PALAVRAS MUDAM O MUNDO? – Reflexões sobre a performatividade da linguagem e a transformação da realidade

PALAVRAS MUDAM O MUNDO?

Há certos mitos, poderosos e hegemônicos, que nos convidam a crer na Palavra como força criadora de uma nova realidade. Basta que nos lembremos do Gênesis bíblico, recentemente re-apresentado nos traços malandros de Robert Crumb:

Neste mito fundador das religiões monoteístas, afirma-se que Deus possuiria o dom de transformar suas falas em atos. Em suma: com Deus, é dito e feito. O cara abre a boca pra falar fiat lux, e no momento seguinte, eis a Luz surgindo pela primeira vez para iluminar a infindável treva cósmica.

Aquilo que atribui-se a deus – a potência de tornar meras palavras em autênticos atos – é aquilo que se conhece hoje, na boca de linguistas, filósofos e psicólogos, como performatividade. No âmbito humano, também são performativas as falas de um juiz que fala um veredito e bate um martelo ou as falas de um casal que diante do padre faz seus votos de matrimônio e assim acarreta a consumação de um pacto jurídico.

Mas voltemos um instante nossa atenção mais demorada ao Fiat Lux, fenômeno mítico-imaginário já ilustrado por vários pintores, como Gustave Doré. Segundo Debray, a performatividade (teorizada pelo filósofo da linguagem inglês J. L. Austin) tem este paradigma no faça-se a luz e nós costumamos transpô-lo para outras esferas da existência humana:

A CRIAÇÃO DA LUZ de Doré

“A divina aptidão para transformar um dizer em fazer: fiat lux, e a luz se fez… Enunciação = Criação. Já esquecemos, talvez, o Gênesis, mas o senso comum, no fundo, julga sempre que é Javé quando evoca não as trombetas que derrubam as muralhas de Jericó, mas os livros que ‘criam rupturas’, ‘as palavras que abalaram o mundo’, ‘as ideias que modificam a face das coisas’ etc.” (DEBRAY, 1995, p.20)

Poderíamos nos perguntar, é claro, que sentido isso tem de um Deus, antes de fazer a Humanidade, já falar latim… Mas este não é o momento de colocar dúvidas ímpias e sacrílegas, pois como nos ensinam papas e padres, diante de questões como “o que fazia Deus antes de inventar Adão e Eva?”, a resposta é: estava preparando o fogo da eterna condenação infernal para aqueles que põe questões heréticas assim. Portanto, deixemos de lado nossas cruciantes dúvidas sobre se Adão e Eva tinham umbigos, e voltemos ao fiat lux.

A dessemelhança entre o humano e o divino aí se torna explícita. Obviamente, e por sorte, nós humanos não somos nada como o Javé do Antigo Testamento. Nada do que dissermos será capaz de acender nosso cigarro caso não tenhamos à mão um fósforo ou isqueiro. Nem tentem, na ausência de algum apetrecho gerador de fogo concreto, apelar para um fiat lux meramente labial, pois vocês ficarão no escuro e com o baseado sem queimar. E aí não tem graça…

 

II. LIVROS MUDAM PESSOAS?

No entanto, ouvimos por aí, da boca de Quintanas e outros poetas, que os livros, apesar de não mudarem o mundo, mudam as pessoas, e estas sim transformam o mundo. Donde, indiretamente, de modo enviesado, por misteriosas e múltiplas influências, o Verbo teria sim um poder sobre a Carne.

É o que Régis Debray chama de “o mistério performático”, ou seja, a capacidade da palavra gerar efeitos no mundo. O enigma da palavra-ação, do Verbo-fecundo, da linguagem que causa efeitos no mundo:

“O fato de que uma representação do mundo possa modificar o estado do mundo – e não somente sua percepção, considerada como natural – terá de ser encarada como um enigma”, escreve Debray. Ele enumera alguns exemplos “evidentes” do mistério performativo:

“Que a palavra de Jesus de Nazaré tenha conseguido, em certo ponto de seu percurso, transformar o Império Romano e dar origem à cristandade; que a pregação do Papa Urbano II, em Clermont – lançando nas estradas bandos de peregrinos e depois exércitos inteiros – tenha conseguido fazer surgir a primeira Cruzada; que o Manifesto Comunista tenha conseguido fazer surgir um ‘sistema comunista’…” (DEBRAY, op cit, p. 20)

Façamos uma reflexão sobre “the power of words” (os “os poderes da palavra”, na expressão de Edgar Allan Poe). Este poderio de transformação que a palavra carrega entre suas potencialidades também se manifesta nas ciências humanas, em várias de suas especialidades.

Como lembra Debray, “a eficácia dos signos, a respeito desse mamífero simbólico que é o Homo sapiens e loquens, tem sido amplamente abordada. A partir do exemplo das recitações do xamã diante da parturiente de sua tribo, a antropologia nos mostrou como ‘a passagem à expressão verbal desbloqueia o processo fisiológico’ (Lévi-Strauss). O psicanalista confirma em seus clientes as virtudes da talking-cure (Freud). O sociólogo da cultura coloca em evidência a violência simbólica exercida pelos dominadores (Bourdieu)…” (DEBRAY, op cit, p. 19)

Também ouvimos falar de “livros que fazem a Lei”. Também não faltam exemplos de execuções capitais que retiram sua legitimidade de códigos jurídicos (quantas leis de pena-de-morte ainda não estão por ser revogadas?). Não faltam homicidas, terroristas, suicide bombers, serial killers, que deixem de invocar justificações verbais para seus atos, dizendo-se inspirados pelas palavras da Bíblia, do Alcorão, do Mein Kempf ou de um discurso de Stálin.

A revolução que Régis Debray propõe para as ciências humanas está na fundação de uma nova ciência, a midiologia, que busca compreender a eficácia dos signos, o poder das palavras, a disseminação social das mensagens, o poder de contágio e mobilização do verbo. Nos seus Manifestos Midialógicos, Debray propõe que o midiólogo está interessado em “defender o direito do texto – surgido de experiências e necessidades estranhas à ordem das palavras – a produzir algo diferente do texto”:

“Já que os homens, após a invenção da escrita, têm feito uma mistura entre a informação simbólica e a decisão política, entre batalhas de interpretação e batalhas sem mais (como na querela das imagens, as guerras de religião ou as insurreições nacionalitárias), com verdadeiros mortos e verdadeiras armas, o midiólogo gostaria de acompanhar de perto os avatares extralógicos do lógos. Já que um dizer, em determinadas condições, pode produzir um fazer, ou um mandar fazer…” (DEBRAY, p. 90)

Sabe-se que o poder de sugestão, ou seja, capacidade não só de comover mas de mover à ação, de discursos feitos púlpitos ou tribunas, pronunciados diante de um exército ou de uma multidão rebelada, é capaz de fazer da retórica, da eloquência, da poesia, da cantoria, da palavra-de-ordem, uma força concreta, objetiva, um poder psico-físico que gera transformações no mundo.

Para que a Bastilha fosse tomada, em Paris, em 14 de Julho de 1789, as palavras tiveram seu papel, não há dúvida; porém a eficácia concreta destas palavras não pode ser compreendida apenas pela força imanente a elas, pelas ideias que veicula, pelos conceitos que mobiliza. É preciso compreender o veículo que transmite estas palavras, a mídia através da qual ela viaja.

É preciso perguntar, por exemplo: é o deus Hermes, aquele das sandálias aladas, ou um trem a vapor que leva um certo recado de seu emissor a seu destinatário? Esta mensagem, de coração a coração, vai numa carta manuscrita levada pelos ares por um pombo-correiro, ou então consiste em caracteres digitais transmitidos pela Internet de PC a PC? O suporte material da palavra tem importância crucial em sua eficácia.

III. A INVENÇÃO DA MIDIALOGIA

Entre o fiat lux do mito judaico-cristão e nosso atual estado civilizacional, muitas revoluções aconteceram pelo caminho, dentre elas a invenção da imprensa, ou seja, dos meios tecnológicos e científicos de levar o verbo aonde ele nunca antes estivera. As novas mídias nascidas da Revolução Gutenberguiana alçam a linguagem verbal para novos vôos de poder.

Agora o Verbo é mais “viralizável” (e muito antes desta viralização se tornam uma palavra que é moeda corrente na era digital). Com a imprensa, se podia fazer usos mais extremos do Verbo como ferramenta de mobilização, disseminá-lo pelo tecido social de maneira inaudita e inédita, enterrando a era do manuscrito, descortinando horizontes midiáticos novos.

“A técnica de Gutenberg devia transtornar, se não as modalidades de leitura, pelo menos o estatuto simbólico e o alcance social do documento escrito através da alfabetização de massa. Por exemplo, a análise do movimento das ideias na França do século XVIII, interessante para a midiologia, há de privilegiar esses espaços-chave, pólos de atração social e centros de elaboração intelectual, como foram os clubes, salões, cenáculos, lojas, câmaras de leitura, sociedades literárias, círculos, sem falar das academias e instituições mais regulares.

Sob este ponto de vista, as Luzes não são um corpo de doutrinas, um conjunto de discursos ou princípios que poderiam ser apreendidos e restituídos por uma análise de texto, mas uma mudança no sistema de fabricação ; circulação / estocagem dos signos. Ou seja, o aparecimento de núcleos e redes de sociabilidade, interfaces portadoras de rituais e de novos exercícios, valendo como meios de produção de opinião… Trata-se de uma reorganização (…) do espírito público. Não foram as ideias ou as temáticas das Luzes que determinaram a Revolução Francesa, mas essa logística (sem a qual tais ideias nunca teriam tomado corpo.” (DEBRAY, p. 24 e 31)

Paul CeŽzanne (French, 1839 – 1906 ), The Artist’s Father, Reading “L’ƒvŽnement”, 1866, oil on canvas.

Encontramos uma reflexão sociológica inovadora sobre estes temas na obra de Gabriel de Tarde, A Opinião e As Massas, que também reflete sobre a Revolução Francesa chamando a atenção para este elemento fundamental para sua compreensão plena: a prévia invenção da imprensa e, por consequência, o advento do jornalismo público; o nascimento conexo, no seio da sociedade, daqueles agrupamentos de pessoas que são bem diferentes das meras multidões: vem ao palco da história “o respeitável público”, a quem a imprensa se dirige querendo estabelecer uma conversa entre cidadãos.

“O público só pôde começar a nascer após o primeiro grande desenvolvimento da invenção da imprensa, no século XVI. O transporte da força à distância não é nada, comparado a esse transporte do pensamento a distância. O pensamento não é a força social por excelência? Pensamos nas idéias-força de Fouillé…

Da Revolução Francesa data o verdadeiro advento do jornalismo e, por conseguinte, do público, de que ela foi a febre de crescimento. Não que a Revolução também não tenha suscitado multidões, mas nisso não há nada que a distinga das guerras civis do passado… Uma multidão não poderia aumentar além de um certo grau, estabelecido pelos limites da voz e do olhar, sem logo fracionar-se ou sem tornar-se incapaz de uma ação de conjunto, sempre a mesma, aliás: barricadas, pilhagens de palácios, massacres, demolições, incêndios. (…) Contudo, o que caracteriza 1789, o que o passado jamais havia visto, é esse pulular de jornais, avidamente devorados, que eclodem na época.” (TARDE, p. 12)

Polemizando com a obra de Gustave Le Bon, inovadora no campo da psicologia das massas, Gabriel de Tarde contesta que o período histórico da passagem do século XIX ao XX seja “a era das multidões” e propõem chamá-lo de “a era dos públicos”.

“Não é que as multidões foram aposentadas, pararam de existir, muito pelo contrário, perseguem visivelmente presentes em vários espaços sociais, como uma espécie de re-presentificação perene de uma força de sociabilidade primitiva, ancestral, antiquíssima, mas ainda atuante. A multidão acompanha a história deste animal social que somos, mas está vinculada a um estado mais próximo da natureza, ainda pouco transformada pelo engenho humano, do que da civilização tecnológica-científica-industrial de hoje: “a multidão está submetida às forças da natureza – um raio de sol a reúne, uma tempestade a dissipa…” (TARDE, op cit, p. 15)

Dizer que entramos na “era dos públicos” significa dizer que agora lidamos com a potência social, performativa, das mensagens transmitidas por publicistas com diferentes poderes midiáticos, ou seja, capacidades diversas de eficácia performativa. O público de um zine anarco-punk pode até constituir-se em pequena multidão e manifestar-se em ato, por exemplo, através de meia dúzia de molotovs lançados contras as vidraças de agências bancárias ou lojas de carros importados.

Era Primeiro de Abril, 1964, uma quarta-feira, e o jornal carioca O Globo dava boas vindas à ditadura militar no Brasil.

Porém a capacidade de mobilização deste micro-empreendimento midiático, quer circule em 100 cópias xerocadas, quer seja entregue em 1.000 caixas de e-mail, torna-se miúda diante do público de um jornal televisivo ou impresso que atinge diariamente dezenas de milhões de pessoas e que pode, tal qual a Rede Globo no Brasil, ser peça-chave de um golpe de Estado (como fez em 1964), da determinação de uma eleição para a presidência (como fez em 1989 no duelo entre Collor e Lula, em que tomou o partido de seu queridinho “Caçador de Marajás”), da convocação de mega-manifestações de rua (como fez durante o segundo mandato de Dilma Rousseff, 2015-2016, em que foi determinante para chamar multidões a manifestarem-se em prol do impeachment).

O poderio das empresas privadas que dedicam-se à comunicação social é uma das características mais notáveis da sociedade atual: no século XXI, muitas mega-corporações transnacionais realizam uma pervasiva ação sobre inúmeros públicos, controlando simultaneamente cadeias de TV, estações de rádio, editoras de livros, jornais e revistas impressos, além de websites e portais cibernéticos. Constituem oligopólios de tal poderio que tornam difíceis até mesmo de serem punidos aquilo que Tarde, ainda no início do século XX, chamava de “delitos de imprensa” e que já percebia como gozando de altos privilégios de impunidade:

“Eis porque é tão difícil fazer uma boa lei sobre a imprensa. É como se houvessem querido regulamentar a soberania do Grande Rei ou de Napoleão. Os delitos de imprensa são quase tão impuníveis como eram os delitos de tribuna na Antiguidade e os delitos de púlpito na Idade Média.” (TARDE, p. 22)

IV. O CASO “DEAR WHITE PEOPLE”

Um seriado de TV pode ser reduzido a uma mercadoria no mercado de bens simbólicos, a um mero item no supermercado dos entretenimentos audiovisuais? É o que torna-se cada vez mais insustentável diante de obras-primas da teledramaturgia em série como Black Mirror, A Sete Palmos (Six Feet Under), Breaking Bad, Handmaid’s Tale, Alias Grace e Dear White People.

Esta última, série original Netflix baseada em um filme homônimo dirigido por Justin Simien, tem interesse não só pela crônica inteligente que faz das relações humanas em um câmpus universitário da Ivy League, a Winchester. A série, de roteiro espertíssimo e montagem dinâmica, foca nas relações inter-raciais e no debate sobre o que constitui racismo – e quais as maneiras de enfrentá-lo.

Para além da multifacetada discussão sobre racismo, capaz de gerar acalorados debates, Dear White People é interessante e importante também como comentário sobre o poder da mídia e do jornalismo na transformação de certos contextos sócio-culturais.

Dois dos personagens principais, a radialista e cineasta Samantha White e o jornalista investigativo e escritor Lionel Higgins, buscam renovar as práticas midiáticas em seus respectivos campos de atuação.

A série, em sua primeira temporada, levantou muitas questões importantes em uma era caracterizada por muitos como dominada por um jornalismo abandonado à noção pouquíssimo ética da “pós-verdade”.

Sam White crê em uma mídia que toma partido, quer fazer no rádio uma provocação à reflexão que as autoridades universitárias e políticas logo irão querer estigmatizar como se fosse incitação à rebelião.

De fato, esta deliciosa e deslumbrante personagem que se dirige à Cara Gente Branca para denunciar microfascismos e racismos escondidos no cotidiano parece ter no sangue um pouco do espírito de Angela Davis. Seu programa de rádio é um pouco panfletário e incendiário, procura pôr a palavra falada (o rap radiofônico) para agir na base de uma diária intervenção pública de um verbo irreverente e rebelde, capaz de desembocar em riots, sit-ins, protestos.

Sam White é o tipo de âncora midiático que subverte todos os padrões tradicionais – como fez Antonio Abujamra na TV brasileira com seu programa de entrevistas Provocações. O tipo de ser-falante que evoca o exemplo de Jello Biafra, o vocalista dos Dead Kennedys, cujos discursos, transpostos para CDs de spoken word, também contêm frases que são autênticas incitações a cessar de odiar a mídia para tornar-se a mídia. Exatamente como fez o personagem de Christian Slater em Pump Up The Volume (1990), interessante obra do cineasta do Québec Allan Moyle.

A temporada de Dear White People termina com um ato de puro “heroísmo jornalístico” de Lionel. Ele é uma figura que trabalha no jornal The Winchester Independent. Ele descobre, através de suas investigações de repórter que não tem pudor de meter a fuça onde não é chamado, que a “independência” de que o órgão se gaba em seu nome não é autêntica. Ele descobre que as fontes financiadoras do jornal determinam a censura a certos temas, transformados em tabu. Os tabus são justamente aquilo que Lionel afronta, tomando o microfone e programando um flooding dos celulares e computadores de todos com o seu furo (scoop).

Cara Gente Branca possui um tecido narrativo todo atravessado por táticas de resistência típicas da cibercultura, como os procedimentos de hacking propostos por grupos como Anonymous ou de leaking tal como praticado pelo Wikileaks de Julian Assange.

Na série, a revolta dos estudantes afro-americanos, em especial os residentes de Armstrong-Parker, é vinculada com o fato de serem público do programa de rádio de Sam White e das colunas de Lionel no Independent. Esta comunidade, incendiada pela mídia, vê-se na necessidade de mobilizar-se em repúdio e revolta contra a festa “Dear Black People”, em que os branquelos racistas e supremacistas do câmpus pintam os rostos de negro como nos Minstrels Shows, para fazerem folias com processos altamente KKK de “denegrimento” do outro…

Porém, descobre-se que a própria Sam White hackeou uma conta de Facebook de seus adversários, entocados da revista supremacista-racista Pastiche. Sam White acabou convidando para a infame festa racista uma pá de gente que ali se revoltaria contra as práticas dos atuais propagadores da ideologia da Klu Klux Klan (hoje infelizmente re-empoderada por presidentes da república como Trump e Bolsonaro).

Sam White quis expor uma realidade, quis que debaixo dos holofotes de todos, para que fosse plenamente reconhecido: temos sim um problema de racismo e de supremacismo étnico nesta prestigiosa instituição educacional destinada a formar uma parte da elite cultural estadunidense do amanhã. Sam White, força performativa. Uma mulher negra empoderada que varre pra escanteio o fiat lux do MachoDeus para apostar em sua própria infinita potência feminina para produzir a luz. E o incêndio.

James Baldwin, recentemente retratado no excelente documentário de Raoul Peck I Am Not Your Negro, costumava dizer: “Not everything that is faced can be changed, but nothing can be changed until it is faced.” Este pensamento fecundo de James Baldwin, na série, inspira não só Samantha White e Lionel, os “heróis midiáticos” de Dear White People, mas sugere também algo para quem quer refutar a noção de que as palavras não mudam o mundo.

Precisamos de palavras para encarar a verdade do mundo e para estruturar nosso pensamento e nossa comunicação; se o Verbo não pode tudo, o que é verdade e deve ser reconhecido, isto não implica que não possa Nada. Na verdade, não há revolucionário que tenha desprezado a potência misteriosa das palavras que comovem e que o mundo mudam. The Word works in mysterious ways…

V. JUDITH BUTLER – UMA TEORIA EXPANDIDA DA PERFORMATIVIDADE

Em breve…

 

BIBLIOGRAFIA

DEBRAY, Régis. Manifestos Midiológicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

TARDE, Gabriel. A Opinião e as Massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

CRUMB, Robert. Gênesis. Graphic Novel.

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
Goiânia, Fevereiro de 2019

FEMINISMO ILUMINISTA EM FLOR: Conheça a vida breve mas ardente de Mary Wollstonecraft (1759 – 1797)

GALERIA TATE: Retrato de Mary Wollstonecraft (Mrs William Godwin), c.1790-1, por John Opie (1761-1807)

“O direito divino dos maridos, tal como o direito divino dos reis, pode, espera-se, nesta era esclarecida, ser contestado sem perigo.” – Wollstonecraft
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Wollstonecraft

Uma das pensadoras e escritoras mais brilhantes de sua época, a inglesa Mary Wollstonecraft (1759 – 1797), pioneira do Feminismo e uma das personagens mais luminosas do Século das Luzes, publicou seu clássico “Reivindicação Dos Direitos da Mulher” em 1792.

Era uma resposta à Constituição Francesa de 1791, que não incluía as mulheres na categoria de cidadãs, uma calamidade que ela não cessou de denunciar, inconformada “que metade da humanidade seja excluída pela outra metade de toda participação no governo” (situação também denunciada, na própria França, por Olympe de Gouges, decapitada pelos jacobinos em 1793https://bit.ly/2woCUcs).


No prefácio da edição em português do “Vindication of the Rights of Woman”, publicada pela Boitempo, sintetiza-se: “O livro denuncia os prejuízos trazidos pelo enclausuramento feminino na vida doméstica, a proibição do acesso a direitos básicos, em especial à educação formal, situação que fazia delas seres dependentes dos homens, submetidas a pais, maridos ou irmãos.” (MORAES, p. 07)

Corajosa ao confrontar as teses obscurantistas e machistas de grandes pensadores da época, como Jean-Jacques Rousseau, Mary Wollstonecraft soube polemizar, de cabeça erguida e argumentação arrojada, contra o tratado pedagógico “Emílio”, no qual Rousseau pregava a segregação de gênero na educação (Emílio e Sofia não sendo dignos, segundo o filósofo de Genebra, de uma educação igualitária):


“Rousseau declara que uma mulher não deveria sentir-se independente, que ela deveria ser governada pelo temor de exercitar sua astúcia natural e feita uma escrava coquete, a fim de tornar-se um objeto de desejo mais sedutor, uma companhia mais doce para o homem, quando este quiser relaxar… No que diz respeito ao caráter feminino, a obediência é a grande lição a ser inculcada com extremo rigor. Que bobagem!” – MARY WOLLSTONECRAFT (p. 47)

Casada com o livre-pensador anarquista William Godwin, Mary Wollstonecraft faleceu muito jovem, aos 38 anos de idade, poucos dias após o parto de sua filha, aquela que viria a ser Mary Shelley, autora de “Frankenstein” e esposa do poeta Percy Shelley (também morto prematuramente). Mary Shelley, mesmo sem ter conhecido sua mãe (e xará) Mary Wollstonecraft, honraria a trajetória de sua mãe com a pena em punho.

Mary Wollstonecraft retratada em pintura de John Opie

 

Luis Felipe Miguel nos ensina que “Mary Wollstonecraft (1759-1797) é geralmente considerada – por boas razões – a fundadora do feminismo. Seu pensamento marca a primeira elaboração sistemática de um entendimento das raízes da opressão sofrida pelas mulheres. Sua obra mais importante, Reivindicação dos direitos das mulheres (Editora Boitempo), foi publicada em 1792 e sofreu, também, o influxo da Revolução Francesa.

A autora havia publicado, dois anos antes, Reivindicação dos direitos do homem, como resposta às Considerações sobre a revolução em França, obra antirrevolucionária de Edmund Burke. Portanto, foi também a promessa de emancipação dos homens, pelos republicanos franceses, que levou Wollstonecraft a sistematizar suas reflexões sobre a necessidade de e os obstáculos para a emancipação das mulheres.

O programa dessa primeira fase do feminismo tinha como eixos a educação das mulheres, o direito ao voto e a igualdade no casamento, em particular o direito das mulheres casadas a dispor de suas propriedades. Ao colocar, com clareza exemplar, o problema em termos de direitos, Wollstonecraft promove uma inflexão na direção da construção de uma teoria política feminista. Ela é também uma autora singular pela maneira como, ao tratar dessas questões (com o foco voltado particularmente para a primeira delas), combina a adesão (quase inevitável) às ideias dominantes da época com elementos de inusual radicalidade.

É assim, por exemplo, que a demanda por educação tem por objetivo exclusivo permitir o livre desenvolvimento da mulher como ser racional, fortalecendo a virtude por meio do exercício da razão e tornando-a plenamente independente.

É evidente que as determinações sobrepostas das desigualdades de gênero, classe e raça não aparecem no feminismo do século XVIII e XIX da forma como foram desenvolvidas por parte das feministas posteriores. O próprio paralelo entre a situação das mulheres e dos escravos revela que as escravas não participavam do coletivo em nome do qual as sufragistas falavam.

Portrait of Sojourner Truth (ca. 1797-1883)

WIKIPÉDIA: Sojourner Truth, nascida Isabella Baumfree, foi uma abolicionista afro-americana e ativista dos direitos das mulheres..

“Uma feminista de trajetória invulgar como Sojourner Truth (c. 1797-1883), que foi escrava e empregada doméstica antes de se tornar oradora política, mostra que, se não era produzida uma reflexão aprofundada, ao menos havia, em parte do movimento de mulheres da época, uma sensibilidade para entender a condição feminina de forma bem mais complexa. Ela observou, em seu famoso discurso “Ain’t I a woman?”:

“Aquele homem diz que as mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, erguidas para passar sobre valas e receber os melhores lugares em todas as partes. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama nem me deu qualquer bom lugar! E eu não sou uma mulher? Olhem pra mim! Olhem pro meu braço! Tenho arado e plantado e recolhido em celeiros, e nenhum homem poderia me liderar! E eu não sou uma mulher? Posso trabalhar tanto quanto e comer tanto quanto um homem – quando consigo o que comer – e aguentar o chicote também! E eu não sou uma mulher? Dei à luz treze filhos e vi a grande maioria ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei com minha dor de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! E eu não sou uma mulher?” SOJOURNER TRUTH

In: MIGUEL, Luis Felipe. Boitempo, idem.)

SIGA VIAGEM:

Poeta e romancista Alice Walker, autora de “A Cor Púrpura”, lê o discurso de 1851 de Sojourner Truth. Evento: “Voices of a People’s History of the United States” (Howard Zinn and Anthony Arnove), Nov. 2006, em Berkeley, California.

Por outro lado, o século XIX viu também o surgimento de um feminismo socialista que, por conta da radicalidade de suas propostas, ficou à margem das correntes dominantes do sufragismo. Flora Tristan (1803-1844), figura pública e escritora influente em sua época, fez da situação da mulher trabalhadora um dos eixos centrais de seu tratado socialista utópico sobre a união operária, vinculando opressão de classe e de gênero.

FLORA (2011, 27 min)
Um filme de Lorena Stricker

ASSISTA AO FILME COMPLETO:

Já os escritos de Marx e Engels deixaram um legado ambíguo. Por um lado, fizeram a defesa ardorosa da igualdade entre homens e mulheres, que, com eles, tornou-se parte inextricável do projeto socialista. Por outro, tenderam a ler a dominação masculina como um subproduto da dominação burguesa, anulando a especificidade das questões de gênero que o feminismo sempre buscou destacar. Ainda assim, é impossível negar o impacto que uma obra como A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels, teve para vincular a organização da esfera doméstica à sociedade mais ampla.12

Na passagem do século XIX para o século XX, um corpo plural de pensamento feminista socialista se estabeleceu, incluindo bolcheviques como Clara Zetkin (1857-1933) e Alexandra Kollontai (1872-1952) ou anarquistas como Emma Goldman (1869-1940).”

LUIS FELIPE MIGUEL

* Este texto integra o livro Feminismo e política: uma introdução, de Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli, que reúne em 10 capítulos esquemáticos as principais contribuições da teoria política feminista produzida a partir dos anos 1980 e apresentam os termos em que os debates se colocam dentro do próprio feminismo, mapeando as posições das autoras e correntes atuais.

LEIA O ARTIGO NA ÍNTEGRA

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LEIA TAMBÉM – Por Diana Assunção

No fim do século XVIII, logo após a França ser palco da maior revolução burguesa da história, que exigia liberdade, igualdade e fraternidade, diversos questionamentos passaram a clamar pela extensão de tais direitos a toda a humanidade, e não apenas aos homens brancos europeus: o primeiro surgiu na colônia francesa no Haiti, que já em 1791 deu início à sua revolução negra; logo em seguida, em 1792, fez-se ouvir o protesto feminista de Mary Wollstonecraft, de Londres, que exigia justiça para as mulheres, excluídas do papel de cidadãs pela Constituição Francesa recém-promulgada.

Foram, portanto, as próprias ideias iluministas que influenciaram Mary a enfrentar grandes nomes como Jean-Jacques Rousseau e Denis Diderot, os quais, apesar de se basearem na razão, guardavam para a mulher um lugar inferior na sociedade. Mary Wollstonecraft sustentava que a dependência econômica das mulheres, bem como sua impossibilidade de acesso à educação racional, transformava-as em seres infantis e resignados.

A obra Reivindicação dos direitos da mulher é considerada uma das precursoras do feminismo, escrita em um momento anterior ao das grandes lutas proletárias, quando a burguesia ainda carregava uma missão revolucionária.

As ondas seguintes do feminismo internacional já teriam como palco o mundo capitalista, em que a burguesia não somente deixaria de ter papel revolucionário como conduziria a humanidade aos massacres das duas guerras mundiais, convertendo o mundo em uma suja prisão.

Para dar continuidade à obra de Mary Wollstonecraft, hoje o protesto feminista precisa ser também anticapitalista e se ligar à classe trabalhadora, a classe revolucionária da nossa época. É um grande acerto a Boitempo Editorial resgatar essa voz contra a cruel opressão cotidiana, uma voz que continua viva em milhões de mulheres – meninas, negras, indígenas e imigrantes em todo o mundo.

Diana Assunção

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Prefácio por Maria Lygia Quartim de Moraes

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Extraído do primeiro volume antologia de clássicos da literatura universal em quadrinhos Cânone gráfico, organizado por Russ Kick e publicado pelo Barricada, novo selo de HQs da Boitempo

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Para um estudo aprofundado sobre o pensamento feminista socialista do início da virada do século, recomendamos o fundamental Mulher, Estado e a Revolução: política da família Soviética e da vida social entre 1917 e 1936, da historiadora americana Wendy Goldman.

Leia também, no Blog da Boitempo: “Marx contra a opressão das mulheres“, em que Michael Löwy apresenta uma pequena e quase esquecida obra de Marx que “constitui um protesto apaixonado contra o patriarcado, a sujeição das mulheres – incluídas as “burguesas” – e a natureza opressiva da família burguesa.”

Confira o Dossiê FEMINISMO E POLÍTICA, no Blog da Boitempo, com artigos, vídeos, resenhas e indicações de leitura de Maria Rita KehlLaerte CoutinhoMichael LöwyLudmila Costhek AbílioFlávia BiroliMaria Lygia Quartim de Moraes, Lincoln SeccoUrariano MotaLuis Felipe MiguelIzaías Almada, Ursula Huws, entre outros!


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A PALAVRA DECAPITADA – O destino emblemático de Olympe de Gouges (1748 – 1793), feminista e anti-escravagista decapitada pelos jacobinos

A PALAVRA DECAPITADA

Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Homem, você é capaz de ser justo? Quem te deu o soberano império de oprimir o meu sexo?” – Olympe de Gouges (1748 – 1793)

Em Novembro de 1793, ela foi guilhotinada em Paris. Dois anos antes, havia escrito: “A mulher tem o direito de subir ao cadafalso; deve ter igualmente o de subir à Tribuna.” (Declaração dos direitos da mulher e da cidadã – 1791). Olympe de Gouges – feminista, anti-escravagista, dramaturga e ativista – ousou fazer ressoar sua voz e seu verbo numa era de silenciamento da mulher.

As palavras que escreveu e falou foram as razões principais de sua subida ao cadafalso, pois ela havia feito de sua vida uma radical tribuna onde manifestar suas opiniões. Ardente na defesa do igualitarismo entre os gêneros, bandeira impopular junto ao Patriarcado da época, despertou a fúria e a intolerância por parte dos agentes da dominação masculina, que também existiam às mancheias entre os jacobinos – os que se pretendiam renovadores da ordem social carcomida a que se chamou Antigo Regime.

Olympe é condenada à pena capital em uma época marcada pela hegemonia do “Comitê de Salvação Pública” chefiado por Robespierre. Entre 1793 e 1795, aquilo que ficou conhecido como “O Terror”, perpetrado por uma ala dos revolucionários jacobinos, estava então a todo gás, com a realeza e os girondinos sendo varridos da face da terra com inclemência.

Quais foram os crimes que Olympe de Gouges cometeu para merecer perder a vida no mesmo cadafalso onde rolaram as cabeças do rei Luís XVI e da rainha Maria Antonieta? São algumas das questões que a excelente graphic novel de Catel & Bocquet responde com muita classe.

“Em Montauban de 1748, nasce Marie Gouze, criada sob as convenções da França setecentista. Aos 18 anos, mãe e viúva, se vê livre para expressar suas ideias e adota o pseudônimo Olympe de Gouges. Anos depois se muda para Paris, onde participará ativamente da vida política e cultural. Fiel leitora de Rousseau, inspiradas pelas ideias libertárias da França pré-revolucionária, Olympe se dedica intensamente à escrita – atividade que levaria até os últimos dias de sua vida e que a causaria muitos problemas.

Conquistou inimizades e escandalizou os mais conservadores, porém jamais deixou de defender seus ideais libertários. Em 1791, redigiu a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, reivindicando a igualdade entre os sexos e o direito ao voto. Com muita beleza, esta graphic novel conta a trajetória de uma mulher que carimbou seu nome na história da Revolução Francesa. Dos consagrados quadrinistas José-Louis Bocquet e Catel Muller, a HQ retrata através de belos traços os incríveis cenários e personalidades da França do século XVIII.” – Editora Record

Quando triunfou a revolução burguesa na França de 1789, alçando-se para enterrar a monarquia absolutista, os privilégios do clero e as velhas tiranias da realeza, os revolucionários publicaram a famosa “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. Seu primeiro artigo anunciava: “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.

Ao invés de falar em “todos os seres humanos”, prefere-se o masculinismo da expressão “todos os homens”, mas o problema vai bem além de uma mera querela linguística. Na prática, as mulheres se viram excluídas dos direitos de cidadania e os revolucionários que proclamaram a república não tiveram a delicadeza ou a dignidade de conceder a todos os cidadãos o direito a um sufrágio de fato universal (as francesas só conquistam o direito ao voto em 1945!).

É contra isso que Olympe de Gouges se insurge.

Levantando-se para acusar a contradição entre o universalismo dos direitos (defendido na teoria) e os evidentes privilégios conservados pela dominação masculina (que seguiram vigentes na prática), Olympe de Gouges tornou público, em 1791, sua “Declaração Dos Direitos Da Mulher e da Cidadã”. Seus 17 artigos eram sucedidos por uma convocação: “Mulheres, acordem! (…) Quando vocês deixarão de ser cegas? Quais as vantagens que vocês obtiveram da Revolução?” (p. 163)

Eram tempos em que as Luzes do Esclarecimento ameaçavam se difundir para além dos pensadores-machos da Europa como Rousseau, Voltaire, Diderot, Kant, Hume, Helvétius, Condorcet etc. A liberdade de expressão era testada até seus limites, com filósofos ousados que insurgiam-se contra aquilo que percebiam como injustiças a serem reparadas – como fez Voltaire com o Caso Calas.

Na Inglaterra, Mary Wollstonecraft fazia história com seus textos feministas, sobretudo o hoje clássico “Vindication of The Rights of Woman”, texto em que polemiza, de cabeça erguida e argumentação arrojada, contra o tratado pedagógico Emílio, de Rousseau, que pregava a segregação de gênero na educação (Emílio e Sofia não sendo dignos, segundo o filósofo de Genebra, de uma educação igualitária):

“Rousseau declara que uma mulher não deveria sentir-se independente, que ela deveria ser governada pelo temor de exercitar sua astúcia natural e feita uma escrava coquete, a fim de tornar-se um objeto de desejo mais sedutor, uma companhia mais doce para o homem, quando este quiser relaxar… No que diz respeito ao caráter feminino, a obediência é a grande lição a ser inculcada com extremo rigor. Que bobagem!”  – MARY WOLLSTONECRAFT (Boitempo, p. 47)

Além disso, nos agitados salões da intelectualidade parisiense, uma efervescência de agitação feminista também se notava, sobretudo ao redor das esposas de Condorcet e Helvétius.

Às vésperas da Revolução, Olympe escrevia e encenava peças de teatro – como “L’Esclavage des Nègres” (1774) – que causaram imenso rebuliço e polêmica, em especial aquelas que denunciavam a escravidão que o Império Francês praticava em suas colônias. Ativista feminista e abolicionista, Olympe de Gouges punha o dedo na ferida e denunciava o quanto o capitalismo francês retirava seus lucros a partir da escravização em massa de africanos.

“Registre-se que no ano de 1789 a metade do comércio exterior da França e a formação de imensas fortunas tinham base na exploração das riquezas minerais e vegetais das colônias. Além disso, muitos dos que se beneficiavam do comércio colonial eram também proprietários e traficantes de escravos e tinham na escravidão negra a base de suas fortunas.” (Dallari, p. 55)

É nesse contexto que se dá a atividade de denúncia e mobilização realizada por Olympe de Gouges. Dedicada a causar impacto na opinião pública, Olympe chegou a espalhar cartazes por Paris em que atacava com agressividade a figura de Robespierre: “Tu te dizes o autor da Revolução, tu não foste isso, tu não és, tu não serás eternamente mais do que o opróbrio e a execração. Teu hálito infecta o ar puro que nós respiramos. Tu pretendias estabelecer um caminho sobre os despojos dos mortos e subir pelos degraus da mortandade e do assassinato ao andar superior. Grosseiro e vil conspirador!” (Dallari, p. 130)

A acusação lançada contra Olympe, base legal para sua condenação à pena capital, fala das “intenções pérfidas dessa mulher criminosa” que “escreveu e mandou imprimir obras que não podem ser consideradas a não ser como atentados à soberania do povo, pois elas tendem a questionar o que foi formalmente expresso pelo povo na votação” em que “a maioria dos franceses foi a favor do governo republicano” (Dallari, p. 136). Olympe de Gouges, de fato, apesar de feminista e anti-escravagista, havia permanecido aliada ao campo girondino e à defesa da monarquia constitucional.

Naquela manhã de 3 de Novembro de 1793, Olympe foi conduzida coercitivamente para uma das 5 guilhotinas que funcionavam em Paris. Na Place de la Révolution, diante de uma platéia que acompanhava os suplícios como se fossem excitantes espetáculos, debaixo das vaias e das injúrias lançadas contra ela inclusive por damas tricoteiras da elite (grau de sororidade: zero!), teve sua cabeça separada do tronco pelo despencar da lâmina.

Hoje, o nome de Olympe de Gouges está na História como um emblema do movimento feminista nascente na época iluminista, como uma daquelas que “levam a sério a promessa da igualdade e da autonomia” (Varikas, p. 91), e seu busto está na Assembléia Nacional da França. É um dos exemplos mais citados por aquelas que levantam bandeiras como “Lute Como Uma Garota!”, “Meu Corpo, Minhas Regras!” e “Lugar de Mulher É Onde Ela Quiser!”. Está com seu lugar garantido na galeria de mulheres insubmissas e libertárias, na companhia de Mary Wollstonecraft, Flora Tristán, Sojourner Truth, Simone de Beauvoir, Frida Kahlo, Rosa Parks, Maya Angelou, Audre Lorde, Toni Morrison, Bell Hooks, Malala Yousafzai, Marielle Franco (dentre tantas outras). A palavra desta decapitada ainda vive!

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

CATEL; BOCQUETOlympe de Gouges – Feminista, Revolucionária, HeroínaEd. Record, 1a, 2014.

DALLARI, D. A. Os Direitos da Mulher e da Cidadã, por Olímpia de Gouges. Ed. Saraiva, 2016.

VARIKAS, Eleni. Pensar o Sexo e o Gênero. Ed. Unicamp, 2016.

BARCELLA, Laura; LOPES, Fernanda (orgs). Lute Como Uma Garota – 60 Feministas Que Mudaram o Mundo. Cultrix, 2018.

WIKIPÉDIAhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Olympe_de_Gouges.

WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação Dos Direitos da Mulher. Ed. Boitempo, 2018.

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Discórdias Sobre a Liberdade – Sobre “Aventuras da Dialética”, de Maurice Merleau-Ponty

“Felizes de nós se conseguíssemos inspirar alguns – ou muitos – a suportar sua liberdade, a não trocá-la sem prejuízo, pois ela não só lhes pertence, é seu segredo, seu prazer, sua salvação, como interessa a todos os outros.” MAURICE MERLEAU-PONTY, “As Aventuras da Dialética”, Epílogo, Martins Fontes, 2006, Pg. 307.

Liberdade, “palavra que o sonho humano alimenta, que não há quem explique e ninguém que não entenda” (Cecília Meirelles), é aquilo ao qual estamos condenados, conforme célebre expressão do autor de “A Náusea”.

Frase fascinante: condenados são aqueles que estão privados de liberdade, então como poderiam aqueles que são livres estarem condenados a isso?  A liberdade é uma prisão perpétua onde estamos encerrados e cujas grades de aço jamais encontraremos os instrumentos para romper?

Estar condenado à liberdade é um paradoxo, mas talvez seja impossível falar sobre o significado da liberdade sem mencionar as numerosas condenações que pesam sobre nós. Condenação à desigualdade, por exemplo, à proliferação desordenada de privilégios injustos e segregações brutais baseadas em critérios falaciosos de gênero, raça e classe.

Entenderemos a liberdade apenas se a enxergarmos como uma jogadora de um jogo mais vasto, um pólo de um jogo de oposições, em que a opressão / servidão é o outro pólo. E esta briga sem fim é o motor mesmo da História, cuja Síntese talvez não seja nenhum final feliz… No filme da realidade realmente existente, a Grande Síntese da História que é o presente não se parece nada com a consumação de nossos sonhos de justiça, igualdade, fraternidade.

Ainda assim, a liberdade não é decretada como um sonho vão, como uma fantasmagórica irrealidade. Ainda se clama por liberdade, e ainda se entrechocam as diferentes concepções do que significa ser livre. No ringue das ideologias, trocam socos os liberais com os marxistas, sobre política econômica, irreconciliáveis em suas opiniões sobre o autêntico significado da liberdade. Uns, pregando a liberdade dos mercados, e a providencial Mão Invisível para cuidar de todos os desequilíbrios mercadológicos. Outros, pregando a liberdade dos proletários, reais produtores das mercadorias e das riquezas, atualmente esmagados às centenas de milhões na máquina de moer carne humana que é o capitalismo industrial globalizado.

É fascinante, neste contexto, a discussão que Merleau-Ponty realiza com Jean-Paul Sartre sobre o tema da Liberdade: “A liberdade adere a toda a nossa vida e faz com que ela nos seja imputável. É como se, a cada momento, nos fosse atribuída a responsabilidade por tudo o que nos foi dado e que usufruímos, por tudo o que resultará da nossa vida”, explica Merleau-Ponty.

“Dizer que somos livres é um modo de dizer que não somos inocentes, que somos responsáveis por tudo o que está diante de nós, como se o tivéssemos feito com nossas próprias mãos. A liberdade para Sartre quase se confunde com a simples existência em torno de nós de um campo que é de nossa responsabilidade e onde todos os nossos atos adquirem imediatamente valor de méritos ou deméritos.” (p. 210)

Ser livre é assumir esta responsabilidade, com todo seu peso de tormento, de rancor, de possível remorso, de indecisão aflitiva. Trata-se de uma abertura do eu para acolher o outro, em sua alteridade, em sua demanda, em sua exigência de respeito por sua liberdade. Assim como odiamos os que cerceam nossas liberdades, somos odiados por aqueles cujas liberdades cerceamos. Tornar-se livre talvez tenha a ver com perceber-se na posição existencial de alguém que em seus atos e palavras afeta seus semelhantes de maneiras que podem e devem ser julgadas não apenas pelo outro, mas pelo próprio eu, que livre se assume.

Para Sartre, portanto, não faria muito sentido alguém dizer de si mesmo “sou livre” e na sequência caracterizar-se como alguém neutro, que não se engaja, pretensamente imparcial, e que não vive sua existência num espaço comum de convivência e polêmica, onde o sujeito reflete, na prática, sobre as consequências sobre outrem de suas ações e escolhas.

Ser livre é engajar-se na vida comum, pois só aquele que age no mundo com consciência de não ser uma ilha, de não ser um sujeito insular, pode estar atento aos méritos e deméritos dos impactos de sua ação sobre outros.

O comunismo, para Sartre, pôde se alçar ao status de um ideal sagrado, mesmo para um filósofo tão ateu, pois tinha a ver com nossa responsabilidade diante dos desfavorecidos, explorados, oprimidos – aqueles que Frantz Fanon chamou, em seu livro famoso, de Os Condenados da Terra.

Merleau-Ponty explica que, para Sartre, o proletariado é a classe que assume a responsabilidade de acabar com uma sociedade cindida em classes. O proletariado redime o mundo de uma injustiça antiga, pertinaz. No contexto de uma injustiça estrutural realmente existente, Sartre não aceita que possa ser uma opção moral defensável a escolha por nada fazer, o a-politicismo, a recusa da ação, a apatia do indivíduo egoísta (o idiotes dos gregos). Além disso, Sartre afirmará que todos aqueles que trabalham pela perpetuação da segregação, da exploração, da espoliação, são cúmplices e coresponsáveis da burguesia exploradora, espoliadora, segregacionista:

“Para o proletariado, a burguesia são os atos datados e assinados que instituíram a exploração, e todos aqueles que não os questionam são considerados cúmplices e co-responsáveis, porque, objetivamente, ou seja, aos olhos do explorado, eles a endossam. Para a burguesia, o proletariado é o operário que quer o impossível, que age contra as condições inevitáveis do social…” (p. 189)

Esta luta de classes que move a História, como Marx já ensinava, talvez não tenha um fim utópico, um desfecho glorioso, a consumação de uma sociedade perfeita, o Reino de uma comuna sem segregação em classes ou castas, sem a brutal exploração de um grupo humano por outro. Mas é a isto que tende o movimento comunista, cujo motor são as contradições concretas das sociedade realmente existentes. Uma vida menos cindida e fraturada por antagonismos e injustiças: é isto que o comunismo coloca em seu horizonte para que inspire a caminhada comum das nossas liberdades em busca de conectarem-se.

Merleau-Ponty, relembrando a Revolução Francesa na companhia de historiadores como Michelet e Daniel Guérin, fala que a burguesia, quando foi a classe revolucionária e derrubou o Antigo Regime, fracassou em instalar um Novo Regime que fosse de fato inclusivo, acolhedor da multiplicidade humana. A burguesia revolucionou o Antigo Regime para instalar em seu lugar uma nova opressão, um novo regime de brutal exploração, que recusa uma vida digna e humana a uma vasta massa de trabalhadores espoliados.

“Ninguém pode contestar o equívoco da Revolução Francesa, nem que ela tenha sido a instalação no poder de uma classe que pretendia interromper a revolução a partir do momento em que seus próprios privilégios estivessem garantidos.” (p. 278)

Sartre, aderindo ao “ultrabolchevismo”, irá argumentar que a causa do proletariado é a causa da humanidade, pois esta é a única classe que visa a abolição das classes, ou seja, a superação de um regime social de segregação, cisão, exploração brutal, estado-de-coisas (status quo) que a burguesia impõe ao proletariado. A classe proletária seria autenticamente revolucionária na medida em que caminhasse rumo à sua auto-supressão em uma sociedade pós-classista. Sonho vão?

Há, segundo Sartre, uma escolha fundamental que se coloca para as nossas liberdades no contexto histórico em que ele viveu (e que ainda é, em certa medida, o nosso contexto atual): a escolha proletária ou a escolha burguesa. “Uma delas é reivindicação da vida para todos; a outra, para alguns. A escolha burguesa é, no limite, assassinato ou, pior ainda, degradação das outras liberdades.” (Merleau-Ponty: p. 190)

O bom uso da liberdade própria consiste em agir de modo responsável de modo a não degradar as liberdades alheias. E a prática cotidiana do burguês é a negação da liberdade, da humanidade, da dignidade básica da imensa massa que ele explora, ou seja, que condena a uma existência de penúria, de sub-educação, de dura fatiga, de pouca permissão e abertura para a criatividade e o convívio cooperativo.

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“A leitura decisiva da história depende, portanto, de uma opção moral: queremos existir contra outros ou queremos existir com todos, e a verdadeira perspectiva em história não é aquela que dá conta de todos os fatos, pois eles são equívocos, mas aquela que dá conta de todas as vidas.” (Merleau-Ponty, p. 190)

Em Sartre, pois, o engajamento político parece conectado a uma opção moral:

“Ele se apóia deliberadamente numa relação imediata ou moral entre as pessoas que o capitalismo arruína, que o olhar do mais desfavorecido nos lembra imperiosamente. Portanto, parece pensar que, ainda que indeterminado e com resultados imprevisíveis, o projeto comunista merece um juízo favorável, porque os menos favorecidos o exigem e porque não nos cabe ser juízes de seus interesses… A abolição desse poder, ainda que dê lugar a uma outra opressão, é em todo caso preferível.” (p. 237)

O valor do livro “Aventuras Da Dialética” está na capacidade de Merleau-Ponty expor o que há de problemático e ambíguo neste ideário, altamente sedutor, que consiste na “resolução de fazer existir a qualquer preço uma sociedade que não exclua ninguém” (p. 247). Aqueles que tem seu senso ético e suas responsabilidades políticas em estado desperto e não apático, que acreditam também na necessidade urgente de uma sociedade não-excludente, que estão engajados em lutas contra os privilégios injustos, fazem bem em refletir na companhia de Merleau-Ponty enquanto ele explora as aventuras da dialética através da história. A potência da crítica está em atividade no livro, capaz de questionar de maneira filosófica toda a complexa realidade das revoluções políticas, tanto as sonhadas quanto as realmente praticadas.

Fica claro para o leitor que Merleau-Ponty não aceita de bom grado a noção de que uma Ditadura do Proletariado é um meio necessário para a consecução do fim glorioso, prometido para o futuro, da Sociedade Comunista Sem Classes. Cairíamos numa armadilha ao apostar na doutrina de que “o fim justifica os meios” e aceitar que a construção da sociedade justa e igualitária passa por um período (provisório) de ditadura da classe em via de se auto-suprimir.

“Os marxistas têm plena consciência disso quando dizem que a ditadura do proletariado volta contra a burguesia as armas da burguesia. Então, uma filosofia proletária da história consiste em postular o milagre de a ditadura empregar as armas da burguesia sem se tornar algo semelhante a uma burguesia, de uma classe dirigir sem entrar em decadência, quando toda classe que rege o todo acaba se revelando, por isso mesmo, particular…” (p. 290)

Se criticamos o particularismo de interesse nos partidos e movimentos liberais-burgueses, não podemos cair na mesma armadilha e nos tornarmos particularistas, ou no limite sectários. O sectarismo não é o caminho para a construção de uma sociedade da multiplicidade que lida com seus antagonismos de maneira sábia, aberta, participativa, inclusiva. A lição de Merleau-Ponty aos revolucionários, aos que estão engajados em movimentos comunistas mundo afora, consiste em alertar: ao lutar contra o inimigo burguês, tome cuidado para não cair nos mesmos vícios. E a ditadura é um vício burguês com o qual o proletariado sai dos trilhos, aburguesando-se no lodo do que a burguesia produziu de pior, ou seja, o fascismo.

Merleau-Ponty parece exigir de nós, que estamos engajados na construção de um mundo menos desumano, de uma sociedade menos excludente, que pratiquemos e manifestemos um respeito à alteridade e uma tolerância à oposição que simplesmente não se permite em um regime de “Ditadura do Proletariado” – como o pesadelo Stalinista é fértil em exemplos, com seus expurgos, seus gulags e sua sistemática falsificação da história (que pôde inspirar Orwell a criar as distopias 1984 e Revolução dos Bichos). Meios vis conspurcam toda a aventura que propõe-se a conquistas fins bons, belos e justos.

Talvez Paulo Freire, escrevendo muito depois de Sartre e Merleau-Ponty, mas de modo algum indiferente aos debates existencialistas, tenha trazido uma contribuição valiosa ao debate ao frisar a importância fundamental da educação nesta conjuntura. Qual a contribuição da educação para a formação de sujeitos livres, ou seja, capazes de assumirem suas responsabilidades no mundo comum, palco de pluralidades em confronto?

A educação não é apenas, ou não está condenada a ser, apenas um epifenômeno da superestrutura, um campo de propagação de ideologias, um amontoado de celas-de-aula onde os prisioneiros são indoutrinados. A educação pode ser algo mais e melhor: instrumento para ensinar-nos a suportar nossa liberdade, ou até mesmo a amá-la, já que é bem precioso que tantos de nós jogamos no lixo – ou no colo de demagogos e tiranos – com trágico despudor.

Educação pode ser ação coletiva em prol da construção conjunta de sujeitos que assumam suas liberdades e responsabilidades, que ousem pensar criticamente, que sejam ensinados sobre a importância crucial da nossa congregação em prol da invenção de uma sociedade sem opressão. Este não é um objetivo qualquer, uma meta entre outras, mas talvez seja uma práxis imanente com o poder de dar sentido às nossas existências individuais. O sentido do eu passa pelo uso que ele faz de sua liberdade no campo de jogo com os outros.

Engajar-se contra a opressão é um excelente sentido para a vida, com a condição de compreendermos que não se trata de lutar para que os oprimidos possam se tornar opressores, uma noção que circula quando a educação é alienadora, mas sim de afirmar que cabe aos oprimidos e a seus aliados a missão histórica, sempre por fazer e refazer, de superar a opressão em todas as suas formas. Nem oprimidos, nem opressores, seríamos conviventes plurais em um mundo des-oprimido, liberto das servidões, onde nossa liberdade, livre de nos condenar às ocupações árduas da indignação e da revolta, hoje imprescindíveis, poderia se exercitar nas plagas mais doces e alegres da criatividade conjunta nos amplos âmbitos da cultura, da ciência, da filosofia, das artes-de-viver e conviver.


Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro – www.acasadevidro.com

(A SER CONTINUADO…)

 

MESMO QUE O CÉU NÃO EXISTA – Críticas à religião no materialismo filosófico das Luzes ao Marxismo

MESMO QUE O CÉU NÃO EXISTA

Críticas à religião no materialismo filosófico das Luzes ao Marxismo

Eduardo Carli de Moraes

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I. TEMA

TODOROV“Depois da morte de Deus e do desmoronamento das utopias, sobre qual base intelectual e moral queremos construir nossa vida comum?” (TODOROV: 2006, p. 9) Com esta questão, que inaugura sua obra O Espírito das Luzes, Tzvetan Todorov situa alguns dos dilemas e desafios que enfrentamos diante do colapso da credibilidade da metafísica, com a consequência de que a ética e a política vivenciam uma espécie de crise do sagrado e necessidade de reinvenção em outras bases – imanentes e não mais transcendentes; profanas e não mais teológicas.

Estes dilemas são alvo de reflexão de muitos pensadores/cientistas de relevância: da “morte de Deus” diagnosticada por Nietzsche ao “desencantamento do mundo” de que fala Max Weber, da noção de que “a religião é o ópio do povo” de Karl Marx à polêmica que opõe o criacionismo à teoria da evolução de Charles Darwin.

AtheismNa atualidade, uma caudalosa literatura atéia, multidisciplinar e plurinacional, têm sido publicada no âmbito das críticas materialistas à religião, com pelo menos duas vertentes importantes: a anglo-saxã (Richard Dawkins, Daniel Dennett, Christopher Hitchens, Sam Harris etc.) e a francesa (Michel Onfray, André Comte-Sponville, Marcel Conche etc.)1.

Uma coletânea importante de 18 artigos, o Cambridge Companion to Atheism (2006), fornece um bom panorama dos debates e já possui edição em língua portuguesa sob o título Um mundo sem deus: ensaios sobre o ateísmo (tradução de Desidério Murcho, Lisboa: Edições 70, 2010).

 De modo bem sumário, podemos dizer que estes autores formulam argumentos que buscam provar a inexistência de Deus2; defendem a laicidade do Estado e criticam todo tipo de fanatismo, obscurantismo e fundamentalismo; afirmam a possibilidade de uma ética secular, a-religiosa, plenamente terrena, sem recompensas ou punições do além-túmulo; desenvolvem argumentos sobre a sabedoria, as virtudes, o bem-comum, considerados sempre na perspectiva desta vida e deste mundo etc.

Dennett

No âmbito destas discussões, percebemos a recorrência de um problema filosófico muito debatido e que parece ter o dom de jamais receber resposta definitiva: não só a questão da existência de Deus, da alma imortal e do livre arbítrio, mas o debate sobre necessidade (ou não) da como fundamento para a ética e a política. Um dos nossos focos principais de nosso trabalho será a crítica empreendida pelas filosofias materialistas das conexões entre moral e religião, entre teologia e política.

A primeira delimitação de nosso tema consiste na eleição, como objetos de estudo, apenas dos filósofos da tradição materialista, que integram a “linha de Demócrito” de que fala Lenin (1962), que a contrastava com a “linha de Platão”. Estão colocados no ringue de batalha, pois, os dois velhos adversários: o materialismo e o idealismo.

A segunda delimitação temática consiste na primazia que concederemos em nossos estudos aos filósofos do materialismo de duas épocas:

I) na França do séc. XVIII, no período pré-Revolução Francesa, na obra dos radicais das “Luzes” (o Iluminismo ou Esclarecimento), em especial o barão D’Holbach (cuja magnum opus é O Sistema da Natureza), La Mettrie (autor de O Homem Máquina), Helvétius (cujos tratados Do Espírito e Do Homem marcaram época) e Denis Diderot (que além de filósofo foi autor também de obras literárias como A Religiosa, Jacques, o Fatalista e O Sobrinho de Rameau).Vale ressaltar que estes materialistas do séc. XVIII tiveram precursores, no século anterior, em figuras como Pierre Bayle, Jean Méslies e Pierre Gassendi (1592 – 1655), fontes em que também buscaremos pesquisar, dada a relevância deles como prefiguradores tanto do materialismo iluminista quanto do marxisma. Como escreve Onfray:

Onfray Grasset 4De fato, no verso do cartão-postal da historiografia dominante encontram-se felizmente pensadores candidatos à forca que celebram a volúpia desculpabilizada, anunciam a morte de Deus, professam a coletivização das terras, conclamam a estrangular os aristocratas com as tripas dos padres, incitam a filosofar para os pobres e para o povo, creem na possibilidade de mudar o mundo, ensinam uma moral eudemonista, se não hedonista, contam com a justiça dos homens. Chamo-os de ultras das Luzes, pois eles encarnam um pensamento radical. Ora, o que é um pensamento radical? Retomemos simplesmente a definição dada por Marx na sua Crítica da filosofia do direito de Hegel: ser radical é tomar as coisas pela raiz. (ONFRAY: 2012, p. 34)

II) No século XIX, com a emergência do materialismo marxista, doutrina com enraizamento filosófico nas fontes atomistas gregas (Demócrito e Epicuro) e também nos materialistas franceses como Holbach, Helvétius etc. (vide item I). Em sua relação crítica e construtiva com o materialismo iluminista francês, pode-se dizer que Marx aumenta o ímpeto prático e transformador que o anima e que ele ganha “carne” como movimento político, força coletiva organizada, ímpeto revolucionário.

Parece-nos que é bem conhecida e estudada a relação crítica que o marxismo estabeleceu com o idealismo alemão, em especial sua empreitada crítica contra Hegel e os hegelianos de esquerda como Bruno Bauer. Também é notória e bastante pesquisada a influência determinante exercida pelo materialismo ateu de Feuerbach ou pela teoria econômica-política anarquista de Proudhon sobre o pensamento do jovem Marx, que depois desenvolverá também uma crítica destes seus antigos mestres.

Porém, nosso trabalho pretende focar a atenção nas relações, que parecem-nos menos pesquisadas e conhecidas, de Marx com a tradição materialista dos sécs. XVII e XVII no Iluminismo francês (Helvétius, D’Holbach, La Mettrie etc.). Ou seja, desejamos explorar sobretudo de que modo foi importante para a configuração da teoria e da práxis marxistas o influxo do materialismo iluminista francês, dos “ultras das Luzes”, como os chama Michel Onfray nos volumes da Contra-História da Filosofia a eles dedicados3.

II. CARACTERIZAÇÃO DO PROBLEMA

Jaeger

Desde a Antiguidade greco-romana, a crítica da religião estabelecida marcou a obra de muitos filósofos, em especial aqueles que constituiriam a escola atomista-materialista: Demócrito e Epicuro (na Grécia, nos sécs VI a IV a.C.) e Lucrécio (em Roma, no séc. I a.C.).

Desde os pré-socráticos os debates sobre a natureza da realidade (a Phýsis) não raro propendiam a tornar-se querelas religiosas: um exemplo é o de Xenófanes (570 a.C. – 475 a.C.), nascido em Colófon (atual Turquia), que confrontou as crenças de seus contemporâneos com estas palavras célebres: “Se os bois, os cavalos, os leões tivessem mãos para desenhar e criar obras como fazem os homens, os cavalos representariam os deuses à semelhança do cavalo, os bois à semelhança do boi, e eles fabricariam os deuses com um corpo tal qual cada um possui ele mesmo.” (XENÓFANES apud JAEGER: 2001, p. 213-214).

A crítica realizada por Xenófanes prenuncia em mais de 2 milênios a filosofia de Ludwig Feuerbach e Nietzsche (alguns notáveis intérpretes-críticos do fenômeno religioso nos últimos séculos): o pré-socrático já sugeria que os seres humanos fabricam deuses à sua imagem e semelhança e que a proposição “somos todos filhos dos deuses” (ou seja, por eles fomos criados) seria muito mais verdadeira se fosse invertida: “somos os pais de todos os deuses” (ou seja, nós é que criamos os deuses).

Este é apenas um exemplo antiquíssimo da ação questionadora e cáustica de pensadores que, sem temor de soarem ímpios, através de suas argumentações põem em maus lençóis os dogmas consagrados e as autoridades religiosas teocráticas, colocando em questão, por exemplo, a mitologia veiculada por Homero e Hesíodo que

atribuíram aos deuses todas as indignidades, roubos, adultérios e imposturas. [De acordo com Xenófanes] é ilusão dos homens pensar que os deuses nascem e têm forma e roupagens humanas. Os negros da Etiópia acreditavam em deuses negros e de nariz achatado, já os trácios em deuses de olhos azuis e cabeleira ruiva. Na verdade provêm de causas naturais todos os fenômenos do mundo exterior que os humanos atribuem à ação dos deuses que temem. (JAEGER, p. 213)

No nascedouro da filosofia grega, essa aposta no “naturalismo”, na possibilidade de explicar por causas naturais todos os fenômenos, também marca presença em muitos dos filósofos que hoje reconhecemos como inovadores e revolucionários da aurora da ciência, de Tales de Mileto (623 – 546 a.C.) a Demócrito de Abdera (460 a.C. — 370 a.C.), que dedicaram-se a explicar a Phýsis sem recorrer a causa sobrenatural ou explicação mítica.

O materialismo moderno, que nos propomos a estudar em suas mutações das “Luzes” (séc. XVIII) ao marxismo e suas vertentes (sécs. XIX e XX), é uma continuação crítica e criativa de uma ancestral aventura filosófica daqueles amigos-da-sabedoria que dedicaram-se à decifração da Phýsis e que não se deixaram calar por mordaças impostas pelo clero ou pelo temor das fogueiras dos inquisidores.

02 spinoza
Apesar de não ser classificado como materialista, mas sim como panteísta, Spinoza é um caso emblemático, na história da filosofia, de uma crítica radical da religião instituída e inspirará muitos materialistas, muitos deles fiéis à noção de “monismo da matéria”, ou seja, à ideia de que a substância spinozista (Deus sive Natura) podia ser melhor descrita pelo conceito de matéria.

No Tratado Teológico-Político, Spinoza procura convencer o leitor de que qualquer explicação que apele para a noção de “vontade de Deus” não passa de “asilo da ignorância” (para relembrar a Ética, Livro I, apêndice), alertando para as ciladas da credulidade típicas daqueles que “interpretam a natureza da maneira mais extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles.” (SPINOZA: 2003, p. 6).4

O epicentro do problema que nos dedicaremos a pesquisar em nosso Doutorado está aí exposto: a crítica à religião empreendida pelos filósofos materialistas das épocas que delimitamos. Desejamos expor e debater os argumentos que sustentam serem as religiões como invenções humanas (demasiado humanas), ficções supersticiosas, ideologias interesseiras urdidas por classes sociais em antagonismo com outras etc.

No âmbito ético e político, buscaremos esclarecer o teor das críticas materialistas à sistemas de moral baseados em sanções post mortem, que são prometidas ao pecador (como o inferno ou o Hades) e ao santo (o Paraíso ou os Campos Elíseos). Revelaremos em détail as argumentações que criticam as doutrinas éticas ou os sistemas políticos que, por preconceito teológico, culpabilizam a sensualidade, reprimem o corpo e a expressão de suas energias, rebaixando a um status secundário e subalterno tudo o que diz respeito ao organismo em sua carnalidade e aos sentidos em sua organicidade.

O impacto da doutrina atomista de Demócrito na história da filosofia e das ciências não deve ser subestimado, já que inaugura uma concepção de mundo anti-criacionista, onde não existe um deus que age como criador ex nihilo do universo. O materialismo baseia-se na tese de que tudo que existe é composto pelas interações dos átomos (incriados e indestrutíveis), em movimento perpétuo, que estão em constante processo de combinação e re-combinação através da imensidão incomensurável do espaço. Segundo Demócrito, átomos e vazio constituem a totalidade concreta, o todo do Ser.

LangerComo explica Friedrich Albert Lange em sua História do Materialismo, obra em dois volumes que será uma das principais fontes de pesquisa para nosso trabalho, Demócrito afirmava: “Nada vem do nada; nada do que existe pode ser nadificado. Toda mudança não é senão agregação ou desintegração de partes.” (LANGE: 1910, p. 12)

Sabemos que a palavra átomo, em grego, traduz-se por “indivisível”: os átomos são as partículas elementares, que não podem ser nem aniquilados nem reduzidos a partes menores. São tidos, nestes seus primeiros estágios de desenvolvimento, como indestrutíveis e infinitos em diversidade. Chocam-se, combinam-se, produzem turbilhões, separam-se e desintegram conjunções, para na sequência formar novos agrupamentos – e assim “mundos inumeráveis se formam para depois perecer.” (LANGE: op cit, p. 17)

A doutrina de Demócrito será depois adotada e aprimorada por Epicuro (341 a.C. – 270 a.C.), um dos mais importantes filósofos materialistas da História. Nascido na ilha de Samos, foi o fundador da escola de filosofia em Atenas que foi batizada “O Jardim de Epicuro” e que atravessou sete séculos, tendo sido muito difundidas suas noções éticas em que o caminho para a felicidade estava na paz-de-espírito [ataraxia], que necessariamente demandava a cessação do temor aos deuses e à morte.

Estima-se que Epicuro tenha escrito cerca de 300 obras e seu magnum opus, o tratado de física A Natureza Das Coisas, era constituído por 37 livros. Da obra monumental de Epicuro, foram preservadas apenas fragmentos, incluindo três cartas, salvas do naufrágio por Diógenes Laércio em Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. As razões da destruição da obra quase completa de Demócrito e Epicuro explica-se, segundo alguns pesquisadores, pelo afã fanático dos detratores da teoria materialista, aí incluído o próprio Platão e seus sequazes, que tudo fizeram para censurar e destruir estas obras.5

Apesar de não afirmar explicitamente o ateísmo, já que continua leal ao politeísmo do Olimpo, o epicurismo inova e revoluciona em teologia ao sustentar que, além de serem entes totalmente materiais e corporais, os deuses não se importavam com preces, rogos, súplicas, arrependimentos ou o que quer que seja realizado pelos humanos terranos. Os deuses corpóreos existem, mas bem longe desta Terra, onde gozam da perfeita bem-aventurança, nem tomando consciência das necessidades e preces dos humanos (como será depois o Deus-Natureza de Spinoza, os deuses de Epicuro são concebidos como organismos indiferentes aos seres humanos e a quem será sempre inútil rezar).

No caso da obra-prima de Lucrécio, De Rerum Natura, ela só chegou inteira a nossos tempos por tortuosos caminhos históricos que foram tema de um premiado livro da historiografia contemporânea: A Virada – O Nascimento do Mundo Moderno (Cia das Letras), de Stephen Greenblatt. Este livro é essencial aos propósitos de nossa pesquisa pois mostra o renascimento do materialismo na aurora da Modernidade, algo que serve de base para a culminância dos radicais materiais, os “ultras das Luzes” como La Mettrie, Diderot, D’Holbach e Helvétius, e que também repercutirá na emergência do materialismo marxiano (Marx, afinal, torna-se doutor em filosofia com uma análise comparativa entre as filosofias da Natureza de Demócrito e de Epicuro). Greenblatt fornece uma boa síntese da “visão de mundo” materialista que pretendemos explorar em nosso trabalho:

Greenblatt2Quando você olha para o céu noturno e, sentindo-se inexplicavelmente comovido, fica maravilhado com a quantidade de estrelas, não está vendo o trabalho dos deuses ou uma esfera cristalina separada de nosso mundo passageiro. Está vendo o próprio mundo material de que faz parte e de cujos elementos você é feito. Não há um plano superior, não há um arquiteto divino, não há design inteligente. Todas as coisas, inclusive a espécie a que você pertence, evoluíram durante grandes períodos de tempo. (…) Nada — de nossa própria espécie ao planeta em que vivemos e ao Sol que ilumina nossos dias — se manterá para sempre. Somente os átomos são imortais. Num universo constituído dessa maneira, argumentava Lucrécio, não há motivo para pensar que a Terra ou seus habitantes ocupem um lugar central, não há motivo para separar os humanos dos outros animais, não há esperança de subornar ou aquietar os deuses, não há lugar para o fanatismo religioso, não há vocação para uma negação ascética do eu, não há justificativa para sonhos de poder ilimitado ou de segurança total, não há lógica para guerras de conquista ou de engrandecimento, não há possibilidade de triunfar sobre a natureza, não há escapatória para a criação e recriação constante das formas. (GREENBLATT: 2012, cap. 1) 6

Em nossa tese, portanto, pretendemos mapear esta influência, fecunda apesar de longínqua, de Demócrito, Epicuro e Lucrécio sobre as vertentes do materialismo filosófico das Luzes francesas e também no materialismo dialético de Marx e da chamada “filosofia da práxis”. Queremos mostrar que algumas das ideias mais debatidas dos últimos séculos, como a célebre noção propagada por Marx, na Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, de que “a religião é o ópio do povo”, não são anomalias isoladas na história do pensamento, mas integram-se em uma longa tradição de materialismo, que procura abordar o fenômeno religioso com uma atitude crítica ou mesmo revolucionária.

A crítica da concepção de mundo religiosa e a moral a ela conexa, empreendida pelos materialistas, está conectada aos projetos e às utopias de construção de uma concepção de mundo, de uma ética e de uma política alternativas, baseados na imanência radical. Um dos nossos problema essenciais consistirá em expor como os filósofos materialistas abordam as questões da possibilidade do “ateu virtuoso” e da “sociedade atéia” (uma doutrina de Pierre Bayle que D’Holbach subscreve). O próprio Marx escreve, em A Sagrada Família, sobre a importância de Bayle para o desenvolvimento ulterior do materialismo filosófico:

O homem que fez com que a metafísica do século XVII e toda a metafísica perdessem teoricamente seu crédito foi Pierre Bayle. Com a desintegração cética da metafísica, Pierre Bayle não apenas preparou a acolhida do materialismo e da filosofia do juízo humano saudável na França. Ele anunciou a sociedade ateia, que logo começaria a existir, mediante a prova de que podia existir uma sociedade em que todos fossem ateus, de que um ateu podia ser um homem honrado e de que o que desagrada ao homem não é o ateísmo, mas sim a superstição e a idolatria. (MARX: 2003, p. 146)

Também nos interessa o problema da conexão que pode haver entre uma concepção de mundo materialista e uma ética consequencialista de teor hedonista. Além disso, desejamos debater a velha querela entre determinismo vs livre-arbítrio: será mesmo que o materialismo conduz a uma visão-de-mundo onde impera o determinismo estreito, que abole toda liberdade humana, reduzindo tudo a um fatalismo que exige do sujeito apenas resignação? Ou, pelo contrário, o materialismo inclui a possibilidade concreta de emancipação coletiva e transformação concreta do mundo como uma consequência necessária de seu abandono dos mundos imaginários, em prol da profana e terrestre vida dos humanos de carne-e-osso?

Uma vez que o materialismo filosófico será definido por um de seus mais ilustres pensadores contemporâneos, André Comte-Sponville, como “um monismo da matéria”, será necessário também refletirmos sobre o significado filosófico do monismo, concepção que se opõe ao dualismo que cinde o real entre Deus e Natureza, Espírito e Matéria, cindindo também o homem entre um corpo, perecível e pecaminoso, e um espírito, imorredouro e passível de ser “salvo”:

Comte-Sponville

André Comte-Sponville, filósofo materialista francês, autor de “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes” e “Tratado do Desespero e da Beatitude” (Ed. Martins Fontes)

Chama-se materialismo a doutrina que afirma que tudo é matéria ou produto da matéria (salvo o vazio) e que, por conseguinte, os fenômenos intelectuais, morais ou espirituais (ou assim supostos) têm realidade secundária e determinada. O materialismo se caracteriza assim, negativamente, pela rejeição do dualismo e do espiritualismo (não existe nem mundo inteligível nem alma imaterial), do ceticismo e do criticismo (a realidade em si não é inconhecível), enfim e em geral do idealismo. É incompatível com toda crença num Deus imaterial, criador ou legislador. O materialismo é antes de mais nada um pensamento de recusa, de combate. Trata-se (Lucrécio, La Mettrie e Marx não cansaram de lembrar) de vencer a religião, a superstição e, em geral, a ilusão. O materialismo é uma empresa de desmistificação.

Explicar o superior pelo inferior (o espírito pelo corpo, a vida pela matéria inanimada, a ordem pela desordem…) é, de Demócrito a Freud, a conduta constante do materialismo. Em todo o caso o materialismo sempre tem, como teoria, essa tendência a descer, isto é, a buscar a verdade, como dizia Demócrito, no fundo do abismo, quer esse abismo seja o da matéria e do vazio (os atomistas), o do corpo (La Mettrie, Diderot…), o da infra-estrutura econômica (Marx) ou o de nossos desejos inconscientes (Freud). Essa descida, na teoria, tem por contraponto uma subida, no real ou na prática. O pensamento materialista, percorrendo ao revés o aclive do real, tudo o que faz, ao longo da sua descida, é pensar a ascensão que a torna possível. ‘É da terra ao céu que se sobe aqui’, escreviam Marx e Engels em A Ideologia Alemã, e a imagem pode ser generalizada. A história se inventa de baixo para cima. (COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 119 a 121)

Dando continuidade ao trabalho realizado em minha dissertação de mestrado, Além da Metafísica e do Niilismo, focada no trabalho de Nietzsche (1844-1900), desejo insistir num método que consiste em somar as forças da crítica e da construção, da teoria e da práxis, da denúncia e do anúncio. Percebo que, longe de terem permanecido presos ao trabalho negativo do aniquilamento e da destruição (que a eles são atribuídos por seus detratores e adversários de modo vastamente imerecido), os materialistas de que trataremos jamais foram niilistas; trabalharam em prol da construção de alternativas, da sugestão de sabedorias e sistemas políticos que pretendiam instaurar o reino da liberdade, da fraternidade e da igualdade sem recurso ao divino. Muitas vezes eram movidos pela vontade de sepultar para sempre sistemas políticos obscurantistas, teocráticos, batalhando contra superstições e sectarismo, ativamente engajados com a construção de um convívio coletivo melhor, mais feliz, mais justo e mais sábio.

Assim, pretendemos delinear as múltiplas possibilidades que existem para a fundamentação de uma ética e de uma política que não terá menos mérito pois aposta que nem Deus, nem a alma imortal, nem o livre-arbítrio, existem de fato. Exporemos e discutiremos a obra dos autores materialistas referidos, explorando seus diagnósticos de uma progressiva erosão da religião como explicação de mundo, fundamentação da moral e força organizadora das sociedades. Desejamos focar nossa atenção naqueles pensadores materialistas que, através da história, ousaram criticar a religião como a conheciam, ao mesmo tempo que apontavam para um outro mundo possível, numa atitude a um só tempo crítica e construtiva que também gostaríamos que animasse nosso trabalho.

III. JUSTIFICATIVA

Contribuir para uma reconsideração do materialismo tem relevância intra e extra-filosófica, dada a carga negativa, o sentido pejorativo que o termo adquiriu no senso-comum:

É sabido que a palavra materialismo é empregada principalmente em dois sentidos, um trivial, outro filosófico. No sentido trivial, designa certo tipo de comportamento ou de estado de espírito, caracterizado por preocupações ‘materiais’, isto é, no caso, sensíveis ou baixas. Querer ganhar muito dinheiro, gostar da boa mesa, preferir o conforto do corpo à elevação do espírito, buscar os prazeres em vez do bem, o agradável em vez do verdadeiro… tudo isso é materialismo, no sentido trivial, e vê-se que essa palavra é usada sobretudo pejorativamente. O materialista é, então, o que não tem ideal, que não se preocupa com a espiritualidade e que, buscando apenas a satisfação dos instintos, sempre se inclina para seu corpo, poderíamos dizer, em vez de para sua alma. Na melhor das hipóteses, um bon vivant; na pior: um aproveitador, egoísta e grosseiro. (COMTE-SPONVILLE: op cit, p. 121)

Desejamos mostrar que o materialismo, para além de seu sentido pejorativo, é uma tradição de pensamento que não é somente crítica das ilusões idealistas, espiritualistas ou religiosas, mas também pode ser um guia ético e político para uma existência emancipada e solidária. A superação do fanatismo e do sectarismo, e também dos fratricídios deles decorrentes, parece-me conectado à nossa capacidade de refletir de modo lúcido e aprofundado sobre a condição humana. Em matéria de ética, o materialista costuma dar a primazia ao corpo (mortal) e não a um espírito (supostamente imortal). Para além de qualquer doutrina da redenção pela via do ascetismo e da auto-mortificação, o materialismo defende a unidade psicossomática entre corpo e alma e reflete sobre as condições para a saúde, a paz-de-espírito, a ataraxia, a beatitude, não em um mítico futuro distante, mas no aqui-e-agora da vida terrestre.

Julgamos relevante confrontar o preconceito que afirma que o materialista seja um crasso perseguidor de volúpias imediatas, um inconsequente libertino que não pensa no amanhã, e reafirmar que a sophia e a philia, na tradição de Demócrito e Epicuro, são valores supremos, donde ser inconcebível falar da utopia materialista sem a presença destas forças constitutivas da filosofia e que marcam-na etimologia de sua própria palavra, onde somam-se amizade e sabedoria.

La MettrieLa Mettrie sugere: “Pensar no corpo antes de pensar na alma é imitar a natureza que fez um antes do outro.” (LA METTRIE: 1987, p. 271) Eis uma tese autenticamente materialista, já que aquilo que chamamos de “alma” é tido pela tradição do materialismo como algo que surge posteriormente, no tempo, à “base” material corporal.

Para muitos materialistas, dá-se o nome de “alma” a algo que está no corpo, que nunca existiu nem pode existir independente do corpo. Daí decorre a revolução materialista empreendida contra o temor da morte que aflige os humanos: não há nada a temer já que nenhuma alma imortal sobreviverá ao corpo abandonado pela vida. Materialismo: doutrina da alma mortal, ou seja, da Psiquê encarnada, da vida individual fugaz, vivida por um organismo que só pode ser compreendido como unidade psicofísica.

Além disso, filosofia do reconhecimento pleno de nossa mortalidade inelutável, o materialismo também se caracteriza, escreve Comte-Sponville, “pela rejeição do espiritualismo, se por esta última palavra entendermos a afirmação de que existe uma substância espiritual (a alma ou o espírito), independente da matéria, que seria, no homem, princípio de vida ou de ação. […] O materialismo também é, contra todas as filosofias da alma, uma filosofia do corpo.” (COMTE-SPONVILLE, op cit, p. 124).

O materialismo pode ser descrito como um monismo físico e defende a tese de que a Matéria, ou seja, os átomos em movimento no espaço, constituem a substância única. Tudo que chamamos de espírito é derivado das “danças” imensas e múltiplas dos átomos. A consequência incontornável, e que também esclareceremos em mais detalhes, é a de que todas as atividades psíquicas ditas superiores (o pensamento, a vontade, o juízo, a criação artística, a pesquisa científica etc.) não podem jamais ser compreendidas como imateriais.

Nenhum filósofo, é evidente, pode negar absolutamente a existência do pensamento: seria negar a si mesmo e pensar que não pensa. O monismo dos materialistas não é portanto a negação da existência do pensamento, mas apenas a negação da sua independência ou, se preferirem, da sua existência autônoma: não se trata de dizer que o pensamento não existe, mas simplesmente (se é que isso pode ser simples!) que ele é tão material quanto o resto. (COMTE-SPONVILLE: 2001, pgs 120-126)

A relevância do estudo histórico, crítico, construtivo, dialético, do materialismo filosófico, está também em sua potência de “iluminar”, através da obras destes amigos da sabedoria, a força prática e concreta da filosofia na História. Buscaremos amplificar as ideias e os exemplos daqueles filósofos que prezavam mais o pensamento autônomo do que a cega obediência à tradição; que não viam diante de si nenhum tabu que proibisse o escrutínio, a pesquisa, a reflexão, a expressão, a discussão. Como escreveu Helvétius, citado por Marx, “as grandes reformas apenas podem ser realizadas com o enfraquecimento da adoração estúpida que os povos sentem pelas velhas leis e costumes.” (MARX: 2003, p. 152)

marx-engelsA tentativa de conexão entre o materialismo das “Luzes” e o Marxismo tem embasamento na própria obra dos fundadores do materialismo histórico-dialético, Marx e Engels: basta exemplificar com A Sagrada Família, obra na qual, no contexto da polêmica contra o hegeliano Bruno Bauer, Marx realiza reflexões essenciais aos nossos propósitos:

O Iluminismo francês do século XVIII e, concretamente, o materialismo francês, não foram apenas uma luta contra as instituições políticas existentes e contra a religião e a teologia imperantes, mas também e na mesma medida uma luta aberta e marcada contra a metafísica do século XVIII e contra toda a metafísica, especialmente contra a de Descartes, Malebranche, Spinoza e Leibniz. (…) A rigor existem duas tendências no materialismo francês, dos quais uma provém de Descartes, ao passo que a outra tem sua origem em Locke. A segunda constitui, preferencialmente, um elemento da cultura francesa e desemboca de forma direta no socialismo. (MARX; ENGELS: 2003, p. 144)

Nestas páginas d’A Sagrada Família, expõe-se a tese de que o materialismo filosófico francês e inglês, nos séculos XVII e XVIII, permaneceu “unido por laços estreitos a Demócrito e Epicuro”, o que não impediu a emergência de diferentes encarnações de um materialismo multiforme, que teve como principais representantes, na Inglaterra, figuras como Bacon, Locke e Hobbes; e na França os supracitados P. Bayle, J. Mèlies, Helvétius, La Méttrie, Condillac, Diderot, D’Holbach.

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Julgamos muito relevante, em nossa futura tese, realizar um estudo comparativo das duas vertentes do materialismo francês das “Luzes” que Marx identifica:

I) aquela que aderiu à física de Descartes e é representada sobretudo por La Mettrie – que “explica a alma como uma modalidade do corpo e as ideias como movimentos mecânicos; (…) seu L’Homme Machine é um desenvolvimento que parte do protótipo cartesiano do animal-máquina” (MARX; op cit, p. 145);

II) aquela outra vertente do materialismo francês, muito inspirada pelo materialismo inglês e sobretudo por Locke, e que representa a convicta antítese à metafísica do século XVII; segundo Marx, é esta linha que “desemboca diretamente no socialismo e no comunismo” (MARX: op cit, p 149). Como ilustração desta segunda vertente, citaremos um trecho d’O Sistema da Natureza, de Holbach, que parece-nos essencial para os propósitos de nossa pesquisa:

Paul Henri Thiry, Baron d'Holbach, an 18th-century advocate of atheism

Paul Henri Thiry, o Baron d’Holbach, filósofo materialista e ateísta do século XVIII

O homem que não espera uma outra vida está mais interessado em prolongar a existência e em se tornar querido pelos seus semelhantes na única vida que conhece. Ele deu um grande passo para a felicidade ao se desvencilhar dos terrores que afligem os outros. Com efeito, a superstição tem prazer em tornar o homem covarde, crédulo, pusilânime. Ela adotou o princípio de afligi-los sem descanso; assumiu o dever de redobrar para ele os horrores da morte. Seus ministros, para disporem dele mais seguramente neste mundo, inventaram as regiões do porvir, reservando-se o direito de lá fazer recompensar os escravos que tiverem sido submissos às suas leis arbitrárias e de fazer serem punidos pela divindade aqueles que tiverem sido rebeldes às suas vontades. Longe de consolar os mortais, a religião em mil regiões esforçou-se para tornar a sua morte mais amarga, para tornar mais pesado o seu jugo, para tornar o seu cortejo acompanhado de uma multidão de fantasmas hediondos.

Ela chegou ao cúmulo de persuadi-los de que a sua vida atual não é mais do que uma passagem para chegar a uma vida mais importante. O dogma insensato de uma vida futura os impede de ocupar-se com a sua verdadeira felicidade, de pensar em aperfeiçoar as suas instituições, suas leis, sua moral e suas ciências. Vãs quimeras absorveram toda a sua atenção. Eles consentem em gemer sob a tirania religiosa e política, em atolar-se no erro, em definhar no infortúnio, na esperança de serem algum dia mais felizes, na firme confiança de que as suas calamidades e a sua estúpida paciência os conduzirão a uma felicidade sem fim. Eles se acreditam submetidos a uma divindade cruel que gostaria de fazer que eles comprassem o bem-estar futuro ao preço de tudo aquilo que eles têm de mais caro aqui embaixo. É assim que o dogma da vida futura foi um dos erros mais fatais pelos quais o gênero humano foi infectado. Esse dogma mergulha as nações no entorpecimento, na apatia, na indiferença sobre o seu bem-estar, ou então as precipita em um entusiasmo furioso, que as leva muitas vezes a dilacerarem a si próprias para merecer o céu. (HOLBACH: 2010, p. 318-19)

De modo algum iniciamos este percurso de pesquisa já com todas as respostas, pelo contrário, é por estarmos repletos perguntas que desejamos ir a fundo nas pesquisas sobre a filosofia materialista. Um dos problemas, a um só tempo ético e político, que buscaremos aclarar está este uma concepção de mundo materialista e dialética, que superou a transcendência em prol do “imanentismo” (GRAMSCI: 1981, p. 57), de que modo fundará a valorização ético-política da igualdade, da liberdade, da fraternidade, dentre outros valores e virtudes, caso se vede o caminho da sacralização?

Há como formular de modo mundano, profano, a-teológico, imanentista, a “unidade do gênero humano” pressuposta pelo materialismo francês das Luzes? A “filosofia da práxis” inclui a possibilidade de uma ética laica, profana, sem sanção nem punição, sem vigilância transcendente? Sem religião, é ainda possível formular uma ética universalista de molde kantiano que afirme a igualdade de todos, que postule normas universalizáveis como o imperativo categórico, para todos os humanos, mas desta vez em outras bases, plenamente enraizadas na “dialética do concreto”? Com o aniquilamento do divino, cai-se necessariamente num pragmatismo ao gosto anglo-saxão (W. James, S. Mill, J. Bentham), ou são pensáveis muitas outras potencialidades (socialistas, comunistas, anarquistas, democráticas)?

IV. HIPÓTESES DE TRABALHO

H1 – o materialismo é um monismo da matéria, que combate o idealismo e o espiritualismo, afirmando que a “alma” ou o “espírito” também são materiais, estando localizados no interior do corpo e sendo inseparáveis dele; em suma: o materialismo compreende o organismo como unidade psico-somática.

H2 – a ética materialista tende a ser muito mais hedonista do que ascética, muito mais consequencialista do que deontológica, voltada para a felicidade terrestre e não para a “redenção” ou salvação religiosa.

H3 – a fé, em geral, é criticada como ficção, ilusão, superstição e/ou “ideologia” por muitos destes filósofos materialistas; eles crêm que a política pode fundar-se em valores como a justiça, a solidariedade, a fraternidade, sem necessidade de valores transcendentes ou autoridades sagradas, como na “sociedade de ateus” de P. Bayle;

H4 – nada condena uma filosofia materialista a um determinismo fatalista; pelo contrário, é no âmbito do materialismo que nasce e se desenvolve uma filosofia da práxis em que os conceitos de ação, transformação, emancipação e revolução ganham um peso, uma centralidade e uma importância como nunca dantes na história da filosofia.

A estas hipóteses, expostas acima e desenvolvidas brevemente no decurso deste projeto, gostaríamos de adicionar algumas outras, desta vez com um desenvolvimento breve das mesmas.

H5 – O materialismo trabalha em prol da extinção concreta do “vale de lágrimas” historicamente constituído.

Uma das lições do materialismo é que a religião pode ser julgada a partir de seus efeitos psíquicos e sociais, numa lógica consequencialista, para além de seus princípios basilares e teorias fundamentantes (privilegiadas pela deontologia). Dentre os filósofos materialistas do Iluminismo francês que mais investiga o tema das relações entre religião e sociedade está Helvétius (1715-1771), tanto que pode-se dizer que Helvétius é um dos inauguradores daquilo que virá a ser a disciplina sociologia da religião.

Escorraçado pela censura e pela violência repressiva ao publicar seu tratado “Do Espírito”, Helvétius têm profunda influência sobre a posteridade por ser o criador do imperativo utilitarista em que se formula que deve-se visar como meta [télos] da ética e da política “a maior vantagem pública, ou seja, o maior prazer e a maior felicidade da maioria dos cidadãos” (apud ONFRAY: 2012, p. 200). Em D’Holbach e Helvétius, mas também em seus predecessores no século anterior (Méslier e Pierre Bayle), exige-se a democratização do gozo, a ampliação concreta das possibilidades de júbilo.

Contra o império tenebroso do ideal ascético, que ordena a mortificação da carne, iguala prazeres e deleites a gangrenas, os ultras das Luzes retomam o epicurismo para a formulação de seus ideais políticos, em que a realidade terrestre importa muito mais do que uma suposta salvação post mortem. Tendo a felicidade comum ou o bem público como paradigmas de excelência, Helvétius julga o real com um ouvido especialmente atento ao “grito da miséria” (ONFRAY, op cit, p. 205).

Uma de nossas hipóteses, portanto, é a de que o materialismo não se resigna nunca a somar lágrimas impotentes aos que choram pelas injustiças, mas que põe-se no campo de jogo em prol da transformação aprimoradora do que há. Ou seja, trata-se de afirmar uma filosofia que não apenas descreva ou interprete o “vale de lágrimas”, mas sim que modifique o mundo, como diz uma célebre tese marxista, para abolir o próprio vale de lágrimas e para instaurar na terra um convívio mais sábio e jubiloso, mais omnilateral e criativo, do que a asfixiante atualidade nos permite.

A partir de suas bíblicas ancestralidades, a imagem da vida como “vale das lágrimas” atravessou a história e está nos mitos fundadores judaico-cristãos, que explicam a infelicidade a partir de um pecado original ocasionador de uma queda ontológica e de uma perda do paraíso. O Paraíso Perdido – título aliás do poema de Milton onde tais mitos proliferam, assim como o fazem na Divina Comédia de Dante – torna-se então o télos transcendente que o desejo busca re-encontrar.

A vontade humana, alucinada pela fé no paraíso perdido e pelo desejo impossível de fusão com um deus que é suposto como alheio e transcendente, fica então siderada por “objetos transcendentais” que, como Marx ironizará na Sagrada Família, não passam de fantasias geradas por cérebros humanos situados em um contexto sócio-econômico, político-histórico:

MarxA angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão de uma angústia real e o protesto contra ela. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como é o espírito de uma situação não espiritual. É o ópio do povo. A abolição da religião como a felicidade ilusória do povo é necessária para sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões sobre sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, portanto, em embrião, a crítica do vale das dores, cuja auréola é a religião. A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crítica da religião desaponta o homem com o fito de fazê-lo pensar, agir, criar sua realidade como um homem desapontado que recobrou a razão, a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol.

A opressão deve ainda tornar-se mais opressiva pelo fato de se despertar a consciência da opressão e a ignomínia tem ainda de tornar-se mais ignominiosa pelo fato de ser trazida à luz pública. (…) É preciso fazer com que dancem as relações sociais petrificadas fazendo-as ouvir sua própria melodia! O povo deve ter horror de si mesmo, a fim de que ganhe coragem. (…) É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que a força material tem de ser derrubada pela força material, mas a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas. A prova evidente do radicalismo da teoria alemã, e deste modo a sua energia prática, é o fato de começar pela decisiva superação positiva da religião. A crítica da religião culmina na doutrina de que o homem é o ser supremo para o homem. Culmina, por conseguinte, no imperativo categórico de derrubar todas as condições em que o homem aparece como um ser degradado, escravizado, abandonado, desprezível. (MARX: 2005. Crítica à Filosofia do Direito de Hegel – Introdução.)

Nossa hipótese é de que a abolição da religião não pode ser nunca algo meramente intelectual, uma batalha exclusivamente “cerebral”, uma vitória em uma querela somente teológica, mas que só se dará pela modificação prática e concreta de uma realidade que torna os sujeitos alienados, despossuídos de autonomia, dependentes da fé. É preciso compreender os afetos que estão envolvidos na fé religiosa, os desejos aos quais ela serve de satisfação, as perguntas irrespondíveis que ela busca fornecer solução, e sobretudo o contexto social e intersubjetivo que estabelece a estrutura concreta sobre a qual serão erguidos os degraus da superestrutura (aos quais tanto a filosofia quanto a religião, segundo Marx, pertencem).

A hipótese que tentaremos provar está em sintonia com a afirmação de Marx de que “a supressão [Aufhebung] da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real”, o que Daniel Bensäid ilustra no capítulo “De Que Deus Morreu” de seu livro Marx – Manual de Instruções, em que parte da influência de Feuerbach sobre Marx e depois expõe a originalidade do materialismo marxista em relação ao das Luzes:

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Em A Essência do Cristianismo, Feuerbach não só mostrou que o homem não é a criatura de Deus, e sim seu criador. Não só sustentou que ‘o homem faz a religião, a religião não faz o homem’. Ao fazer da relação social do homem com o homem o princípio fundamental da teoria, fundou o verdadeiro materialismo. Uma vez admitido que esse homem real não é a criatura de um Deus todo-poderoso, resta saber de onde vem a necessidade de inventar uma vida após a vida, de imaginar um Céu livre das misérias terretres. Marx escreveu que ‘a religião é o suspiro da criatura oprimida’ e o ‘ópio do povo’. Como o ópio, ela atordoa e ao mesmo tempo acalma. Portanto, a crítica da religião não pode se contentar, como acontece com o anticlericalismo maçonico e o racionalismo das Luzes, em ser hostil com o clero, com o imame ou com o rabino. Engels critica aqueles que querem ‘transformar as pessoas em ateias por ordem do mufti’ e diz que ‘uma coisa é certa: o único serviço que se pode prestar a Deus, hoje, é declarar que o ateísmo é um artigo de fé obrigatório e sobrevalorizar as leis anticlericais, proibindo a religião em geral.’ Já Marx combate as ilusões de um ateísmo que é apenas uma crítica abstrata e ainda religiosa da religião, que permanece no plano não prático das ideias. (…) A crítica do ateísmo contemplativo e abstrato leva Marx a se distanciar de Feuerbach , que ‘não vê que o próprio sentimento religioso é um produto social’ e que ‘a família terrestre é o segredo da Sagrada Família.’ Em suma, enquanto o ateísmo é apenas a negação abstrata de Deus, o comunismo é sua negação concreta. (BENSAÏD: 2013, p. 23-31)

Que esta última frase sirva de síntese, pois, para nossa hipótese de trabalho aqui exposta: o comunismo como negação concreta de Deus e da explicação mítica e fatalista do “vale das lágrimas”. Em conexão a esta hipósese, também avançaremos a hipótese suplementar (H6) de que há, no Brasil, alguns pensadores conectados ao marxismo e de alta relevância na história intelectual brasileira que deram muitas contribuições a este tema: Álvaro Vieira Pinto, Marilena Chauí e Leandro Konder são três daqueles que mais dedicaram-se aos problemas que pretendemos também abordar.

Como breve exemplo da fecundidade de conectar estes pensadores brasileiros à discussão, citarei a contribuição de Vieira Pinto: fiel às suas raízes na filosofia marxista, ele pretende denunciar um embuste e uma “mistificação”, uma alienação religiosa diretamente conexa a um conformismo ou fatalismo sócio-político. rata-se de questionar o quanto a religião presta serviços à conservação material e concreta da dominação opressora, da humilhaçãodesumanizante, dos sistemas econômicos e políticos que são esmagadores da dignidade humana. Explica porquê as “religiões milenares, orientais e ocidentais esforçam-se em retratar o mundo em que a humanidade se tem desenvolvido utilizando a conhecida imagem do vale das lágrimas”:

Se não convencerem os homens de que, por uma tristíssima fatalidade, têm de passar a existência no mais doloroso sofrimento, submetidos a toda espécie de privações, provações e por fim à morte, deixa de ter sentido seu papel com que se justificam, o de ser o único veículo da ‘salvação’ para nós, desgraçados viventes. (…) Daí a arraigada concepção, convertida em imagem de mundo, de que os homens, como consequência de um castigo original, habitam o mais tenebroso e inóspito lugar do universo, de onde lamentavelmente não conseguirão jamais se evadir, um vale de lágrimas, expressão que os pontífices desta mentirosa e infame simploriedade se empenham em deixar bem claro não se tratar de mero traço de retórica evangélica, mas de uma autêntica, embora cruel e lamentabilíssima, realidade. Esta mistificação (…), esta vulgar, interesseira e estúpida noção, é produto de uma exigida falsificação perpetrada pelas potências dominantes sobre a grande multidão da humanidade. “O ‘vale’ das lágrimas foi talhado por um rio formado pela torrente de lágrimas que as massas trabalhadoras, durante incontáveis milênios de sujeição a senhores, déspotas, sacerdotes, empresários e ricos proprietários, em todos os tempos, verteram dos olhos (…) A ironia do conceito reside em não ter sido cunhado pelos sofredores, mas pelos que habitam as alturas. (VIEIRA PINTO: 1975/2008, p. 21-23-24)

Como defenderemos em mais minúcia, a obra de Marilena Chauí7 e Leandro Konder8 também contêm reflexões de muito mérito no âmbito deste problema. Dito disto, finalizamos afirmando nossa convicção de que, contra qualquer tipo de fatalismo, de conformismo, de resignação, o materialismo filosófico possui compromisso prático e emancipatório, perseverança na noção de que mudar o mundo não só é possível como é necessário, criticando a figura humana que cruza os braços, recusa a práxis, limita-se à vida contemplativa, resigna-se ao instituído, limitando-se à paciência absoluta de quem aguarda socorro divino sem nada fazer para melhorar sua situação concreta no âmbito terrestre.

Justifica-se uma pesquisa aprofundada sobre o materialismo filosófico também pelo interesse prático que há em confrontarmos as religiões instituídas e seu poder político, cultural, social, midiático, ainda hoje muito forte. Como filósofos materialistas apontam (D’Holbach antes de Marx, Gramsci e Onfray posteriormente), não existe nenhuma garantia de virtude ética ou excelência política no mero conformismo a uma religião tradicional imposta pelas cúpulas da sociedade. É preciso admitir a possibilidade do ateu virtuoso e do materialismo politicamente libertário como valores que talvez seja recomendável afirmar diante do obscurantismo e do fanatismo, das teocracias e das inquisições.

Com este trabalho, planejamos contribuir com uma re-consideração da história da filosofia, vista também sob uma perspectiva contra-hegemônica, que focará naqueles filósofos que foram considerados dissidentes, heréticos, ímpios, ateus, céticos (ou que foram estigmatizados como tal). Entre as mais importantes obras que estudaremos, destacam-se os 2 volumes de Friedrich Albert Lange (1828-1875), A História do Materialismo e Crítica do seu Valor Para Nossa Época (publicado em 1866 em alemão: Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart); a Enciclopédia dos Iluministas, que teve em Diderot e D’Alembert seus principais artífices (lançada no Brasil, em 5 volumes, pela Editora Unesp), além da obra em 9 volumes de Michel Onfray, Contra-História Da Filosofia (5 deles publicados no Brasil pela Martins Fontes).

Durante os 36 meses do doutorado, nosso plano é publicar uma série de artigos (ao menos 2 por ano) que divulgarão os frutos de nossas pesquisas e de nossa interação com colegas, professores e orientador(a). Além disso, desejamos participar da maior quantidade possível de eventos que possam ter relação com nosso objeto de pesquisa (seminários, colóquios, fóruns, debates etc.), de modo a colocar tais ideias em circulação para serem debatidas e dialogadas, dentro e fora da academia, na perspectiva de que a filosofia pode sim ter função pública determinante para a nossa ventura comum.

Julgamos que tal trabalho possa elucidar sobre outros modos de conceber um ideal ético e político que supere as caducas concepções teológicas e obscurantistas que, ainda em nossos dias, teimam em querer submeter a vida humana a autoridades transcendentes, punições e recompensas post mortem, perpetuando as hegemonias das teocracias, do sectarismos, da fanaticidade violenta. Será uma aventura em que não seremos filósofos que se contentam em interpretar o mundo – pois como lembra Marx numa de suas mais célebres Teses Contra Feuerbach, o que importa agora é transformá-lo. Ao sapere aude deve ser somada a ousadia do fazer: o atrever-se a conhecer é imperfeito e limitado sem a coragem de agir em conjunto para mudar o mundo comum.

Monumento a Denis Diderot

Monumento a Denis Diderot

NOTAS

1 Destacam-se as obras: “Deus: um delírio”, de Richard Dawkins (Cia das Letras, 2007); “Quebrando o encanto – a religião como fenômeno natural”, de Daniel C. Dennett (Globo, 2006); “Deus não é grande”, de C. Hitchens (Ediouro, 2006); “A Morte da Fé”, de Sam Harris (Cia das Letras, 2009); “Tratado de Ateologia”, de M. Onfray (Martins Fontes, 2007); “O Espírito do Ateísmo”, de A. Comte-Sponville (Martins Fontes, 2009); “Orientação Filosófica”, de M. Conche (Martins Fontes, 2000).

2 Um exemplo é o artigo “O Sofrimento Das Crianças Como Mal Absoluto”, publicado por Marcel Conche em 1968, onde se argumenta que “o sofrimento das crianças deveria ser suficiente para confundir os advogados de Deus. É que o sofrimento das crianças é um mal absoluto, mácula indelével na obra de Deus, e seria suficiente para tornar impossível qualquer teodicéia. (…) O fato do sofrimento das crianças – como mal absoluto -, por eliminação da hipótese contrária, funda o ateísmo axiológico.” (CONCHE: 2000, p. 60-77)

3 São 9 volumes já publicados na França, pela Grasset, e os 5 primeiros no Brasil, pela Martins Fontes.

4 Uma análise brilhante do contexto sócio-histórico em que nasce o “tratado escandaloso de Spinoza” (T.T.P), considerado como uma magnum opus essencial para o “nascimento da era secular”, pode ser lida em Um Livro Forjado No Inferno, de Steven Nadler. O livro contêm detalhes de todo o processo sofrido pelo filósofo ao ser estigmatizado como pária pela sinagoga de Amsterdam quando tinha apenas 23 anos, já que foi considerada herética e blasfema sua concepção do “Deus sive Natura” (Deus = Natureza). “ Deus de Spinoza não é um ser transcendente, supranatural. Não é dotado dos aspectos psicológicos ou morais atribuídos a Deus por muitas religiões ocidentais. O Deus de Espinosa não manda, não julga nem faz alianças. Deus não é a providencial e espantosa deidade de Abraão. (…) Segue-se que a concepção antropomórfica de Deus que, como pensa Espinosa, caracteriza as religiões sectárias, e todas as postulações sobre recompensa e castigo divinos que ela implica não passam de ficções supersticiosas.” (NADLER: 2013, p. 32)

5 Na Idade Média, explica André Comte-Sponville, o trabalho de copiar as obras dos autores gregos e latinos da Antiguidade era realizado principalmente por monges, encerrados em conventos, filiados a seitas religiosas, que “preferiam copiar os filósofos e poetas que não estavam muito distantes das crenças deles, que não quebravam suas ilusões ou esperanças, que não eram demasiado incompatíveis com a fé.” (in: ANDRÉ COMTE-SPONVILLE, O Mel e O Absinto, Paris: Hermann, 2008, pg. 20) No que diz respeito às mais de 50 obras de Demócrito, comenta-se que Platão e seus seguidores não pouparam esforços de destruição: “Em um movimento de ardor fanático, Platão quis comprar e queimar todos os escritos de Demócrito.” (LANGE, F. Pg. 11) “Platão pretendeu queimar as obras de Demócrito pela incompatibilidade entre as ideias nelas expendidas e as suas próprias.” (LINS, I. In: O Epicurismo.)

6 Saiba mais sobre a obra no site A Casa De Vidro: http://bit.ly/1qB8m2f.

7 “Todos conhecem a famosa fórmula segundo a qual ‘a religião é o ópio do povo’, isto é, um mecanismo para fazer com que o povo aceite a miséria e o sofrimento sem se revoltar porque acredita que será recompensado na vida futura (cristianismo) ou porque acredita que tais dores são uma punição por erros cometidos numa vida anterior (religiões baseadas na idéia de reencarnação). Aceitando a injustiça social com a esperança da recompensa ou com a resignação do pecador, o homem religioso fica anestesiado como o fumador de ópio, alheio à realidade. No entanto, costuma-se esquecer que, antes de fazer tal afirmação, Marx define a religião como ‘a criação de um espírito num mundo sem espírito’ e ‘consolação num mundo sem consolo’. (…) A religião, como toda ideologia, é uma atividade da consciência social. A religiosidade consiste em substituir o mundo real (o mundo sem espírito) por um mundo imaginário (o mundo com espírito). Essa substituição do real pelo imaginário é a grande tarefa da ideologia e por isso ela anestesia como o ópio”. — MARILENA CHAUÍ, “O Que é Ideologia”, pg. 108, ed Brasiliense.

8 Conferir, por exemplo, os artigos “É possível fazer o socialismo com fé em Deus” e “O Novo Conteúdo Político do Direito ao Prazer.” In: O Marxismo na Batalha das Ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BENSAÏD, Daniel. Marx – Manual de Instruções. São Paulo: Boitempo, 2013.CHAUÍ, M. O Que É Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.
COMTE-SPONVILLE, André. O Que É Materialismo?”. In: Uma Educação Filosófica. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001.
CONCHE, Marcel. Orientação Filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
D’HOLBACH. O Sistema da Natureza – Das leis do mundo físico e do mundo moral. Trad. Regina Schöpke. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
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Discours Sur Le Bonheur. Paris: Fayard, 2000.
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LÊNIN. Matérialism et empiriocriticisme. In: Oeuvres complètes, t. 14, Paris-Moscou, 1962, p. 132.
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———–. A Sagrada Família. Trad. Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2003.
———–. Manuscritos Econômico-Filosóficos.
Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo. 4ªed, 2010.
NADLER. Um Livro Forjado No Inferno – O tratado escandoloso de Espinosa e o nascimento da era secular. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
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A sociologia dos países subdesenvolvidos: introdução metodológica ou prática metodicamente desenvolvida da ocultação dos fundamentos sociais do “vale das lágrimas”. Rio de Janeiro: Contraponto, 1975/2008.
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O Homem Máquina; A Arte de Usufruir; A volúpia; História Natural da Alma; O Anti-Sêneca ou Discurso sobre a Felicidade. Ebooks.
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USENER, Hermann (editor).
Epicurea. Cambridge Classics, 2010, 513 pgs.

Eduardo Carli De Moraes
Goiânia – Junho de 2016

“SAPERE AUDE”: OUSE SABER! – O “Espírito das Luzes” segundo Tzvetan Todorov (São Paulo: Ed. Barcarola, 2006)

“Depois da morte de Deus e do desmoronamento das utopias, sobre qual base intelectual e moral queremos construir nossa vida comum?”

Em sua obra ‘O Espírito das Luzes’, Todorov busca sintetizar o percurso histórico e a relevância presente e futura do Esclarecimento ou Iluminismo; na sequência, A Casa de Vidro apresenta um excerto do livro:

DESENCANTAR PARA EMANCIPAR

Tzvetan_Todorov-Strasbourg_2011_(1)O primeiro traço constitutivo do pensamento das Luzes consiste em privilegiar o que escolhemos e decidimos por nós mesmos em detrimento daquilo que nos é imposto por uma autoridade externa. Essa preferência comporta então duas facetas, uma crítica e outra, construtiva: é preciso subtrair-se a toda tutela imposta aos homens de fora (…). Emancipação e autonomia são as palavras que designam os dois tempos, igualmente indispensáveis, de um mesmo processo. Para poder engajar-se nele, é preciso dispor da inteira liberdade de examinar, de questionar, de criticar, de colocar em dúvida: nenhum dogma ou instrução pode mais ser considerado sagrado.

Uma consequência indireta, porém decisiva, dessa escolha é a restrição que incide sobre o caráter de qualquer autoridade: esta deve estar de acordo com os homens, isto é, ser natural e não sobrenatural. É nesse sentido que as Luzes produzem um mundo ‘desencantado’… A tutela sob a qual viviam os homens antes das Luzes era, em primeiríssimo lugar, de natureza religiosa; sua origem era então ao mesmo tempo anterior à sociedade presente (fala-se nesse caso de ‘heteronomia’) e sobrenatural. É à religião que se dirigirá a maior parte das críticas, visando tornar possível que a humanidade tome nas mãos seu próprio destino. Trata-se, todavia, de uma crítica focada: o que se rejeita é a submissão da sociedade ou do indivíduo a preceitos cuja única legitimidade advém daquilo que uma tradição atribui aos deuses ou aos ancestrais; não é mais a autoridade do passado que deve orientar a vida dos homens, mas seu projeto para o futuro.

A grande corrente das Luzes não pleiteia o ateísmo, mas a religião natural, o deísmo, ou uma de suas numerosas variantes. A observação e descrição das crenças do mundo inteiro, às quais se consagram os homens das Luzes, não têm por objetivo recusar as religiões, mas conduzir a uma atitude de tolerância e à defesa da liberdade de consciência. Tendo rejeitado o antigo jugo, os homens fixarão novas leis e normais com a ajuda de meios puramente humanos – já não há lugar, aqui, para a magia nem para a revelação. À certeza da Luz descida do alto substituir-se-á a pluralidade de luzes que se difundem de pessoa para pessoa.

A primeira autonomia conquistada é a do conhecimento. Este parte do princípio de que nenhuma autoridade, por mais bem estabelecida e prestigiosa que seja, está livre de crítica. O conhecimento só tem duas fontes, a razão e a experiência, e ambas são acessíveis a todos. A liberação do conhecimento abre a via real ao desabrochar da ciência. (…) A física obtém progressos espetaculares, seguida pelas outras ciências: química, biologia e até sociologia ou psicologia. Os promotores desse novo pensamento queriam levar luzes a todos, pois estavam convencidos de que serviriam ao bem de todos: o conhecimento é libertador, eis o postulado. Favorecerão assim a educação em todas as suas formas, desde a escola até as academias, e a difusão do saber, por publicações especializadas ou por enciclopédias dirigidas ao grande público.”

Frontispício da Encyclopédie (1772), de Diderot, D'Alambert e outros, desenhado por Charles-Nicolas Cochin e gravado por Bonaventure-Louis Prévost. Esta obra está carregada de simbolismo: a figura do centro representa a verdade – rodeada por luz intensa (o símbolo central do iluminismo). Duas outras figuras à direita, a razão e a filosofia, estão a retirar o manto sobre a verdade. [Wikipédia]

“Frontispício da Encyclopédie (1772), escrita por Diderot, D’Alambert e outros colaboradores. A obra foi desenhada por Charles-Nicolas Cochin e gravada por Bonaventure-Louis Prévost; está carregada de simbolismo: a figura do centro representa a verdade – rodeada por luz intensa (o símbolo central do iluminismo). Duas outras figuras à direita, a razão e a filosofia, estão a retirar o manto sobre a verdade.” [Wikipédia]

A NOVA DIGNIDADE CONCEDIDA AO MUNDO SENSÍVEL

O princípio de autonomia revoluciona tanto a vida do indivíduo quanto a das sociedades. O combate pela liberdade de consciência, que deixa a cada um a escolha de sua religião, não é novo, mas deve ser perpetuamente recomeçado; ele se prolonga numa demanda de liberdade de opinião, de expressão, de publicação. Aceitar que o ser humano seja fonte de sua lei é também aceitá-lo por inteiro, tal como é, e não tal como deveria ser. Ora, ele é corpo e espírito, paixões e razão, sensualidade e meditação. São, também, infinitamente diversos, o que se constata ao passar-se de um país a outro, mas também de uma pessoa a outra.

É o que saberão dizer, melhor do que toda a literatura erudita, os novos gêneros que põem o indivíduo no centro de sua atenção: romance de um lado, autobiografia de outro. Gêneros que não aspiram mais a revelar as leis eternas das condutas humanas, nem o caráter exemplar de cada gesto, mas que mostram homens e mulheres singulares, envolvidos em situações particulares. (…) Atestam a nova dignidade concedida ao mundo sensível.

A exigência de autonomia transforma ainda mais profundamente as sociedades políticas; prolonga e cumpre a separação do temporal e do espiritual. No século das Luzes, ela produz uma primeira forma de ação: os autores de pesquisas livremente conduzidas se esforçavam para comunicar seus resultados aos soberanos benevolentes, para que estes inflectissem sua política. Isso é o que se espera de Frederico II em Berlim, de Catarina II em São Petersburgo ou de Josef II em Viena. Para além desse despotismo esclarecido – que cultiva a autonomia da razão no monarca, mas preserva a submissão do povo – essa exigência leva a dois princípios.

O primeiro é o da soberania, princípio já antigo que recebe aqui um novo conteúdo: a fonte de todo poder está no povo, e nada é superior à vontade geral. O segundo é o da liberdade do indivíduo em relação a todo poder estatal, legítimo ou ilegítimo, nos limites de uma esfera que lhe é própria; para assegurar essa liberdade, vela-se pelo pluralismo e pelo equilíbrio dos diferentes poderes. Em todos os casos está consumada a separação do teológico e do político; este se organiza desde então em função de seus próprios critérios.

LaiciteTodos os setores da sociedade tendem a se tornar laicos, ainda que os indivíduos permaneçam crentes. Esse programa concerne não somente ao poder político, mas também à justiça: o delito, dano causado à sociedade, é o único a ser reprimido, e deve ser diferenciado do pecado, falta moral para com uma tradição. Também a escola destina-se a ser subtraída ao poder eclesiástico para se tornar um lugar de propagação das Luzes, aberta a todos, portanto gratuita, e ao mesmo tempo obrigatória para todos. E assim a imprensa periódica, que passa a ser o lugar do debate público…

Laïcité

HUMANISMO SECULAR: VALORES TERRESTRES PARA UM MUNDO EMANCIPADO

A vontade do indivíduo, como a das comunidades, emancipou-se das antigas tutelas; isso quer dizer que não conhece mais nenhum limite? Não: o espírito das Luzes não se reduz unicamente à exigência de autonomia, mas traz também seus próprios meios de regulação. O primeiro diz respeito à finalidade das ações humanas permitidas. Esta desce à terra: não visa mais a Deus, mas aos homens. Nesse sentido, o pensamento das Luzes é um humanismo ou, se preferirmos, um antropocentrismo.

Não é mais necessário, como pediam os teólogos, estar sempre pronto a sacrificar o amor das criaturas ao do Criador; é possível contentar-se com amar outros seres humanos. Seja o que for a vida no além, o homem deve dar um sentido à sua existência terrena. A busca de felicidade substitui a da salvação. O próprio Estado não se coloca a serviço de um intento divino, seu objetivo é o bem-estar de seus cidadãos.

A segunda restrição imposta à livre ação tanto dos indivíduos como das comunidades consiste em afirmar que todos os seres humanos possuem, por sua própria natureza humana, direitos inalienáveis. As Luzes absorvem aqui a herança do pensamento do direito natural: ao lado dos direitos de que os cidadãos gozam no âmbito de sua sociedade, eles detêm outros, comuns a todos os habitantes do globo e, portanto, a cada um. (…) O pertencimento ao gênero humano, à humanidade universal, é mais fundamental ainda que o pertencimento a determinada sociedade. Se todos os seres humanos possuem um conjunto de direitos idênticos, decorre que sejam iguais em direito: a demanda de igualdade decorre da universalidade.

Ela permite empreender combates que continuam em nossos dias: as mulheres devem ser iguais aos homens perante a lei; a escravidão abolida, a alienação da liberdade de um  ser humano não pode jamais ser legítima; os pobres, os excluídos, os marginais, reconhecidos em sua dignidade etc. Essa afirmação da universalidade humana gera o interesse por sociedades diferentes daquela em que se nasceu. Os viajantes e os sábios não conseguem, do dia para a noite, deixar de julgar os povos longínquos a partir de critérios provindos de suas próprias culturas; no entanto, sua curiosidade é despertada, eles se tornam conscientes da multiplicidade de formas que a civilização pode assumir e começam a acumular informações e análises que, com o tempo, transformam-lhes a idéia de humanidade.

(…) Tal é, em linhas bem gerais, o generoso programa que se formula no século das Luzes. Como devemos julgá-lo hoje, 250 anos após seu surgimento? (…) Se quisermos hoje encontrar um apoio no pensamento das Luzes para enfrentar nossas dificuldades presentes, não podemos acolher todas as propostas formuladas no século XVIII – não somente porque o mundo mudou, mas também porque esse pensamento é múltiplo, não uno. É antes de tudo de uma refundação das Luzes que precisamos: preservar a herança do passado, mas submetendo-o a um exame crítico, confrontando-o lucidamente com suas consequências desejáveis e indesejáveis. Fazendo isso, não arriscamos trair as Luzes; ao contrário: a verdade é que as criticando, continuamos fiéis a elas, e colocamos em prática seu ensinamento.”

TZVETAN TODOROV
O Espírito das Luzes / L’Ésprit des Lumières
 SP: Barcarola, 2006.
Pgs. 9, 15.

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SIGA VIAGEM:

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UM CARTUM:

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UMA PINTURA:
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Delacroix, “A Liberdade Liderando o Povo”

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UMA ILUSTRA:

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UM TEXTO DO KANT:

“O iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são aqueles que se encontram incapazes de fazer uso da própria razão independentemente da direção de outrem. É-se culpado da própria tutelagem quando esta resulta não de uma deficiência do entendimento mas da falta de resolução e coragem para se fazer uso do entendimento independentemente da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso da tua própria razão! – esse é o lema do iluminismo”.

IMMANUEL KANT. Leia o artigo completo: resposta de Kant à enquete “O Que é O Esclarecimento?”, escrita em Königsberg, Prússia, 1784.

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OUTRAS LEITURAS SOBRE O MESMO TEMA:

ADORNO E HORKHEIMERDialética do Esclarecimento.
ERNST CASSIRER. The Philosophy of the Enlightenment.
ROUANET, S. P. As Razões do Iluminismo.

EM A CASA DE VIDRO

MICHEL FOUCAULT: HERDEIRO DO ILUMINISMO?

Jesus Cristo segundo Paulo Leminski

“Ecce Homo”, de Caravaggio

 JESUS SEGUNDO LEMINSKI

Uma exploração da bio publicada em “Vida” (Cia das Letras)

por Eduardo Carli de Moraes

O signo Jesus é um dos mais polissêmicos da História humana: sobre o crucificado empilham-se interpretações inumeráveis. Leminski, quando produz sua biografia, publicada em 1984, procura apresentar sua perspectiva de Jesus como um “subversor da ordem vigente, negador do elenco dos valores de sua época e proponente de uma utopia“. Também deseja “revelar o poeta” por trás do profeta (p. 159). A obra inicia-se brincando de noticiário e relatando feito imprensa marrom um factóide ocorrido em Jerusalém:

Pintura de Rembrandt: Jesus expulsa os vendilhões do Templo.

Pintura de Rembrandt: Jesus expulsa os vendilhões do Templo.

“Alguém que atende pelo nome de Jesus invadiu as dependências do Templo, agredindo e expulsando toda a casta de vendedores que ali exercia seu ofício. O lunático, galileu pelo sotaque, entrou, subitamente, chutando as mesas dos mercadores de pombas e outros animais destinados ao sacrifício. Na confusão que se seguiu ao incidente, entre as moedas que rolavam pelas escadas, gaiolas quebradas, pombas que voavam, acorreram os guardas, que não conseguiram deitar mãos no facínora. O tal Jesus desapareceu no meio da multidão. A reportagem apurou que o referido é natural de Nazaré, na Galileia, filho de um carpinteiro. Arrebanhou inúmeros seguidores entre os pescadores do mar da Galileia. Dizem que opera milagres. E descende, por linha direta, do rei Davi.” (p. 160)

O Jesus de Leminski raia no céu do livro com certos arroubos anarquistas, enfurecido contra os adoradores do vil metal, movido pelo desejo de dilacerar os idólatras do bezerro de ouro. Este gesto radical interessa intensamente a Leminski, que sabe muito bem que um poeta não precisa traficar somente com palavras escritas, mas pode expressar-se com seus atos, através de seus ditos e feitos. Como Sócrates e Sidarta Gautama (o Buda) antes dele, Jesus não deixou nada escrito de próprio punho; no entanto, “mudou o mundo como poucos” (p. 165).

Para compreender as raízes e o contexto sócio-cultural de onde emergiu Jesus de Nazaré, Leminski faz-se historiador e pondera:

“O Oriente Médio era o lugar culturalmente mais rico da Antiguidade. (…) Essa parte do globo, afinal, foi berço do judaísmo, do cristianismo e do Islã, as religiões de Moisés, Jesus e Maomé. Não nos deixemos iludir pelas aparentes diferenças entre essas três confissões religiosas, nem por seus conflitos históricos. Com variantes de detalhes, as três afirmam, no fundo, os mesmos princípios: o tribal monoteísmo patriarcalista, o moralismo fundado em regras estritas, a tendência ao proselitismo expansionista, a intransigência. ‘Não haverá outros deuses diante de ti’, parecem dizer as três, afirmando Javé, Jesus e Alá.”

Jesus insere-se numa longa tradição de profetas que anunciam o advento futuro de um certo Reino de Deus, “a começar por esse extraordinário Isaías, que Jesus, superpoeta, gostava de citar. (…) Pela extrema criatividade imagética, voos quase surrealistas de fantasia, vigor e pujança de expressão e formulação, Isaías tem de ser contado entre os grandes poetas da humanidade, no time de Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Bashô, Goethe.” (p. 167)

Leminski também sabe muito bem que o ofício dos profetas do Antigo Testamento desenvolve-se “no auge das agruras que afligiram o povo hebreu, estraçalhado entre os poderes do Egito e da Babilônia-Assíria. (…) Nesse quadro, os profetas exerceram agudo papel político, como assessores e conselheiros dos reis de Judá e Israel. Alguns pagaram com a vida esse envolvimento direto com a História. Quer a lenda que Isaías, aos cem anos de idade, por intrigas de cortesãos, foi acusado de alta traição, condenado à morte e serrado ao meio. (…) A profecia sempre foi uma profissão perigosa.” (p. 168-169)

Jesus, antes de mais nada, é um judeu, que traz em seu próprio corpo a marca de sua pertença aos hebreus: “era circuncidado”. Já adulto, aos 30, Jesus será batizado por João no Rio Jordão, um rito “articulado com a confissão dos pecados, com a categoria ascética da penitência. (…) Entre os judeus, esse rito parece que começou a competir com o da circuncisão, a ablação do prepúcio, que sempre foi, desde Abrão, a marca distintiva do Ham Israel. A história dos conflitos originais entre o judaísmo e o cristianismo poderia ser, liturgicamente, entendida como uma luta entre os ritos da circuncisão e do batismo.” (p. 171-172)

Entre Moisés e Jesus, há um abismo de tempo, cerca de um milênio. Segundo Leminski, “Jesus veio para exagerar a pureza da doutrina de Moisés” (p. 174):

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Moisés

“Entre Moisés e Jesus, há, pelo menos, um bom milênio. Natural que, em mil anos, a religiosidade judaica tenha evoluído para exigências mais sofisticadas e formas mais complexas e abstratas de expressão. Afinal, quando Moisés formulou a Lei, os hebreus eram um povo de beduínos nômades, recém-fugido do cativeiro no Egito, onde os faraós da XXIII Dinastia os empregavam, como escravos, entre dezenas de outros povos, na edificação dos templos e palácios que fizeram a glória do país do Nilo. Depois disso, o povo hebreu passou por uma extraordinária peripécia histórica, conquistando Canaã, constituindo-se em Estado, triunfando com o rei Davi, prosperando com seu filho Salomão, vivendo, enfim, toda a complexidade política e militar dos reinos semitas do Oriente Médio, primeiro, estraçalhado entre as superpotências egípcia e assíria, depois, invadido por persas, gregos macedônios e, enfim, romanos. Por bem ou por mal, a Palestina e o povo hebreu se viram envolvidos pela imensa onda de helenismo que desabou sobre a Ásia com a invasão de Alexandre. A doutrina de Jesus representa uma resposta criativa aos novos tempos que o povo judeu vivia.” (p. 176)

Pieter Brueghel, O Jovem - Cristo e a Adúltera (1600)

Pieter Brueghel, O Jovem – Cristo e a Adúltera (1600)

Jesus não respeita com ortodoxia perfeita os rituais mosaicos, como prova o episódio célebre da adúltera. Uma mulher foi pega no flagra traindo seu marido e “conforme a lei mosaica, a adúltera deveria ser apedrejada pelo povo até a morte” (p. 177). Um sintoma evidente de que estamos diante de uma religião patriarcal e, portanto, machista, é o fato de que o homem que pratica o adultério não é de modo algum sujeito a tais rigores punitivos. Dois pesos, duas medidas. Diante do iminente apedrejamento da adúltera, Jesus lança a provocação:

Quem não tiver pecado
Atire a primeira pedra.

Leminski comenta:

“Homem assim não ia ter vida longa nem morrer na cama. Ia ter um fim como João, seu ‘guru’ e batista, que teve a cabeça cortada por Herodes. Isaías, serrado ao meio. Jeremias, exilado no Egito… A vida de um nabi não era muito segura. Não se brinca, impunemente, com os poderes deste mundo. Jesus chegou a tocar no sacrossanto repouso do sábado, talvez, com a circuncisão, os dois ritos fundamentais do judaísmo. É extraordinariamente minucioso o elenco de proibições, interditos e tabus do sábado judaico, o dia em que se repete, ritualmente, o descanso de Javé, no sétimo dia, depois de criar o universo. No sábado judeu, as atividades são reduzidas a um mínimo. Rabinos extremamente meticulosos, ao longo dos séculos, foram legislando os gestos que violam o sábado, indo do trabalho à alimentação da vida diária à sexual, limitando até o número de passos lícitos, nesse dia de não fazer nada. Ora, sucedeu que, num sábado, discípulos de Jesus passavam ao lado de um campo de trigo. Estavam com fome, agarraram espigas e as comeram. Fariseus estavam presentes e, escandalizados, interpelaram Jesus: ‘Teus discípulos violam o sábado’. É proibido colher nesse dia. Jesus arrasou: ‘O sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado’.” (p. 178)

Agindo menos como teólogo e mais como historiador, Leminski prefere retratar Jesus em seu contexto social e político, em suas interações intersubjetivas, não se aventurando muito a comentar ou criticar as lendas transformadas em dogmas – como a concepção imaculada ou a ressurreição no terceiro dia após a execução. Jesus é essencialmente uma figura subversiva aos olhos do status quo imperial romano, essencialmente um inovador perigoso que é visto com desconfiança pelas autoridades judaicas instituídas. Por isso a biografia leminskiana tem um certo sabor realista, similar àquele que anima o filme de Pier Paolo Pasolini, O Evangelho Segundo Mateus. Podemos polemizar o quanto quisermos sobre os supostos super-poderes milagreiros do nazareno, mas o inegável é que, como figura histórica, Jesus torna explícitos os conflitos, no Oriente Médio, entre Roma e as populações pelo império oprimidas:

“Na teocracia semita, o líder religioso é sempre chefe político. E vice-versa. Basta ver o caso do Irã do Ayatolah Khomeyni. Descendente do rei David, Jesus era o líder carismático do povo numa guerra de libertação contra o imperialismo romano. Sua condenação final diante do poder de Roma, encarnada na pessoa do procônsul Pôncio Pilatos, é significativa: o povo o aclamava, abertamente, como rei. Ao colocar sobre a cruz onde o supliciavam uma placa com a inscrição ‘Jesus de Nazareth, Rei dos Judeus’, os romanos mostravam que não estavam brincando em serviço.

Deixemos de lado as lendas messiânicas sobre o nascimento em Belém. Jesus sempre é chamado de ‘nazareno’, natural de Nazaré. E os primeiros cristãos eram chamados de ‘galileus’. A fábula da fuga ao Egito deu margem a muitas outras lendas. Está em Mateus. Jesus nasce, os magos vêm visitá-lo, o rei Herodes fica sabendo, consulta os sábios para saber onde nasceria o Messias. Citando Miquéias, os sábios apontam Beth-Lehem: Herodes ordena o massacre de todas as crianças com menos de um ano de idade. Avisado por um anjo, José pega a mulher e o filho e foge para o Egito, donde só volta depois que o mesmo anjo, pontual funcionário do Senhor, lhe avisa, em sonho, que dá para voltar, tudo está limpo. Daí, José volta.

A fábula é inverossímil. Só ver a distância a percorrer entre a Galiléia e o Egito, numa época quando as estradas da Ásia viviam infestadas de assaltantes e ainda havia grande quantidade de leões, depois extintos pela caça contínua e sistemática. Não é assim, no entanto, que se trata uma fábula: uma lenda vale por seus significados simbólicos. A fuga da família de Jesus para o Egito era uma volta às origens. Afinal, foi lá que o povo hebreu viveu escravo dos faraós. De lá, Moisés o tirou, para a liberdade, a plenitude, a maioridade, depois da invasão de Canaã (a Palestina), realizada com implacáveis hecatombes, massacres e aniquilação, ao estilo assírio, de cidades inteiras, como conta o Livro de Josué.” (p. 182)

Pintura de Alexander Ivanov (1806 - 1858): Cristo aparece a Maria Madalena após a Ressurreição

Pintura de Alexander Ivanov (1806 – 1858): Cristo aparece a Maria Madalena após a Ressurreição

Frequentador assíduo da obra dos linguistas e estudiosos de semiótica, de Propp a Jakobson, de Peirce a Bakhtin, Leminski enxerga também em Jesus um emissor de linguagem que tem suas peculiaridades: “Talvez, à luz de uma estética da recepção, adequasse seu discurso ao universo dos pequenos lavradores e pescadores dentre os quais arrebanhou seus primeiros seguidores. (…) Jesus parece ter sido muito livre na escolha de suas companhias. Os evangelhos estão cheios das queixas dos fariseus pelo fato de Jesus frequentar pecadores, estrangeiros, publicanos (coletores de impostos para Roma), meretrizes e até gente pior.” (p.  188-189)

Jesus não inventou a parábola destinada a provocar epifania: este já era um “gênero linguístico” praticado por uma antiga tradição oriental, praticada por Confúcio na China, pelos gurus da Índia, pelos sufis do Islã etc. (p. 195). A idolatria a textos considerados sagrados também não foi criação de Cristo, que participa de uma cultura onde livros-ídolos, como a Torá, são comuníssimos. De todo modo, os relatos sobre Jesus, em especial as lendas sobre seus poderes prodigiosos e milagreiros, não perderam sua capacidade de encantar uma vasta fração dos humanos, mesmo após dois milênios já transcorridos:

“Nos evangelhos, Jesus vive fazendo milagres, signa, prodígios, que demonstram sua força sobrenatural. São, na maior parte, milagres médicos ou econômicos: cura de doenças (cegueira, surdez, paralisia) ou multiplicação de alimentos (pão, peixe, vinho), o que bem situa Jesus em seu universo de gente miúda, sempre às voltas com a penúria ou a moléstia. De qualquer forma, os signos foram dados. E, quase dois mil anos depois, estão longe de parar de rolar. De desistir de sua capacidade de serem interpretados.” (p. 198)

Tanto é assim que a literatura não cessa de produzir novas variações sobre este tema aparentemente inesgotável: mesmo um livro altamente experimental e vanguardista como o Finnegans Wake de James Joyce dialoga com os evangelhos, e no século XX tivemos muitos romances importantes publicados e que re-interpretaram o mito, caso de Nikos Kazantzakis com A Última Tentação de Cristo ou José Saramago com O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Em artigo publicado na Revista Cult, o crítico literário Manoel Ricardo de Lima afirma que, com Vida, Leminski elegeu quatro vidas que estariam “posicionadas radicalmente contra algo que mais atinge o homem moderno: o dinheiro… Essas quatro figuras surgem contra o capital”, considera Manoel. Ora, no caso da biografia sobre Jesus, é explícito um retrato de um profeta-poeta anti-capitalista, como exemplificado pelo episódio no Templo de Jerusalém ou pelo Sermão da Montanha, que enuncia que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus.

“Quando Jesus viveu, a economia de todo o mundo mediterrâneo já era monetária. Nas mãos de egípcios, gregos, gauleses, ibéricos, judeus, circulavam sestércios e asses, cunhados por Roma, pequenos círculos de metal trazendo o perfil e o nome do Imperador, onipresença de Roma. No mundo em que Jesus vivia, o dinheiro era a evidência da presença do dominador: o povo de Israel estava nas mãos do goiim, os pagãos, idólatras, politeístas, que não reconhecem o poder de Jeová, que não sabem que só há um Deus e que esse Deus escolheu um povo para crer nele e só nele. Na Judéia, a mais ínfima moeda era um índice da humilhação nacional.” (p. 203)

O César de então cobrava seus tributos através de todo o Império Romano, acumulando capital às custas de multidões espoliadas, de modo que este ímpeto capitalizador acaba identificado por Jesus com o domínio satânico de Mammon. Conta-se que Jesus e seus doze discípulos inclusive puseram seus bens em comum, vivendo efetivamente em um micro-regime comunista, característica que também marcou a seita de Pitágoras cerca de 500 anos antes. De todo modo, “entre os doze principais [discípulos] que o seguiam, a administração do dinheiro comum estava a cargo de Judas Iscariotes. Pois foi Judas, o homem do dinheiro, quem traiu Jesus, apontando-o às autoridades. Por exatamente trinta dinheiros. Trinta belas moedas de prata, com a imagem do Imperador de Roma.” (p. 206)

O contexto sócio-político que engloba a figura de Jesus é portanto dominado por um Império monetarizado e patriarcal, contra o qual ele realiza uma espécie de levante de escravos. Há mais de Spartacus em Jesus do que sonha a nossa vã historiografia. E Nietzsche, no século 19, saberá ler com clareza o quanto a moral do cristianismo representa uma inversão de valores, uma afirmação dos valores contrários aos vigentes nas classes dominantes, numa espécie de revolução moral preconizada pelos escravos contra a moral de seus senhores. Os últimos serão os primeiros, e se não for na Terra… será no Céu.

Leminski também é magistral ao destacar o caráter machista e falocêntrico das instituições sociais e das mitologias culturais dos monoteísmos nascidos no Oriente Médio. É só lembrar que o mito do Gênesis, “fundamento metafísico do patriarcalismo semita”, conta que Eva nasceu depois de Adão e foi edificada a partir de uma reles costela do macho. “Notável na estrutura do mito da origem de Eva é que ele constitui uma inversão da realidade: biologicamente, é o homem que sai da mulher, não a mulher do homem.” (p. 207)

Ló e suas filhas com a destruição de Sodoma e Gomorra ao fundo. Pintura de Lucas van Leyden (1520).

Ló e suas filhas com a destruição de Sodoma e Gomorra ao fundo. Pintura de Lucas van Leyden (1520).

“O patriarcalismo falocrático, próprio dos pastores nômades, que eram todos os semitas em sua origem, encontrou sua tradução mais literal na poligamia, regime no qual a mulher desaparece enquanto pessoa, reduzida a uma fração de um harém. Os antigos hebreus e o judaísmo posterior são fundamentalmente patriarcalistas, bem como o cristianismo e o Islã, derivados diretos da fé de Moisés. Nesses três credos (no fundo, um só), a mulher não tem acesso às funções sacerdotais: os intermediários entre o sacro e a humanidade são rabinos, padres, ulemás. Isso vem de muito longe. No livro do Gênesis, os primeiros grandes patriarcas hebreus (Abrão, Isaac, Jacó) têm muitas mulheres, como cabe a um próspero sheik do deserto. Como distinguir o esplendor do reino de Salomão, sem lembrar das setecentas mulheres do seu harém, entre as quais brilhava, inclusive, uma filha do faraó do Egito? Nesse universo patriarcal, falocrático, poligâmico, a mulher só pode ter uma existência, uma condição ontológica rarefeita, essencialmente subalterna, secundária, menor, algo entre os camelos e rebanhos e os humanos plenos, que são os machos. Daí, os rigores da lei mosaica contra o homossexualismo e a sodomia, instâncias de aguda feminilização do homem, punidos com a morte.” (p. 207 – 208)

Leminski, nietzschianamente, pondera: “religião de escravos, em seus primórdios, o cristianismo passou por um processo de ascensão social até chegar ao palácio dos imperadores romanos. Nessas altíssimas rodas, os primeiros convertidos foram imperatrizes e grandes damas da família imperial.” (p. 210) Apesar de muitos episódios da saga de Jesus envolverem mulheres, seria exagero fazer dele um feminista. Ademais, “não há traços da vida sexual de Jesus… um homem abstinente dos prazeres da bela aparência e do desfrute de fêmeas.” (p. 211) Aquilo que Nietzsche chamará de ideal ascético manifesta-se em toda a pureza em Jesus, negador da carne e da matéria, influência sobre inúmeras gerações de repressores da sensualidade e da sexualidade: “Para nós, geração permissiva, que viemos depois de Freud e Reich, é incompreensível um mundo em que o sexo é negado. Mas isso é possível. Milhões de monges e monjas, padres e freiras, disseram não ao mais imperioso desejo.” (p. 211)

Em um de seus capítulos mais ousados, Jesus Jacobino, Leminski compara o projeto social de Jesus com o de Robespierre. Este último, cognominado “o incorruptível”, liderou a revolução burguesa na França e, como sabemos, “milhares de cabeças rolaram na guilhotina, condenadas pela sumária justiça revolucionária (revoluções não costumam primar pela gentileza nem pelas boas maneiras).” (p. 216) Se Jesus e Robespierre tem algo em comum, sugere Leminski, é isto: “Eles querem o exagero, a pureza de um princípio. (…) Erro pensar que Jesus veio abrandar os rigores farisaicos da religião de Israel. Ele veio para tornar mais agudas as exigências dessa fé. (…) Ninguém, porém, que conheça os evangelhos pode deixar de ver o caráter violentamente utópico, negador (utopias são negações da ordem vigente: o imaginário é subversivo), prospectivo, des-regrado (r) da pregação de Jesus.” (p. 218)

Profeta, poeta, utopista: Jesus aparece a Leminski como tudo isso junto e misturado. Este messias, tão incômodo quanto um Spartacus (ambos terminaram pregados na cruz pelos romanos), demandava um outro mundo e teve sua boca calada com violência. Em uma interpretação que talvez soe herética aos ouvidos daquelas seitas cristãs mais conservadoras e elitistas, Leminski reclama que a utopia de Jesus seja inserida na galeria do socialismo utópico. E denuncia os inúmeros desvios e perversões que transformam a mensagem de Jesus de Nazaré em algo capaz de produzir Cruzadas, Inquisições, Massacres.

“O Reino de Deus era a restauração da autonomia nacional do povo hebreu. Sobre isso, a autoridade romana não se equivocou, ao pregar o profeta na crux, exemplar suplício com que os latinos advertiam os rebeldes sobre os preços em dor da sua insurreição. Esse o suporte material, sócio-econômico-político, da pregação, por Jesus, de um (novo) Reino, um (outro) poder. Nessa tradução/translação do material para o ideológico, Jesus forneceu um padrão utópico para todos os séculos por vir. As duas grandes revoluções, a Francesa e a Russa, estão carregadas de traços messiânicos de extração evangélica. Ambas prometeram a justiça, a fraternidade, a igualdade, enfim, a perfeição, o ideograma da coisa-acabada projetada sobre o torvelinho das metamorfoses. Natural que seja assim. Afinal, as utopias são nostálgicas, saudades de uma shangrilá/passárgada, estado de excelência que lá se quedou no passado, Idade de Ouro, comunidade de bens na horda primitiva, antes do pecado original da divisão da sociedade em classes, plenitude primitiva, paleolítica, intra-uterina, antes do pesadelo chamado História.

A revolução é o apocalipse, o Juízo Final de uma ordem e de uma classe social: o cristianismo primitivo cresceu à sombra da expectativa da segunda vinda, quando Jesus, vitorioso sobre a morte, voltaria, apocalipticamente, para julgar, ele que foi julgado e condenado pelas autoridades: o retorno do reprimido, a vendeta, o acerto de contas entre os miseráveis da terra e seus prósperos opressores e exploradores. (…) O programa de vida proposto por Jesus é, rigorosamente, impossível. Nenhuma das igrejas que vieram depois invocando seu nome e cultuando sua doutrina o realizou. Religião saída de Jesus não poderia ter produzido Cruzadas, inquisição, pogrons e as guerras de religião entre católicos e protestantes, que ensangüentaram a Europa nos séculos XVI e XVII. O programa de Jesus é uma utopia. Curioso que, na frondosa bibliografia sobre os socialismos utópicos, nunca apareça a doutrina de Jesus como uma das mais radicais.” (p. 221)

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Depoimento de Paulo Botas

Cecília Meirelles, “A Liberdade”

Cecília Meireles

Do livro de contos “Escolha o seu sonho”

“Deve existir nos homens um sentimento profundo que corresponde a essa palavra LIBERDADE, pois sobre ela se têm escrito poemas e hinos, a ela se tem até morrido com alegria e felicidade.

Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam “Liberdade, Igualdade e Fraternidade!”. Nossos avós cantaram: “Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil!”; nossos pais pediam: “Liberdade! Liberdade! – abre as asas sobre nós”, e nós recordamos todos os dias que “o sol da liberdade em raios fúlgidos – brilhou no céu da Pátria…” – em certo instante.

Somos, pois, criaturas nutridas de liberdade há muito tempo, com disposições de cantá-la, amá-la, combater e certamente morrer por ela.

Ser livre – como diria o famoso conselheiro… – é não ser escravo; é agir segundo a nossa cabeça e o nosso coração, mesmo tendo que partir esse coração e essa cabeça para encontrar um caminho… Enfim, ser livre é ser responsável, é repudiar a condição de autônomo e de teleguiado – é proclamar o triunfo luminoso do espírito. (Supondo que seja isso.)

Ser livre é ir mais além: é buscar outro espaço, outras dimensões, é ampliar a órbita da vida. É não estar acorrentado. É não viver obrigatoriamente entre quatro paredes.

Por isso, os meninos atiram pedras e soltam papagaios. A pedra inocentemente vai até onde o sono das crianças deseja ir. (Às vezes, é certo, quebra alguma coisa, no seu percurso…).

Os papagaios vão pelos ares até onde os meninos de outrora (muito de outrora!…) não acreditavam que se pudesse chegar tão simplesmente, com um fio de linha e um pouco de vento!…

Acontece, porém, que um menino, para empinar um papagaio, esqueceu-se da fatalidade dos fios elétricos e perdeu a vida.

E os loucos que sonharam sair de seus pavilhões, usando a fórmula do incêndio para chegarem à liberdade, morreram queimados, com o mapa da Liberdade nas mãos!…

São essas coisas tristes que contornam sombriamente aquele sentimento luminoso da LIBERDADE. Para alcançá-la estamos todos os dias expostos à morte. E os tímidos preferem ficar onde estão, preferem mesmo prender melhor suas correntes e não pensar em assunto tão ingrato.

Mas os sonhadores vão para a frente, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos que falam de asas, de raios fúlgidos – linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel…”