FEMINISMO ILUMINISTA EM FLOR: Conheça a vida breve mas ardente de Mary Wollstonecraft (1759 – 1797)

GALERIA TATE: Retrato de Mary Wollstonecraft (Mrs William Godwin), c.1790-1, por John Opie (1761-1807)

“O direito divino dos maridos, tal como o direito divino dos reis, pode, espera-se, nesta era esclarecida, ser contestado sem perigo.” – Wollstonecraft
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Wollstonecraft

Uma das pensadoras e escritoras mais brilhantes de sua época, a inglesa Mary Wollstonecraft (1759 – 1797), pioneira do Feminismo e uma das personagens mais luminosas do Século das Luzes, publicou seu clássico “Reivindicação Dos Direitos da Mulher” em 1792.

Era uma resposta à Constituição Francesa de 1791, que não incluía as mulheres na categoria de cidadãs, uma calamidade que ela não cessou de denunciar, inconformada “que metade da humanidade seja excluída pela outra metade de toda participação no governo” (situação também denunciada, na própria França, por Olympe de Gouges, decapitada pelos jacobinos em 1793https://bit.ly/2woCUcs).


No prefácio da edição em português do “Vindication of the Rights of Woman”, publicada pela Boitempo, sintetiza-se: “O livro denuncia os prejuízos trazidos pelo enclausuramento feminino na vida doméstica, a proibição do acesso a direitos básicos, em especial à educação formal, situação que fazia delas seres dependentes dos homens, submetidas a pais, maridos ou irmãos.” (MORAES, p. 07)

Corajosa ao confrontar as teses obscurantistas e machistas de grandes pensadores da época, como Jean-Jacques Rousseau, Mary Wollstonecraft soube polemizar, de cabeça erguida e argumentação arrojada, contra o tratado pedagógico “Emílio”, no qual Rousseau pregava a segregação de gênero na educação (Emílio e Sofia não sendo dignos, segundo o filósofo de Genebra, de uma educação igualitária):


“Rousseau declara que uma mulher não deveria sentir-se independente, que ela deveria ser governada pelo temor de exercitar sua astúcia natural e feita uma escrava coquete, a fim de tornar-se um objeto de desejo mais sedutor, uma companhia mais doce para o homem, quando este quiser relaxar… No que diz respeito ao caráter feminino, a obediência é a grande lição a ser inculcada com extremo rigor. Que bobagem!” – MARY WOLLSTONECRAFT (p. 47)

Casada com o livre-pensador anarquista William Godwin, Mary Wollstonecraft faleceu muito jovem, aos 38 anos de idade, poucos dias após o parto de sua filha, aquela que viria a ser Mary Shelley, autora de “Frankenstein” e esposa do poeta Percy Shelley (também morto prematuramente). Mary Shelley, mesmo sem ter conhecido sua mãe (e xará) Mary Wollstonecraft, honraria a trajetória de sua mãe com a pena em punho.

Mary Wollstonecraft retratada em pintura de John Opie

 

Luis Felipe Miguel nos ensina que “Mary Wollstonecraft (1759-1797) é geralmente considerada – por boas razões – a fundadora do feminismo. Seu pensamento marca a primeira elaboração sistemática de um entendimento das raízes da opressão sofrida pelas mulheres. Sua obra mais importante, Reivindicação dos direitos das mulheres (Editora Boitempo), foi publicada em 1792 e sofreu, também, o influxo da Revolução Francesa.

A autora havia publicado, dois anos antes, Reivindicação dos direitos do homem, como resposta às Considerações sobre a revolução em França, obra antirrevolucionária de Edmund Burke. Portanto, foi também a promessa de emancipação dos homens, pelos republicanos franceses, que levou Wollstonecraft a sistematizar suas reflexões sobre a necessidade de e os obstáculos para a emancipação das mulheres.

O programa dessa primeira fase do feminismo tinha como eixos a educação das mulheres, o direito ao voto e a igualdade no casamento, em particular o direito das mulheres casadas a dispor de suas propriedades. Ao colocar, com clareza exemplar, o problema em termos de direitos, Wollstonecraft promove uma inflexão na direção da construção de uma teoria política feminista. Ela é também uma autora singular pela maneira como, ao tratar dessas questões (com o foco voltado particularmente para a primeira delas), combina a adesão (quase inevitável) às ideias dominantes da época com elementos de inusual radicalidade.

É assim, por exemplo, que a demanda por educação tem por objetivo exclusivo permitir o livre desenvolvimento da mulher como ser racional, fortalecendo a virtude por meio do exercício da razão e tornando-a plenamente independente.

É evidente que as determinações sobrepostas das desigualdades de gênero, classe e raça não aparecem no feminismo do século XVIII e XIX da forma como foram desenvolvidas por parte das feministas posteriores. O próprio paralelo entre a situação das mulheres e dos escravos revela que as escravas não participavam do coletivo em nome do qual as sufragistas falavam.

Portrait of Sojourner Truth (ca. 1797-1883)

WIKIPÉDIA: Sojourner Truth, nascida Isabella Baumfree, foi uma abolicionista afro-americana e ativista dos direitos das mulheres..

“Uma feminista de trajetória invulgar como Sojourner Truth (c. 1797-1883), que foi escrava e empregada doméstica antes de se tornar oradora política, mostra que, se não era produzida uma reflexão aprofundada, ao menos havia, em parte do movimento de mulheres da época, uma sensibilidade para entender a condição feminina de forma bem mais complexa. Ela observou, em seu famoso discurso “Ain’t I a woman?”:

“Aquele homem diz que as mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, erguidas para passar sobre valas e receber os melhores lugares em todas as partes. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama nem me deu qualquer bom lugar! E eu não sou uma mulher? Olhem pra mim! Olhem pro meu braço! Tenho arado e plantado e recolhido em celeiros, e nenhum homem poderia me liderar! E eu não sou uma mulher? Posso trabalhar tanto quanto e comer tanto quanto um homem – quando consigo o que comer – e aguentar o chicote também! E eu não sou uma mulher? Dei à luz treze filhos e vi a grande maioria ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei com minha dor de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! E eu não sou uma mulher?” SOJOURNER TRUTH

In: MIGUEL, Luis Felipe. Boitempo, idem.)

SIGA VIAGEM:

Poeta e romancista Alice Walker, autora de “A Cor Púrpura”, lê o discurso de 1851 de Sojourner Truth. Evento: “Voices of a People’s History of the United States” (Howard Zinn and Anthony Arnove), Nov. 2006, em Berkeley, California.

Por outro lado, o século XIX viu também o surgimento de um feminismo socialista que, por conta da radicalidade de suas propostas, ficou à margem das correntes dominantes do sufragismo. Flora Tristan (1803-1844), figura pública e escritora influente em sua época, fez da situação da mulher trabalhadora um dos eixos centrais de seu tratado socialista utópico sobre a união operária, vinculando opressão de classe e de gênero.

FLORA (2011, 27 min)
Um filme de Lorena Stricker

ASSISTA AO FILME COMPLETO:

Já os escritos de Marx e Engels deixaram um legado ambíguo. Por um lado, fizeram a defesa ardorosa da igualdade entre homens e mulheres, que, com eles, tornou-se parte inextricável do projeto socialista. Por outro, tenderam a ler a dominação masculina como um subproduto da dominação burguesa, anulando a especificidade das questões de gênero que o feminismo sempre buscou destacar. Ainda assim, é impossível negar o impacto que uma obra como A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels, teve para vincular a organização da esfera doméstica à sociedade mais ampla.12

Na passagem do século XIX para o século XX, um corpo plural de pensamento feminista socialista se estabeleceu, incluindo bolcheviques como Clara Zetkin (1857-1933) e Alexandra Kollontai (1872-1952) ou anarquistas como Emma Goldman (1869-1940).”

LUIS FELIPE MIGUEL

* Este texto integra o livro Feminismo e política: uma introdução, de Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli, que reúne em 10 capítulos esquemáticos as principais contribuições da teoria política feminista produzida a partir dos anos 1980 e apresentam os termos em que os debates se colocam dentro do próprio feminismo, mapeando as posições das autoras e correntes atuais.

LEIA O ARTIGO NA ÍNTEGRA

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LEIA TAMBÉM – Por Diana Assunção

No fim do século XVIII, logo após a França ser palco da maior revolução burguesa da história, que exigia liberdade, igualdade e fraternidade, diversos questionamentos passaram a clamar pela extensão de tais direitos a toda a humanidade, e não apenas aos homens brancos europeus: o primeiro surgiu na colônia francesa no Haiti, que já em 1791 deu início à sua revolução negra; logo em seguida, em 1792, fez-se ouvir o protesto feminista de Mary Wollstonecraft, de Londres, que exigia justiça para as mulheres, excluídas do papel de cidadãs pela Constituição Francesa recém-promulgada.

Foram, portanto, as próprias ideias iluministas que influenciaram Mary a enfrentar grandes nomes como Jean-Jacques Rousseau e Denis Diderot, os quais, apesar de se basearem na razão, guardavam para a mulher um lugar inferior na sociedade. Mary Wollstonecraft sustentava que a dependência econômica das mulheres, bem como sua impossibilidade de acesso à educação racional, transformava-as em seres infantis e resignados.

A obra Reivindicação dos direitos da mulher é considerada uma das precursoras do feminismo, escrita em um momento anterior ao das grandes lutas proletárias, quando a burguesia ainda carregava uma missão revolucionária.

As ondas seguintes do feminismo internacional já teriam como palco o mundo capitalista, em que a burguesia não somente deixaria de ter papel revolucionário como conduziria a humanidade aos massacres das duas guerras mundiais, convertendo o mundo em uma suja prisão.

Para dar continuidade à obra de Mary Wollstonecraft, hoje o protesto feminista precisa ser também anticapitalista e se ligar à classe trabalhadora, a classe revolucionária da nossa época. É um grande acerto a Boitempo Editorial resgatar essa voz contra a cruel opressão cotidiana, uma voz que continua viva em milhões de mulheres – meninas, negras, indígenas e imigrantes em todo o mundo.

Diana Assunção

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Prefácio por Maria Lygia Quartim de Moraes

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Extraído do primeiro volume antologia de clássicos da literatura universal em quadrinhos Cânone gráfico, organizado por Russ Kick e publicado pelo Barricada, novo selo de HQs da Boitempo

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Para um estudo aprofundado sobre o pensamento feminista socialista do início da virada do século, recomendamos o fundamental Mulher, Estado e a Revolução: política da família Soviética e da vida social entre 1917 e 1936, da historiadora americana Wendy Goldman.

Leia também, no Blog da Boitempo: “Marx contra a opressão das mulheres“, em que Michael Löwy apresenta uma pequena e quase esquecida obra de Marx que “constitui um protesto apaixonado contra o patriarcado, a sujeição das mulheres – incluídas as “burguesas” – e a natureza opressiva da família burguesa.”

Confira o Dossiê FEMINISMO E POLÍTICA, no Blog da Boitempo, com artigos, vídeos, resenhas e indicações de leitura de Maria Rita KehlLaerte CoutinhoMichael LöwyLudmila Costhek AbílioFlávia BiroliMaria Lygia Quartim de Moraes, Lincoln SeccoUrariano MotaLuis Felipe MiguelIzaías Almada, Ursula Huws, entre outros!


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Jamais Poderão Aprisionar Nossos Sonhos: Eleição Sem Lula É (Continuação) Do Golpe! || Editorial A Casa de Vidro

“Eu não pararei porque eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia, uma ideia misturada com a ideia de vocês. Quanto mais dias me deixarem lá, mais Lulas vão nascer neste país. Não adianta tentar parar o meu sonho, porque quando eu parar de sonhar eu sonharei pela cabeça de vocês.”Luiz Inácio Lula da Silva, no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, instantes antes de se tornar um preso político no Brasil de 2018.

Há quem julgue um absurdo exagero comparar Lula com Mandela, Gandhi ou Luther King. Os detratores de Lula – aqueles que o xingam de “Luladrão” e “petralha corrupto”, confundindo xingamentos com argumentos, ofensas com provas – esquecem lições fundamentais que o conhecimento dos fatos históricos nos dá: o cárcere injusto é algo que sentiram na pele grandes líderes históricos das massas oprimidas, e isto pois com frequência as instituições de Direito, ao invés de honrar seu compromisso com a Justiça, violaram esse vínculo e se fizeram instrumentos de uma guerra de classe.

O que o campo lulista lança ao cenário político explosivo e vulcânico de 2018 é a tese de que Lula é sim uma figura de estatura histórica que está encerrado nas garras de um cárcere não devido a seus crimes, mas sim pelo desejo de nossas elites sócio-econômicas de impedirem os brasileiros de exercerem nas urnas seu direito constitucional de sufrágio universal.

O golpe quer sequestrar, de novo, nosso voto, após a derrubada fraudulenta da presidenta re-eleita em 2014 através do farsesco-grotesco putsch parlamentar de 2016.

Força imponderável, imprevisível, alvo das especulações futuristas dos profetas da política, será a reação das massas diante da aproximação de Eleições Ilegítimas – caso, como é de alta probabilidade que aconteça, Lula não esteja lá nas urnas para disputar a vontade popular com os outros candidatos – Boulos, Bolsonaro, Alckmin, Ciro, Marina etc.

O VERDADEIRO TRIPLEX (Não aquele da Fraude Judicial…)

A noção de que “Eleição Sem Lula É Golpe” quer frisar a continuidade do processo destravado irresponsavelmente em 2016 pela Aliança Golpista – mancomunando as Bancadas da Bala, do Boi, da Bíblia (e da Bola) com os barões da mídia burguesa e o empresariado FIESPista, cultuador de imensos patos amarelos (símbolo da truculência da classe dos Patrões).

O Patronato brasileiro, com o recente golpe de Estado, explicitou suas tendências fascistas. E, como tem ensinado o jurista Pedro Serrano, a prisão de Lula é mais um sintoma do colapso do Estado de Direito e do avanço do Estado (totalitário) de Exceção.

O Brasil de hoje é a encarnação da frase de Brecht (e Lula, um dos imprescindíveis de que o dramaturgo-poeta também nos falou em “Os Que Lutam”): “Não tem nada mais parecido com um fascista do que um burguês assustado.” A burguesia brasileira está assustada com a onda de inclusão social e redução das desigualdades que avançou, ainda que timidamente, na era lulista.

A nossa Elite do Atraso, de mentalidade ainda escravocrata, deseja um Patronato Empoderado que tenha a maravilhosa “liberdade econômica” de pisotear milhões de rostos de trabalhadores humilhados, super-explorados, precarizados (para não falar das imensas multidões de desempregados, a quem se promete somente a truculência dos controles policiais e carcerários de um Estado Policial extremado). George Orwell, que nunca escreveu um manual-de-instruções para tiranos e ditadores, havia suspeitado que a imagem que descreveria o futuro humano seria: “uma bota pisando um rosto”.

Lula deve ser mantido no cárcere para que, no xadrez da guerra de classes intensificada com o Golpe de 2016, os ricos sigam vencendo. Triunfando sobre nossa carne triturada. Contando ouro sobre as cinzas do futuro. Futuro este que eles estão queimando como piromaníacos através do Austericídio Neoliberal que ameaça matar de inanição, nos próximos 20 anos, a educação pública, a saúde pública, a cultura pública, o próprio espaço público e o próprio valor do que nos é comum, do que é de-todos e portanto e inapropriável por qualquer proprietário privado.

Neste contexto, Lula é sim como Gandhi, como Mandela, como Luther King: aquele que é decretado como Inimigo Público pelas classes dominantes, assustada com a possibilidade de perda (ou diminuição) de seus privilégios injustos (pois baseados em racismo, patriarcalismo, opressão de classe etc).

A ira dos bem-nascidos contra os sem-berço manifesta-se pelo assassinato ou pelo aprisionamento que os tais bem-nascidos (que muitas vezes se alcunham como “homens-de-bem”) impõe a líderes populares que pretenderam governar para todos, e não apenas concedendo de bandeja as benesses para os que gozam no estreito topo da pirâmide.

Assassinaram Che Guevara, Amílcar Cabral, Malcolm X; aprisionaram Mandela, Mujica, Lula; amordaçaram e calaram as vozes dissidentes com tal frequência e tão inúmeros requintes de crueldade, que não passa a soar mais tão absurda a frase que estampa o meme que Maria Do Rosário fez circular: “De Tempos em Tempos, Prendem um Lula!”

Prenderam o Lula e querem mantê-lo preso para que ele não ganhe as eleições. Pentacampeonato do PT para a Presidência é a humilhação que as elites não suportam engolir. Elas preferem a via do golpe de Estado continuado, da preservação dos frutos podres e nefastos da ruptura do tecido constitucional instaurado pelo impeachment de Dilma.

O cárcere de Lula até mesmo chega a lembrar, se fôssemos procurar um análogo histórico, aquele do jovem Fidel Castro, encarcerado pela Ditadura de Fulgêncio Batista após o episódio do Assalto Ao Quartel Moncada (26 de Julho de 1953).

Fidel Castro (centro), Raul Castro (primeiro à esquerda) e outros rebeldes do assalto ao Quartel de Moncada postos em liberdade, em maio de 1955.

Após mais de 75 dias na prisão, Fidel – que além de revolucionário era também advogado – defendeu sua própria causa diante do tribunal através dos discursos imortalizados em “A História Me Absolvirá” (Ed. Expressão Popular). Note-se a semelhança com o “A Verdade Vencerá”, o livro-manifesto de Lula lançado pela Editora Boitempo.

Ali, Fidel Castro revela algo crucial para a compreensão do triunfo posterior dos guerrilheiros da Sierra Maestra, que conquistariam o poder após alguns anos daquele cárcere amargado por Fidel. Ensina a seus algozes Fidel que não se pode prender um ideal. Ensina Fidel que, no palco da história, jamais a tirania injustiça conseguiu abafar os brados e as práticas libertárias. Quando se encarcera alguém cuja vida se construiu pela solidariedade com os oprimidos, este alguém jamais está só detrás das grades. Lula, mesmo numa solitária, jamais estaria só.

E Lula não é mais só um punhado de carne-e-osso, de fezes e lágrimas, de olhos e bunda, deixado a mofar em uma jaula da Polícia Federal de Curitiba. Lula já transcendeu a restrição de seu corpo físico para tornar-se uma espécie de emblema de uma utopia social. Lula virou sinônimo de um sonho de sociedade inclusiva, que enfrente suas hediondas desigualdades, que invista no acesso amplo aos bens públicos fundamentais (saúde, educação, moradia, alimentação, cultura, participação cívica). Fidel, encarcerado em 1953, e Lula detrás das grades em 2016, comungam de uma convicção (bem diferente daquela dos “Dallagnóis” por aí, que confessam não estar condenando com base em nenhuma prova, apenas convicções…).

A convicção, de Fidel e Lula, mas também de Mandela e de Mujica, de Gandhi ou Luther King, de Rosa Parks ou Angela Davis: “quando os homens têm um mesmo ideal, ninguém pode isolá-los, nem as paredes de um cárcere nem a terra dos cemitérios. A mesma lembrança, a mesma alma, a mesma ideia, a mesma consciência e o mesmo sentimento de dignidade alentam a todos.” (CASTRO, F. A História Me Absolverá. Pg. 12. Expressão Popular, 2010.)

É evidente que há limites para a analogia: Fidel participou de um levante armado que visava, ao tomar o quartel de Moncada, dar poder material para que o povo cubano pudesse triunfar sobre o tirano Batista, que alçou-se ao poder com um golpe militar em março de 1952; já Lula em nenhum momento sinalizou para a resistência armada contra o regime de Michel Temer e permaneceu um democrata exemplar, defendendo a normalidade das instituições do Estado Democrático de Direito mesmo em uma fase de brutais retrocessos que vieram nos lançando a um Estado de Exceção cada vez mais exacerbado (de que os destinos de Marielle Franco e Lula, em 2018, são emblemas).

O que une o período no cárcere amargado por Fidel e este que agora trancafia Lula é o fato de que ambos são declarados como inimigos públicos por governos ilegítimos, inconstitucionais. A Cuba sob a batuta de Batista e o Brasil sob o desgoverno de Temer – e de um Congresso Nacional infestado de deputados e senadores dispostos a rasgar a Constituição e impedir uma presidenta mesmo sem sombra de crime de responsabilidade – são ambos regimes políticos que não tem base ou fundamento na vontade soberana do povo.

E a coisa pública (res publica) só pode legitimamente ser gerida pela vontade geral expressa em sufrágio universal. Sempre que as urnas são sequestradas por plutocratas, e impede-se de competir algum candidato que contraria os interesses das elites econômicas e culturais, estamos numa democracia de fachada, pseudo poder popular que esconde o reinado concreto de uma tirania de mesquinhos interesses privados (e privatistas) impondo-se ao todo social com uma truculência inaceitável – e que não tarda a suscitar resistência, revolta, insurreição.

As palavras de Fidel na prisão, animadas pela inspiração de seu mestre Martí, evocam aquele afeto intensamente transformador, o “amor à liberdade”, que não poupa esforços para denunciar “maquinações obscurantistas e ilegais”; diante de seus algozes, que querem condená-lo a 26 anos de prisão, o altivo Fidel ergue-se como um gigante pois subiu nos ombros dos ensinamentos dos mestres (sobretudo o próprio Martí): “um princípio justo do fundo de uma cova é mais poderoso que um exército.” (p. 14)

Os princípios justos não estão presos quando se encarcera um de seus defensores; a bandeira da liberdade não cessa de tremular a céu aberto, em barricadas e nas montanhas, em passeatas e ocupações, em greves e em combates, pois se assassinou um punhado de ativistas libertários; e nenhuma jaula na PF de Curitiba é capaz de calar a voz de um Lula que já multiplicou-se em milhões de Lulas por aí.

O tamanho do eleitorado que votaria em Lula, segundo algumas pesquisas, indica que ele seria eleito no primeiro turno. Estas dezenas de milhões de brasileiros que expressam assim sua aliança ao ex-presidente que deixou seu cargo, após 8 anos de serviço público, com aprovação popular na casa dos 87%, sabem que o poder de Lula não será nadificado pelas arbitrariedades e injustiças de um aparato jurídico sequestrado pela classe dominante e utilizado como instrumento de guerra eleitoral.

A Elite do Atraso, que prepara para 2018 este novo golpe – a exclusão de Lula das urnas – está brincando com fogo. Enquanto cresce o espraiamento do fascismo social, muito mais perigoso do que a candidatura Bolsonaro, as elites estão sinalizando para uma postura que pode nos levar à guerra civil. Uma guerra civil capaz de fazer os mais de 60.000 homicídios anuais que ocorrem no Brasil parecerem uma bagatela. Caso a Direita vença as eleições através do golpe sujo do impeachment preventivo, seja com Bolsonaro ou Alckmin, enganam-se redondamente se acreditarem que os “milhões de Lulas” ficarão quietos e aceitarão o resultado da partida, indo para o vestiário para chorarem quietos suas mágoas, ainda que saibam que só perderam o campeonato pois o juiz roubou um bocado para o adversário.

Aqueles que impedem a manifestação democrática da vontade popular majoritária e visam impor, mesmo que sob uma fachada enganadora de processo democrático, um governo que prossiga triturando direitos sociais, privatizando bens públicos, lançando à miséria os milhões, congelando o viço de hospitais e escolas, asfixiando o fomento à cultura, disseminando agrotóxicos e extermínios, irá se defrontar com a fúria daquela parcela do povo que já está se cansando de tanta opressão, desigualdade e catarro escarrado pelos ricos do alto de seus jatinhos e helicópteros blindados.

Querem mesmo ganhar de Lula no tapetão, impedindo-o à força de disputar as eleições? Lidem depois com MST, MTST, UNE, Levante; lidem com as ocupações, as greves, os trancamentos de rodovia, as barricadas de pneus em chamas, os molotovs contra agências bancárias. Seria ingênuo esperar que um futuro Bolsonazista ou Alckmista não estivesse polvilhado por irrupções de violência nas manifestações cívicas como aquelas que marcaram certos períodos das Jornadas de Junho de 2013. O Lula, que sempre foi um grande pacificador, que ao invés de aguerrido soldado de uma guerra de classes esforçou-se como presidente para ser conciliatório e propiciar um ganha-ganha, está encarcerado por uma elite que está se preparando para a guerra.

Ou, melhor dizendo, a guerra da elite contra nós já está rolando – e o encarceramento de Lula é o episódio recente mais sintomático desta “guerra dos ricos contra os 99%”. Quem ajuda o 1% a conseguir a proeza são, é claro, os seus braços armados, o complexo militar-industrial, o sistema das polícias militarizadas conexas a um sistema carcerário onde perpetuam-se o racismo estrutural e a opressão de classe. A polícia que mais mata e mais morre no mundo é a brasileira. Em um futuro Bolsonazista ou Alckmista, é de se esperar que a matança, a mortandade, os morticínios, a enxurrada de chacinas só piore. Não é fantasia de pessimista,  é tendência histórica.

Já o welfare state lulista, uma política típica de uma democracia liberal que enxerga a paz social como conexa à diminuição das desigualdades e o investimento em infraestrutura pública para fornecimento de serviços públicos essenciais, é a única via viável, no curto prazo, para uma mudança de rumos positiva para o país, desde que venha purgada de tendências à coligação com os setores mais reacionários e corruptos da velha guarda (MDB, DEM, PP, Tucanos… toda a corja de homens-brancos-ricos-elitistas que infesta nossas instituições da pólis). O PT está tendo que redescobrir suas raízes socialistas, suas conexões com mestres como Florestan Fernandes, sua disposição para a defesa de uma mundialização de outra via, não a de submissão ao Império dos EUA sob tirania ultracapitalista e neo-fascista de Trump, mas pelas vias já delineadas do Mercosul e do BRICS.

A verdade é que Lula está preso mais pelos benefícios que sua gestão trouxe do que pelos denunciados malefícios que a “corrupção petista” trouxe ao país. Está evidente para uma imensa fatia do eleitorado – majoritária a ponto de Lula vencer as eleições em todos os cenários, nas pesquisas de todos os órgãos estatísticos – que o triplex no Guarujá é pretexto; que faltam provas e sobram convicções; que uma delação premiada de um empresário da OAS está tendo mais peso na balança da justiça do que a expressão da vontade de uns 50 milhões de cidadãos brasileiros… E está claro que as elites querem Lula calado. Querem que apodreça na prisão em silêncio. O que não ocorrerá.

Preso, Fidel manteve-se ativo e altivo, batalhando contra a incomunicabilidade que sentia que lhe era imposta: “Sei que me obrigarão ao silêncio durante muitos anos; sei que tratarão de ocultar a verdade por todos os meios possíveis; sei que contra mim erguer-se-á a conjura do esquecimento. Mas minha voz não se afogará por isso; ela adquire forças em meu peito quanto mais isolado me sentir. E quero dar a meu coração todo o calor que lhe negam as almas covardes.” (p. 21)

Estas palavras de A História Me Absolvirá são muito semelhante em pathos e em ethos, em afeto e em postura, daquelas que Lula proferiu em A Verdade Vencerá e também em seu último discurso público no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Lula, como Fidel, sabe muito bem que uma injustiça nunca é praticada de modo impune quando é sentida como acinte e ofensa por uma imensa multidão de pessoas que se sentem unidas e solidárias através do cimento invisível de uma causa comum, de um sonho que une. É por isso que, mesmo que sua foto não esteja nas urnas, Lula seguirá sendo uma força concreta na sociedade brasileira nos anos porvir.

Ainda que o assassinem, ainda que ele morra na prisão, já somos milhões de Lulas, e sonharemos o sonho dele com nossas cabeças, pensaremos as ideias dele com nossos cérebros, arregaçaremos as mangas e com nossas mãos obraremos o que ele projetou para ser feito, e sempre que tentarem calá-lo, trancafiá-lo em jaula, conjurar que dele nunca se fale para que se afogue no esquecimento, seremos uma legião de bocas, bradando por amor à liberdade e à justiça que cessem as opressões que seguem maculando este às vezes triste hospício esférico que se chama mundo.

Por um outro mundo possível, pelos “inéditos viáveis” de que falou Paulo Freire, pelo avanço de utopias delineadas por Darcy Ribeiro ou Florestan Fernandes, por uma economia libertada de subserviência aos Yankees, por uma união fraterna do Brasil com os povos latino-americanos e africanos, por educação pública de qualidade podendo expandir-se e ganhar viço, é preciso libertar Lula. Ou estaremos todos presos na fornalha manicomial de um país reduzido a cinzas, guiado para o esfacelamento pela conjunção da Ponte Para o Futuro com as novas Privatarias e Barbáries que viriam às mancheias no caso de vitória (ilegítima, caso exclua Lula) dos bolsonazistas ou tucanos (que não diferem tanto assim uns dos outros, olhados em minúcia).

A mobilização cívica por Lula Livre, em defesa de sua candidatura, irá nos dividir e polarizar: de um lado, estaremos defendendo a re-constituição de um regime democrático recentemente violado pelo golpe de 2016 e seu processo que até a atualidade se estende; de outro lado, aqueles que apostam num fascismo com máscara de democracia burguesa “normal” para aprofundar o Estado de Exceção e o regime de cruel exploração do trabalho e de destravada violência policial-carcerária contra os oprimidos que aumentam de número aos milhões. “De Que Lado Você Está?”, pergunta Gui Boulos no título de seu livro. Os lados, dirão, são sempre muito mais que dois; mas peço cautela aos que quiserem a terceira via do ficar-em-cima-do-muro: o que garante que vocês não serão, depois, derrubados deste muro sobre o qual pretenderam ficar em estado de neutralidade?

Escolher não denunciar a exclusão de Lula destas eleições, achar que isso é legítimo apesar dos inúmeros indícios de lawfare e de partidarização do Judiciário, não é aliás sintoma de neutralidade. Os pretensos neutros, neste caso, têm lado… O lado dos que querem passar um verniz no Golpe para deixá-lo brilhando, bonitinho, pra passar no Fantástico, todo maquiado para esconder as cicatrizes que ele impôs à carne de milhões de brasileiros, chutados de volta para o Mapa da Fome, privados de direitos trabalhistas, obrigados a “não pensar em crise e trabalhar” em meio a um desemprego massivo que bate recordes, tesourados em suas bolsas de estudo etc.

Por isso, ser um democrata, considerar minimamente como valor o tal do Estado Democrático de Direito, é hoje apoiar o direito de Lula a candidatar-se; quem aplaude seu cárcere só pode ser cúmplice de um processo mentiroso, injusto e liberticida. Eleição sem Lula é fraude. Que nossa elite e seus esbirros, e toda a massa de manobra que segue a manada e se filia aos projetos eleitoreiros de Alckmins e Bolsonaros, tenha pelo menos a dignidade de vencer jogando limpo, nas urnas, com a maioria dos votos. Caso contrário, o que nascerá deste pleito será o conflito e o tumulto que sempre são consequências das desmesuras e dos excessos daqueles que, triturando o comum, agarram-se a seus privativos privilégios.

Luiz Inácio Lula da Silva

A Casa de Vidro
http://www.acasadevidro.com
Agosto de 2018
Por Eduardo Carli de Moraes

AS CILADAS DA CREDULIDADE: Spinoza como crítico da superstição

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Não são poucos os filósofos que pretendem agir como demolidores da superstição: uma das metas explícitas de Lucrécio, em seu poema-tratado Da Natureza, era justamente disseminar as luzes do epicurismo e da atomística materialista de modo a dissipar os terrores vãos e esperanças ilusórias que são a praga da consciência supersticiosa. Nietzsche, por sua vez, também declara-se engajado na causa não só de descrever um Crepúsculo dos Ídolos, mas também de acelerar e catalisar uma renovação de valores que fará as velhas idolatrias caírem por terra (elas têm, afinal, pés-de-barro). Spinoza também se insere nesta tradição e sua filosofia fornece-nos amplos meios para a crítica daqueles que “interpretam a natureza da maneira mais extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles.” (TTP, p. 6)

Spinoza fornece-nos um retrato psicológico do supersticioso em que oferece tanto um diagnóstico quanto uma terapêutica. Comecemos pelo diagnóstico clínico: “a que ponto o medo ensandece os homens!”, escreve Spinoza no Prefácio do TTP. “O medo é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição. Os homens só se deixam dominar pela superstição enquanto têm medo; todas essas coisas que já alguma vez foram objeto de um fútil culto religioso não são mais do que fantasmas e delírios de um caráter amedrontado e triste…” (p. 6)

O filósofo não poderia ser mais claro: a causa evidente da superstição é o medo, e sabemos que o medo tem uma irmã siamesa que sempre aparece junto dele, a esperança. Medo e esperança, de mãos dadas, entre fantasmas e delírios, geram esta interpretação extravagante da natureza que Spinoza pretende sanar e curar através de sua Ética tão terapêutica. Abaixo os afetos tristes, os temores opressivos, os medos que nos murcham!

 Aquilo que é superstição no âmbito do indivíduo aparece à Spinoza, quando este considera o espaço mais amplo da sociedade como um todo, como instrumento eficaz para governar as multidões. Religiões institucionalizadas são ferramentas inventadas para manipular superstições, manobrando-as na massa com certos fins às vezes bastante perversos e repletos de barbárie. Exemplo: a escravidão – ato violentador e cruel em vasta escala – que praticavam os europeus da época de Spinoza, branquelos bárbaros que sequestravam na África os seres humanos que punham para labutar escravamente nas colônias americanas; brancos imperialistas e etnocêntricos, não hesitavam em chacinar populações indígenas, tudo isso com pequenos crucifixos nos peitos e muitas palavras bíblicas nos lábios para justificar seus atos tão agradáveis a Deus (afinal de contas, diziam, nem índio nem preto tem alma).

Spinoza viveu na Holanda do século XVII, quando esta era uma das poucas nações européias já em regime republicano, e têm rajadas de críticas contra o Antigo Regime de que foi contemporâneo e que só ganharia de fato este nome – l’ancien régime – na época da Revolução Francesa, em fins do século XVIII. “Se, efetivamente, o grande segredo do regime monárquico e aquilo que acima de tudo lhe interessa é manter os homens enganados e disfarçar, sob o especioso nome de religião, o medo em que devem ser contidos  para que combatam pela servidão como se fosse pela salvação e acreditem que não é vergonhoso, mas sumamente honroso, derramar o sangue e a vida pela vaidade de um só homem…” (p. 8)

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Spinoza não disfarça sua simpatia desabrida pelo republicanismo, que vincula ao secularismo, ou seja, a um regime político em que a laicidade do Estado é plena: o Estado não está à serviço de nenhuma facção religiosa. Ode à Holanda, a terra de Spinoza e Nassau e Van Gogh: “Já que nos coube em sorte essa rara felicidade de viver numa República, onde se concede a cada um inteira liberdade de pensar e de honrar a Deus como lhe aprouver e onde não há nada mais estimado nem mais agradável do que a liberdade…” (p. 8)

A monarquia, que se sustenta na ideologia falaciosa do “direito divino dos reis” e que instaura um regime tirânico, em que a massa da população serve de capacho a um punhado de nobres, aristocratas reinando amontoados na corte real e em suas ramificações eclesiásticas e jurídicas, é dardejada pela crítica de Spinoza, defensor da laicidade, da secularização, da liberdade de crença e opinião. Spinoza entusiasma-se pela república democrática e pluralista onde são hegemônicos os valores invioláveis da liberdade de pensamento, expressão e crença.

Atacar os preconceitos, parece pensar Spinoza, é realizar atos em prol do bem público (Marilena Chauí, creio, concordaria). Pois os preconceitos são danosos e “de racionais transformam os homens em irracionais, os preconceitos tolhem por completo o livre exercício da razão e a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, parecendo expressamente inventados para apagar definitivamente a luz do entendimento!” (p. 10)

Note-se: tais palavras iluminadas são precursoras da maré montante de Iluminismo que começa a erguer-se na Europa, saturada então com conflitos fratricidas entre grupos de diferentes inclinações religiosas e massacres cometidos por facções de crentes contra seus adversários. “A luz natural é não só desprezada mas até condenada por muitos como fonte de impiedade”, reflete Spinoza, que em seu Tratado Teológico-Político trata de pôr em atividade em toda a lucidez esta “luz natural” da razão para que esta batalhe contra os preconceitos e superstições que encerram o mundo no obscurantismo sanguinolento.

Em um contexto de discórdias violentas e conflitos derramadores de tripas, Spinoza propõe-se a empreender um “exame da Escritura” em que assume um compromisso cartesiano: só admitir como verdade aquilo que sua razão puder assim considerar clara e distintamente. Os poderes que só se sustentam sobre a base do obscurantismo que eles assumem e propagam sentem-se temerosos diante de qualquer figura que ouse pôr em questão aquilo que é tradicionalmente santificado como verdadeiro e indubitável. Spinoza será excomungado da comunidade judaica holandesa – assim como Platão havia mandado queimar a obra de Demócrito, sua obra será estigmatizada como algo “forjado no Inferno”, para citar o título do elucidativo estudo escrito por Steven Nadler, A Book Forget In Hell.

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Spinoza (1632-1677), vivente-vidente, polidor de lentes, advogado das alegrias dos entes, entusiasta de tudo que nos liberta das correntes, as de ferro e as da mente! Spinoza foi “o mais puro dos sábios”, segundo Nietzsche, que não tinha o costume da adulação incontida e injustificada – deve ter sentido, pois, que Spinoza de fato merecia tão altos louvores! Na história da filosofia, há poucos pensadores mais “radicais” em sua denúncia das superstições e que tanto tenha feito para libertar a humanidade – tal como haviam tentado Lucrécio e Epicuro antes dele, tal como farão depois Diderot, Nietzsche, Marx ou Freud – das esperanças e temores absurdos a que se aferrolham os apavorados supersticiosos…

Algumas das teses spinozistas mais ousadas, que batiam de frente com as superstições religiosas de sua época, valeram-lhe a excomunhão e a perseguição dos fanáticos: Deleuze conta-nos a curiosa estória de que,  tendo sobrevivido a um atentado (uma tentativa de homicídio) perpetrado por um um fanático, Spinoza guardou o casaco com o furo da facada como um souvenir sinistro do quão pouco alguns homens respeitam o livre pensamento. Já ele, Spinoza, avesso a todos os fanatismos e dogmatismos, prestou um culto ao livre-pensar de uma vitalidade que prossegue até hoje imensa: é um aliado na ampliação atual de nossas potências e na expansão da nossa lucidez!

Na sequência, seguem alguns trechos de Spinoza – Filosofia Prática, em que Deleuze sintetiza muito bem o spinozismo em seu aspecto afirmador, rejubilante, empoderador: uma sabedoria de vida que nos ensina a vencer escravidões e tiranias, tristezas e impotências, temores e esperanças, fazendo-nos compreender que só há expansão de potência na alegria e que nos convida à beatitude dos agentes, ao invés da impotência dos pacientes. Agir ao invés de padecer, amar ao invés de depreciar, “não zombar nem lamentar, mas compreender”: eis alguns dos sábios conselhos spinozistas.

Como o entendo, Spinoza nos diz que Deus não é um velhinho barbudo e furibundo que mora nos céus, de onde lança bolas de fogo para punir os ímpios e de onde prega sermões e promulga leis que, se obedecidas com servilismo, serão recompensadas na Confeitaria Paradisíaca. Isso não passa de um delírio grotesco da imaginação humana, interesseira e ego-cêntrica. Não é preciso subir uma montanha, como fez Moisés, para se comunicar com Ele: para Spinoza, o único Deus concebível é um Deus que está em toda parte já que é a Natureza mesma, um Deus que se confunde com o Universo, um Deus que é idêntico ao Ser-na-Totalidade. A morte da transcendência é o triunfo da mais radical imanência: Deus não existe lá longe, numa nuvem distante, numa dimensão transcendente, num outro mundo qualquer, exilado nas lonjuras inatingíveis. Deus é o nome que damos a esse Todo de que fazemos parte: estamos Nele como os peixes estão no oceano e como os pássaros estão no ar…

Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro

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DE GILLES DELEUZE
Spinoza – Filosofia Prática
Editora Escuta, São Paulo, 2002
Capítulo I & II

“As principais interrogações do Tratado Teológico Político são: por que o povo é profundamente irracional? Por que ele se orgulha de sua própria escravidão? Por que os homens lutam por sua escravidão como se fosse sua liberdade? Por que é tão difícil não apenas conquistar mas suportar a liberdade? Por que uma religião que reivindica o amor e a alegria inspira a guerra, a intolerância, a malevolência, o ódio, a tristeza e o remorso? É possível fazer da multidão uma coletividade de homens livres, em vez de um ajuntamento de escravos?

Poucos livros suscitaram tantas refutações, anátemas, insultos e maldições: judeus, católicos, calvinistas e luteranos rivalizam em denúncias. […] Um livro explosivo mantem sempre sua carga explosiva: ainda hoje não se pode ler o Tratado sem nele descobrir a função da filosofia como tentativa radical de desmistificação.

Espinosa faz parte dessa estirpe de pensadores que mudam os valores e praticam uma filosofia a marteladas, e não daquela dos ‘professores públicos’, aqueles que, segundo o elogio de Leibniz, não interferem nos sentimentos estabelecidos, na ordem da Moral e na Polícia. (…) Tanto na sua maneira de viver como de pensar, Espinosa oferece uma imagem da vida positiva e afirmativa, em detrimento dos simulacros com os quais os homens se contentam.

Nenhum filósofo foi mais digno do que Espinosa, mas também nenhum outro foi tão injuriado e odiado. […] A grande tese teórica do spinozismo é: há uma única substância que possui uma infinidade de atributos, Deus sive Natura (“Deus, ou seja, a Natureza”), sendo todas as “criaturas” apenas modos desses atributos ou modificações dessa substância. O panteísmo e o ateísmo se conjugam em Espinosa, negando a existência de um Deus moral, criador e transcendente. Há três grandes semelhanças com Nietzsche e elas são as razões pelas quais ele é acusado de materialismo, imoralismo e ateísmo.

 “Não tendemos para uma coisa porque a julgamos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela”(Spinoza, Ética, III, 9, esc.) O bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa. Por exemplo, um alimento. O mau para nós existe quando um corpo decompõe a relação do nosso corpo… por exemplo, um veneno que decompõe o sangue. Bom e mau têm pois um sentido relativo e parcial: o que convém a nossa natureza e o que não convêm.

Bom e mau tem um segundo sentido, qualificando dois modos de existência do homem: será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém a sua natureza, por compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a composição das potências. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as consequências, pronto a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra antagônico e lhe revela a sua própria impotência.

Spinoza, em toda a sua obra, não cessa de denunciar três espécies de personagem: o homem das paixões tristes; o homem que explora essas paixões tristes, que precisa delas para estabelecer o seu poder; enfim, o homem que se entristece com a condição humana e as paixões do homem em geral (que tanto pode zombar como se indignar…). O escravo, o padre, o tirano… trindade moralista.

Nunca, desde Epicuro e Lucrécio, se mostrou melhor o vínculo profundo e implícito entre os tiranos e os escravos: o tirano precisa da tristeza das almas para triunfar, do mesmo modo que as almas tristes precisam de um tirano para se prover e propagar. De qualquer forma, o que os une é o ódio à vida, o ressentimento contra a vida. AÉtica de Spinoza traça o retrato do homem do ressentimento, para quem qualquer tipo de felicidade é uma ofensa e que faz da miséria ou da impotência sua única paixão. “Os que não sabem fortificar os homens mas sim deprimi-los, esses são insuportáveis para si mesmos.” (Spinoza, Ética, IV, apêndice, Cap. 13).

Há efetivamente em Spinoza uma filosofia da “vida”: ela consiste em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos esses valores transcendentes que se orientam contra a vida… A vida está envenenada pelas categorias do Bem e do Mal, da falta e do mérito, do pecado e da remissão. O que perverte a vida é o ódio, inclusive o ódio a si mesmo, a culpabilidade. […] Antes de Nietzsche, ele denuncia todas as falsificações da vida, todos os valores em nome dos quais nós depreciamos a vida: nós não vivemos, mantemos apenas uma aparência de vida, pensamos apenas em evitar a morte e toda a nossa vida é um culto à morte.

Essa crítica das paixões tristes está profundamente enraizada na teoria de Spinoza a respeito das afeições. Um indivíduo é antes de mais nada alguém com poder de ser afetado. […] Devemos distinguir dois tipos de afeição: as ações e as paixões. O poder de ser afetado apresenta-se então como potência para agir, na medida em que supõe preenchido por afeições ativas, e apresenta-se como potência para padecer, quando é preenchido por paixões.

O próprio da paixão consiste em preencher a nossa capacidade de sermos afetados, separando-nos ao mesmo tempo de nossa capacidade de agir, mantendo-nos separados desta potência. A paixão triste é sempre impotência. […] Ao contrário, quando encontramos um corpo que convém à nossa natureza e cuja relação se compõe com a nossa, diríamos que sua potência se adiciona à nossa: as paixões que nos afetam são alegria, nossa potência de agir é ampliada ou favorecida.

As paixões tristes representam o grau mais baixo de nossa potência: o momento em que estamos separados ao máximo de nossa potência de agir, altamente alienados, entregues aos fantasmas da superstição e às mistificações do tirano. A Ética de Spinoza é necessariamente uma ética da alegria: somente a alegria é válida, só a alegria nos aproxima da ação e da beatitude da ação.”


GILLES DELEUZE

Spinoza – Filosofia Prática
Editora Escuta, São Paulo, 2002
Capítulo I & II

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Outra das obras mais esclarecedoras e iluminantes sobre o pensamento spinozista é o pequeno livro de Alain, Spinoza (Ed. Gallimard). Abaixo, compartilho alguns trechos dele, no original em francês, infelizmente ainda sem tradução no Brasil:

Alain“Les hommes sont pour la plupart méchants et mal-heureux. Ils sont méchants parce qu’ils mettent leur bonheur dans la possession d’objets qui ne peuvent être à la fois à plusieurs, comme les honneurs et l’argent, et qu’ainsi le bonheur d’autrui les rend malheureux, et qu’ils ne peuvent, em revanche, être heureux qui si leurs semblables souffrent. (…) Ils sont de plus en plus malheureux parce qu’ils s’attachent à des objets dont ils ne sont point les maîtres, à des choses périssables qui ne font qu’apparaître dans l’existence, et que le cours ordinaire des événements suffits à leurs enlever…” (pg. 29)

“Il est facile de voir que les Religions ne sont presque toujours pour l’homme qu’une source nouvelle de crainte et de tristesse. Car ceux qui ont l’habitude de conduire les hommes par la crainte et l’espérance n’ont pas perdu cette occasion de leur représenter que Dieu est un être méchant et redoutable, qui est jaloux de leurs pauvres joies et qui se réjouit de leurs larmes. Et ainsi les hommes, au lieu d’un libérateur, ont trouvé leur maître; et la fausse Religion les fait deux fois esclaves…” (pg. 30)

“Il n’y a point, dans l’âme humaine, de volonté libre. Rien au monde ne peut être indépendant de Dieu, et le cours des événements, qui résulte, nécessairement et selon des lois éternelles, de la nature divine, ne peut pas dépendre des caprices de l’individu. (…) Et assurément cela ne veut point dire qu’il n’y ait pour l’homme aucune puissance ni aucune liberté, c’est-à-dire aucun salut, puisque nous traiterons bientôt de la puissance de l’homme sur ses passions et de la liberté humaine. Cela veut dire seulement que l’homme n’a point de puissance sur les événements, et qu’il doit d’abord les accepter et comprendre que dans l’ordre du fait aucun salut, aucun délivrance, aucun progrès n’est possible. Ce n’est point en modifiant les événements de sa vie que l’homme se sauvera et se libérera, c’est en les appréciant à leur juste valeur, en comprenant que sa vie véritable est autre part, au-dessus des événements qui passent, dans l’éternel. En vain cherchera-t-il à tirer de ses perceptions la moindre vérité; il ne fera jamais que changer une erreur pour une autre; la vérité est d’un autre ordre et dans une autre région; c’est par la déduction des essences qu’on y peut arriver. (…) La puissance de l’homme est d’un autre ordre; elle est non sur le corps ou sur les faits, mais sur les idées, dans l’ordre des essences; elle est dans la Raison. Et la liberté est encore d’un autre ordre; elle est dans la connaissance de tout cela par Dieu et em Dieu, dans la contemplation immédiate du vrai, dans la connaissance du troisième genre.” (p. 61)

“On ne peut rendre responsable aucune volonté libre de l’injustice et de la méchanceté des hommes. Quand on a compris cela, on ne peu plus ni s’indigner, ni blâmer, ni häir, et, en ce sens, on est dèjà meilleur.” (p. 75)

“On comprend très bien, par exemple, qu’un homme s’abstienne de faire du mal à quelqu’un qu’il hait, par crainte d’un mal plus grand. Et c’est ainsi qu’une societé peut s’établir et durer, pourvu qu’elle se charge de punir ceux qui feront tort à leur voisin, et d’établir des lois appuyées sur la menace. (…) Si, de plus, on ajoute à la puissance des lois celle de la superstition, et si l’on ajoute à la crainte des tribunaux et des peines infligées par les hommes, la crainte d’un Dieu cruel qui punira de plus les hommes après leur mort, tout dans cette cité donnera l’image parfaite de la paix, de la concorde, de la bonne foi et de la religion. Et pourtant les passions y seront reines, et toutes ces prétendues vertues résulteront seulement de la crainte que la société tout entière aura su inspirer à chacun de ses membres. C’est ce qu’il faut d’abord comprendre, afin de n’être pas trompé par ce faux bien, cette fausse justice, cette fausse vertu que, s’ils rendent l’homme moins malfaisant, le font deux fois esclave.” (p. 77-78)

“Les superstitions et fausses religions, qui ne cherchent point à rendre réellement les hommes meilleurs, mais seulement à contenir leurs passions dans l’interêt commun, font, de la crainte et de la tristesse, des vertus, comme aussi elles font, de la sécurité et de la joie, des vices, et imaginent un Dieu cruel et jaloux qui se réjouit des larmes et de la terreur des hommes, et qui s’irrite de leurs joies.” (p. 79)

“La joie est toujours un bien, parce qu’elle est le signe certain de notre passage à une plus grand perfection.” (p. 88)

“Seule parmi tous les biens, la verité peut être toute à tous.” (p. 96)

“La plupart des hommes croient qu’ils sont libres quand ils peuvent obéir à leur caprice, et ne cèdent un peu de cette liberté que parce qu’ils attendent un châtiment ou une récompensee dans une autre vie. Ils se disent que s’ils n’avaient pas cette crainte et cette espérance, s’ils ne croyaient ni à Dieu, ni à l’éternité de l’âme, ils s’affranchiraient du joug de la vertu. Mais l’homme raisonable n’a pas besoin d’être ainsi dominé par la crainte et par l’espérance pour être juste et bon. Même lorqu’il croit que Dieu n’est pas, et que l’amê périra avec le corps, il n’en vit moins selon la vraie Religion.” (p. 100)

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OUTRAS LEITURAS RECOMENDADAS

BalibarEtienne Balibar
Spinoza and Politics

Download (pdf, 14 mb):
http://bit.ly/1cZ8O0U

“A rich analysis of Spinoza’s key works within the context of his political, religious and ideological life. With Hobbes and Locke, Spinoza is arguably one of the most important political philosophers of the modern era, a premier theoretician of democracy and mass politics. In this revised and augmented English translation of his 1985 classic, Spinoza et la Politique, Etienne Balibar presents a synoptic account of Spinoza’s major works, admirably demonstrating relevance to his contemporary political life.

Balibar carefully situates Spinoza’s major treatises in the period in which they were written. In successive chapters, he examines the political situation in the United Provinces during Spinoza’s lifetime, Spinoza’s own religious and ideological associations, the concept of democracy developed in the Theologico-Political Treatise, the theory of the state advanced in the Political Treatise and the anthropological basis for politics established in the Ethics.”

Marilena Chauí & Gerd Bornheim, “O Drama Burguês” (46 min, TV Cultura & 02 Filmes)

:: A Mosca Irritante ::

SÓCRATES: A MOSCA IRRITANTE

por Eduardo Carli de Moraes


Há poucas figuras mais emblemáticas nos mais de 2.500 anos de história da filosofia. Ele marcou época de modo tão radical que fez com que todos os pensadores antes dele, relegados a uma espécie de “pré-história do pensamento”, recebessem a alcunha de “pré-socráticos”. A Razão jamais foi a mesma depois que ele viveu. E poucas vezes na história dos “amigos da sabedoria” uma existência foi interrompida de modo tão dramático quanto a de Sócrates, condenado à morte pela mesma Atenas onde viveu todos os seus 70 anos de vida. Por que foi a figura socrática tão crucial na aurora da Filosofia? Por que seus métodos, atitudes e reflexões causaram tanto impacto e influenciaram tantos séculos do porvir? E o que explica que ele tenha despertado reações tão violentas por parte de seus concidadãos a ponto de ter sido obrigado a beber a cicuta?

Sócrates, como Jesus Cristo ou Buda, não legou à posteridade textos de sua autoria. Preferia o diálogo à escrita, o pensar em grupo à reflexão solitária. Por isso Sócrates será sempre uma figura cuja “faceta histórica” aparece envolta nas nebulosidades características daquilo que está afundado num passado remoto. A pergunta “quem foi o Sócrates real?” não é passível de ser respondida com certeza: o que temos são discípulos, detratores, testemunhos, pegadas, indícios, relíquias. O que possuímos são como que diferentes reflexos fornecidos por diversos espelhos. As três principais fontes da Antiguidade que chegaram até nós são o retrato satírico e iconoclástico de Aristófanes em As Nuvens, a visão idealizada e elegíaca de Xenofonte em seu Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates e os numerosos diálogos de Platão que o trazem como protagonista.

A Apologia é um texto clássico no qual Platão narra o discurso de defesa proferido por Sócrates frente ao tribunal de Atenas. Ali este era réu dos crimes de corromper a juventude e crer em outros deuses que não os “oficiais” da pólis. O texto é uma espécie de “manifesto” no qual o filósofo justifica e defende, frente a seus concidadãos, a atitude de incessante questionamento que caracterizou sua existência.

De modo semelhante ao que conta-se de Diógenes Laércio, que saía pelas ruas da cidades, em plena luz do dia, procurando um “homem honesto” com uma lanterna, Sócrates também vaga pela democrática Atenas realizando uma cotidiana e rigorosa “investigação” sobre a solidez dos saberes e a qualidade dos princípios morais daqueles com quem depara. E não respeita jamais nenhum argumento de autoridade nem deixa-se convencer pelo encanto de uma boa reputação.

A Lanterna de Diógenes


Conta-se que Sócrates viveu na penúria, preferindo uma vida frugal e recusando-se a receber dinheiro por seus “ensinamentos”. Era frequentemente visto a zanzar por Atenas como um vagabundo loquaz, de uma feiúra mitológica, sempre meio desleixado e extravagante. Uma excêntrica figura, em claro descompasso com a cidade, mas que ao invés de se afundar no ermitério, permaneceu sempre na ágora e passeando pelas ruas e praças públicas como uma espécie de inteligentíssimo mendigo provocador. Foi contemporâneo da “era de ouro” ateniense, quando se firma a democracia: nasce em 470 a.C. e vai a julgamento em 399 a.C., morrendo poucos meses depois de sua condenação à pena capital.

Sócrates, em seus chamados “diálogos de juventude” (rubrica que se aplica a textos como “Eutífron”, “Íon”, “Alcebíades”,  “Hípias Maior” e “Hípias Menor”, dentre outros), aparece como encarnação de um procedimento filosófico que procura sempre conduzir seu interlocutor a uma aporia (do grego “aporos”, sem poros, sem saídas).  Trata-se de “encurralar” seu adversário, empurrá-lo para um labirinto, fazê-lo afirmar o contrário do que antes sustentava.  Através do diálogo e do debate, Sócrates põe-se a averiguar se as opiniões e convicções dos homens notáveis de Atenas se sustentam e possuem um fundamento sólido, ou se desmancham-se e revelam suas contradições ou insuficiências, escancaradas pelo filósofo.

O que o filósofo deseja é produzir em seu interlocutor a consciência de sua ignorância. Quer desmascarar os pseudo-sábios que pretendem possuir saberes que de fato não têm, desqualificando e zombando dos “convencidos”. É como ele fosse um auto-eleito “vigia” da pólis, quase uma espécie de super-herói da Grécia Antiga, que dedica-se com ardor à obra higiência de limpar Atenas da escória intelectual e moral que suja suas ruas.

Em contraste com os chamados sofistas, considerados como “professores mercenários” de retórica e eloquência que ensinavam a arte da persuasão tendo em vista o interesse pessoal, Sócrates não aceitava salário por seus “ensinamentos” e se abstinha da vida política para poder dedicar-se inteiramente à filosofia. Assim o fazia para seguir a injunção do deus Apolo, que quando consultado sobre quem era o homem mais sábio de Atenas, no famoso episódio do Oráculo de Delfos, havia respondido, segundo a Apologia platônica, que não havia ninguém mais sábio que Sócrates.

A princípio cético em relação à afirmação oracular, já que tinha uma convicção íntima de não ser sábio, Sócrates passa a dialogar com seus concidadãos e contemporâneos na tentativa de encontrar um homem mais sábio do que ele, o que refutaria o dito do deus. Os interlocutores que escolhe são frequentemente homens que possuem reputação de conhecedores e peritos na cidade: aqueles que são considerados, aos olhos da pólis, como detentores de saber são esmiuçados pela inspeção socrática. Interrogando e investigando em minúcias as pessoas com quem dialoga, e sempre munido de um ferino olhar crítico, Sócrates descobre frequentemente, ao conversar com homens das classes mais respeitadas da cidade (políticos, poetas, artesãos, técnicos…), que aqueles que passavam por sábios frequentemente não possuíam o saber suficiente para fazer jus à sua reputação, enquanto que ele, Sócrates, por estar ciente de sua própria ignorância, estaria mais próximo da sabedoria do que aqueles que se agarravam a suas opiniões e convicções frequentemente paradoxais ou insustentáveis. Donde o famoso “sei que nada sei”:

“…é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não supor que saiba o que não sei.” 1

O filósofo, pois, quer rasgar as máscaras de presunçoso saber dos rostos daqueles que pretendem deter a chave para os grandes segredos de várias áreas da existência humana, inclusive a arte e a poesia (no “Íon”) e a religião (“Eutífron”). E põe-se por vezes a expôr ao ridículo homens que ocupam posições elevadas na hierarquia de poder, mas cujo pretenso “conhecimento”, que os abonaria e justificaria em seus privilégios, não tem nenhuma base sólida e desmorona ao ataque de uma dúzia de argutas perguntas e “provocações”.

Se Sócrates interroga e refuta para mostrar a seus interlocutores que eles não sabem o que julgam saber, ou seja, para “desmascarar” os “pseudo-sabidos”, não surpreende que ele, a cada vez que faz isso, ganhe um novo inimigo. Se ele é tão “antipático” para muitos de seus concidadãos, que sentem-se lesados por ele como se tivessem sido vítimas de algum crime, talvez seja porque ele atenta contra a auto-estima daqueles com quem conversa, provando-os da inanidade de suas certezas e dogmas.

“Ao apresentar sua defesa perante o tribunal ateniense”, escreve Eduardo Giannetti, “Sócrates questiona a aceitação passiva dos costumes, crenças e tradições socialmente estabelecidos, afirmando que ‘a vida irrefletida não vale a pena ser vivida’. A missão da filosofia moral socrática, conforme o relato de Platão na Apologia, é servir como uma espécie de ‘mosca irritante’ que mantém os cidadãos sob constante e cerrada inquirição e impede o ‘cavalo lasso’ do Estado de dormitar ao longo do caminho.”2

Neste sentido pode-se enxergar em Sócrates uma figura que procurou despertar aqueles com quem convivia de um “sono dogmático” ou de uma crença cega nos valores, saberes e princípios herdados da sociedade. É o que Marilena Chauí parece indicar no seguinte trecho de sua obra Convite à Filosofia, destinada a um público leigo, em que faz Sócrates ser uma figura que se contrapõe ao que hoje conhecemos, em tempos pós-marxistas, como “ideologia da classe dominante”:

“Sabemos que os poderosos têm medo do pensamento, pois o poder é mais forte se ninguém pensar, se todo mundo aceitar as coisas como elas são, ou melhor, como nos dizem e nos fazem acreditar que são. Para os poderosos de Atenas, Sócrates tornara-se um perigo, pois fazia a juventude pensar.”3

Podemos conjeturar, pois, que se Sócrates adquire reputação de ser um “corruptor da juventude”, é porque ele “descondiciona” os jovens acostumados a obedecer e planta neles a “semente má” do questionamento das autoridades, expondo tudo o que há de ridículo e de pomposo nas poses de sabidos que assumem muitos dos velhos que se acham no direito de guiar e moldar os mais novos. Sua lição é de insubmissão. E um jovem insubmisso, para aqueles acostumados a conduzir dóceis ovelhinhas, é um ser “corrompido”! “Morte a Sócrates!”, poderia dizer um de seus carrascos, “pois ele retira de nós a aura de saber que faz o nosso poder!”

INSPECÇÃO E MORALISMO

Esta “inquirição” de que fala Gianetti passa não somente pelos “saberes racionais” de que os pretensos sábios se pretendem portadores, mas é também (e sobretudo) uma “inquirição moral”. Neste quesito, o filósofo que sustentava que só sabia que nada sabia não era tão humilde e garantia ter um “coração” éticamente perfeito. Em sua defesa, Sócrates tenta convencer a assembléia de que sempre foi um homem irreprochavelmente justo e idôneo: “eu que, negligenciando o de que cuida toda gente – riquezas, negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na política, (…) [preferi] me entregar à procura de cada um de vós em particular a fim de proporcionar-lhes o que declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu que de si próprio para vir a ser quanto melhor e mais sensato”. 4

No retrato altamente elegíaco e idealizado que Xenofonte pinta do filósofo no Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates também aparece com muita nitidez esta “jactância” quanto à superioridade moral em relação a seus concidadãos que é marca da postura socrática.

“Conhecem homem menos escravo dos apetites do corpo que eu? Mais livre que eu, que não aceito de ninguém presentes nem salário? Quem poderão, em boa-fé, considerar mais justo (…) e que pessoa razoável não me chamaria de sábio? (…) E a prova de que meu labor não foi estéril, não a vêem no fato de que muitos de meus concidadãos que amam a virtude, bem como muitos estrangeiros, dão preferência a mim acima de todos os outros homens?” (5)

É uma constante em sua defesa, pois, que Sócrates tente persuadir os presentes de que sua relação com Atenas é a de um “benfeitor público”, uma “dádiva dos céus”. Quando narra o episódio do Oráculo de Delfos, crucial na determinação de seu “destino” filosófico, Sócrates frisa que seu “serviço à cidade” não passa de um obedecimento a “vozes superiores” (“faço-o por determinação divina”, sustenta [op cit., pg. 30]).

Este “messianismo” é o que permite que ele sugira que sua própria condenação à morte seria um golpe que a pólis infligiria sobre si mesma, e inclusive vaticinando que um futuro castigo os alcançaria — “e será, por Zeus, muito mais duro que a pena capital que me impusestes” (op cit, p. 36): “Neste momento, Atenienses, longe de atuar na minha defesa, como poderiam crer, atuo na vossa, evitando que, com a minha condenação, cometais uma falta para com a dádiva que recebestes do deus. Se me matardes, não vos será fácil achar outro igual…” (op cit, pg. 27).

Curiosa figura, que pretende-se a encarnação da modéstia (sei que nada sei…), mas que ao mesmo tempo garante que é um homem preciosíssimo, puro ouro!


MAIÊUTICA: O PARTEIRO DE IDÉIAS

Mas seria despropositado pensar que os diálogos ditos “refutativos”, em que Sócrates conduz seu interlocutor a uma aporia, são de natureza inteiramente “negativa”, isto é, intentam somente destruir as falsas certezas e pretensos saberes de que se julgam possuidores os que são reputados como sábios em Atenas. Não se trata, para Sócrates, de uma destruição “gratuita”, por assim dizer, que só se preocupasse em reduzir a pó as opiniões insustentáveis dos outros, abandonando o “campo de batalha” cheio de destroços e cacos do que antes constituía, não um saber (episteme), mas uma mera opinião (doxa).

Vale ressaltar que Sócrates, numa célebre passagem do Teeteto 6, “compara-se, em seu papel de parteiro das almas, à sua mãe parteira”, como destaca Jean Pierre Vernant:

“Do mesmo modo que a mâia liberta as mulheres que sofrem do parto, Sócrates liberta os jovens das verdades que conservam em si, sem poder trazê-las à luz. Mas sua arte vai mais longe que a das parteiras comuns: cabe-lhe a incumbência de ‘pôr a prova’ o rebento engendrado, a fim de discernir se se trata de um falso semblante enganador ou de um produto de boa estirpe e autêntico.”7

Portanto, o procedimento de Sócrates, se por vezes se assemelha a uma “investigação” ou “inspecção” que visa checar opiniões e supostos saberes que uma certa pessoa julga possuir, passando-os pelo crivo de seu insistente questionamento e crítica, também se assemelha, em certos diálogos, a uma arte de auxiliar seu interlocutor a “parir” idéias e conceitos que este seria incapaz de “dar à luz” sem o auxílio do filósofo. Mas estes “rebentos intelectuais”, assim que são paridos, também precisam ser inspeccionados, como Sócrates bem aponta a Teeteto no seguinte trecho:

“Parece que tivemos muito trabalho para trazê-lo à luz, qualquer que seja o seu valor. Mas, terminado o parto, é preciso que celebremos as Anfidromias (8) do recém-nascido e, sem dúvida, fazer o nosso raciocínio correr em círculo, a fim de examinarmos se se trata, sem que o saibamos, de um produto indigno de ser alimentado, e sim vento e falsidade. Ou então pensarias, porque ele é teu, que é preciso de toda maneira criá-lo e não expô-lo? Suportarás, ao contrário, que se faça a crítica dele aos teus olhos, sem que te aborreças no caso em que teu primeiro rebento te for tirado?” (9)

Por isto é questionável o dito de Cícero, que afirmou que Sócrates criou uma “dialética puramente negativa, que se abstém de pronunciar qualquer julgamento positivo” (10). A partir do exposto acima, fica claro que é no mínimo simplista pensar nos diálogos aporéticos como dotados de uma qualidade totalmente “negativa”, ou seja, como que exercícios de demolição de presunções ao saber, sem nenhuma “construtividade positiva” envolvida no processo. Não é exato dizer que Sócrates procura levar seus interlocutores à confusão e ao desnorteio, abandonando-os com os estilhaços do que acreditavam ser um saber confiável mas mostrou-se, frente à argumentação inquiridora do filósofo, como insustentável.

É possível, pois, interpretar os diálogos aporéticos como dotados de uma certa “positividade” subjacente ao processo socrático: é como se ele destruisse para poder melhor construir.

“Antes de tudo, cumpre desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos e opiniões. É este o momento da ironia, isto é, da crítica. (…) A instrução não deve consistir na imposição extrínseca de uma doutrina ao discente, mas o mestre deve tirá-la da mente do discípulo, pela razão imanente e constitutiva do espírito humano, a qual é um valor universal. É a famosa maiêutica de Sócrates, que declara auxiliar os partos do espírito, como sua mãe auxiliava os partos do corpo.” (11)

IRONIA SOCRÁTICA

Outra característica comumente vinculada a Sócrates é a ironia (em grego, eironeia). “A ironia socrática é o modo como Sócrates se subestima em relação aos adversários com quem discute” (12). Nas palavras de Cícero, uma recorrente atitude do filósofo era “se diminuir e elevar aqueles que desejava refutar; assim, dizendo o contrário do que pensava, empregava de bom grado a simulação que os gregos denominam ironia (Acad., IV, 5, 15)”.

Em sua interpretação das razões que levaram Atenas à condenar o filósofo, I. F. Stone frisa que seus procedimentos irônicos contribuíram muito para a antipatia gerada contra ele. Stone procura mostrar que há “um toque de crueldade para com seus interlocutores” na persona socrática (que, não à toa, teve discípulos que depois criariam a escola dos cínicos, tal como Antístenes):

“O que havia de mais humilhante – e irritante – no método socrático de investigação era o fato de que, ao mesmo tempo que era demonstrada a realidade da ignorância dos outros, estes eram levados a pensar que a suposta ignorância de Sócrates era puro fingimento e ostentação. (…) Seus interlocutores sentiam que, por trás da ‘ironia’, da máscara de falsa modéstia, Sócrates na verdade estava rindo deles. É essa a crueldade que se esconde nas entrelinhas do relato platônico, com todo o seu fino humor aristocrático; e o efeito dessa politesse é torná-la ainda mais terrível.” (13)

A ironia socrática, como a descreve Stone, aparece como uma espécie de “arma” utilizada pelo filósofo visando “fazer com que todos os notáveis da cidade parecessem tolos e ignorantes”, de modo que a ação de Sócrates na arena pública era um fator de “aviltamento dos mais respeitados líderes da cidade”. (14)

Convêm, porém, nuançar um pouco esta imagem de Sócrates como um “gracejador”, um “tirador de sarro” ou um “proto-cínico”, que conduziria a uma concepção do filósofo como um cômico provocador e nada mais — o que seria um empobrecimento de sua figura. Lembremos, por exemplo, que no Livro V da República Sócrates manifesta-se contrário aos “gracejadores”, sustentando que

“É insensato aquele que julga ridícula outra coisa que não seja o mal (…) e que tenta excitar o riso tomando para objeto de suas zombarias outro espetáculo que não seja a loucura e a perversidade”. (15)


EUTÍFRON

Um bom exemplo do procedimento refutativo socrático encontra-se no Eutífron, diálogo em que Sócrates dialoga com um sacerdote que se encaminha para o tribunal para acusar seu próprio pai pelo homicídio de um empregado. Este texto platônico já flagra Sócrates na fase final de sua vida, quando ele já havia sido “indiciado” por Meleto e preparava-se para ir a julgamento; tanto que se lermos na sequência o Eutífron, a Apologia, o Críton e o Fédon, notamos que estes quatro diálogos constituem um pormenorizado relato “romanceado” da “via-crúcis” socrática, por assim dizer, incluindo seu julgamento, sua fala no tribunal e sua condenação à morte (Apologia), sua temporada na prisão e a frustrada tentativa de seus amigos de persuadi-lo a fugir (Críton), e enfim a cena em que Sócrates bebe a cicuta depois de “edificar” seus discípulos quanto à questão da imortalidade da alma (Fédon).

Destes quatro diálogos, o Eutífron possui a peculiaridade de ser o mais incisivamente refutativo, já que o filósofo conduz seu interlocutor não só a um estado de confusão, mas a uma “evasão”: o questionado prefere fugir da conversa a prosseguir arguindo com Sócrates.

Como de praxe, Sócrates dialoga com um interlocutor que é reputado sábio ou que tem a orgulhosa presunção de sê-lo. “Afirmas que conheces mais do qualquer outra pessoa a respeito de matérias atinentes aos deuses”, diz a Eutífron um Sócrates que soa irônico e provocativo (16). Eutífron, que possui plena convicção de que sabe distinguir o Bem do Mal, o pio do ímpio, o sagrado do profano, verá que o diálogo com o filósofo o conduz ao desnorteio, quando antes de seu caminho se cruzar com o de Sócrates parecia não ter dúvida alguma de estar agindo de modo idôneo e moralmente irreprochável ao acusar seu próprio pai de homicídio.

“Se não tivesses um claro conhecimento do religioso e do irreligioso”, diz-lhe Sócrates, “decerto não terias ousado processar teu velho pai por homicídio em defesa de um servo. Terias temido o risco de incorrer na ira dos deuses no receio de uma conduta incorreta e te sentirias envergonhado diante dos homens.” (17)

A situação que os dois discutem representa uma espécie de dilema moral para um filho, confrontado com seu dever cívico de denunciar um crime e sua fidelidade ao próprio pai. Eutífron, dando primazia à um certo senso de “dever” moral sobre a lealdade sanguínea, dirige-se ao tribunal para prestar queixa contra o próprio pai, que havia lançado um de seus servos numa vala, depois que este havia matado um homem numa briga. O servo, sem água ou comida, acabou falecendo.

No decorrer do debate, Sócrates solicita de seu interlocutor que lhe dê uma noção geral de “piedade”, e não somente exemplos de ações pias ou ímpias: “eu não lhe havia pedido que me ensinasse uma ou duas das muitas ações pias, e sim a feição (êidos) mesma pela qual tudo que é piedoso é piedoso” (18).

Eutífron, a princípio, sustenta a tese de que tudo aquilo que é agradável aos deuses é piedoso, e que, pelo contrário, comete uma impiedade todo aquele que age de um modo que desagrada aos deuses. O que Sócrates lhe mostra é que este argumento, que até teria chances de se sustentar num contexto monoteísta, mostra-se frágil e contraditório no universo religioso grego dominado pelo politeísmo, em que concebia-se que os deuses podiam muito bem discordar e brigar entre si.

“Não seria de se surpreender”, argumenta Sócrates, “se ao punires teu pai como estás fazendo estivesses realizando uma ação cara a Zeus, mas odiosa a Cronos e Urano, e cara a Hefaístos, mas odiosa a Hera”. (19) Eutífron admite que Sócrates tem razão e vê esfacelar-se, portanto, a definição que havia fornecido de “ato piedoso”. Ambos partem em busca de um conceito melhor de “piedade”, que possuísse a universalidade sempre requerida por Sócrates para uma definição satisfatória.

Os dois se enredam em debates sobre o que representaria aquilo que agrada ou desagrada a todos os deuses, sem exceção, e que poderia servir como definição do ato piedoso perfeito. Inspeccionam a natureza do “comércio” entre homens e deuses, em que sacrifícios, oferendas e preces humanas são dedicadas aàs divindades. Afinal, Sócrates vê seu interlocutor praticar uma “fuga” do debate, provavelmente por sentir-se incapaz de fornecer ao filósofo respostas que o satisfizessem: “Indo embora me deixas abatido e órfão da grande esperança que nutria de aprender de ti o que é o religioso e o que não é, podendo livrar-me da ação pública movida por Meleto mostrando-lhe que obtive sabedoria acerca de assuntos divinos de Eutífron, não sendo mais vítima da ignorância que me leva a ser descuidado e inovador em relação a essas coisas…”.(20)

A antipatia e o ódio que Sócrates despertou em muitos de seus contemporâneos, e que se explica em parte por sua ironia, seu abstencionismo político, sua tendência a “destronar” homens reputados como sábios, talvez se explique também por uma certa postura anti-democrática que um comentador moderno como I. F. Stone diagnosticou no filósofo. Sabe-se que, como exposto na República de Platão, a “cidade ideal” seria gerida por um filósofo-rei; ou seja, a democracia ateniense como existia na era de Sócrates deveria ser substituída por uma espécie de “aristocracia do saber”, por assim dizer, em que não faltam certos elementos do que hoje chamamos de totalitarismo. Sabe-se ainda que alguns dos discípulos de Sócrates, tal como Alcebíades e Cármides, não foram muito benquistos pelos democratas atenienses por suas ações políticas.

Em seu comentário crítico sobre o Eutífron, Stone procura apontar esta problemática posição política de Sócrates, que neste caso parece manifestar uma certa “indiferença” em relação ao criado que o pai de Eutífron acabou matando com sua severa punição.

“Nem uma única vez Sócrates manifesta sentimento algum de piedade em relação ao pobre trabalhador sem terra. Seus direitos jamais são mencionados. Teria sido uma atitude ‘piedosa’ deixá-lo exposto ao frio e à fome, enquanto o proprietário resolvia, sem nenhuma pressa, o que fazer com ele? (…) Sem dúvida, é terrível um filho levar o pai a julgamento. Mas, segundo os critérios atenienses e gregos, o pai não podia inocentar-se em relação à morte do trabalhador sem ter sido julgado. (…) Se ninguém maisia levar aquele proprietário à cerimônia de purgação que representava o julgamento, então não seria dever de seus filho assumir essa tarefa dolorosa?” (21)

I. F. Stone diagnostica na postura socrática no Eutífron um certo “preconceito de classe” tácito que seria “reflexo do desprezo que Sócrates sentia pela democracia”, tese que o livro O Julgamento de Sócrates insiste em frisar através de vasta documentação histórica. Segundo Stone, Sócrates teria tratado o homem que o pai de Eutífron matou como um “mero criado”, indigno de compaixão, jamais em momento algum do diálogo reconhecendo que um crime sério havia sido cometido, e que seria uma injustiça a impunidade de um poderoso num caso em que a punição havia caído sobre o “despossuído” com tamanha força (e de um modo fora da legalidade).

“Eutífron é ridicularizado no diálogo, sendo encarado como uma espécie de fanático supersticioso, mas sua atitude é mais humana que a de Sócrates”, sustenta Stone. “Evidentemente, Eutífron julgava que o que estava em questão era um dever que transcendia as obrigações filiais e diferenças de status e classe. Sócrates deixa de lado esse aspecto da questão. A idéia de que todos são iguais diante da lei, ou de justiça social, jamais é discutida no diálogo. (…) A indiferença manifestada por Sócrates em relação ao empregado teria parecido a seus concidadãos semelhante à indiferença com que ele havia encarado a situação dos thetes em 411 e 404 a.C. (…) [Sócrates] não se exilara durante nenhum dos períodos da ditadura, nem participara da restauração do regime democrático. Sócrates não manifestava nenhum interesse pelos direitos dos pobres, nem pela justiça social. A atitude de Eutífron é que era democrática.” (22)


A BARCA FATAL


“Para o mesmo lugar somos todos tangidos e a sorte,
que mais cedo ou mais tarde há de vir,
e há de na barca pôr-nos para o eterno exílio,
já na urna se agita.”

(HORÁCIO) (23)

Outra característica essencial de Sócrates, que se manifesta na Apologia platônica e em diálogos como o Críton e o Fédon, é a idéia de que a virtude deve prevalecer sobre o temor da morte. Aquilo que o homem considera ser o justo e o virtuoso deve ser sustentado até frente ao último abismo, até mesmo sob a mais letal ameaça.

O julgamento de Sócrates, que este enfrenta já no outono de seus anos, mostra-nos um velho filósofo que demonstra muita ousadia quando ameaçado com uma punição que faria tremer em suas bases a maior parte dos homens. E assim se explica: “À morte não ligo mais importância que a um figo podre, mas a não cometer nenhuma injustiça ou impiedade, a isso sim dou o máximo valor” (24).

Lembremos que Sócrates recusa-se a adotar métodos sentimentalóides, como súplicas entre lágrimas e dramas lamurientos, na tentativa de “amolecer o coração” de seus juízes e conquistar sua absolvição. O filósofo está convicto de não ter culpa alguma e não irá fazer uma falsa confissão com o intuito de retirar seu pescoço do gládio — ou sua língua da cicuta. Sócrates já está próximo da morte quando é julgado, e sabe disso; mas não se esgoela, se descabela ou se descontrola frente a esta perspectiva tão acabrunhante para a maioria de nós. Sua postura frente à Grande Foice que nos ceifa a todos é mais de serenidade e resignação que de angústia e apreensão.

É só trazer à mente a cena em que Críton, visitando seu mestre na prisão de Atenas, após este ser condenado à morte, admira Sócrates enquanto este dorme, depois comunicando o quanto ficou maravilhado com a “placidez” do sono e com a “brandura” com que o filósofo suporta sua “desgraça”. E admira que Sócrates aja sem dar mostras de dilaceramentos e transtornos de angústia estando numa situação que deixaria quase todos homens em estado de “aflição”. (25)

No discurso frente aos juízes, segundo a Apologia, Sócrates não tem a pretensão de saber com certeza o que a morte é: supor deter um conhecimento como tal, aliás, seria ser infiel ao seu princípio “sei que nada sei”. Mas ele imagina que a morte só possa significar uma de duas coisas, e que ambas lhe aparecem como perspectivas “agradáveis”.

“Morrer é uma destas duas coisas: ou o morto é igual a nada, e não sente nenhuma sensação de coisa nenhuma; ou então, como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte! (…) Se, de outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes? Se, chegando ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar os verdadeiros juízes (…), não valeria a pena a viagem? Quanto não daria qualquer de vós para estar na companhia de Orfeu, Museu, Hesíodo e Homero? Por mim, estou pronto a morrer muitas vezes, se isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento maravilhoso…” (26)

Isto se assemelha a uma argumentação semelhante, mas de cunho epicurista, referendada por Lucrécio em seu clássico De Rerum Natura, obra na qual o poeta latino, discípulo de Epicuro, procura contribuir, entre outras coisas, para livrar a humanidade das superstições e do medo da morte. Lucrécio decerto não imagina a possibilidade de uma “transmigração” da alma, o que não se coadunaria com seu materialismo, mas também procura persuadir o seu leitor de que a idéia da morte não deve afligi-lo. Montaigne cita e comenta o trecho nos seguintes termos:

“Se soubestes usar a vida e gozá-la quanto pudestes, ide-vos e vos declareis satisfeitos; ‘por que não sair do banquete da vida como um conviva saciado?’ (Lucrécio) Se não a soubestes usar, se ela vos foi inútil, que vos importa perdê-la? E se ela continuasse em que a empregaríeis? ‘Para que prolongar os dias de que não se saberá tirar melhor proveito do que no passado?’ (idem)” (27)

Decerto que a hipótese socrática sobre a morte, que concebe a possibilidade de uma continuação da vida no Hades e que mantêm viva a esperança de uma imortalidade da alma (que um diálogo como o Fédon se propõe a provar), soa mais otimista que esta de Lucrécio (que talvez possa ser considerado muito mais como um precursor de Schopenhauer). Mas o paralelo serve para frisar o quanto a filosofia, desde os seus primórdios gregos, e já na persona de Sócrates, teve como uma de suas tarefas esta: a de exorcizar o terror frente à morte que apavora tantos seres humanos através da história. Tanto que Montaigne pôde dizer que “filosofar é aprender a morrer”.

“Não se tenha por difícil escapar à morte, porque muito mais difícil é escapar à maldade: ela corre mais ligeira que a morte” (Apologia, op cit, pg. 36). Com estas palavras, Sócrates destaca uma vez mais que sua preocupação é muito mais a “sanidade moral da alma”, por assim dizer, do que uma instintitiva e horrorizada recusa da morte. “Para o homem nenhum bem supera o discorrer cada dia sobre a virtude” (op cit, 34), aponta, de certo modo apontando a si mesmo como alguém que, através de seus incômodos questionamentos, contribui para uma espécie de “evolução moral” da comunidade.

“Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude…” (op cit. 27), destaca Sócrates, garantindo aos atenienses que “enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixará de filosofar” e “há de repreendê-los por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos” (op cit., 26).

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REFERÊNCIAS:

1 PLATÃO. Apologia de Sócrates. Ed. Cultrix, 5a edição. Tradução direto do grego de Jaime Bruna. Pg. 17.
2 GIANETTI, Eduardo. Vícios Privados, Benefícios Públicos? A ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, 7a ed, pg. 28.
3 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Editora Ática, 5a edição. Pag.38.
4 PLATÃO. Apologia. Op cit. Pg. 33.
5 XENOFONTE, Apologia, 16-17 (Loeb 4:651).
6 PLATÃO. Teeteto. 150 bc.
7 VERNANT, Jean-Pierre. Mito & pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian. Ed. Paz e Terra. 2 a edição. Pgs. 233-234.
8 O rito das Anfidromias, como explica Vernant, é uma espécie de equivalente grego do cerimonial cristão do batizado: “festa familiar celebrada, conforme o caso, no quinto, no sétimo ou no décimo dia a partir do nascimento, a cerimônia coincide por vezes com a imposição do nome à criança; mas a sua função própria é consagrar o reconhecimento oficial do récem-nascido por seu pai.” (op cit, pg. 229).
9 PLATÃO. Teeteto, 160c-161a.
10 CÍCERO. Sobre a Natureza dos Deuses, 1.5.11 (Loeb 19:15).
11  PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1974. 10a edição. pg. 112.
12 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia.Trad. Alfredo Bosi. Editora Martins Fontes. Ed. 674.
13 STONE, I. F. O Julgamento de Sócrates. Trad Paulo Henriques Britto. Ed Companhia de Bolso, 1a ed. Pg. 108.
14 STONE, I. F. Op cit, pg. 109.
15 PLATÃO. A República. Livro V. Ed. Abril Cultural, pg. 153.
16 PLATÃO. Eutífron. 13e.
17 Op cit. 14 d-e.
18 Op cit. 6e.
19 Op cit. 8e.
20 PLATÃO, Eutífron. 16a.
21 STONE, I. F. Op cit. Pg 180-181.
22 STONE, I. F. Op cit. Pg 184-185.
23 HORÁCIO. Odes. Primeiro Livro, 25-30. Consultado em: http://lingualatina.pro.br/pdfs/horacio.pdf.
24 PLATÃO, Apologia, op cit, pg. 29.
25 PLATÃO, Críton. Pg. 119.
26 PLATÃO. Apologia de Sócrates, Op cit, pg. 37-38.
27 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, Livro I, capítulo 20. São Paulo: Abril Cultural. Coleção Os Pensadores, 1972, pg. 53.

“Do mesmo modo que a mâia liberta as mulheres que sofrem do parto, Sócrates liberta os jovens das verdades que conservam em si, sem poder trazê-las à luz. Mas sua arte vai mais longe que a das parteiras comuns: cabe-lhe a incumbência de ‘pôr a prova’ o rebento engendrado, a fim de discernir se se trata de um falso semblante enganador ou de um produto de boa estirpe e autêntico.”