APROPRIAÇÃO CULTURAL E REPRESENTATIVIDADE NAS ARTES: Reflexões na companhia de Cornel West, F. Bosco e Ana Maria Gonçalves, dentre outros

“Uma ironia do nosso momento é que enquanto jovens negros são assassinados, mutilados e encarcerados em números recordes, seus estilos se tornaram desproporcionalmente influentes na formação da cultura popular.” CORNEL WEST no livro “Race Matters” (1990)

O mesmo Cornel West, em uma de suas frases mais célebres e em sintonia com o espírito de Martin Luther King, pede que nunca nos esqueçamos: “a Justiça é o modo como o Amor aparece em público”.

Ao debater os temas da apropriação cultural e da representatividade nas artes, proponho deixar sempre em nosso horizonte este ideal de Justiça como Amor-em-Público, que pode nortear nosso caminhar rumo a um “outro mundo possível” (afinal, a utopia, como ensina E. Galeano, serve pra caminharmos…).

Hélio Oiticica e Torquato Neto gostavam de afirmar que “a pureza é um mito”. E certamente podemos adicionar: um mito dos mais perigosos e nefastos. A julgar tanto pelo puritanismo religioso, que está sempre conectado à intolerância que acende fogueiras onde ardem bruxas e hereges, quanto pelo mito nazifascista de uma raça pura ariana, que gerou algumas das piores catástrofes humanitárias e genocídios do século 20.

“A ideia de gêneros puros, culturas puras, no mundo moderno, um mundo por definição constituído por cruzamentos, contatos, circulações, é uma ideia insustentável. (…) O conceito de apropriação cultural deve, antes de tudo, enfrentar o espectro do problema da inexistência, no mundo moderno, de culturas puras. Pois parece uma contradição alegar ser expropriado daquilo de que não se é dono”, afirma Francisco Bosco (2017, p. 116-117).

De fato, a noção de que um certo povo possa ser o proprietário de uma cultura própria, 100% original e autêntica, autoproduzida em total isolamento em relação a outros povos e culturas, parece uma fantasia inverossímil. No Brasil, por exemplo, sabemos que o samba tem uma história conexa à diáspora africana e é o equivalente, neste continente, do semba angolano (que significa umbigada em kimbundo).

Pra Tinhorão, o samba nasce a partir dos descendentes de escravos que migram da Bahia para o Rio de Janeiro, entre o ocaso do séc. 19 e a alvorada do séc. 20. As mutações do samba, que logo começará a ser interpretado e composto por “branquelos” como Noel Rosa, Chico Buarque e Nara Leão, já coloca em pauta o tema da apropriação cultural.

No caso da bossa nova, descrita costumeiramente como uma forma estética que nasce da mescla entre  samba e jazz, teria sido cometido um pecado de apropriação cultural dupla, ou seja, a apropriação da criação afrobrasileira do samba com a criação “afroestadunidense” do jazz? A realidade é mais complexa e sua essência manifesta a presença constante da mescla.

Uma outra questão, conexa e paralela, diz respeito às grandes corporações da indústria cultural: as empresas capitalistas especializadas na produção de álbuns musicais e produtos audiovisuais sempre estiveram ligadas nas subculturas em ascensão, que ameaçam tomar de assalto o chamado mainstream. O processo de transformar em commodity aquilo que começa a expressar-se com mais força na sociedade pode ser exemplificada pela gênese do rock and roll. 

Tempos atrás, o projeto Afropunk, que tem mais de 2.000.000 de seguidores no Facebook, viralizou com memes, vídeos e reportagens em que conclamava-nos a lembrar sempre que o rock and roll foi inventado por uma mulher negra e queer chamada Sister Rosetta Tharpe.

“Rock-n-Roll was invented by a queer Black woman born in 1915 Arkansas. Your disordered hardcore punk rock was sanctioned by a kinky-haired Black girl born to two cotton pickers in the Jim Crow South. The electric guitar was first played in ways very few people could have ever imagined by a woman who wasn’t even allowed to play at music venues around the country. The Patron Saint of rock music is Sister Rosetta Tharpe. The original punk rebel from which we were all born, SRT is muva.” – Afropunk. “Queer, Black & Blue”. 2019.

A verdadeira Vovó do Rock, Sister Rosetta Tharpe teria sido a responsável pela infusão de novas intensidades e cadências rítmicas aceleradas ao blues, produzindo assim esta mutação de alto potencial de propagação no zeitgeist cultural que foi o rock’n’roll, filho bastardo do blues com o gospel. Muitos “pais da matéria” no rock’n’roll  reconheceram sua dívida com a Mãe do bagulho todo – figuras como Chuck Berry e Aretha Franklin sempre celebraram Rosetta Tharpe como uma influência maior, e Johnny Cash chegou a dizer, em seu discurso de aceitação do Hall of Fame, que ela era sua cantora predileta em todos os tempos.


Ou seja, no processo de constituição histórica do rock’n’roll, uma das formas artísticas que mais marca o século 20 em matéria de impacto popular e de ressonâncias nos comportamentos e mercados, teria ocorrido um ocultamento das verdadeiras raízes do fenômeno. A branquitude e o masculinismo hegemônicos e dominadores teriam praticado tanto a masculinização quanto o embranquecimento do rock’n’roll, originalmente uma criação do povo negro blueseiro no Sul dos EUA.

Se, hoje, a mentalidade colonizada por este ideário hegemônico pensa em rock’n’roll e logo evoca um panteão cheio de homens brancos (e ricos) – Elvis Presley, os Beatles, os Rolling Stones, o The Who, o Led Zeppelin… -, é preciso afirmar que uma história alternativa é possível, em que o panteão do rock teria que incluir em local de honra homens e mulheres afroamericanos – como Sister Rosetta Tharpe, Chuck Berry, Big Mama Thornton, Jimi Hendrix, Little Richard, Fats Domino, dentre muitos outros.

É óbvio que seria atitude segregadora e xiita querer que o samba e o rock, por suas raízes, fossem para sempre apenas “formas estéticas” permitidas para seus “criadores” originais. Quem proibisse brancos de tocarem samba ou rock estaria de fato praticando uma espécie de racismo reverso de que, na vida concreta, não se tem notícia significativa. Dito tudo isso, temos que voltar ao ponto-de-partida – a Justiça, ou o Amor como aparece em público – para julgar a pertinência do conceito de apropriação cultural. 

“A improcedência do argumento das formações culturais puras não invalida a procedência descritiva do conceito de apropriação cultural”, escreve Bosco (p. 118):

“Este conceito de apropriação cultural  designa fundamentalmente  uma dinâmica cultural de desigualdades. Gêneros ou formas que carregam uma larga contribuição das culturas negras, embora misturados em seu processo de formação histórica, tendem a circular no mundo com protagonismo não negro…

Os sambistas brancos têm muito maiores chances de ascender no star system, cujas regras são feitas por brancos, para privilégio dos brancos. Evoquemos, por exemplo, o caso de Cartola, já então considerado um dos maiores sambistas da história, e que contudo passou uma década na miséria, doente, ostracizado…

Eram brancos os intérpretes mais populares dos anos 1930… Mário Reis, Francisco Alves e Carmen Miranda. Os dois primeiros, aliás, costumavam comprar os sambas de compositores negros dos morros, como o próprio Cartola, tornando-se parceiros na divisão dos lucros. Na verdade, ficavam com a maior parte dos lucros, pois, numa época em que os direitos autorais ainda engatinhavam, os compositores não recebiam participação por exemplares de discos vendidos (apenas pela venda de partituras, só publicadas após a gravação das canções)…

Chico Alves era quem levava os sambas comprados à Casa Edison, e assim ficava com o pagamento… A prática não deixa de ser uma espécie concreta de apropriação cultural – propiciada pelo fato de que os intérpretes famosos eram brancos. É portanto da articulação do capitalismo com o racismo que se produz a realidade identificada pelo conceito de apropriação cultural” Ele não depende de que a cultura lesada seja, originalmente, proprietária exclusiva dos bens simbólicos em questão. É de uma dinâmica de desigualdades que se trata, em que a parte de contribuição de uma cultura inferiorizada, por maior que seja (e no caso dos negros é enorme quanto aos gêneros citados), não encontra correspondente justo nos modos de circulação social das formas culturais.” (BOSCO, op cit, p. 118)

Tanto é assim que os conceitos de apropriação cultural e de lugar de fala são mobilizados sobretudo por pensadoras-ativistas vinculadas ao feminismo negro, tais como Nátaly Neri, Djamila Ribeiro, Rosana Borges. Outro exemplo interessante de apropriação cultural que se dá no entroncamento do capitalismo com o racismo é mencionado no vídeo a seguir da Negatta, onde ela cita o caso das Havaianas, empresa que colocou em seus chinelos, sem autorização prévia, grafias típicas dos povos indígenas do Xingu como os Yawalapiti, mercantilizando a produção cultural alheia de modo desrespeitoso e de maneira a esvaziar o significado cultural daquilo para a cultura lesada/diminuída:

NEGATTA:

NÁTALY NÉRI

O samba de fato serve como exemplo icônico nas lógicas sistêmicas que são denunciadas com o auxílio do conceito de apropriação cultural: no romance Jubiabá, de Jorge Amado, podemos entrar em contato com uma crônica concreta de um negro baiano (Antônio Balduíno, do Morro do Capa-Negro), que a certo ponto da narrativa vende seus sambas mas parece condenado à penúria miserável que busca driblar com toda a ginga de sua malandragem de oprimido.

“Durante muito tempo, o samba foi criminalizado, tido como coisa de ‘preto favelado’, mas, a partir do momento que se percebe a possibilidade de lucro do samba, a imagem muda. E a imagem mudar significa que se embranquece seus símbolos e atores para com o objetivo de mercantilização. Para ganhar o dinheiro, o capitalista coloca o branco como a nova cara do samba.

Por que isso é um problema? Porque esvazia de sentido uma cultura com o propósito de mercantilização ao mesmo tempo em que exclui e invisibiliza quem produz. Essa apropriação cultural cínica não se transforma em respeito e em direitos na prática do dia-a-dia. Mulheres negras não passaram a ser tratadas com dignidade, por exemplo, porque o samba ganhou o status de símbolo nacional. E é extremamente importante apontar isso: falar sobre apropriação cultural significa apontar uma questão que envolve um apagamento de quem sempre foi inferiorizado e vê sua cultura ganhando proporções maiores, mas com outro protagonista. Uma frase do poeta americano B. Easy, compartilhada no Twitter, e bastante compartilhadas nas redes sociais faz todo o sentido nessa discussão: “A cultura negra é popular, mas as pessoas negras, não”. – DJAMILA RIBEIRO. In: Azmina: Apropriação Cultural É Um Problema do Sistema, Não de Indivíduos.

Autora do romance Um Defeito de Cor, a escritora Ana Maria Gonçalves escreveu um importante artigo em resposta à “polêmica dos turbantes” iniciada por um desabafo de Facebook. A jovem curitibina Thauane Cordeiro, que perdeu os cabelos no processo de quimioterapia, reclamou que havia sido abordada por 4 garotas negras que lhe disseram para tirar o turbante com que cobria sua cabeça. Este caso gerou uma discussão viralizada sobre o tema da apropriação cultural, resumível na pergunta: pode uma mulher branca utilizar turbantes ou ela incide, neste caso, numa indevida apropriação de um símbolo cultural alheio? Ana Maria escreveu no The Intercept:

“Boa parte da população branca brasileira sabe de suas origens europeias e cultiva, com carinho e orgulho, o sobrenome italiano, o livro de receitas da bisavó portuguesa, a menorá que está há várias gerações na família. Quem tem condições vai, pelo menos uma vez na vida, visitar o lugar de onde saíram seus ancestrais e conhecer os parentes que ficaram por lá. E os descendentes dos africanos da diáspora? Quando chegaram por aqui, os traficantes de pessoas já tinham apagado os registros do lugar de onde haviam saído, redefinindo etnias com nomes genéricos como Mina (todos os embarcados na costa da Mina), feito-os dar voltas e voltas em torno da Árvore do Esquecimento (ritual que acreditavam zerar memórias e história) ou passarem pela Porta do Não Retorno, para que nunca mais sentissem vontade de voltar, separado-os em lotes que eram mais valiosos quanto mais diversificados, para que não se entendessem.

Ainda em terras africanas tinham sido submetidos ao batismo católico para que deixassem de ser pagãos e adquirissem alma por meio de uma religião “civilizatória”, ganhando um nome “cristão” que se juntava, em terras brasileiras, ao sobrenome da família que os adquiria. No Brasil, não podiam falar suas próprias línguas, manifestar suas crenças, serem donos dos próprios corpos e destinos. Para que algo fosse preservado, foram séculos de lutas, de vidas perdidas, de surras, torturas, “jeitinhos”, humilhações e enfrentamentos em nome dos milhares dos que aqui chegaram e dos que ficaram pelo caminho.

Como resultado disto, somos o que somos: seres sem um pertencimento definido, sem raízes facilmente traçáveis, que não são mais de lá e nunca conseguiram se firmar completamente por aqui. Temos, como diz a poeta, romancista, ensaísta e documentarista canadense Dionne Brand, em seu maravilhoso A Map to the Door of No Return, “o próprio pertencimento alojado em uma metáfora”. Viver na Diáspora Negra, segundo ela, é “viver como um ser fictício – uma criação dos impérios, mas também uma autocriação. É ser alguém vivendo dentro e fora de si mesmo. É entender-se como signo estabelecido por alguém e ainda assim ser incapaz de escapar dele (…).”

Somos signos criados pelos brancos para que nossa negritude pudesse, e ainda possa, ser mercantilizada. E não conseguimos escapar disso porque, de antemão, sem ao menos nos ouvir, vocês já parecem saber o que somos, o que queremos, o que sabemos. Assim mesmo: a negritude, a militância, as mulheres negras, esse povo – nunca seres individuais, mas sempre em lotes. E vivemos nesta metáfora que, a partir de agora, vou passar a chamar de turbante, mas poderia ser outro símbolo qualquer.

VIVER EM UM TURBANTE é uma forma de pertencimento. É juntar-se a outro ser diaspórico que também vive em um turbante e, sem precisar dizer nada, saber que ele sabe que você sabe que aquele turbante sobre nossas cabeças custou e continua custando nossas vidas. Saber que a nossa precária habitação já foi considerada ilegal, imoral, abjeta. Para carregar este turbante sobre nossas cabeças, tivemos que escondê-lo, escamoteá-lo, disfarçá-lo, renegá-lo. Era abrigo, mas também símbolo de fé, de resistência, de união. O turbante coletivo que habitamos foi constantemente racializado, desrespeitado, invadido, dessacralizado, criminalizado. Onde estavam vocês quando tudo isto acontecia? Vocês que, agora, quando quase conseguimos restaurar a dignidade dos nossos turbantes, querem meter o pé na porta e ocupar o sofá da sala. Onde estão vocês quando a gente precisa de ajuda e de humanidade para preservar estes símbolos?

Lembro de ter visto um turbante usado por um homem sensível à causa das mulheres negras na Marcha das Mulheres, que aconteceu há pouco tempo em Los Angeles, que perguntava: “Verei todas vocês, mulheres brancas legais, na próxima marcha #VidasNegrasImportam, certo?”.

Vocês, mulheres brancas legais que querem se abrigar em nossos turbantes, vão estar conosco enquanto choramos as mortes dos nossos meninos negros e clamamos por justiça, certo? Vão usar turbante quando nossas mães e pais de santo são expulsos de comunidades ou entregues aos formigueiros, certo? Quando reclamamos da dor ao recebermos menos anestesia do que mulheres brancas durante os partos, certo? Quando denunciamos que sofremos mais violência, mais abuso e mais assédio do que vocês, certo? Quando reivindicamos equiparação salarial com vocês, certo? Vão reverberar nossas vozes quando reclamamos que somos preteridas pelos homens (brancos ou negros), certo? Vão entender e ter uma palavra de consolo quando sentimos culpa por deixarmos os próprios filhos em casa para cuidarmos dos seus, certo? Vão nos ouvir e nos defender quando tiver mais alguém querendo invadir nossos turbantes a força, na marra, no grito, certo? Porque aí, o turbante também já será de vocês. Vão ouvir, entender e falar junto quando tentamos explicar que nossas reivindicações, distorcidas, não têm nada a ver com pizza, calça jeans e feng shui, certo?

(…) Quase todas as nossas discussões e toda a produção intelectual acontecidas ali, sob nossos turbantes, são desligitimizadas pela palavra de ordem #VaiTerBrancaDeTurbanteSim!, gritada para nós com a mesma arrogância e espera de obediência que os donos dos nossos ancestrais gritavam #NãoVaiTerCoisaDePretoAquiNão!. Coisas mil acontecem dentro desses nossos turbantes, das quais vocês nem têm ideia: temos que formar redes de apoio, invisíveis para vocês e alheias à sua existência privilegiada, para socorrer, consolar, orientar e fortalecer vítimas de racismo cometido por pessoas que se ofendem quando apontamos suas faltas, e viram vítimas.

Debaixo deste turbante orientamos crianças negras a não levarem banana na lancheira porque os amiguinhos vão chamá-las de macacos. Orientamos nossos jovens a não usarem roupa com capuz, não correrem, não fazerem movimentos bruscos em público e não parecerem suspeitos, seja lá o que isso significa para vocês. Sob a proteção destes turbantes, trocamos informações, discutimos teorias, nos comunicamos com turbantes estrangeiros e até fazemos vaquinhas para pagar enterro de jovens assassinados pela polícia. Concordamos, discordamos, rimos, choramos, contamos segredos, gritamos, amamos, odiamos, estudamos, dizemos uns aos outros que temos que ter infinita paciência para voltar cinco, dez, vinte casinhas do ponto de entendimento em que estamos para responder a egocentrismos do tipo “EU li Monteiro Lobato e não me tornei racista”, “se EU usar turbante vou ser chamada de racista?”. Porque sabemos que não são comentários nem perguntas inocentes, mas são também metáforas. São os muros que protegem aqueles lugares que vocês habitam e nos quais não somos admitidos, porque na porta sempre teve uma placa dizendo “brancos somente”. – ANA MARIA GONÇALVES

Para evitar a “Fulanização” das lutas políticas, ou seja, a briga inter-individual em que uma pessoa acusa outra de se apropriar de uma cultura que de direito não lhe pertenceria, é preciso focar em questões mais amplas, de violência sistêmica, racismo estrutural e cadeia produtiva da cultura. É neste terreno que se dá o debate mais importante sobre desigualdades e injustiças na distribuição diferencial dos reconhecimentos e dos capitais. Que Fulana ou Sicrana, sendo branca, utilize um turbante ou um chinelo havaiana com grafismos Yawalapiti é questão menor diante do espinhoso problema-mamute que é a indústria cultural e a mercantilização no âmbito do pop.

Em tempos tenebrosos como os nossos, em que a extrema-direita troglodita hoje empoderada rosna contra o “marxismo cultural” (copiando o III Reich hitlerista, que também rosnava contra o “bolchevismo cultural” em conexão à sua cruzada antisemita), vale a pena se perguntar o que diria o tão demonizado marxismo sobre este tema. O termo “apropriação” tem íntima conexão com “propriedade” – aquilo que Proudhon (interlocutor de Marx em “Miséria da Filosofia”) definiu como “roubo”. No âmbito do marxismo, “apropriação” conecta-se com um termo vizinho: “expropriação”. Uma das mais conhecidas formulações acerca dos objetivos da mobilização internacional em prol da revolução comunista diz que é preciso “expropriar os expropriadores”. A ditadura do proletariado teria este como seu principal alvo.

Como aplicar estas teses à cadeia produtiva da cultura? Assim como os proletários nas fábricas são expropriados dos frutos de seu trabalho pelos patrões, que pagam um salário-de-miséria e abocanham vastas fatias de mais-valia, muitos agentes culturais pertencentes a grupos historicamente oprimidos também são expropriados de seu trabalho criativo. Sister Rosetta Tharpe “inventa” o rock and roll, mas “O Rei do Rock” é Elvis Presley. O povo afrobaiano imigrado para o Rio de Janeiro após a Abolição “inventa” o samba (fruto do hibridismo cultural da diáspora pelo Atlântico Negro de que fala Gilroy), mas quem faz fortuna com o samba são os branquelos que estão na folha de pagamento da indústria fonográfica gerida por homens brancos e ricos. “Apropriação cultural”, portanto, refere-se a uma prática de expropriação perpetrada por aqueles que gozam de privilégios econômicos e políticos sobre as criações e invenções culturais daqueles que historicamente estão sendo oprimidos pelas desigualdades e pelas desvalias.

Por isso, não se trata de afirmar que um certo povo seja o “dono” ou o possuidor exclusivo de uma certa forma estética, o que nos faria cair numa absurda práxis de segregação típica dos puritanismos assassinos: estaria proibido que o samba ou o rock fossem interpretados ou compostos por “branquelos” e estes estilos se constituiriam como “área VIP” dos povos negros e exclusividade expressiva destes. Tal “racismo reverso” nunca de fato se concretizou e pode-se buscar em vão pelo mundo pelas milícias de militantes do movimento negro que praticam bully contra sambistas ou rappers brancos (o que não significa que estes estejam imunes a críticas ou que não devam ser justamente alvejados pelo senso crítico dos movimentos negros).

Longe de pretender uma “posse” de uma cultura “pura”, parece-me que os movimentos ditos “identitários” que reclamam contra a “apropriação cultural” indevida e injusta estão pedindo algo simples, mas complicado de se efetivar: respeito. É preciso respeitar as raízes e a história que estão por detrás de turbantes e sambas, é preciso ter o cuidado de não mercantilizá-los de modo troglodita e imediatista, é preciso atentar para toda a densidade de sentidos que aquilo possui para aqueles que amam tais símbolos e criações culturais, não querendo portanto vê-los cretinizados por uma maquinaria que transforma tudo em mercadoria e que, ao contrário do rei Midas que com seu toque transformava tudo em ouro, praticam a especialidade da branquitude machistóide hegemônica, o toque de Mammon, aquele que transforma em merda tudo o que toca com seu ímpeto apropriador, capitalizador, invasivo, colonialista.

VEJA TAMBÉM:

CAMINHOS DA REPORTAGEM – TV BRASIL

MURO PEQUENO

ROSANE BORGES & REGINA VOLPATO

RINCON SAPIÊNCIA – “Coisas do Brasil”

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“PÔ!ÉTICA” – Documentário longa-metragem sobre o XIV Festival de Artes de Goiás, uma realização do Instituto Federal de Goiás; Um filme de Eduardo Carli de Moraes .















Acima: fotos e logotipos oficiais do Festival, realizado em Itumbiara/GO, em Novembro de 2017

PÔ!ÉTICA
Documentário longa-metragem sobre o
XIV Festival de Artes de Goiás (Uma realização: IFG – http://ifg.edu.br/)

Assista já:

SINOPSE – Com mais de 120 atrações entre instalações, performances, dança, teatro, artes visuais, audiovisual, inter-artes e outras, o XIV Festival de Artes de Goiás do IFG demonstrou quão potentes podem ser as confluências entre Educação e Cultura. Dentro da programação do evento, que teve como eixo temático “pô!ética” (saiba mais no manifesto abaixo), ocorreu também o II Encontro de Professores de Artes dos Institutos Federais.

Neste documentário longa-metragem, explore durante aprox. 90 minutos alguns dos melhores momentos desta 14ª edição do Festival de Artes de Goiás, uma realização do Instituto Federal de Goiás (IFG), usualmente sediado na Cidade de Goiás (a primeira capital do Estado, antes da transferência da capital goiana para Goiânia), em 2017 o festival aconteceu em Itumbiara, em meio ao conturbado cenário político que se seguiu ao assassinato do Zé Gomes – ex-prefeito e candidato a futuro prefeito, fato noticiado por toda a imprensa nacional em 2016 (veja também).

O documentário contêm cenas dos memoráveis shows com artistas tais como Mahmundi e RAPadura; vislumbres de peças de teatro e de dança (incluindo a incrível Cia Fusion de Danças Urbanas/MG). Temos também no cardápio o caliente carimbó do Pará com o pessoal do IFP, o grupo de choro do IF Goiânia tocando Pixinguinha, a adaptação cênica para “Morte e Vida Severina” (de J. C. Melo Neto), a peça cômica “Júlia” da Cia Cirquinho do Revirado (SC), dentre outras atrações.

Além disso, o filme traz trechos dos bate-papos com artistas, organizadores, participantes de oficinas, além de alunos da rede estadual do IFG (Instituto Federal de Goiás), vindos de outros câmpus, como Valparaíso e Anápolis. Entre os participantes que falam no filme estão o professor e percussionista Lucas Cecatto, os artistas Samuel Sá e Guará, a poetisa, performer e pesquisadora Morgana Poiesis, Neto (curador do SESC/Itumbiara), além de testemunhos de alunos do IFG que participaram do Festival e criaram obras durante o mesmo.

Banda Sinfônica Nilo Peçanha, do Câmpus Goiânia, se apresentou no teatro municipal de Itumbiara


CRÉDITOS

O doc Pô!Ética é uma produção independente d’A Casa de Vidro.

Filmagem, montagem, sonorização: Eduardo Carli de Moraes (prof. de filosofia do IFG câmpus Anápolis).
Certificado 1 / Certificado 2.

Fizemos uso de excertos musicais significativos de Rincon Sapiência, Bezerra da Silva, Maglore, Paulo César Pinheiro e João Nogueira.

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APRESENTAÇÃO DO FESTIVAL: O homem outrora celebrou a expressão humana em dois sentidos evidentes: um da ordem do sublime, do apolíneo, de um ideal de pureza e perfeição heroicas e talvez encontrado num mundo etéreo das ideias; outro, da ordem do grotesco, do dionisíaco, da celebração das escatologias, do palhaço, das dores e prazeres da condição de carne. Sentidos tão opostos quanto complementares.

Em algum momento do nosso percurso, talvez por ganância, a vida em sociedade quis criar uma hierarquia entre essas duas matrizes de expressão, como se uma fosse nobre, digna, permitida, e a outra não. Nós, agora e aqui, nesse momento da história, misturamos sublime e grotesco para aumentar mais ainda a confusão. Ou melhor, pra celebrar a confusão que é a condição humana. Reivindicamos ser: estranhos, incompletos, diversos, aos que dizem negar ser tudo isso, mas também são. Misturamos arte e política sim, pois talvez assim, ela persiga o bem comum e se torne mais nobre do que é. Aliás, com pouco esforço, visto que sempre estiveram misturadas, borradas, sem limites precisos, sem muros que as separassem.

Queremos saber o que é educação e o que é escol(h)a. Queremos exercitar a capacidade crítica para com as relações de dominação da sociedade. Assim, nosso Festival se posiciona criticamente às tentativas de controle da proposta de “Escolas Sem Partido”, e também às práticas homofóbicas, misóginas e racistas, que têm se expressado no espaço escolar e em toda sociedade. Pô! Fazemos bagunça sim! Fazemos da linguagem uma salada, pois queremos saber qual o papel da arte e da política no Brasil de hoje e como elas se entrelaçam. Fazemos nossa festa voltada para a autonomia dos sujeitos, comprometida com uma ciência que atue em favor das coletividades e do bem estar humano e ambiental, por uma arte que seja questionadora.

Saboreamos, não sem indignação, um festival de confusão de conceitos, dos sentidos, e queremos ter o direito de colocar a técnica, a poesia, a estética em busca da ética, em que se misturam e amalgamam o público e o privado, o político e o subjetivo, a ética e a estética, o único e o diverso… Pô! Não pedimos muita coisa além do óbvio. Pedimos razão! Pedimos emoção!

Pedimos ética, pô!ética!

Programação geral

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Assista já:

CATRACAS EM CHAMAS – Goiânia, 11 de Agosto de 2017, Dia do Estudante [Assista ao curta-metragem documental!]






CATRACAS EM CHAMAS

Texto por Eduardo Carli de Moraes
Fotografias por Júlia Aguiar do Metamorfose
A Casa de Vidro – 12/08/2017

Em meio à avalanche de retrocessos que esmaga os direitos sociais no Brasil e faz da Constituição de 1988 um amontoado de escombros, após ser vandalizada pela cleptocracia golpista, vivemos hoje em um barril de pólvora de tamanho continental e sem escassez de faíscas que podem servir de estopim para um imenso “boom!”

As jornadas de Junho de 2013 – que se tornaram paradigma em Pindorama, na história recente, de uma erupção da lava-de-vulcão da participação popular no esforço de determinação de nossos destinos coletivos – não são apenas um item de museu ou um objeto de estudo para historiadores e cientistas políticos que se debruçam sobre o passado morto.

Aquele Junho ainda pulsa. Inspira, no presente, a vontade de forjarmos juntos um “Novo Junho”, agora não mais destampado em sua fúria espantosa por 20 centavos de incremento na tarifa do busão, mas tendo muitos outros combustíveis para alimentar suas chamas.

Nestes nossos tempos conturbados, em que vivenciamos um golpe de Estado que derrubou a presidenta eleita e encerrou os 5.000 dias de lulismo no poder (fenômeno analisado por 52 autores em nova publicação da Ed. Boitempo), estamos testemunhando o destroçamento da legislação trabalhista, a precarização da previdência social, o abandono cruel proposto pelo governo usurpador de quaisquer políticas públicas dignas para as áreas de educação, cultura, saúde, moradia, mobilidade urbana etc.

O Estado mínimo neoliberal – liberdade-para-lucrar ofertada aos empresários, Estado policial-carcerário-punitivo imposto com mão-de-ferro às grandes massas – vêm sendo imposto na esteira do golpeachment e configura o Brasil, no cenário global, como território arrasado por uma das mais cruéis políticas de austericídio hoje em curso no planeta. Neste contexto, é salutar e preciosa a presença nas ruas da juventude politizada, consciente de sua tarefa histórica, na linha-de-frente de resistência, sem amarelar nem arregar.




Neste 11 de Agosto de 2017, Dia do Estudante (saiba porquê em Brasil Escola), estivemos nas ruas de Goiânia acompanhando a primeira manifestação do Movimento Contra Catraca (MCT), novidade no cenário ativista goianiense e que busca articular as lutas sociais específicas do transporte público de modo semelhante – mas não idêntico – ao Movimento Passe Livre (MPL) paulistano, tão determinante nas insurreições juninas de 2013.

Na atualidade, a atroz tesoura da austeridade Temerária decidiu novamente atacar os mais vulneráveis e despossuídos, entre eles os estudantes de escolas públicas que necessitam de transporte coletivo para sua mobilidade pela urbe. O que está em questão é o Direito à Cidade que está sendo brutalmente negado por aqueles que estão em posições de poder e, ao invés de atentarem para o bem público, forjam políticas para empresários corruptores e cheios da bufunfa, apostando em um modelo de cidade que é ecocida e segregacionista.

Uma cidade feita para os carros e não para os ciclistas e pedestres; uma cidade de crasso individualismo e perdida no culto idiótico da carrolatria, que dá privilégio para motoristas individuais em suas gaiolas-de-ferro motorizadas e abandona o povão no Eixão à humilhação de pagar preços escorchantes, por um busão precário, obrigando-nos à condição desumana de sardinha espremida na lata durante os horários de pico.

A estudantada, que tem toda razão em estar revoltada com os cortes brutais nos investimentos públicos que decorrerão da PEC do congelamento, aprovada em Dezembro de 2016 apesar da maior onda de ocupações de escolas e universidades já vivenciada por qualquer país na história humana, agora tem que suportar novos achaques. A única certeza é que não suportarão em silêncio e resignados as atuais brutalidades palacianas impostas de cima pra baixo sobre nossos ombros. Os lordes palacianos alimentam a ilusão de que imporão estas medidas sem gerar rebelião?

Uma faixa preta, com letras garrafais brancas, ia na linha-de-frente da manifestação deste 11 de Agosto e alertava os políticos e a máfia dos transportes: “PASSE LIVRE OU REBELIÃO”. A catraca, como símbolo de uma sociedade que segrega e separa, pegou fogo na frente do palácio Pedro Ludovico. Não era vandalismo – nem se tratava de uma catraca de verdade – mas de um alerta. Um signo inflamado da disposição da juventude dissidente em contestar a lógica catracária e caquética. Uma ameaça juvenil-popular contra o governo e que comunica, na linguagem das chamas, que já não somos cordeiros obedientes que seguem as ordens do tirano quando ele manda as ovelhas caminharem placidamente para o abismo.

Trata-se de um movimento que, em Goiânia, está claramente alinhado aos movimentos estudantis, feministas, anti-racistas, anarquistas, autonomistas, marxistas etc., com presença de coletivos como Quilombo, Juntos! (Juventude do PSOL), Levante Popular da Juventude, UJR, dentre outros. Trata-se de uma mobilização realizada por aquela fração da juventude que é mais politizada e tem uma consciência crítica mais ampla para perceber que seus direitos constitucionais estão sendo cortados, que a juventude, sobretudo a periférica, está sendo impedida de se locomover a contento pelo espaço urbano, privados assim também do acesso mais amplo à cultura, ao lazer e aos encontros motivados por afinidades eletivas.

Entre as palavras-de-ordem entoadas em coro pela galera, estavam: “Não pago, não pagaria, transporte público não é mercadoria!”; “É barricada, greve geral, ação direta que derruba o capital!”; “Acabou a paz, mexeu com estudante, mexeu com Satanás!”, dentre outros.

A desobediência civil, propagada por panfletos e por zines punk, era também praticada pela galera nas ruas como tática para confrontar um legalismo espúrio, como que dizendo em altos brados que leis injustas não merecem ser respeitadas e que desobedecer a medidas bárbaras impostas por cleptocratas engravatados é algo muito mais próximo da justiça como valor e virtude do que aquilo que fantasia-se assim na solenidade de delegacias e tribunais. Aécio Neves prossegue senador e Rafael Braga prossegue encarcerado: eis um símbolo do porquê desobedecemos e contestamos as iniquidades e crueldades do status quo vigente.



São estes agitos que procuramos retratar neste documentário curta-metragem Catracas em Chamas (11 min), uma produção independente d’A Casa de Vidro, com filmagens de Eduardo Carli e Renato Costa, montagem de Eduardo Carli, com trechos musicais de Zulumbi, Rincon Sapiência e B Negão. Assista no Youtube, no Vimeo ou no Facebook.

Nossos outros documentários podem ser acessados aqui.  Algumas sugestões de outras trajetórias pelos docs documentais que realizamos recentemente, e que estão em sintonia com o tema da juventude ativista de esquerda em suas manifestações de rua, são: Abre AlasPrimavera SecundaristaFermento Pra Massa – Nevoeiro Salutar.

P. S. – Assista também os vídeos de Desneuralizador​: http://bit.ly/2w4bwD3 e Metamorfose: http://bit.ly/2wJsMdH.




OUTRAS TRAJETÓRIAS

Àqueles que criticam estes movimentos por suas pautas demasiado específicas, o filósofo Vladimir Safatle responde de modo convincente, mostrando que a pauta do busão é capaz de apontar um sintoma de um sistema insanizado, atuando de modo a que seus alvos precisos incidam também sobre o Sistemão mais amplo, como ele aponta no vídeo abaixo e também na coluna que escreveu para a Folha de São Paulo em 18 de Junho de 2013:

“O que impressiona nas manifestações contra o aumento do preço das passagens de ônibus e contra a imposição de uma lógica que transforma um transporte público de péssima qualidade em terceiro gasto das famílias é sua precisão.

Como as cidades brasileiras transformaram-se em catástrofes urbanas, moldadas pela especulação imobiliária e pelas máfias de transportes, nada mais justo do que problematizar a ausência de uma política pública eficiente.

Mas, em uma cidade onde o metrô é alvo de acusações de corrupção que pararam até em tribunais suíços e onde a passagem de ônibus é uma das mais caras do mundo, manifestantes eram, até a semana passada, tratados ou como jovens com ideias delirantes ou como simples vândalos que mereciam uma Polícia Militar que age como manada enfurecida de porcos.

Vários deleitaram-se em ridicularizar a proposta de tarifa zero. No entanto, a ideia original não nasceu da cabeça de “grupelhos protorrevolucionários”. Ela foi resultado de grupos de trabalho da própria Prefeitura de São Paulo, quando comandada pelo mesmo partido que agora está no poder.

Em uma ironia maior da história, o PT ouve das ruas a radicalidade de propostas que ele construiu, mas que não tem mais coragem de assumir.

A proposta original previa financiar subsídios ao transporte por meio do aumento progressivo do IPTU. Ela poderia ainda apelar a um imposto sobre o segundo carro das famílias, estimulando as classes média e alta a entrar no ônibus e a descongestionar as ruas.

Apenas nos EUA, ao menos 35 cidades, todas com mais de 200 mil habitantes, adotaram o transporte totalmente subsidiado. Da mesma forma, Hasselt, na Bélgica, e Tallinn, na Estônia. Mas, em vez de discussão concreta sobre o tema, a população de São Paulo só ouviu, até agora, ironias contra os manifestantes.

Ao menos, parece que ninguém defende mais uma concepção bisonha de democracia, que valia na semana passada e compreendia manifestações públicas como atentados contra o “direito de ir e vir”. Segundo essa concepção, manifestações só no pico do Jaraguá. Contra ela, lembremos: democracia é barulho.

Quem gosta de silêncio prefere ditaduras.” (SAFATLE, Folha de São Paulo, 18/06/2013)

Também faz-se necessário, nesse momento, aprender as lições ensinadas pelas Cidades Rebeldes, amplificadas nas obras de autores como David Harvey e Henri Lefebvre. O primeiro escreve sobre o segundo:

“Em 1967, Henri Lefebvre (1901-1991) escreveu seu ensaio seminal, Le droit à la ville (O direito à cidade). Esse direito, afirmava ele, era ao mesmo tempo uma queixa e uma exigência. A queixa era uma resposta à dor existencial de uma crise devastadora da vida cotidiana na cidade. A exigência era, na verdade, uma ordem para encarar a crise nos olhos e criar uma vida urbana alternativa que fosse menos alienada, mais significativa e divertida, porém, como sempre em Lefebvre, conflitante e dialética, aberta ao futuro… Considero extremamente significativo que O direito à cidade tenha sido escrito antes de A Irrupção (como Lefebvre posteriormente a chamou) de maio de 1968. Seu ensaio apresenta uma situação em que tal irrupção não era apenas possível, mas quase inevitável.

(…) Algo como orçamento participativo, em que os moradores comuns da cidade tomam parte direta na distribuição de quantias do orçamento municipal por um processo democrático de tomada de decisão, tem inspirado muitas pessoas a buscar algum tipo de resposta a um capitalismo internacional brutalmente neoliberalizante que vem intensificando sua agressão às qualidades da vida cotidiana desde os primeiros anos da década de 1990. Tampouco surpreende que esse modelo tenha se desenvolvido em Porto Alegre, Brasil – a sede do Fórum Social Mundial.” (p. 11-14)

* * * **

“Nossa tarefa política, sugere Lefebvre, consiste em imaginar e reconstituir um tipo totalmente novo de cidade a partir do repulsivo caos de um desenfreado capital globalizante e urbanizador. Contudo, isso não pode ocorrer sem a criação de um vigoroso movimento anticapitalista cujo objetivo central seja a transformação da vida urbana do nosso cotidiano. (…) As lutas políticas são animadas tanto por intenções visionárias quanto por aspectos e razões de natureza prática.

(…) Para Henri Lefebvre (1901-1991) – e nisso ele está certamente de acordo com os situacionistas – há no urbano uma multiplicidade de práticas prestes a transbordar de possibilidades alternativas. O conceito de heterotopia defendido por Lefebvre (radicalmente diferente do de Foucault) delineia espaços sociais limítrofes de possibilidades onde ‘algo diferente’ é não apenas possível, mas fundamental para a definição de trajetórias revolucionárias. Esse ‘algo diferente’ não decorre necessariamente de um projeto consciente, mas simplesmente daquilo que as pessoas fazem, sentem, percebem e terminam por articular à medida que procuram significados para sua vida cotidiana.

Essas práticas criam espaços heterotópicos por toda parte. Não precisamos esperar a grande revolução para que esses espaços venham a se concretizar. A teoria de Lefebvre de um movimento revolucionário situa-se exatamente no polo oposto: a confluência espontânea em um momento de ‘irrupção’, quando grupos heterotópicos distintos de repente se dão conta, ainda que por um breve momento, das possibilidades da ação coletiva para criar algo radicalmente novo.”  (HARVEY, Cidades Rebeldes, p. 11-14-20-22)

POSFÁCIO MUSICAL – Um rap de Rincon Sapiência

LEIA TAMBÉM:

UMA SOCIOLOGIA À ALTURA DE JUNHO – por Ruy Braga em A Pulsão Plebéia

VEJA TAMBÉM:
ÁLBUM COMPLETO COM AS FOTOGRAFIAS DE JÚLIA AGUIAR QUE ILUSTRAM ESTE POST

A SAPIÊNCIA DE RINCON EM 20 RAPS MAGISTRAIS [Vídeos completos]

A SAPIÊNCIA DE RINCON EM 20 RAPS MAGISTRAIS [Vídeos completos]

 

+ Rincon Sapiência

por Negro Belchior em Carta Capital

Com a originalidade de suas composições, marcadas por influências das músicas africana, eletrônica, jamaicana e vertentes do rock, desde o ano 2000, o artista traduz em versos inteligentes e sagazes as experiências vividas nas ruas da periferia paulistana desde os anos 80. Abordando questões raciais e sociais no contexto da metrópole, Rincon Sapiência apresenta um rap com clima de positividade, sem prejuízo à postura crítica do discurso, resultado da sua notável fome de rima aliada à sua habilidade nata de jogar com as palavras. Versátil, ele também atua como beatmaker em seus próprios trabalhos.

Em 2005, Rincon lançou sua primeira faixa, intitulada “Aventureiro” e, em 2008, participou no disco solo de Kamau, Non Ducor Duco, nas faixas “Porque eu Rimo” e “Tambor”. No ano seguinte, se firmou como protagonista na cena rap com o sucesso “Elegância”, cujo videoclipe entrou na programação da MTV Brasil e foi indicado ao VMB 2010 na categoria Melhor Videoclipe de Rap. No mesmo ano, Rincon Sapiência participou do álbum Projeto Paralelo, da banda NX Zero, na faixa “Tarde pra Desistir”.

A referência e a exaltação de temas relacionados à negritude e às raízes africanas são frequentes nas músicas de Rincon Sapiência, que abordam a consciência e a valorização da afrodescendência, reconhecidas em solo africano durante os renomados festivais dos quais Rincon participou em 2012 (Festival 2H, em Dakar, Senegal; e Festival Asalam Maleikum Hip Hop, na Mauritânia). Em 2014, Rincon lançou o EP SP Gueto, com oito faixas oficiais e duas faixas bônus. Um dos destaques do rap nacional daquele ano, o EP foi em grande parte produzido pelo próprio Mc, e traz uma forte identidade musical, com influências das músicas eletrônica, rock, ska, reggae, samba, timbres 808 e até o clássico estilo boombap dos anos 90.

A universalidade da música e dos temas abordados pelo repertório de Rincon favorecem o seu trânsito em outros círculos que não sejam necessariamente periféricos. Sua forte identidade artística, reforçada por um estilo original, também está presente nos clipes “Elegância”, “Transporte Público”, “Linhas de Soco”, “Profissão Perigo” e “Coisas de Brasil”. A estreia como ator veio nas telonas em 2013, ao contracenar com o ator Wagner Moura no filme “A Busca”, dirigido por Luciano Moura, seguida da participação no filme “Jonas”, dirigido por Lô Polliti, do qual também participaram os rappers Criolo e Karol Conka. – N. Belchior

SE LIGA NO SOM! – Jazz Liberatorz, Rincon Sapiência, Seun Kuti, Lenine, Madlib, Tássia Reis, A. Nóbrega, Francisco El Hombre e muito mais… [#1]

SE LIGA NO SOM!

Por Eduardo Carli de Moraes

Sou o tipo de criatura tão fissurada em música, o mais delicioso de todos os vícios, que dou razão à hipérbole Nietzschiana: “sem música, a vida seria um erro”. É como se a existência perdesse em qualidade e deleite sempre que o ar ao redor não está animado e vivificado com o som e o sentido (para lembrar a obra do mestre Wisnik) criados pela musicalidade humana em sua infinita inventividade.

No dia a dia, além de aprendiz de músico que arranha uns instrumentos de corda (violão, guitarra e ukelele) e assopra uma gaitinha, também compartilho várias canções e videoclipes na página d’A Casa de Vidro no Facebook, pondo na roda de convivas algumas das sonzeiras que tem encantado meus dias, compartilhando os meus pet sounds como uma espécie de radialista ou DJ da web.

Na série de posts que agora se inaugura e que escolhi intitular Se Liga No Som! em homenagem ao livro de Ricardo Teperman, que adoro e com o qual muito aprendi – planejo coletar num “postzão” os vários “postzinhos” dispersos pela página do FB. Pelo menos uma vez por mês, deve pintar aqui em www.acasadevidro.com uma nova “coletânea digital” com o que mais tem encantado meus tímpanos e instigado minha reflexão em termos de produção musical. Ofereço também alguns humildes comentários e pitacos que visam contextualizar as obras e esclarecer um pouco as razões que tenho para admirá-las, curti-las e recomendá-las.

Por hora, este é um catálogo de sons de estimação e estou me abstendo daquele viés da crítica musical que consiste em descer o cacete naquilo que a gente não gosta. Em futuras edições, talvez, eu me aventure à arte de falar mal daquilo que ofende meus ouvidos e que me parece enveredar por rumos lastimáveis. Por hora, convido a todos a subirem o volume e embarcarem em viagens nas asas do som, convocando à comunhão musical na vibe de alguém que chega a um amigo, na empolgação de uma fissura vigente, e diz: “pira nesse som!” ou “cê tá ligado nesta banda?”


CONEXÃO AFROBEAT TROPICAL

É hora da conexão Brasil / Nigéria nas Aerolíneas A Casa de Vidro: basta dar um play e viajar sônicamente na companhia do filho caçula do mito Fela Kuti, fundador e pioneiro do Afrobeat. Em “Black Woman”, cujo clipe foi inteiramente filmado em solo brasileiro, Seun Anikulapo Kuti e a banda Egypt 80 celebram o “black power” unido ao feminismo. Reverenciam não apenas suas mais célebres encarnações – Nina Simone, Angela Davis, Maya Angelou etc. -, mas também a cotidianidade do “struggle” e da “strenght” da mulher negra “comum”, que com tanta frequência encara uma vida em que é um espetáculo invisível de força, perseverança, fortitude…

ASSISTA O CLIPE:

“Black Woman”, com seus metais calientes, seus coros femininos, seu neo-Afrobeat de impecável apelo transcontinental, suas imagens de exuberância tropical e feminilidade em efervescência, parece-me que serve também para abrir novos horizontes para a arte do videoclipe filmado no Brasil no âmbito da música global.

Desde que Spike Lee subiu o morro com Michael Jackson – este último vestindo uma camiseta da Banda Olodum Samba Reggae – para filmar o clipaço de “They Don’t Care About Us”, atualmente com “apenas” 350.000.000 views no Youtube, tenho a impressão que o Brasil pode ser um “point” global para o avanço da arte da videoclipagem. Assistir aos trabalhos audiovisuais de um rapper como Rincon Sapiência (“Meu Bloco”, por exemplo) só fortalece essa impressão.

Para bombar esse cenário da afrolatinidade, resistente, em expressão transcultural e cosmopolita, como fazem Seun Kuti e Rincon Sapiência, como fez Spike Lee em seu joint-clipe, turbinemos a conexão com o Atlântico Negro (brilhantemente analisado por Paul Gilroy), seu passado, seu presente e sua futuridade! Esta aí, quem sabe, a mais fecunda fonte para a cultura brasileira seguir efervescendo e propondo caminhos inovadores para o resto do mundo. Nosso pioneirismo será estético ou não será!

“I write this song for you
(Black woman)
And I see everything you go through
(Black woman)
I see your tears and your joy and your pain and your fears
(Black woman)
And your strength to endure all the beatings and the war
(Black woman)
That’s why me respect you
and I believe in you and I see your struggle
I never fear your strength…”
Seun Kuti

BIOGRAFIA SEUN KUTI: http://www.allmusic.com/ar…/seun-kuti-mn0000999541/biography

 


LIBERTANDO O JAZZ PARA TRANSAS HIP

O trio francês Jazz Liberatorz, neste impressionante disco “Clin D’oeil” [literalmente, Pisco d’Olho] (2008), insere o jazz na era do movimento hip hop, libertando a tradição de quaisquer amarras dogmáticas e livrando o caminho para interessantes fusões. No Brasil, também tem gente explorando este casório: é só pensar em Tássia Reis e seu “Rap Jazz”  (veja o clipe abaixo) ou no radical fusion tropical do Metá Metá – Juçara Marçal pode não ser uma rapper, mas seu verbo está tão enraizado de ancestralidade que evoca, de fato, toda a história da expressão artística proveniente da diáspora pelo Atlântico Negro (cf. Gilroy).

Sobre esta bolacha do Jazz Liberatorz (dê o play abaixo), lê-se na AllMusic: “The album reclaims the brief love affair between hip-hop and jazz that took place in the U.S. in the mid-’90s, using deep basslines, sampled horns, and beat poet-styled phrasings from a slew of guest MCs. The sound is ultra-cool, combining European hip-hop’s love of slicker, more urban beats with the simplest jazz instrumentation — atomic chunks of sound and songs that are reworked to soften the edges of a rapped delivery and convert it to a strong flow through sheer musicality.” (Adam Breenberg)

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RITMO E POESIA: O VERBO QUE JOGA E DANÇA

Um artista que desponta no cenário hip hop brasileiro encarna à perfeição a união entre ritmo e poesia que, segundo a lenda, batizou o estilo musical rap (rhythm and poetry): Rincon Sapiência chega para mostrar toda a exuberância de um verbo que joga e dança, dando prosseguimento aos experimentos percussivos-linguísticos brilhantes de seus contemporâneos mais ilustres em terra brasilis, Criolo e Emicida. Rincon é de fato muito bom de rima, desliza bonito no flow e não deixa a contundência de sua mensagem impedir a manifestação de um senso de humor afiadíssimo e de uma miríade de referências. Estamos na era da música linkada e em cada uma de suas composições, repletas de fato duma Sapiência colhida em suas vivências como artista periférico e poeta dos guetos, Rincon ascende como uma das figuras que mais impressiona na nossa música. Um tiragosto:

LINHAS DE SOCO, de Rincon Sapiência [FB]

“O rap me deixa alto, tipo THC
E o palco é o octógono do UFC
A batida é um soco, rap, a voz da plebe
No flow, deslancho, tipo um gancho, um jab
Na rima, Jackie Chan, na Hora do Rush
E a dama pensando em mim, bem na hora do blush
Um trato nas duas, diz que me ama, idem
Fiel e amante, aí vocês decidem
Sem teclados, mouse, tive meu panorama
Lan house, não, sou do tempo do fliperama
Bote a ficha e jogue, muito antes dos blogs
Dava a cara a tapa e batia feito Balrog
Tipo GOG, rolo compressor passando
Eles ficam grogue, vendo estrelas girando
Linhas de soco, minha poesia irônica
Microfone é que nem o coelho na mão da Mônica
Corre, Cebolinha, ataco!
Se passam por malacos, mas escrevendo linhas são flacos
Cômico, rap chapa, hidropônico
Fome de rima, overdose de Biotônico
Queremos o “faz-me-rir”, então, corra
Mas, por enquanto, é só piada do Zorra
E nóis segue, assim, na humilde
Sem aquele “faz-me-rir”, estilo Mussum, cacildis
Ó, meu dom nas ruas se exibe
Tipo rei Roberto no calhambeque, bi-bi
Tô quebrando grilhões, mesmo sem os milhões
MCs Trapalhões, Dedé e Didi
Opiniões divide, ataques, revides
Meu corpo é fechado, eu sou que nem Thaide
Ouvidos são profundos, penetro que nem Kid
Sou raro, que nem os paletós no meu cabide
Vide bula, playboy, na moral
Rap tarja preta, efeito colateral
As cores no visual, que nem graffiti do OPNI
Dois tipos de MC, eu sou que nem um OVNI
Vou passeando nos discos, marciano
É a lua e eu, que nem Cassiano
Língua afiando, línguas fatiando
Dom é como vinho, deixe que passem anos
Mando o papo quente, não levo desaforo
Rap sem calor, não passam de calouros
Cuspo fogo, Dhalsim, no Street Fighter
Rap light, mas mata que nem Marlboro
Choro, o racista de olho vermelho
Nem olha no meu olho, eu sou que nem um touro
Hip-hop é a clínica onde fui internado
Música no sangue, África no soro
Sem jaco de couro, aqui estou
Na pegada punk, que nem Sex Pistols
Batida, rima, DJ e um bom flow
Quatro integrantes clássicos, que nem os Beatles
Longe da música, saudade, eu fico como?
Inseparáveis, como Lennon e Yoko Ono
Roube a música de mim, se quiser uma guerra
Não vai ter paz pelo Papa e nem pela ONU
O mundo não tem dono, Sampa não tem sono
Microfone broca, pistas eu detono
Na ZL, rap ruim, isso eu questiono
Xis é rei e eu serei sucessor do trono
Cena rap Malhação, isso eu cancelo
Minha cena é preta, clássica, Grande Otelo
Sem estresse, trabalho só me engrandece
Que nem Super Mario, depois do cogumelo!”

VEJA TAMBÉM:


EXCURSOM DO MADLIB PELO BRASIL 

“Me vê uma viagem sonora gratuita pela multidiversa musicalidade do Brasil, DJ!” É pra já; suba o volume e embarque nesta excitante excursom turística do Madlib:

 Flight to Brazil é um incrível álbum/mixtape, lançado em 2010, de 1h 20 min, parte da série “Madlib Medicine Show” – Número #2, assim resenhado por Thom Jurek:

“Madlib goes all out — all the way out — on this platter: there are elements of MPB, early folk styles and field recordings, funk, jazz, psychedelia, tropicalia, carnival, forro, bossa nova, samba, Afoxe, and more, from Brazilian sources. In addition to the killer found sounds from his four-ton stack of vinyl, the mad mixer produces a truckload of new beats and creates wave upon wave of phased atmospheres and textures to accent what he samples. His manner of taking recordings and artists and juxtaposing them to create something new is his trademark. Examples are as rich as segments of Hermeto Pascoal’s Slaves Mass against a track by O Quarteto from 1969, then adding a bit of trippy guitar, three different rhythm tracks, a flute solo by Carlos Jimenez, and some of Moacir Santos’ Opus 3, before touching on Emilio Santiago, Maria Bethânia, and on and on and on. There are psychedelic rock groups here whose music we may never hear anywhere but here, as well as some we already know — Som Imaginario, Modulo 1000, Inferno No Mundo, and many others. The entire thing is a wild head and heart trip, saturated in gorgeous melodies, killer, slippery rhythms, and sonics that are so spaced out, they could only occur on one of Madlib’s recordings. This second volume is more of a treat than its predecessor, perhaps because of, rather than in spite of, its exotic point of departure. This is a spliffed-out joy to listen to. Fans of Madlib’s more jazz-oriented modes may dig this a bit more than those who dig the hard-edged beats, but this is an adventure to appreciate as much for its ambition as what it offers.”

TRACKLIST >>>

Rio De Janeiro 0:00
Sao Paulo 12:13
Belo Horizonte 19:19
Porto Alegre 27:31
Salvador 33:16
Recife 40:43
Fortaleza 53:23
Brasília 1:04:24
Curitiba 1:14:20

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EN VIVANT – Grandes álbuns ao vivo

Odetta at Carnegie Hall (1960, Show Completo, 44 min)

“A towering figure of folk revival and Civil Rights Movement, the African-American singer-songwriter provided voice for the voiceless.” – AllMusic: http://www.allmusic.com/artist/odetta-mn0000888730/biography


UM SAMBA DE BOTECO

“Vou de boteco em boteco
Bebendo a valer
Na ânsia de esconder
As dores do meu coração

Conselhos não adiantam
Estou no final
Perdi o elã, perdi a moral
Meu caso não tem solução

Eu bebo demais pro meu tamanho
Arranjo brigas e sempre apanho
Isso me faz infeliz

Entro no boteco
Pra afogar a alma
As garrafas então batem palmas
Me embriago
Elas pedem bis…”

NELSON SARGENTO (FB)


“BOLSONADA”: IRREVERÊNCIAS ANTI-FASCISTAS

Duas das principais novidades do cenário musical cá de Pindorama – Francisco, el hombreLiniker e os Caramelows – juntaram suas forças irreverentes para um caliente petardo anti-fascista, “Bolsonada”. Presente no álbum Soltasbruxa, vemos nesta canção de bem-humorada contestação todo uma atitude que realiza, no campo estético, o que seria no âmbito político pura desobediência civil. Desrespeitando o “mito” da extrema-direita Brazileira, o asno vociferante Jair Bolsonaro, a música pretende reduzir a nada o discursinho de ódio, xenofobia, racismo, misoginia, armamentismo e homofobia daquele que pretende candidatar-se à presidência da República, ainda que não passe de uma caricatura grotesca de líder autoritário e desmiolado. Em um mundo em que vimos a eleição de Trump e em que a vitória da Frente Nacional de Le Pen na França é plausível, devemos ficar atentos e ativos diante da ameaça fascista que também aqui nos ronda; ao invés do militarismo do “às armas, cidadãos!”, super-estimado slogan bélico cantado na Marselhesa, sou mais um “às rimas e melodias, foliões!” Franciso El Hombre e Liniker apontam o caminho de um alegre sarcasmo, aguerrido e combativo, que faz da luta anti-fascista (por que não?) também uma festa.

“Esse cara tá com nada
sabe pouco do que diz
muito blablabla que queima quem podia ser feliz
desrespeito é o que prega
então é o que colherá!
jogo purpurina em cima
para o feio embelezar
esse cara escroto
mucho escroto!

Esse já não sei se bate bem
se é um fascista concedido
cargo alto e voz viril
vai lucrar do desespero
da loucura já civil
bolso dele sempre cheio
nosso copo anda vazio…

Mesquinhez, intolerância,
Bolsonada que pariu…

Esse cara escroto
mucho escroto!!!”

(FB)

Se a “Bolsonada” é pra embalar um quente e envolvente anarco-baile, “Triste Louca Ou Má” já é de outra vibe, uma canção e um clipes lindos de chorar. 



NAÇÃO PLURI-ÉTNICA, ARCO-ÍRIS TERRESTRE DA SOCIOBIODIVERSIDADE

Dois mestres que muito reverencio na cultura brasileira, ambos vivos e operantes, revelam em suas canções o quanto esta terra é de fato pluri-étnica, manifestação visível e audível de diversidade acachapante: Lenine e Antônio Nóbrega foram capazes de encapsular em canção aquilo que Eduardo Galeano chamou de “arco-íris terrestre”. Ouçam “Tuby Tupi” (em que Lenine brinca com o mote de Oswald de Andrade, “tupi or not tupi, that’s the question” e “Chegança” (umas das obras-primas de Nóbrega) e tenham contato com duas músicas que expressam com perfeição o conceito, tão propalado nos ideais e práticas do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, de sociobiodiversidade. 

(FB)

TUBY TUPI – Lenine

Eu sou feito de restos de estrelas
Como o corvo, o carvalho e o carvão
As sementes nasceram das cinzas
De uma delas depois da explosão
Sou o índio da estrela veloz e brilhante
Que é forte como o jabuti
O de antes de agora em diante
E o distante galáxias daqui

Canibal tropical, qual o pau
Que dá nome à nação, renasci
Natural, analógico e digital
Libertado astronauta tupi
Eu sou feito do resto de estrelas
Daquelas primeiras, depois da explosão,
Sou semente nascendo das cinzas
Sou o corvo, o carvalho, o carvão

O meu nome é Tupy
Guaicuru
Meu nome é Peri
De Ceci
Sou neto de Caramuru
Sou Galdino, Juruna e Raoni

E no Cosmos de onde eu vim
Com a imagem do caos
Me projeto futuro sem fim
Pelo espaço num tour sideral
Minhas roupas estampam em cores
A beleza do caos atual
As misérias e mil esplendores
Do planeta Neanderthal

“CHEGANÇA” – A. Nóbrega

Sou Pataxó
sou Xavante e Cariri
Ianonami, sou Tupi
Guarani, sou Carajá
Sou Pancaruru
Carijó, Tupinajé
Potiguar, sou Caeté
Ful-ni-o, Tupinambá

Depois que os mares dividiram os continentes
quis ver terras diferentes
Eu pensei: “vou procurar
um mundo novo
lá depois do horizonte
levo a rede balançante
pra no sol me espreguiçar”

Eu atraquei
Num porto muito seguro
Céu azul, paz e ar puro
Botei as pernas pro ar
Logo sonhei
Que estava no paraíso
Onde nem era preciso
Dormir para se sonhar

Mas de repente
Me acordei com a surpresa:
Uma esquadra portuguesa
Veio na praia atracar
De grande-nau
Um branco de barba escura
Vestindo uma armadura
Me apontou pra me pegar

E assustado
Dei um pulo da rede
Pressenti a fome, a sede
Eu pensei: “vão me acabar”
Me levantei de borduna já na mão
Ai, senti no coração
O Brasil vai começar


LISTAS


PSICOLOGIA DE MASSAS: VISLUMBRE DO DELÍRIO COLETIVO INDUZIDO PELA MÚSICA

Impressionante e acachapante o efeito que tem a espetaculosa “De Música Ligera”, do Soda Stereo, sobre a multidão em Buenos Aires: parece que o povo vira um megaorganismo, composto por 50.000 pessoas, saltando e delirando em uníssono. Os fãs de futebol que me perdoem, mas a música é capaz de realizar façanhas em termos de psicologia de massas que você nunca verá parecido em nenhum clássico Boca Juniors vs River Plate… (FB)


RAGIN’ AGAINST THE MACHINE

Nasceu o supergrupo perfeito para confrontar furiosamente o início da Era Donald J. Trump! Mesclando membros do Rage Against The Machine, do Public Enemy e do Cypress Hilll, nasceu o crossover de thrash metal, hip hop e punk dos Prophets of Rage. Com EP de estréia já lançado, e com Tom Morello sempre endiabrado nas seis cordas, a banda promete subverter o slogan oficial daquele fascista YanKKKe que hoje dorme na Casa Branca; eles querem botar na boca do povo um outro lema: “Make America RAGE again!”

“Prophets of Rage” (Official Video, 2016, +700.000 views)

por Eduardo Carli de Moraes – Abril de 2017


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