras autoritárias e mandonas. Exemplos disso são seu professor de matemática, fã de torturar aluno flagrado “colando” na prova, e seu pai, que não tardará em repreendê-lo com dureza quando souber que o adolescente Pepe está escrevendo peças de teatro defendendo “Cuba Libre!”
O filme desvela, sem idealizações mas com convincente capacidade de reconstrução histórica, as relações do niño Martí com as agruras de seu tempo e o sofrimento de seu povo, destacando a importância que teve em sua vida ter sido aprendiz de seu mestre Rafael Mendive (1821-1866) e suas vivências durante a insurreição chefiada por Carlos Manuel de Céspedes (1819 – 1874).
Desde muito cedo, Martí enxerga na imprensa uma arma essencial no debate de idéias e no confronto de ideologias, fundando o periódico Patria Libre – uma iniciativa brutalmente defenestrada por seu pai, que abomina ter um filho dissidente e militante independentista.
As cenas mais impressionantes de O Olho do Canário ocorrem quando o adolescente Martí é envolvido pelo turbilhão da guerra civil em Havana: milícias de soldados fiéis à Coroa Espanhola tocam o terror pelas calles cubanas, fuzilando e prendendo os ativistas que atuam em prol da independência de Cuba. A tensão dramática atinge o auge em uma cena em que Martí e sua mãe são abordados na rua pelos milicos e ele, sob a mira feroz do fuzil, ameaçado de morte súbita, é obrigado a gritar “Viva a Espanha!” ou perder a vida ali mesmo. A mãe, desesperada, berra ao filho que obedeça, cada vez mais transtornada diante da iminência da tragédia, mas o jovem é de um obstinado mutismo.
A cena é um emblema do caráter de Martí, mas também inspiração para fecundas reflexões sobre Resistência e Desobediência Civil. Salvos por um triz de morrerem nas mãos dos milicos sanguinários, em especial pela intervenção de um velho professor de Martí, mãe e filho saem indelevelmente marcados por esta vivência de clash entre os insurretos e os que defendem com força bruta a manutenção do status quo hispano-imperialista.
“Mírame, madre, y por tu amor no llores, si esclavo de mi edad y mis doctrinas, tu mártir corazón llene de espinas, piensa que nacen entre espinas flores.” – José Martí, 28 de agosto de 1870. Escultura acima: monumento em Tenerife.
Mãe e filho chegam em casa para encontrar um pai que parece menos um homem que um touro enfurecido diante de um pano vermelho. O pai espanca Martí na cara, impondo seu jugo autoritário, e tenta forçar-lhe a “tirar da cabeça essa porcariada patriótica” e abandonar completamente suas atividades políticas. Mas é tarde demais para um pai tentar conter o ímpeto rebelde de sua cria. Em José Martí já arde a estrela revolucionária que nenhum jugo, por mais duro, é capaz de silenciar e invisibilizar. A estrela que haverá de queimar pelos séculos afora na própria bandeira cubana.
O filme termina com o jovem Martí, aos 16 anos, sendo preso como dissidente, dormindo no piso frio, detrás de grades, pelo crime de lutar pela libertação cubana através de suas idéias, artigos, cartas, poemas, discursos. Mas nenhuma gaiola é capaz de calar por completo o canto do canário, de plumagem amarela mas olhos negros, que seguirá cantando mesmo nas situações mais adversas.
Levado ao tribunal, é condenado a 6 anos de presídio, com trabalho forçado. Vivencia na pele aquilo que havia antes testemunhado junto à população afrodescendente de Cuba: o jugo terrível do trabalho escravo, excessivo e brutal, sem dignidade e indignante, quebrando e carregando pedras com os pés acorrentados. Uma situação que evoca a lembrança daqueles versos da canção “I Fought The Law”, de Bob Fuller, regravada pelo The Clash e pelo Green Day:“breaking rocks in the hot sun: i fought the law but the law won!”
Em sua introdução ao livro Educação Em Nossa América – Textos Selecionados de José Martí (Ed. Unijuí, 2007), Danilo Streck relembra estes episódios biográficos, narrados em O Olho do Canário, e fornece breves informações sobre o que se seguiu:
“Aos 15 anos, em 1868, Martí se engajou no movimento separatista, que incluía no seu projeto a libertação dos escravos. O movimento foi derrotado e Martí condenado a 6 anos de prisão. Passou os primeiros anos realizando 12 horas diárias de trabalho forçado e conheceu em primeira mão um dos lados mais cruéis do já decadente poder colonial. Dado o seu precário estado de saúde, em 1871 a pena de prisão foi comutada para exílio, passando ele a viver na Espanha. No exílio, Martí continuou seus estudos e obteve o título de licenciado em Filosofia e Letras pela Universidade Central de Madrid. Nesse período amadureceu o seu pensamento político e publicou os primeiros textos: El Presídio Político en Cuba e La República Espanhola ante La Revolución Cubana.
Saiu de Madrid em 1874 e peregrinou por vários países, entre eles México e Guatemala, retornando a Cuba em 1878. Desde a chegada estava novamente envolvido em atividades clandestinas pela independência de Cuba, o que lhe custou nova deportação um ano depois. Com rápida passagem por Madrid, seu destino desta vez foi Nova York. Ali teve contato com chefes revolucionários e foi ali que produziu a maior parte de sua obra jornalística e literária. Em Nova York também acompanhou o nascimento das políticas imperialistas dos Estados Unidos, que denunciou com a mesma veemência com que combateu a dominação da Espanha.
Martí percebeu que a verdadeira libertação de Cuba não poderia acontecer sem a união do povo, de todos os setores da sociedade. O Partido Revolucionário Cubano, fundado em 1892, assumiu esta bandeira e Martí foi a sua alma por seus ideais de unidade. O partido teve papel decisivo na luta pela independência, que estourou em 1895. Martí saiu de Nova York para se juntar às tropas comandadas pelo general Máximo Gómez. Em 19 de março daquele ano morreu em combate contra o exército espanhol, em Dos Rios, sem ter concretizado o grande sonho de sua vida.” (STRECK, op cit, p. 16-17)
No livro “Versos Libres”, Martí oferta-nos o impressionante e inesquecível poema:
YUGO Y ESTRELLA
Cuando nací, sin sol, mi madre dijo:
– Flor de mi seno, Homagno generoso,
de mí y de la creación suma y reflejo,
pez que en ave y corcel y hombre se torna,
mira estas dos, que con dolor te brindo,
insignias de la vida: ve y escoge.
Éste, es un yugo: quien lo acepta, goza.
Hace de manso buey, y como presta
servicio a los señores, duerme en paja
caliente, y tiene rica y ancha avena.
Ésta, oh misterio que de mí naciste
cual la cumbre nació de la montaña,
esta, que alumbra y mata, es una estrella.
Como que riega luz, los pecadores
huyen de quien la lleva, y en la vida,
cual un monstruo de crímenes cargado,
todo el que lleva luz se queda solo.
Pero el hombre que al buey sin pena imita,
buey torna a ser y en apagado bruto
la escala universal de nuevo empieza.
El que la estrella sin temor se ciñe,
como que crea ¡crece!
¡Cuando al mundo
de su copa el licor vació ya el vivo:
cuando, para manjar de la sangrienta
fiesta humana, sacó contento y grave
su propio corazón; cuando a los vientos
de Norte y Sur virtió su voz sagrada,
la estrella como un manto, en luz lo envuelve,
se enciende como a fiesta, el aire claro,
y el vivo que a vivir no tuvo miedo,
se oye que un paso más sube en la sombra!
– Dame el yugo, oh mi madre, de manera
que puesto en él, de pie, luzca en mi frente
mejor la estrella que ilumina y mata.
Nesta video-reportagem, espiem alguns vislumbres de como foi a manifestação em prol da Educação Pública em Goiânia, no dia 18 10 16, data em que 769 escolas públicas estavam ocupadas pelo Brasil afora, de acordo com dados da UBES. A mobilização tinha como alvos a PEC 241, que congela os investimentos públicos em Saúde e Educação por 20 anos, a Reforma do Ensino Médio decretada pelo (des)governo de Michel Temer e pelo Sinistro da (des)Educação – Mendonça Filho do DEM. Além disso, a mobilização prossegue protestando contra a privataria marconista, que deseja transferir dezenas de escolas públicasde Goiás para a gestão empresarial via O$s. Este curta-metragem, de 13 min, registra o ato na Praça Universitária, a passeata pela Av. Universitária e Av. Anhanguera, a ocupação da rodovia BR-153, travada nos dois sentidos por barricadas de pneus em chamas. O ato contou novamente com vigoroso protagonismo dos Secundaristas em Luta – GO. Trechos musicais: Chico Science e Nação Zumbi, Elton Medeiros e Paulinho da Viola, Baiana System. Um vídeo filmado e editado por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro:
O dia 18 de Outubro de 2016 raiou com cerca de 769 escolas ocupadas Brasil afora, segundo informações da UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas). A BR-153, em Goiânia, entardeceu com um crepúsculo diferente do costumeiro por efeito do grande ato em prol da educação pública que tomou as ruas da capital de Goiás nesta terça-feira. O protesto tinha como alvos a PEC 241, que pretende congelar por 20 anos os gastos públicos com Educação e Saúde; a Reforma do Ensino Médio que, dentre outras medidas extinguirá Filosofia, Sociologia, Artes e Educação Física do currículo de disciplinas obrigatórias; a Privataria Marconista que deseja ceder a gestão dos colégios públicos para O$s.
O movimento, com notável protagonismo dos Secundaristas em Luta Goiás, concentrou-se na Praça Universitária às 16h e dirigiu-se, pela Avenida Universitária, até a Av. Anhanguera, com o fim de travar a rodovia BR-153 nos dois sentidos (rumo Brasília e rumo Minas-São Paulo). Estudantes secundaristas e universitários, professores de UFs e IFs, servidores público e técnico-administrativos, anarco-punks, militantes LGBT, ativistas anti-racismo, insurgente feministas, além de simpatizantes da causa, pararam o trânsito da rodovia com barricadas de pneus em chamas.
Um animado bloco de dança e batuque resignificou o asfalto e parecia dar razão a Emma Goldman: “Se eu não puder dançar não é minha revolução.” Cantando refrões rimados e bradando cartazes indignados, os manifestantes desafinaram o coro dos contentes: “A nossa luta é todo dia! Educação não é mercadoria!”; “Ih, fudeu, estudante apareceu!”; “Acabou a paz, mexeu com estudante, mexeu com Satanás!”; “Tira a tesoura da mão, tira a tesoura da mão, e investe na educação!” – foram alguns dos brados que ressoaram pelos ares da cidade.
Neste vídeo – primeiro de uma série – documenta-se a ocupação da BR-153, com anarco-baile na rodovia e batucada libertária; mostra-se a intervenção temerária dos policiais do Giro que, com suas motocicletas, só não causaram uma tragédia de atropelamento por pouco; revela-se a extensão da marcha quando esta dobrava a Avenida Universitária em direção à Anhanguera, com o mic conectado ao carro-de-som mandando o recado: estamos na rua pois não engoliremos calados a PEC golpista e sua imposição autoritária de uma era glacial para os direitos sociais mais básicos!
A filmagem e edição do vídeo, além desta micro-reportagem, são de autoria de Eduardo Carli de Moraes, do portal cultural e livraria virtual A Casa de Vidro (www.acasadevidro), que vêm realizando docs curtas-metragens sobre os movimentos sociais (assista também a “Escola de Luta” e “Não Tem Arrego”). Os trechos musicais utilizados são de Chico Science e Nação Zumbi (“Da Lama ao Caos” e “A Cidade”) e Elton Medeiros com Paulinho da Viola (“Maioria Sem Nenhum”). A autoria das fotos ao final é desconhecida (o autor, por favor, manifeste-se para ser creditado!).
E em Goiás tem sim muita escola de luta: no dia da manifestação, o IFG Goiânia deliberou, em assembléia estudantil, pela ocupação, juntando-se assim aos câmpus do IF que já estão ocupados: Goiânia Oeste, Águas Lindas, Anápolis, Valparaíso e Iporá. No Distrito Federal, segundo a UBES, estão ocupados: CEM 414 Samambaia, IFB Estrutural, IFB Samambaia, IFB São Sebastião, IFB Planaltina. No dia da votação da PEC no Congresso, em 25 de Outubro, voltaremos todos às ruas.
O que o (des)governo de Michel Temer propõe com a PEC 241 é nada menos que um GENOCÍDIO PLANIFICADO, o que fica evidente quando refletimos que uma diminuição tão brutal nos investimentos na saúde, nos próximos 20 anos, em um cenário de aumento populacional, significa menos hospitais, médicos, enfermeiros e remédios para os mais vulneráveis. É o que diz, entre outras coisas, Laura de Carvalho neste texto para Outras Palavras, onde destaca que o Brasil já investe bem menos do que seria necessário – e agora esses desumanos golpistas desejam investir ainda menos, em prol dos bilhões entregues de mão beijada a banqueiros e especuladores.
“Os gastos em educação e saúde per capita no Brasil se mantêm em níveis muito abaixo da média dos países da OCDE. Com o crescimento populacional nos próximos 20 anos, o congelamento implicará em uma queda vertiginosa nesses indicadores. O envelhecimento da população, em particular, reduzirá muito as despesas com saúde por idoso, com consequências dramáticas sobre os mais vulneráveis.” Saiba mais: Educação e PEC241: retrocesso de mais de 80 anos
Medidas como a (D)eforma do Ensino Médio e a PEC 241, impostas pela regime ilegítimo, golpista e desastroso de Michel Temer e seu MEC – este, aliás, entregue às mãos de um coroné do DEM (que tem Alexandre Frota como paradigma de pedagogia!) – reacendem a chama da mobilização ocupista de São Paulo que derrubou a reorganização planejada por Alckmin. Avante, estudantada! – Leia a matéria do EL PAÍS Brasil (por Marina Rossi)
Estudantes permanecerão resistentes até que a MP da “Deforma” do Ensino Médio seja revogada
A União Brasileira dos Estudantes Secundaristas repudia as declarações do ministro ilegítimo Mendonça Filho, que no lugar do diálogo, prefere ameaçar e perseguir estudantes nas ocupações.
Em pouco tempo, Mendonça Filho já mostrou a forma como pretende conduzir a sua gestão: culpar sempre a vítima. Numa tentativa de criminalizar a luta dos estudantes que ocupam quase mil escolas, institutos federais e universidades em todo o Brasil, o ministro da Educação lança mão de nova arbitrariedade para calar a nossa voz e continuar a implementação da sua política neoliberal de privatização e desvalorização do setor público educacional, um verdadeiro pacote de maldades do governo de Michel Temer.
Em coletiva de imprensa na quarta-feira (19/10), Mendonça Filho exige que a desocupação das escolas aconteça até o dia 31 de outubro, do contrário, a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) será suspensa. Em clara medida para inibir a liberdade de manifestação, o Ministério da Educação (MEC) também enviou ofício a dirigentes da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica pedindo a identificação dos estudantes que ocupam os institutos. A UBES repudia também a ameaça do MEC de cobrar multa dos estudantes e entidades que sejam identificados como responsáveis pelas ocupações. Essa tática a gente conhece, é típica de governos autoritários que perseguem os seus opositores.
As investidas repressoras do governo não vão impedir os estudantes. Permaneceremos resistindo até que a pauta de reivindicações seja ouvida e discutida. As ocupações serão mantidas em oposição à Medida Provisória que “deformará” o Ensino Médio, em repúdio à Lei da Mordaça (Escola sem Partido) e contra a PEC 241, que vai prejudicar investimentos em áreas como Educação e Saúde, literalmente congelando o nosso futuro.
Com relação ao ENEM, a UBES, ao contrário das elites que usurparam o poder por meio de um golpe, sempre defendeu o exame como forma de democratizar o acesso ao ensino superior, assim como defendemos políticas como o ProUni e as cotas que hoje estão ameaçadas. Vale lembrar que o partido do ministro Mendonça Filho é o DEM, antigo PFL, que apoiou a ditadura militar e, em um passado mais recente, ingressou com ação na justiça contra a política de cotas nas universidades federais.
Por isso, quem conhece nossa história, quem visitou uma ocupação, quem acompanha a luta diária dos estudantes em defesa da educação sabe que o objetivo não é e nunca foi prejudicar a realização do ENEM. As declarações do ministro golpista usam da mais baixa tática da repressão, que é espalhar uma ameaça para jogar a sociedade contra um movimento legítimo, pacífico e que conta com apoio popular.
Não vamos nos intimidar, ameaças nos fortalecem. Não somos delatores nem invasores, somos lutadores do hoje para garantir um futuro melhor e mais justo para todo o povo brasileiro.
Quem quiser saber mais das ocupações, convidamos para acompanhar as páginas no facebook, as pautas e as atividades que acontecem diariamente nas escolas ocupadas, inclusive, “aulões” preparatórios para o ENEM.
O MEC diz: “Vamos cancelar o ENEM”. Na verdade, devia dizer: “Vamos revogar a MP da reformulação”.
As ocupações permanecerão enquanto a Medida Provisória de “deformação” do ensino médio não for revogada!
“Eu me organizando posso desorganizar
Eu desorganizando posso me organizar”
(Chico Science)
A escola é nossa!
União Brasileira dos Estudantes Secundaristas 20 de outubro de 2016
APRESENTAÇÃO OFICIAL DO LIVRO: No final do ano de 2015, surgiu um movimento social sem precedentes na história brasileira, tanto por sua dimensão quanto por suas táticas, quando mais de 200 escolas públicas estaduais de São Paulo foram ocupadas pelos seus alunos. Eles lutavam contra o plano do governo de fechar 94 escolas inteiras e centenas de turmas, realocando estudantes e superlotando salas. O caso das primeiras escolas ocupadas causou pânico das autoridades, que reagiram com ameaças e violência, mas foi impossível conter o movimento e o numero de ocupações cresceu em uma velocidade impressionante: Zona Leste, Norte e Sul da Capital, Jandira, Mauá, Osasco, Ribeirão Pires, Santo André, Campinas, Franca, Santa Cruz das Palmeiras, Bauru, Jundiaí…. de repente havia escolas ocupadas por todo o Estado, do interior ao litoral, dos centros às periferias. A Polícia Militar foi chamada por diretores desesperados e diversos casos de violência e sabotagem contra os estudantes foram registrados. Mas junto com a repressão também veio a solidariedade dos pais, de professores, das comunidades, de artistas, de toda a sociedade. Os estudantes paulistas foram vitoriosos – forçaram o governador a recuar, suspendendo o projeto de “reorganização escolar”, e derrubaram o secretário de educação – e, logo em seguida, a mesma tática começou a ser utilizada por estudantes de outros estados na luta pela educação pública de qualidade. Este livro é uma tentativa de reconstruir a luta contra a “reorganização” da perspectiva deles e delas.
Se houve alguém que riscou o fósforo e incendiou o debate sobre educação pública brasileira nas últimas décadas foram os estudantes secundaristas de São Paulo durante o segundo semestre de 2015. A pressão feita por eles com as ocupações das escolas estaduais fez com que o governo de Geraldo Alckmin (PSDB) retrocedesse no plano de reorganização que pretendia cumprir, fechando unidades e transferindo alunos arbitrariamente. A luta se estendeu pelo Brasil. Exitosa, a primeira experiência política de boa parte dessa meninada serve como mote do livro Escolas de Luta, da editora Veneta (compre na Estante Virtual).
A publicação, que já se encontra nas livrarias, é assinada pelo trio acadêmico formado por Antonia M. Campos, mestre em sociologia pela Unicamp; Jonas Medeiros, doutorando em educação pela Unicamp e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento); e Márcio M. Ribeiro, professor do bacharelado em sistemas de informação na EACH/USP e membro do GPoPAI (Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Acesso à Informação).
Na época, ainda sem a pretensão de fazer um livro, Antonia e Jonas passaram a frequentar as ocupações e entrevistar os estudantes a fim de registrar e coletar dados. “Quando um evento histórico pega os cientistas sociais de surpresa, não há tempo de ir a campo enquanto aquilo existe. E depois ficamos todos correndo atrás do prejuízo para reconstruir empiricamente determinados processos”, pondera Antonia. Na sequência, Márcio, que já possuía experiência de militância autônoma e em ocupações, se juntou à dupla.
Antonia delimita um ângulo essencial que desencadeou nas escolas ocupadas e foi pouco – ou quase nada – explorado pela imprensa. “Muita gente acha que as ocupações foram as primeiras medidas tomadas pelos estudantes contra a ‘reorganização’, mas, na realidade, elas foram uma última medida, quase de desespero, mas deu muito certo”, pontua a socióloga. “Antes disso eles tinham tentando de tudo, desde atos de rua até apelos ao secretário, a vereadores e aos dirigentes regionais de ensino.” A VICE, inclusive, esteve em um dos protestos organizado pelos secundaristas, que terminou com carros apedrejados e bombas de gás lacrimogêneo arremessadas pela Polícia Militar (PM) em frente ao Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, sede administrativa do governo Alckmin.
O trio de pesquisadores teve como objetivo alcançar as escolas ocupadas na periferia e na Grande São Paulo, já que o foco da imprensa eram as unidades localizadas na região central. As reações dos alunos, conta Antonia, eram das mais diversas. Em alguns momentos de desconfiança, as entrevistas foram realizadas na calçada. Já outros estudantes convidavam os pesquisadores para almoçar e fazer tours pelas ocupações.
“Ficamos impressionados tanto com a convicção no discurso quanto com a resistência na prática”, rememora a pesquisadora, que viu os jovens se organizando em comissões de limpeza, comunicação e segurança. Nas escolas, não havia hierarquia. Não havia um movimento estudantil sólido ou partidário por trás do planejamento dos próprios alunos. Cada um cumpria com suas funções. “Uma força assim, considerando que se tratou da primeira experiência de luta de muitos ali, só pode vir da concretude daquela indignação. Não foi uma indignação que veio de fora, trazida por uma ideia abstrata de educação pública, foi uma revolta que nasceu da vida escolar daqueles sujeitos, a partir dos problemas vividos ali.”
Escolas de Luta é recheado de histórias, depoimentos, informações e reproduções do que alguns veículos publicaram na época. “Não há pretensões acadêmicas ou grandes interpretações, é um livro que tenta reconstruir um processo do ponto de vista dos estudantes, com o objetivo de registrar e potencializar suas vozes”, define a socióloga.
A publicação traz a curadoria de imagens do fotojornalista Jardiel Carvalho, integrante do R.U.A Foto Coletivo e colaborador frequente da VICE. As fotos que aparecem nesta matéria estão no livro e já haviam sido publicadas por aqui. Já a imagem que ilustra a capa do livro é do fotógrafo Sérgio Silva.
“Alguns alunos passam de ano,
outros passam à História…”
A onda de ocupações que dissemina-se pelo país afora em Outubro de 2016 talvez seja inédita na História – não só do Brasil, mas do mundo. Já houve algum país neste planeta que tivesse passado por um movimento Ocupista desta magnitude? No Chile, no auge da mobilização estudantil de 2011, o placar atingiu cerca de 600 escolas ocupadas; o Brasil têm condições plenas de, nos próximos dias, dobrar esta meta: estamos à caminho de 1.200 ocupas. A profecia que muitos manifestantes em Goiânia tem bradado nas ruas – “acabou a paz, isso daqui vai virar o Chile!” – já é realidade. Agora o movimento em prol da educação pública têm, no Brasil, uma oportunidade histórica de checar, na prática, a potência transformadora e emancipatória da tática das ocupações, tão em voga desde o Occupy Wall Street e das praças públicas tomadas pelas insurreições da Primavera Árabe. Avante, galera, até a derrubada da PEC 241, da (D)eforma do Ensino Médio via MP e do próprio (des)governo de Michel Temer! (Carli, 22 10 16)
Não se viu nada igual nos últimos 30 anos. A PEC 241 é o mais ousado ataque ao povo brasileiro desde a ditadura militar, violando a Constituição de 1988 precisamente naquilo em que ela pôde ser chamada de “cidadã”. É uma verdadeira “desconstituinte”, uma ode à desigualdade social.
Aprovada em primeiro turno na Câmara e festejada com brindes de champanhe no jantar do Alvorada, a PEC determina o congelamento dos investimentos públicos pelos próximos 20 anos, até 2036.
Os efeitos disso para os serviços públicos e os salários dos trabalhadores serão fatais. Estimativa dos gastos em saúde e educação nos últimos dez anos, caso a PEC valesse desde 2006, é ilustrativa: o orçamento da saúde em 2016 foi de R$102 bilhões; com a PEC seria de R$65 bilhões. Na educação, ainda pior, o atual orçamento de R$103 bilhões seria de R$31 bilhões, um terço.
No caso dos salários, estudo realizado pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) aponta que, se a PEC valesse desde 1998, o salário mínimo seria hoje de R$400, menos da metade do seu valor de R$880. Basta fazer os cálculos de como será daqui a 20 anos, período de vigência da lei proposta. A política de reajuste do salário mínimo, instrumento de distribuição de renda no último período, será sepultada.
O artigo 104 da PEC, apresentado como emenda, prevê expressamente o veto a aumentos salariais acima da inflação, além do congelamento do salário de servidores, em circunstâncias do não cumprimento do teto. Um verdadeiro descalabro.
O argumento utilizado por Temer – repetido à exaustão na mídia por gente como Miriam Leitão, Carlos Alberto Sardenberg e outros do mesmo clube – é que é preciso conter a dívida pública, tratada como o grande problema nacional. A proporção da dívida em relação ao PIB, crescente no Brasil desde 2014, é hoje de 66,2%.
Nos Estados Unidos, esta proporção é de 104%, na União Européia de 90% e, mesmo na austera Alemanha alcança 71%, acima da brasileira. Nenhum desses países e regiões resolveu congelar investimentos por 20 anos. Não há notícia no mundo de uma medida draconiana desta natureza, ainda menos como cláusula constitucional.
Só num país totalmente capturado pelos bancos e rentistas uma medida como essa seria possível. A relação da PEC com os interesses da casa grande é bem simples de compreender. Vejamos.
É de se supor a retomada do crescimento econômico no país em algum momento durante os próximos 20 anos. Com o crescimento, aumenta a arrecadação. Mas, como o orçamento estará obrigatoriamente congelado pela PEC, esse aumento não poderá ser destinado a investimentos sociais. Para onde irá, então? Para a parte da despesa não afetada pelo teto: o pagamento de juros da dívida pública ao capital financeiro. Ou seja, toda receita pública resultante do crescimento da economia será apropriada para remunerar bancos e demais detentores dos títulos do Estado, com o argumento de redução da dívida pública.
O “Novo Regime Fiscal”, apelido da PEC, é na verdade um novo apartheid social. O abismo da concentração de renda vai se ampliar. Os trabalhadores que ousaram melhorar de vida e exigir o acesso a serviços públicos serão atirados de volta à senzala. Como disse sem pudores o deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP): “Quem não tem dinheiro, não faz universidade”. E emendou: “os meus filhos têm e vão fazer”.
Assim será pelos próximos 20 anos, independentemente de quem esteja no governo. Nas próximas quatro eleições presidenciais, se aprovada a lei, os brasileiros não poderão escolher outro projeto, a não ser que três quintos do Congresso o resolvam. Um presidente que não foi eleito define a política econômica para os próximos quatro que o povo venha a eleger. E o voto de mais 50 milhões de pessoas terá de ser homologado por 308 deputados. Alguém ainda se atreverá a chamar isso de democracia?
Aos paneleiros dos Jardins, meus parabéns. Chegaram aonde queriam. Quem nas periferias aplaudiu ou permaneceu em sua indiferença, é hora de acordar, não? E antes que seja tarde demais.
A PEC terá segunda votação na Câmara e depois irá ao Senado. Se não for barrada por ampla mobilização popular, o sonho de milhões de brasileiros ficará congelado pelos próximos 20 anos.
ROBIN HOOD ÀS AVESSAS
por Eduardo Carli para A Casa de Vidro
Imagine um candidato à presidência da república que, em sua campanha eleitoral, apresentasse à população um programa de governo em que Saúde e Educação fossem apresentados como áreas tão secundárias, tão desimportantes, tão sacrificáveis, que merecessem ter os recursos públicos a elas dedicados – atualmente já bastante escassos, consideradas as autênticas necessidades da população – “congelados” por 20 anos. O hipotético candidato que se apresentasse à população como exterminador confesso de um futuro melhor para a Saúde e a Educação públicas quase certamente seria repudiado pelas urnas e não conseguiria ser eleito.
Mas, como se sabe, quem não tem voto… caça com golpe. O usurpador Michel Temer (PMDB), triunfante após o golpe de Estado perpetrado pelo conluio parlamentar-empresarial-midiático, pretende agora implantar ditatorialmente uma “reforma” na Constituição de 1988 que jamais teria o aval das urnas.
A PEC 241 pretende instaurar uma era glacial para os direitos sociais mais elementares da população brasileira, uma verdadeira Doutrina do Choque que lembra as políticas de Pinochet, no Chile, após a derrubada do regime de Salvador Allende, quando a doutrina ultraliberal de Milton Friedman e dos Chicago Boys foi enfiada goela abaixo dos chilenos por um governo terrorista, torturador e genocida.
Recentemente, o golpista-engravatado Michel Temer cometeu sincericídio diante de empresários ao confessar que a derrubada de Dilma Rousseff se deu pela recusa desta em implantar o programa “Ponte Para o Futuro” (do PMDB) – o célebre atalho para o abismo que está sendo proposto como salvação nacional. A Ponte Para o Abismo do PMDBismo golpista e seus sócios da elite endinheirada pretende instaurar um regime de Austeridade e Retrocesso, praticando um Robin Hood às avessas: tirar dos pobres para dar aos ricos; aniquilar saúde, educação e assistência social para continuar pagando centenas de bilhões de reais aos banqueiros em juros. O nome real disso que pelo Golpe está sendo proposto é Genocídio. Ninguém “tesoura” a Saúde Pública sem acarretar sofrimento em cataratas e mortes às mancheias. Caminhamos rumo à distopia yankee documentada por Sicko, o doc de Michael Moore.
Em seu texto “PEC 241: de volta à terapia de choque”, Rejane Carolina Hoeveler, no Blog de Junho, faz um link oportuno entre a nossa situação atual e os cenários distópicos revelados pela obra “da jornalista Naomi Klein, que em seu livro de 2008 mostrou como a adoção das políticas neoliberais na maior parte do mundo esteve indispensavelmente associada a um aumento exponencial da repressão estatal, ou a governos ilegítimos. A Proposta de Emenda Constitucional número 241, que tramita em regime especial na Câmara dos Deputados, é a mais recente arma de choque da terapia administrada em quase todas as partes do globo que viveram crises capitalistas nas últimas décadas. Talvez não seja casual que ela esteja em vias de ser aprovada por um governo ilegítimo, desobrigado de aplauso popular para se manter no poder. A PEC 241 determina explicitamente a proibição de qualquer aumento real nos investimentos estatais em direitos sociais, políticas públicas e seguridade social por vinte anos no Brasil…” (PROSSIGA A LEITURA: http://blogjunho.com.br/pec-241-de-volta-a-terapia-de-choque/)
Pois bem: duas décadas sem aumento de investimento estatal em escolas e hospitais é o que propõem estes senhores da “Ordem e do Progresso” – e já se vê que o slogan “Pátria Educadora”, do governo Dilma, foi lançado à lata de lixo da História. Esta Doutrina do Choque, afinada ao credo ultraliberal do Estado Mínimo, ronda-nos agora como um abutre palpável sob a figura sinistra da PEC 241/2016, uma das primeiras propostas que serão votadas naquele mesmo Parlamento que deu o putsch no governo Dilma.
Os prognósticos são péssimos, pois a PEC será votado naquele mesmo Parlamento todo dominado pelas bancadas BBBB (Banco, Bala, Boi, Bíblia… Brrrrasil-sil-sil!), naquele mesmo Parlamento tão infestado de ratos interesseiros e canalhocratas de profissão que, para além de um Golpe de Estado contra a presidenta eleita, também aprovaram medidas como o fim do licenciamento ambiental de obras com potencial impacto socioambiental negativo (ou mesmo devastador). O mar de lama tóxica que assassinou o Rio Doce, além do oceano de torpeza e crueldade dos parlamentares golpistas, vai empurrando o país para uma crise civilizacional que alguns já prevêem similar à da Grécia. O descalabro e a barbárie são tamanhos que, dias depois de consumado o golpeachment, na calada da noite, o sindicato de ladrões quis anistiar os crimes de “caixa 2” de que são culpados tantos dos senhores que votaram pela condenação de Dilma. Diante de tal cenário, o pesadelo da aprovação da PEC 241 é real.
O atentado aos direitos humanos mais básicos que está a nos ameaçar com a PEC 241 é uma barbaridade tão imensa que é difícil compreender como algum governante tem a pachorra de propor algo do tipo em um contexto de conflagração e polarização sociais tão intensas (terá que encarar agora não somente as manifestações de ruas, mas as greves e as ocupações de escolas, numa perspectiva de acirramento dos enfrentamentos entre o governo federal usurpador e ilegítimo com os movimentos sociais, estudantis, sindicais etc). O Brasil é um barril de pólvora sem escassez de faíscas e fagulhas.
Quando dizemos que o fascismo saiu do armário, é um pouco por causa destas desumanidades escancaradas, por estas propostas de uma Direita que se explicita como tal ao cuspir e escarrar sobre aquilo que deveria ser uma das funções mais quintessenciais do Estado como gestor do bem público e do mundo comum. Nada de fala, no discurso dos golpistas, sobre o combate aos sonegadores de impostos, sobre a tributação das grandes fortunas, sobre a auditoria da dívida pública, sobre os obscenos lucros dos banqueiros, tudo isto deve permanecer intacto para que nosso modelo de Capitalismo Selvagem possa prosseguir seu rumo (que é, evidente, o rumo da Barbárie). Ao invés de aprimorar hospitais e escolas, expandir a rede pública de atendimento via SUS, prosseguir a construção de novas universidades federais e I.F.s, melhorar condições de trabalho de professores, médicos, enfermeiras, ou seja, aumentar os recursos investidos em áreas tão quintessenciais para a qualidade de vida e para o futuro digno de qualquer país, os golpistas que assaltaram o Estado pretendem cometer uma espécie de atentado terrorista contra a Educação e a Saúde.
Ademais, a medida equivale a um genocídio gradualizado, já que a tendência demográfica brasileira é de aumento populacional, e por isso o termo “congelamento” é enganador, eufemístico, pois de fato estamos falando de recursos que serão bem mais escassos para atender a uma população que será maior. Como aponta matéria do Justificando:
“Segundo o IBGE, no ano 2000 o Brasil tinha pouco mais de 173 milhões de habitantes, encontrando-se atualmente com 206 milhões, com uma perspectiva de atingir a marca de 220 milhões em 2027 (dez anos após a vigência da PEC 241), significando que o Estado precisará aumentar os gastos com a prestação de serviços públicos.
Aléem disso foi escolhido o orçamento do ano de 2016 como parâmetro. Ora, esse ano é trágico, marcado por um agressivo corte orçamentário, atingindo as áreas de Educação, Saúde e Judiciário. O Ministério da Saúde sofreu um corte de R$ 2,5 bilhões, em um orçamento bastante semelhante ao ano anterior, enquanto que a Justiça Federal teve um corte de quase 40% e a Justiça do Trabalho de cerca de 45%. Já o Ministério da Educação teve um bloqueio de R$ 1,3 bilhão. Definir um ano deficitário como paradigma do congelamento não é nada razoável!
O Governo se defende. Pretende, com a PEC 241, diminuir os gastos públicos, para fins de gerar superávit primário, permitindo o pagamento dos juros da dívida e melhorando a letra de crédito do Brasil. Mas como diminuir as despesas públicas de educação, saúde e outros serviços em um país com tamanha concentração de renda? No Brasil, 1% dos mais ricos detém 27% de toda a renda, um dos maiores índices de concentração do mundo. Isso tem consequências: aumento da pobreza e, por isso, também da necessidade de criação de políticas públicas, implicando em crescimento das despesas do Estado. Conforme a Agência Nacional de Saúde, 75% dos brasileiros são usuários do SUS. Além disso, a atual crise econômica e o desemprego aumentarão esse número, visto que outros brasileiros cancelarão seus planos de saúde.
(…) Não se está aqui a advogar a desnecessidade de um ajuste fiscal nas contas públicas, porém a forma escolhida pelo Governo Temer pretende amputar direitos, penalizando uma população numerosa e necessitada, ao invés de colocar a conta para as elites do país. Por que não priorizar a cobrança da dívida dos devedores com o Governo federal que, aliás, ultrapassou R$ 1 trilhão? Um dos diretores da Fiesp, por exemplo, possui uma dívida de cerca de R$ 6,9 bilhões. Por que não taxar as grandes fortunas do país?
A corda está arrebentando do lado mais fraco, como sempre!”
No texto da Rejane no Blog de Junho, também está muito bem explicado porque a PEC 241 representa algo que arrebenta com os mais vulneráveis, enquanto permite benesses e privilégios aos peixes-grandes (banqueiros, investidores da Bolsa, grandes capitalistas que jogam com a economia como se esta fosse um cassino etc.):
“Sintomaticamente, a PEC não prevê limite algum para o maior gasto público atualmente vigente no Brasil: o pagamento da dívida externa e interna, que já consome atualmente quase metade do orçamento federal. Na justificativa da PEC, a prioridade no pagamento da dívida é de fato ressaltada em diversos trechos. Esse ponto deixa claro que o objetivo central não é exatamente o equilíbrio fiscal – o qual poderia ser alcançado por meio de outras vias, como através de uma reforma tributária com imposto progressivo – mas sim, o bolso dos rentistas brasileiros e estrangeiros que aplicam nos títulos da dívida.
(…) Ao contrário do que pregam os defensores do eufemístico “ajuste fiscal”, o resultado dessa PEC não será apenas um “congelamento” dos serviços tal como eles se encontram, como se tudo fosse continuar mais ou menos como está. Isso porque, como a demanda pelos serviços públicos só tende a aumentar, o não-aumento do financiamento implicará numa queda drástica de sua oferta e qualidade.
Tomemos como exemplo o serviço público de saúde, do qual dependem, de maneira exclusiva, oito em cada dez brasileiros. Segundo os números atuais do IBGE, nos próximos vinte anos a população idosa brasileira vai dobrar, sem contar o crescimento populacional vegetativo normal, calculado em 9%. Isso exigiria um aumento real do valor per capita destinado para a saúde pelo menos proporcional ao gasto de hoje – o qual já está bem aquém do suficiente. Se a PEC 241 for aprovada, daqui a vinte anos, em 2037, o SUS estará recebendo o mesmo volume de recursos aplicado hoje, em 2017, com apenas uma correção monetária, calculada de acordo com o índice de inflação do ano anterior.
Segundo estimativas do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e do Conselho Nacional de Secretarias Estaduais de Saúde (Conass), a PEC representará retração de R$ 654 bilhões nos recursos para a saúde, representando um golpe de morte de um SUS que praticamente já respira por aparelhos. A projeção desses órgãos é que, pela regra da PEC, a saúde receberá R$ 2,82 bilhões a menos já em 2017, R$ 31 bilhões a menos em 2026, chegando a R$ 59 bilhões em 2036. No período, a redução ano a ano em relação à regra atual acumularia R$ 654 bilhões.”
Por essas e outras, é preciso construir uma grande mobilização nacional, com greve geral, ocupações de escolas, manifestações contundentes, pressões sobre parlamentares e ministérios, numa urgente e inadiável frente para barrar esta PEC da Maldade e todo o resto do tsunami de retrocessos.
As questões e as conclusões de Vladimir Safatle impõe-se como cruciais: “já que estamos em crise, que tal exigir que donos de jatos, helicópteros e iates paguem IPVA, que igrejas paguem IPTU, que grandes fortunas paguem imposto, que bancos com lucros exorbitantes tenham limitações de ganho, que aqueles que mais movimentam contas bancárias paguem CPMF?
É claro que nada disso será feito, pois o Brasil não tem mais governo, não tem mais presidente e tem uma democracia de fachada. O que o Brasil tem atualmente é um regime de exceção econômica comandado por uma junta financeira.” (SAFATLE)
Os temerários assaltantes do poder pretendem impor esta barbárie ordenada pela junta financeira que ora nos (des)governa, à margem das urnas, num estupro da democracia e da Constituição cujo estrago será pago pelas próximas gerações. Agora é a hora de confrontar, inclusive com as armas da desobediência civil, da guerrilha midiática e da contracultura inventiva e combativa aqueles que enxergam o Estado como mero balcão de negócios de um capitalismo perverso e excludente – aqueles que agora dominam o leme do Estado após a fraude grotesca do golpeachment. A luta vai ser longa, dura e cheia de reveses. Mas a apatia e o conformismo, numa situação histórica dessas, equivaleria a uma cumplicidade com o genocídio do futuro que está sendo patrocinado pelos pontas-de-lança do golpe de Estado. Resistamos!
Exatamente como em 1964, coube de novo à mídia hegemônica brasileira o papel vexaminoso de dar suporte a um governo que chegou ao poder sem passar pelas urnas. Enquanto veículos de comunicação do mundo inteiro questionam o processo pelo qual uma presidenta honesta foi arrancada do cargo, os daqui apenas se calam e trabalham diuturnamente para conferir legitimidade a um governo ilegítimo. Mesmo a Folha de S.Paulo, que publicou as conversas entre políticos investigados na Lava Jato (todos agora confortavelmente aboletados no Governo Federal) que evidenciam a existência de um complô para derrubar Dilma, é incapaz de se dignar a defendê-la. Ora, se houve uma conspiração e se todos os que participaram dela são cúmplices, o que se pode dizer de uma mídia que apoiou esta conspiração?
O jornalismo brasileiro vive um dos mais ignóbeis períodos de sua história. Não só se transformou, em pouquíssimo tempo, em uma imprensa adesista, como se mostra disposta a omitir, escamotear e falsear fatos no intuito de defender os golpistas. Qualquer pessoa que se colocar no caminho da mídia hegemônica e seu apoio ao governo ilegítimo de Temer terá sua reputação atirada no lixo. E dizem que é o PT quem possui uma “máquina de moer reputações”… Escrevo este artigo sob o forte impacto do editorial do Estadão que atacou abertamente um trabalhador da notícia, o jornalista norte-americano Glenn Greenwald. Autor das reportagens que revelaram as escutas do governo dos EUA sobre o mundo, Greenwald mora no Rio de Janeiro e tem criticado o golpe parlamentar que se deu no Brasil. Como quem joga carne fresca às hienas, o Estadão o chamou de “ativista”, dando brecha a uma possível tentativa de expulsá-lo do País, já que a atividade política é vedada a estrangeiros.
“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”, dizia Marx. Como não recordar neste momento a trajetória de Samuel Wainer (1910 – 1980), o menino pobre do Bom Retiro que construiu um império de comunicações, desafiando os ricos donos dos jornais brasileiros, e por isso foi perseguido sem trégua? A acusação é a mesma que certamente farão à Greenwald: quiseram expulsar Wainer do País por ser estrangeiro, nascido na antiga Bessarábia – o que só se comprovou como verdade após sua morte. Outra coincidência: assim como Greenwald e de forma diferente dos mesmos donos de jornais que apoiam o governo ilegítimo de Temer, Samuel Wainer se posicionou contrário ao golpe militar de 1964. A Última Hora, tal como foi criada, desapareceu, e junto com ela os jornais de oposição ao regime.
Tínhamos diários não alinhados com a ditadura além da Última Hora, como O Semanário e o Diário Carioca. Todos foram empastelados. É por essa razão que tantos países no mundo possuem jornais diários progressistas e o Brasil não. A Inglaterra tem, o Uruguai tem, a Itália tem, a França tem, os EUA têm… Em nosso País só sobreviveram os jornais de direita, que apoiaram o golpe. E que mal disfarçam o conservadorismo do seu DNA apelando a uma falsa pluralidade, dando espaço, em suas bolorentas páginas, a algum pensador de esquerda que ainda aceita participar dessa farsa. O lado bom dessa história toda é nos dar conta de que, mesmo sem lei de meios, a mídia de esquerda se consolidou e tem incomodado a direita e seus veículos de estimação. Fazemos muito barulho nas redes, a ponto de sermos atacados por jornalões centenários à beira da falência. A internet possibilitou que qualquer um possa ter seu próprio meio de comunicação, algo impensável no passado, e com custos muito menores do que os jornais convencionais, que necessitam de papel.
Pode-se dizer que as redes sociais fizeram uma democratização da mídia a fórceps. E é justamente por este perigo que representamos que prevejo dias difíceis para os jornalistas e blogueiros de oposição. Tentarão nos calar de todas as formas. Os processos judiciais se somarão às batidas acusações de que recebemos dinheiro para pensar como pensamos e defender o que defendemos (nos julgam pelo que são). Todo blogueiro e jornalista independente deve tomar muito cuidado com as palavras agora. Governos ilegítimos adoram a censura. Confesso que ainda me choca, como jornalista, assistir os principais veículos de comunicação do País passarem da oposição à adulação em um piscar de olhos. Vamos ver o que o governo de Michel Temer dará à atual mídia chapa branca como recompensa. Será o suficiente para salvar a carcomida imprensa da falência? Duvido. Ninguém mais quer ler isso. Desde que o PT chegou ao poder, em 2003, que jornais, TVs e revistas esqueceram o jornalismo para se transformarem em panfletos de oposição. Jornalismo se faz com boas histórias, não só com denuncismo.
Não é à toa que os leitores vêm minguando ao longo desta última década, e continuarão a minguar. Não há qualquer perspectiva de melhora na qualidade do jornalismo produzido ali. A novidade, o frescor, está no digital e nas iniciativas independentes. Ao longo destes anos petistas, a mídia hegemônica ganhou o nada honroso apelido de PIG (Partido da Imprensa Golpista), que sempre refutou. Agora que participou ativamente de outra deposição de chefe de Estado legitimamente eleito, não há como fugir. O epíteto de PIG cabe à perfeição na velha mídia brasileira. E poderá lhe servir de epitáfio.
Ao que tudo indica, a classe média que serviu de massa de manobra para o golpe tornou-se uma autêntica classe mídia, e isso tem que ser entendido a partir do mainstream que dominou no Brasil nos últimos anos. Para essa nova classe mídia, a televisão foi, em especial na última década e meia, um vasto campo de extermínio mental. Um dos efeitos dessa liquidação em massa da inteligência foi o ódio à cultura. Basta atentar para a perseguição aos artistas, chamados de vagabundos, ao clima de caça às bruxas instaurado contra a Lei Rouanet, às agressões à classe artística nas redes sociais.
É difícil, porque vivemos todos sob o peso dessa atmosfera, ganhar a distância suficiente para fazer o diagnóstico desse período. Mas podemos esboçar um breve inventário da tragédia que foi a programação servida na mesa durante a última década e meia. Tomo esse período de uma década e meia porque já estamos na 16ª edição do Big Brother, portanto, já temos quase uma geração de brasileiros que nasceu e cresceu sob esse império da visibilidade, da invasão de privacidade, do desejo de devassar com o olhar espaços que, em principio, estariam resguardados dessa intrusão.
Entre outras coisas, talvez sejam esses dezesseis anos de Big Brother, mas não só eles, que tornaram tão aceitáveis os vazamentos de delações premiadas (e até as próprias delações), a divulgação de conversas grampeadas, a exposição de espaços privados (como o interior dos cômodos do sítio que a Lava Jato quer que seja de Lula a qualquer preço). Sem os vícios adquiridos nesses anos de reality shows, seria difícil que não soasse repulsivo à maioria dos brasileiros esse regime de invasão, espionagem e divulgação criminosa. Mas a mídia nos anestesiou contra a indignação.
Para se ter um breve vislumbre da dimensão do poder de impacto dessas mídias, é bom ter presente que o Brasil tinha em 2014, só contando as TVs comerciais, 6.197 retransmissoras, com 272 geradoras sendo 39 com sinal digital. A Rede Globo sozinha controla 124 dessas emissoras. Já para as rádios, contando apenas AM e FM, as emissoras chegam a 3.089. Dessas rádios, a Globo informa possuir 11 emissoras próprias e 61 afiliadas. Esses números não deixam dúvidas quanto ao poder e ao impacto dessa mídia privada para impor interesses e reduzir as cabeças.
Mas o mais nefasto é quando se constata que o poder de fogo da artilharia pesada desse aparato da mídia se concentra em uma programação extremamente tóxica. O inventário que faremos aqui está longe de ser exaustivo. Vejamos:
1) Tivemos 16 anos de Big Brother Brasil, aos quais se deve acrescentar as inúmeras outras variações do modelo reality show no país. Uma wiki dedicada ao tema lista nada mais nada menos que 86 programas nessa modalidade no período. O que isso representa em termos de idiotização em massa está na casa do imponderável ou dos números astronômicos. O pior é a avidez pela privacidade alheia, a incitação do desejo de sobrepujar qualquer barreira posta à visão. O que esse modelo constrói é um tipo de delinquência visual que, no fundo, nos ensina que nenhuma interdição (e as leis são interdições) devem ser respeitada.
2) Outro feijão com arroz na telas dos brasileiros tem sido o telejornalismo policial em programas como Cidade Alerta, Brasil Urgente e Linha Direta, que celebrizaram o tipo de narrador autoritário, grosseiro, que simula uma caricatura de apresentador mais próxima de um bicheiro que de um comunicador de massa. Além dos clássicos das grandes emissoras, como Datena, o formato se reproduz às centenas pelo país inteiro, em não só na TV mas também na forma do radiojornalismo policial. O medo de ser vítima daqueles tantos crimes narrados diariamente e a busca de proteção em figuras fortes (teatralizadas pelos próprios apresentadores), é um ingrediente antidemocrático. Tanto pela descrença que infunde – e uma persistente aversão aos direitos humanos, alimentada pelo bordão de que só se protege o bandido e não o “homem de bem” –, quanto pela ideia de que a solução para o crime passaria por alguma figura autoritária (juiz, justiceiro, delegado, etc.) que poria fim ao estado de violência. O debate sobre as origens da violência, o debate público e qualificado, não tem lugar nessa programação.
3) O veneno é servido na mesa também na forma dos programas humorísticos que, sob o manto da crítica ao politicamente correto, investem na propagação do assédio moral (Danilo Gentili, Rafinha Bastos, o falecido CQC, o Pânico, etc.). Uma das faces interessantes desse humorismo é que se apresenta como moderno e inovador quando, na verdade, reedita e até agrava os defeitos do velho humorismo tacanho. Lembrem-se das diversas piadas sobre o estupro protagonizadas por Danilo Gentili. Um exemplo é a piada contada e recontada em inúmeros shows pelo Brasil, um clássico da imbecilidade, desde 2011:
“─ Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia… Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade. Homem que fez isso não merece cadeia, merece um abraço.”
Essa dose cavalar de insensatez foi reprisada em uma das pérolas do humorista em 2012, seguindo o mesmo padrão de apologia à violência sexual contra a mulher: “Um cara esperou uma gostosa ficar bêbada pra transar com ela. Todos sabemos o nome que se dá para um cara desses: gênio. “
Lembremos também que Gentili é uma das figuras que, através de diversas investidas grotescas, reeditou as práticas racistas que explodiram nas redes nos últimos anos. A sua ‘piada’ perguntando a um rapaz negro que o questionava no Twitter quantas bananas queria para acabar com uma discussão, foi um marco nesse sentido. Não há surpresa, principalmente depois que o caso foi julgado e o humorista absolvido por um juiz bem humorado, em que atrizes, apresentadoras e cantoras negras tenham sofrido barbaramente nas mãos dos racistas nos últimos meses.
4) Um enorme reforço a essa tendência racista vem com a predominância na TV brasileira das apresentadoras louras, por um lado, e da quase exclusão completa das negras, de outro. Não se discute a qualidade ou o talento, mas apenas o fato de que a TV insista em privilegiar e impor um único modelo de beleza através da seleção de apresentadoras louras: Angélica, Xuxa, Eliane, Adriane Galisteu, Ana Maria Braga, Ana Hickmann, Sheherazad, Andressa Urach, etc. O mais trágico, nesse caso, é que esse modelo se repete numa infinidade de programas locais, tanto na modalidade do entretenimento quanto nas bancadas dos telejornais regionais. Além dos nomes citados, o Brasil tem hoje centenas de apresentadores louras que se sucedem ao longo do dia nas telas de muitos milhões de espectadores pelo país afora.
E que ninguém diga que a televisão brasileira, ao conceder esse monopólio às louras, segue uma tendência internacional. Muito pelo contrário. A apresentadora mais bem paga do mundo, e mais conhecida na atualidade, é Oprah Winfrey, uma mulher negra e de meia idade.
5) Outro aspecto significativo dessa mídia é transformação crescente dos Portais em locais de exposição de corpos femininos, retalhados segundo uma lógica de fragmentação mental semelhante a que exibe peças de carne em um açougue. A mulher é exposta em partes (“barriga”, “bumbum”, “coxas”, etc.) sobre as quais se aplicam rótulos classificatórios (por exemplo, a barriga é rotulada como barriga sarada, barriga negativa, barriga trincada, barriga chapada, barriga tanquinho, barriga definida, barriga perfeita, etc. ). Cada vez mais se impõe um modelo que se assemelha aos manequins de vitrine, quer dizer, como um objeto sem vida. O interessante desse modelo de corpo, o que faz dele um modelo de corpo morto, é que ele desconhece duas coisas, essenciais na beleza dos corpos vivos: o detalhe e os gestos. O detalhe é o que uma percepção sensível apreende no outro e que são singularidades intransferíveis (a beleza de uma boca, um nariz, ombros, de sardas, de tonalidade da pele, etc.). O gesto, evidentemente, é a expressão de um corpo com a carga de personalidade que ele carrega. A destruição dessas referências é um modo de privar os espectadores do conhecimento e da experiência, e colocar em seu lugar algo que qualquer imbecil pode reconhecer e valorizar e que, na verdade, só reconhece e valoriza porque é imbecil (o corpo sarado, a barriga trincada, etc.).
O que tem de monstruoso e trágico nessa compreensão do corpo ficou patente justamente com um dos produtos extremos dessa nossa mídia nos últimos tempos, a história da modelo e apresentadora Andressa Urach. O regime químico monstruoso ao qual submeteu seu corpo, para se enquadrar e se manter dentro de certa estética do corpo objeto, foi denunciado pela própria degradação física extrema que acabou por se manifestar. E o espetáculo chegou ao flerte total com o horror, quando a modelo posou no hospital e vendeu as imagens das suas chagas. E nisso, na verdade, não poderia haver nada de errado já que era o mesmo comércio do corpo que ela fazia enquanto apresentadora e musa e, como confessou em livro logo depois, também como prostituta. Enfim, o modelo do corpo parcelado e vendido nos Portais talvez tenha mesmo por base, como seu modelo implícito, o mercado da prostituição. E ao tentar seduzir o leitor através da venalidade desses corpos retalhados, a mídia não faz outra coisa que degradar a sociedade num imenso sistema de meretrício.
6) Muito próximas dessa exibição do corpo como objeto aparecem ainda duas modalidades de exposição violadora: a dos assassinatos flagrados por câmeras de segurança e a de cadáveres originados de mortes violentas, seja de crimes ou acidentes de trânsito. Esta segundo modalidade não é o carro chefe das redes nacionais de TV e dos grandes portais na internet, mas não está ausente deles, aparecendo com relativa frequência. Já nas televisões regionais, em especial no interior do país e nos programas do telejornalismo policial, chega-se ao paroxismo de exibir da forma mais crua corpos mutilados, vítimas agonizantes, etc. É uma normalização do obsceno em grande escala. Nessa obscenidade os grandes portais investem também, mas o fazem através daquela primeira modalidade, a dos vídeos das câmeras de segurança. A diferença é que em grande parte dos casos, os assassinatos das câmaras de segurança são encobertos. Há alguns anos era comum que fossem apresentados mas hoje, com o público já viciado, basta apresentar algumas cenas do que as câmeras registraram.
O quadro geral é esse. Muitas coisas poderiam ser acrescentadas a ele. Por exemplo, o imenso universo do que Manuel Castells chamou de auto-comunicação de massas (as redes, os blogs, o compartilhamento de mensagens, vídeos e imagens pelos celulares, etc.). Se entrássemos aqui o horror só faria crescer. Certamente, nesse caso, temos também muitas tendências de uma nova mídia, livre dos vícios nefastos da grande mídia brasileira. Contudo, viceja ai também o pântano da submídia que repercute, até de forma mais chocante, o universo da violência presente nas grandes redes.
Muito provavelmente, sem que a percepção fosse trabalhada maciçamente por essas formas que violam o pensamento, a compreensão, o gosto, a experiência do que é aceitável e do que não é, as interdições em relação ao mundo público e ao mundo privado, e que promovem atitudes e personagens antidemocráticos, o golpe não teria espaço para vingar no Brasil. Compreender as diversas regressões mentais, sociais, políticas e estéticas operadas pela mídia dominante no Brasil é a tarefa prévia para imaginar um sistema de comunicação democrático. Certamente, se houver luz e câmera no final do túnel escuro que atravessamos hoje, não bastará que a comunicação ganhe caráter público. Ela terá que começar encontrando formas de curar as lesões profundas causadas por esses anos em que, para a maior parte da população brasileira, a mídia tem funcionado como um campo de extermínio mental.
— Chega de hipocrisia: a Guerra às Drogas mata pobre todo dia”; “Ei, polícia, maconha é uma delícia!”; “Dilma Rousseff, legaliza o beck!”; “Mais Conha, menos Cunha!”; “Uh, legaliza! Uh, legaliza!”; “E se legalizar, ôlê olê olá! Eu vou plantar!” Estas e outras bandeiras e brados deram o tom dos agitos cívicos da #MarchaDaMaconha 2016, em Goiânia, tema de meu mais recente experimento na arte do Mídia Ninjismo (assista abaixo).
Organizada pelo coletivo antiproibicionista MenteSativa, a marcha dos diambeiros chegou à sua 6ª edição na capital de Goiás com significativa manifestação. Neste curta-metragem, de 10 minutos, confira um pouco do que rolou nas ruas neste dia em que a galera, cheia de rastaman vibrations,queimando tudo até a última ponta, com a cabeça ativa e a mente aguçada pelo influxo da cannabis sativa, voltou a demandar a legalização da erva em uma pacífica procissão anarco-democrática.
A GUERRA ÀS DROGAS TÁ MATANDO GERAL (2016, 10 min, #VideoJoint)
Semanas atrás, milhares de Cheechs e Chongs estiveram lá celebrando o redivivo Planet Hemp, que chaqualhou o Centro Cultural Oscar Niemeyer em estrondoso show no Bananada, mostrando toda a força quase Rage Against Machiníca desta banda que sem dúvida está entre o que o rock brasileiro produziu de mais maravilhosamente insurgente, subversivo e sagazmente informado. Acredito que um pouco da vibe de união maconheira que teve status de headliner no festival produzido pel’A Construtora Música e Cultura acabou transbordando para as ruas, emprestando vigor e ímpeto à marcha, bastante espontaneísta e imprevisível, mas sempre contundente e contestatória.
PLANET HEMP – “A Culpa é de Quem?” Live at BANANADA
Os manifestantes reuniram-se na Praça Cívica às 16h20, para oficina de cartazes e outros leros, e depois mandaram seu recado itinerante até a Praça Cívica e arredores, gritando #ForaTemer, criticando o novo ministro-proibicionista do regime Golpista (Osmar Terra) e reclamando pela desmilitarização da polícia. “Sem hipocrisia! A guerra às drogas mata pobre todo dia!” – ribombou o clamor popular pelas ruas do Centro. Na Devastolândia do regime instaurado pelo coup d’état parlamentar-empresarial-midiáticoem curso, o (des)governo do Mr Biônico e seu Sinistério dos Machos Mofados, as notícias são péssimas também para os maconheiros (e para quem quer que defenda uma política pública sobre drogas menos estúpida, contraproducente e genocida do que a vigente):
OSMAR TERRA E O RETROCESSO NA POLÍTICA DE DROGAS:
Crítico ferrenho da descriminalização do uso de entorpecentes, ministro do Desenvolvimento Social e Agrário usa seu poder para frear avanços
“Embora não ocupe uma posição de liderança no debate sobre a política de drogas brasileira, o ministro do Desenvolvimento Social e Agrário (MDS) do governo interino, Osmar Terra (PMDB-RS), já usa o poder do cargo para impor suas convicções a respeito do tema. Crítico contumaz da descriminalização do consumo de drogas, o médico, que estava no quinto mandato como deputado federal pelo Rio Grande do Sul, é autor de um projeto de lei que prevê aumento da pena para tráfico e internação compulsória de dependentes químicos.” SAIBA MAIS
Um dos maiores méritos do movimento social maconheiro é expressar discórdia em relação a uma lei vigente de modo criativo, construtivo, a um só tempo combativo e festivo. Na Marcha da Maconha ouve-se aquele coro poderoso de vozes, levantando-se em comum para em alto e bom som criticar o desvario do proibicionismo autoritário, demandar o direito à informação verídica sobre os efeitos psicosomáticos e bioquímicos propiciados pelo THC, apontar os possíveis benefícios terapêuticos e econômicos duma eventual regulamentação do plantio e comércio do cânhamo, entre outras pautas conexas.
A demanda é por conhecimento, e pelo direito a conhecer através dos métodos, arcaicos e para muitos povos sagrados, que incluem a ingestão de substância psicodelizantes e expansoras da consciência. A demanda é pelo respeito às toneladas de conhecimento científico que já se acumulou sobre os numerosos benefícios à saúde que esta medicina natural de milênios propicia tempos afora (são milênios de usufruto, apenas décadas de proibição). A demanda é por um poder público menos tacanho e truculento em sua sanha de brucutu policialesco, por uma atitude mais lúcida e sábia que tem como ícones Pepe Mujica, no Uruguai, ou o sistema de Portugal (que mereceu até as atenções de Michael Moore em seu novo documentário, Where To Invade Next, em que o documentarista fanfarrão brinca de invadir outros países a fim de roubar boas ideias que deveriam ser aplicadas back home).
Renato Malcher-Lopes e Sidarta Ribeiro escreveram um livro extremamente meritório, a despeito de seu tamanho miúdo, para o debate público e a revolução de costumes que urge instaurar em nossa sociedade a respeito do cânhamo e um de seus produtos, a maconha. Maconha, Cérebro e Saúde tem todas as qualidades de um trabalho científico compenetrado, bem-informado, em que os dados empíricos e estatísticos são sempre refletidos em profundidade. Mas a preciosidade da obra está também no esforço de conscientização da opinião pública, um ímpeto que me convenceu que há um lume quase iluminista em muitas das mentes que hoje buscam dissipar as trevas da ignorância que mantêm tantos corações e mentes ainda presos ao obscurantismo da repressão absoluta e truculenta, do não brutal e autoritário, em relação a esta que é uma das espécies vegetais mais essenciais à história da Humanidade e às aventuras da Modernidade (que o digam as cordas de cânhamo sem as quais as caravelas dos Grandes Descobrimentos – na verdade gigantescas genocidas conquistas – não teriam vencido o oceano).
“Nunca foi tão oportuna quanto agora a discussão sobre os efeitos cerebrais e fisiológicos da Cannabis, popularmente conhecida como maconha. Se por um lado uma parcela da sociedade começa a questionar a pertinência das políticas públicas que criminalizam seu uso, por outro a ciência avança a passos largos para decifrar a enorme variedade de efeitos fisiológicos e psicológicos induzidos por seus princípios ativos. […] A maconha é uma das drogas recreativas mais usadas no mundo e está entre as mais antigas plantas domesticadas pelo homem. Esteve presente nos primórdios da agricultura, tecnologia, religiões e medicina. Testemunhos eloqüentes de seu impacto na civilização estão presentes nas escrituras sagradas e nos mais antigos documentos médicos das mais diversas culturas.
O número de artigos científicos publicados sobre o sistema canabinóide cresce linearmente a cada ano, de forma que a maconha protagoniza uma verdadeira revolução, representando uma das mais promissoras fronteiras no desenvolvimento da neurobiologia e da medicina. A descoberta dos endocanabinóides, ou seja, moléculas análogas aos princípios ativos da maconha, mas produzidas pelo próprio cérebro, é a grande novidade por trás dessa guinada científica. Neste início de século XXI, acredita-se que os canabinóides possam estar envolvidos na remodelação de circuitos neuronais, na extinção de memórias traumáticas, na formação de novas memórias e na proteção de neurônios. […] A desregulação do sistema canabinóide pode estar envolvida nas causas da depressão, dependência psicológica, epilepsia, esquizofrenia e doença de Parkinson.” (MALCHER-LOPES & SIDARTA RIBEIRO – Click para ler outros trechos de Maconha, Cérebro e Saúde)
Este é o segundo documentário que faço registrando uma Marcha da Maconha: alguns anos atrás, no ano que passamos em Toronto, registrei em 15 minutos os agitos da Global Marijuana March pelas ruas da metrópole canadense no documentário Cannabian Carnaval, publicado pela Mídia Ninja. Foi um dia memorável de experiência direta com o ativismo cannábico em um país que já possui uma legislação bem mais sábia do que a brasileira, sinal de que a militância pode ser cotidianizada e enxergar-se como tarefa do dia-a-dia, como se a exuberância dos sentidos e da razão propiciada pela cannabis sativa pudesse inspirar também a política a superar os cabrestos de suas ortodoxias estúpidas e ousar rumos melhores.
O Canadá foi o primeiro país do mundo a legalizar a maconha medicinal em 2001. O país também já regulamentou o plantio industrial de cânhamo (hemp), que desde 1998 é uma realidade na economia canadense. Mesmo com uma legislação relativamente avançada e tolerante, as vozes das ruas ainda são explícitas em gritar: ainda há muito chão pela frente. A política de Guerra às Drogas prossegue perseguindo e encarcerando usuários e cultivadores que não possuem prescrições médicas ou alvarás federais. Por essas e outras, mais de 10 mil pessoas tomaram as ruas da mais populosa cidade canadense no dia 03 de Maio de 2014. Mesmo debaixo de chuva e ventania, milhares se manifestaram em massa na 17ª edição anual da Marcha da Maconha de Toronto (Global Marijuana March).
Neste documentário curta-metragem, acompanhe alguns dos melhores momentos da Marcha, que concentrou-se no Queen’s Park e depois desfilou pelas ruas Bloor e Yonge, duas das mais importantes vias da metrópole. Toronto parou para ver o carnaval cannábico passar. O filme inclui entrevistas exclusivas com um ativista da organização internacional Dads for Marijuana; com uma trabalhadora de um Clube da Cannabis Medicinal (que auxilia pacientes no processo de conseguir prescrições médicas); com um cadeirante que se vale do uso da cannabis para melhorar sua condição de saúde; entre outras “figuras” que deram as caras neste mega-evento.
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II. HISTÓRIA DA MACONHA NO BRASIL
Uma das características mais recorrentes de um proibicionista bronco, truculentaço, é a ignorância histórica quanto ao papel que jogou o cânhamo na história da humanidade nos últimos 10.000 anos ou mais. E é justamente de um historiador brasileiro uma das obras mais interessantes publicadas nos últimos anos no país sobre o tema: falo de A História da Maconha no Brasil, de Jean Marcel Carvalho França.
FAPESP TV – Piratas: Além do Butim, por Jean Marcel Carvalho França
Professor de História do Brasil na Unesp (câmpus Franca-SP), Jean Marcel Carvalho França é autor de Piratas No Brasil, de A Construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII (José Olympio, 2012) e coautor de Três Vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro (Três Estrelas, 2012).
Nesta sua breve mas brilhante “biografia” da maconha em terra brasilis,ele realizou um “amplo e fascinante painel sobre o canabismo no Brasil – da Colônia ao século XXI -, composto a partir de detalhada pesquisa documental”, como destaca o texto da Editora Três Estrelas (saiba mais):
“Considerada no século XVIII uma planta de promissor futuro comercial, por causa da qualidade das suas fibras, a cannabis não vingou aqui como matéria-prima de cordas e tecidos, mas, sim, como um meio de relaxamento e devaneio. Associada, porém, aos hábitos dos escravos e aos vícios das ‘franjas da sociedade’, passou a ser atacada por médicos, juristas e políticos. Ópio dos pobres, veneno verde, cocaína do caboclo, erva maldita… Foram muitos os nomes pejorativos que a maconha recebeu ao longo da história brasileira até que, nos anos 1970, se iniciasse uma progressiva disposição para discriminalizar o seu uso e esvaziar o estigma que paira sobre seus consumidores.”
O livro traz curiosidades saborosas, como o fato de que a inovadora aventura de conhecimento coletivo que foi a Enciclopédia (1751 – 80)dos iluministas franceses, com editores-chefe em Diderot e D’Alembert, “consagra dois verbetes à cannabis” (FRANÇA: 2014, p. 23); que escreveram sobre experiências com haxixe figuras como Charles Baudelaire e Walter Benjamin; que a literatura de François Rabelais, autor de Gangântua e Pantagruel, inclui capítulos inteiros marcados pela presença do cânhamo, planta que é batizada pelo narrador de pantagruelion e é marcante na 3ª parte das narrações sobre os feitos de Pantagruel; que a palavra maconha surge como anagrama de cânhamo, uma origem etimológica muito graciosamente lúdica! (OBS: anagrama = transposição de letras de palavra ou frase para formar outra palavra ou frase diferente – Natércia, de Caterina; amor, de Roma ; Célia, de Alice etc. Na literatura brasileira um exemplo célebre é Iracema, de José de Alencar, anagrama de América.); dentre outros curiosos achados, fruto da pesquisa sagaz do autor.
Mas o foco de Jean Marcel Carvalho França não é nem o enciclopedismo nem o anedotário: ele faz crítica historiográfica, de primeira linha. Foca no fato sociológico de que os maconheiros foram estigmatizados por razões classistas e racistas, já que “a erva era supostamente apreciada pelos ‘pretos’ e pela gente pobre, que precisava, digamos, relaxar, pois, afinal, eram os pés e as mãos do senhor de engenho. Da tradicional cachaça e do apreciado tabaco o passado colonial legou-nos muitas informações” (p. 24) – já sobre a maconha, nosso saber é mais ralo, o que só torna mais meritório e relevante este livro. “Os homens de letras daqui, que não viam o canabismo como um exotismo importado do Oriente, pleno de mistérios, mas como hábito caseiro e vulgar, comum entre escravos e a gente dita de má vida, julgaram-nos indigno de ser relacionado entre as práticas de um intelectual ou de um artista de respeito.” Preconceito de letrados, racismo da elite cultural e econômica, estão na raiz do estigma contra a maconha e o maconheiro.
“Foram sem dúvida os africanos e seus descendentes que consolidaram o hábito do canabismo na sociedade local. Foi a eles que os brasileiros gradativamente associaram o gosto pela ‘diamba’ (bangue, maconha, fumo de Angola, pito de pango, riamba, liamba etc.) e seu consumo regular, recreativo e relaxante; e foram eles que os ‘doutores’ (psiquiatras e juristas) do início do século XX, ao promoverem um combate feroz ao canabismo, resolveram culpar por propagar o ‘nefando vício’ pela sociedade brasileira.” (FRANÇA. op cit, p. 28)
No Brasil do século 19 já se conheciam, em certos círculos, os potenciais terapêuticos da cannabis, tanto era assim que “remédios importados à base de cânhamo abundavam nas farmácias” e “feira e boticas vendiam montes de erva para combater um sem-número de males (de soluços a impotência).” (p. 32) Até Carlota Joaquina (1775 – 1830), já cinebiografada por Carla Camurati em filme de 1995, tendo que enfrentar, como todo e qualquer mortal, a aproximação da indesejada das gentes, recorreu à diamba, em 1830, como lenitivo no desfecho de seus dias:
“A Rainha, agonizante, chamou o seu fidelíssimo criado, o crioulo Felisbino, e lhe disse: Meu mal é de morte. Velha, doente e pobre, eu quero sucumbir com o orgulho da minha raça. Não quero morrer deitada. Uma rainha deve apresentar-se diante da morte com dignidade de soberana. Feito o desabafo, arrematou: Me traga aquele pacotinho de fibras de diamba com que mandamos para o inferno tantos inimigos. Lançando mão, então, de um chá que misturava diamba e arsênico, ‘a rainha morreu sem dor alguma’.” (p. 34) (Cf. romance histórico Os escândalos de Carlota Joaquina, de Assis Cintra.)
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e na compreensão desta práxis. [Karl Marx, 1845]
Combatendo a distorção e divulgação de notícias e conceitos falsos; Ocupando as redes sociais e denunciando moralistas e interesseiros de ocasião; Dialogando e formando amigos e conhecidos seduzidos por soluções autoritárias; Colaborando com ações e propostas conscientizadoras sobre as liberdades civis; Frequentando e defendendo os espaços plurais de produção, difusão e compartilhamento de saberes, conhecimentos e artes. RESISTA!