Com a lama tóxica da pior catástrofe socioambiental do Brasil, artista Mundano realiza mural “Operários de Brumadinho”

O artista Mundano, inspirando-se na famosa pintura modernista “Operários” (1933), de Tarsila do Amaral, realizou na Avenida Senador Queirós, no bairro da Santa Ifigênia, em São Paulo, este mural intitulado “Operários de Brumadinho”. Com 50 metros de altura, o mural é todo composto com tinta fabricada a partir da lama tóxica desta que foi a pior catástrofe socioambiental da história do Brasil: a ruptura da barragem da Vale em 25 de janeiro de 2019, que causou mais de 250 mortes humanas, além de extensa catástrofe ecológica que não cessará de nos prejudicar nos anos do porvir.

“Há um ano fui para Brumadinho e senti a dor dos atingidos. Foi quando estive no protesto na Câmara Municipal da cidade e olhei as fotos dos rostos das vítimas sendo colocadas por familiares lado a lado com o escrito ‘Vale Assassina’. Ali, enxerguei e senti o quadro de Tarsila”, diz o autodeclarado “artivista” em entrevista para Casa Vogue. “Não usei fielmente os rostos das vítimas, mas nunca mais esqueci suas expressões” (fonte: https://glo.bo/2SaYrlg).

O SP-Arte destaca que Mundano é “conhecido por ações como Pimp My Carroça, na qual revitaliza carroças de catadores de recicláveis para promover visibilidade” e que esta obra “Operário de Brumadinho” agora ocupa “a lateral do Edifício Minerasil, em frente ao Mercado Municipal, homenageando as vítimas do atentado ecológico em Brumadinho.

“É um ‘monumento’ não só para os trabalhadores e operários que lá morreram, mas também para todos os proletários que passam em frente [ao grafiti] todos os dias e se identificam com a obra”, conta o artista…. Essa não é a primeira vez que Mundano utiliza quadros clássicos do modernismo brasileiro para dar visibilidade a crimes ambientais: seu “Abaporupeba” recria o “Abaporu” (1928), também de Tarsila, em homenagem ao rio Paraopeba destruído pelo incidente causado pela Vale, em Brumadinho. A tinta utilizada foi criada a partir de lama recolhida aos pés do rio. (…) “Operários de Brumadinho” integra a iniciativa Museu de Arte de Rua (MAR), promovida pela Prefeitura de São Paulo. Foram espalhadas pela cidade cerca de trinta obras de arte urbana em diversos suportes, como estêncil, grafiti e fotografia, feitas por artistas como Speto, Simone Siss, Raquel Brust e Os Tupys.” (Fonte: https://bit.ly/2OCCiKk)

Saiba mais assistindo ao documentário curta-metragem do Cinedelia:

Outras obras de Mundano:

EDUCAÇÃO NÃO É MERCADORIA! – O brado das manifestações e ocupações contra a “malvadez neoliberal” (Freire, Mészáros, Savater)

EDUCAÇÃO NÃO É MERCADORIA!

Eduardo Carli de Moraes (Fev/2016)

Nem tudo está à venda! Eis um dos brados que os mercantilizadores-de-tudo estão sendo obrigados a ouvir nas manifestações e ocupações atuais, em várias frentes (do Occupy Wall Street aos Indignados espanhóis, da guerrilha síria em Rojava aos secundaristas-em-luta e passe-livristas em marcha no Brasil). As mobilizações em prol da educação pública também revelam outra das trincheiras de batalha contra os poderes que, como o Rei Midas da mitologia grega, querem transformar tudo o que tocam em ouro, instituindo o império universal daquele que Davi Kopenawa batizou de “o povo da mercadoria” (@ A Queda Do Céu). Vivemos sob o reinado daqueles que, como Oscar Wilde dizia, “sabem o preço de tudo mas não sabem o valor de nada.”

Um de nossos maiores pensadores da educação, Paulo Freire, sempre deixou muito explícita sua recusa daquilo que apelidou de “malvadez neoliberal”. Basta atentar para o que ele diz Pedagogia da Autonomia, onde Freire não deixa margem a dúvidas quanto a seu engajamento e sua “crítica permanentemente presente” à “malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia”:

Paulo FreireEstamos de tal maneira submetidos ao comando da malvadez da ética do mercado que me parece pouco tudo o que façamos na defesa e na prática da ética universal do ser humano. (…) Não é possível ao sujeito ético viver sem estar permanentemente exposto à transgressão da ética. Uma de nossas brigas na história, por isso mesmo, é exatamente esta: fazer tudo o que possamos em favor da eticidade, sem cair no moralismo hipócrita, ao gosto reconhecidamente farisaico. (…) Quando falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana.”  (PAULO FREIRE, Primeiras Palavras, p. 16-19) 

Ainda que sua voz soe serena e amorosa em vários trechos de sua obra, Freire confessa que é um “tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo. Daí o meu nenhum interesse de assumir um ar de observador imparcial… Quem observa o faz de um certo ponto de vista, o que não situa o observador em erro. O erro na verdade não é ter um certo ponto de vista, mas absolutizá-lo… O meu ponto de vista é o dos ‘condenados da Terra’, o dos excluídos.” (op cit, p. 16)

Freire alia-se a uma decifração-do-real proposta, por exemplo, por Franz Fanon n’Os Condenados da Terraonde a condição existencial e psico-física da legião de oprimidos é o foco de atenção e de compreensão. Contra a absolutização da chamada “ética do mercado”, posta pela ideologia dominante como irremediável e insuperável, Paulo Freire reclama não só a possibilidade, mas a urgente necessidade de instauração coletiva de uma outra ética, ou melhor, de uma eticidade, espraiada pelo cotidiano, que faça frente à hegemonia do capitalismo neoliberal globalizado, no qual a ética é cotidianamente transgredida pois vista apenas como obstáculo no caminho dos lucros (como prova a imensa irresponsabilidade empresarial, o grotesco desrespeito aos direitos humanos e às práticas ecologicamente sustentáveis, envolvidos  na pior tragédia socioambiental da história do Brasil, por cortesia da privatizada Vale e sua subsidiária Samarco, amargas assassinas do Rio Doce).

Vivemos em meio à efervescência das lutas contra o avanço do capitalismo neoliberalizante na educação, com a privatização crescente das escolas e a restrição do educador ao papel limitado (e limitador) daquele que treina seus clientes para que adquiram competências técnicas valorizadas pelo mercado de trabalho capitalista. Uma pedagogia que é convidada a ser serviçal do capital, colocando ainda mais lenha na fogueira de um sistema grotescamente excludente, opressor e desumanizante. Segundo recente pesquisa da Oxfam, a desigualdade social e a concentração de riqueza em poucas mãos são males que não cessa de aumentar: os 62 indivíduos mais ricos do planeta já detêm mais capital que metade da humanidade (3,6 bilhões de pessoas). Meritocracia ou plutocracia?

 

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Camila Vallejo

Uma encarniçada batalha opõe o capitalismo neoliberal – novo Midas que quer privatizar tudo o que toca e pretende gerir e$cola$ como se fossem empre$a$, instituindo a epidemia de universidades que vendem diplomas na base do pagou, passou – às vertentes contra-hegemônicas e de resistência, que demandam a universalização do ensino gratuito e sem fins lucrativos.

Alguns dos capítulos mais interessantes desta História-em-curso foram escritos no continente americano dos últimos anos:

Se há um brado que resume todas essas lutas, ei-lo numa fórmula: educação não é mercadoria!

Camila-Vallejo-02 ChileMarconi Grande Ditador

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Realizou-se em Porto Alegre (RS), julho de 2004, o III Fórum Mundial da Educação, cuja conferência de abertura ficou a cargo do professor István Mészáros, que proferiu ali palavras preciosas para nos guiar rumo a uma Educação Para Além Do Capital (Google Livros). Segundo Ivana Jinkings, fundadora da Editora Boitempo, Mészáros – pensador húngaro nascido em 1930 em Budapeste e que foi assistente de Georg Lúkacs –  “afirma que a educação não é um negócio, é criação; que a educação não deve qualificar para o mercado, mas para a vida.” [1]

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 “Mészáros ensina que pensar a sociedade tendo como parâmetro o ser humano exige a superação da lógica desumanizadora do capital, que tem no individualismo, no lucro e na competição seus fundamentos. Que educar é – citando Gramsci – colocar fim à separação entre Homo faber Homo sapiensé resgatar o sentido estruturante da educação e de sua relação com o trabalho, as suas possibilidades criativas e emancipatórias. E recorda que transformar essas ideias e princípios em práticas concretas é uma tarefa a exigir ações que vão muito além dos espaços das salas de aula, dos gabinetes e dos fóruns acadêmicos. Que a educação não pode ser encerrada no terreno estrito da pedagogia, mas tem de sair às ruas, para os espaços públicos, e se abrir para o mundo.

Ele alerta, porém, que o simples acesso à escola é condição necessária mas não suficiente para tirar das sombras do esquecimento social milhões de pessoas cuja existência só é reconhecida nos quadros estatísticos. (…) O que está em jogo não é apenas a modificação política dos processos educacionais – que praticam e agravam o apartheid social -, mas a reprodução da estrutura de valores que contribui para perpetuar uma concepção de mundo baseada a sociedade mercantil. (…) Pequeno em tamanho, A Educação Para Além do Capital é um livro imenso em esperança e determinação. Nele, o filósofo marxista condena as mentalidades fatalistas que se conformam com a ideia de que não existe alternativa à globalização capitalista.” IVANA JINKINGS (Leia também: Um caminho trilhado pela esquerda, Revista Saraiva) 

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A fotografia que ilustra a capa do livro é de Sebastião Salgado e retrata uma menina do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) que faz os deveres escolares e toma conta dos irmãos enquanto a mãe trabalha.

No reino do capital, tudo é mercadoria, e a educação não escapa a esta infecção: “daí a crise do sistema público de ensino, pressionado pelas demandas do capital e pelo esmagamento dos cortes de recursos dos orçamentos públicos”, lembra Emir Sader. “Talvez nada exemplifique melhor o universo instaurado pelo neoliberalismo, em que tudo se vende, tudo se compra, do que a mercantilização da educação. Uma sociedade que impede a emancipação só pode transformar os espaços educacionais em shopping centers, funcionais à sua lógica do consumo e do lucro.” EMIR SADER

Que o pensamento de Marx e Engels inclui uma dimensão educativa e uma preocupação pedagógica é algo revelado não só por Mészáros, mas também pela “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire ou por estudos como Marx e a Pedagogia Moderna de Mario Manacorda. Certos trechos conhecidíssimos do “cânone” materialista-dialético exploram diretamente o tema, por exemplo:

“a teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado.” KARL MARX e FRIEDRICH ENGELS 

Aos que pregam que o capitalismo não merece ser extinto e revolucionado, mas só reformado e aprimorado, Mészáros afirma convicto que o capital é “irreformável” e “incorrigível” (p. 27) e que necessitamos mesmo é de uma “radical mudança estrutural” (p. 25). “O sentido da mudança educacional radical não pode ser senão o rasgar da camisa de força da lógica incorrigível do sistema: perseguir de modo planejado e consistente uma estratégia de rompimento do controle exercido pelo capital…” (p. 35).

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István Mészáros

“A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu – no seu todo – ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes… A própria História teve de ser totalmente adulterada, e de fato frequente e grosseiramente falsificada para esse propósito.” (MÉSZÁROS, p. 36)

É bem verdade que, com sua distopia 1984, George Orwell pretendeu denunciar o totalitarismo, e não oferecer um manual de instruções. Porém, a realidade mostra o quanto o romance orwelliano é representação fidedigna dos mecanismos de funcionamento da ideologia, esta arte de inculcar, de condicionar, de fazer acreditar no falso, tão essencial à perpetuação do capitalismo e seu séquito de desigualdades e exclusões.

Apesar de ciente da força dos aparelhos ideológicos, inclusive os (des)educativos e (de)formadores que estão a serviço dos interesses das classes proprietárias, Mézsáros não é pessimista a ponto de propor que seja realizável a distopia de 1984, ou seja, uma sociedade totalitária, gerida por um Grande Irmão ou um führer, reinando inconteste sobre um rebanho de conformistas e submissos, que aceitaram fazer da ideologia a eles “pregada” – papagueada em púlpitos e jornais, em propagandas e teletelas – sua carne e coração.

O pesadelo – ufa! – não pode se realizar por inteiro! Por mais que tenebrosos poderes insistam em transformar salas-de-aula em celas-de-aula, escolas em cadeias, ensino em doutrinação, sabedoria em ideologia, há algo de incontrolável e de anárquico na ânsia de saber do ser humano e que romperá sempre as correntes limitantes que instituições tentem impor.

1984

“O pesadelo em 1984, de Orwell, não é realizável precisamente porque a esmagadora maioria das nossas experiências constitutivas permanece – e permanecerá sempre – fora do âmbito do controle e da coerção institucionais formais. Certamente, muitas escolas podem causar um grande estrago, merecendo portanto, totalmente, as severas críticas de José Martí, que as chamou de ‘formidáveis prisões’. (…) ‘A aprendizagem é a nossa própria vida’, como Paracelso afirmou… Mas para tornar essa verdade algo óbvio, como deveria ser, temos de reivindicar uma educação plena para a vida, para que seja possível colocar em perspectiva a sua parte formal, a fim de instituir, também aí, uma reforma radical.” (MÉSZÁROS)

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EDUCAR PARA A VIDA – ÉTICA & PEDAGOGIA

Quando a educação cessa de servir à emancipação e passa a acorrentar-nos à camisa-de-força de uma ideologia classista, que falsifica a História, degrada a dignidade do presente e aniquila a possibilidade de um futuro melhor (pois aposta somente na continuação do mesmo,) podemos sem dúvida exigir das lutas populares que foquem sua atenção na tarefa de uma educação revolucionada, mas que só o será no interior de uma revolução social mais ampla. Mészáros fornece um bom plano, sintético, para a educação revolucionada de amanhã: ela deve educar para a vida, e não para o mercado.

Daí a importância crucial da ética, ou melhor, de uma educação ética, de uma formação que foque não apenas em fornecer treinamentos técnicos e saberes necessários ao Homo faber de uma certa especialização profissional, mas que enxergue como essencial e incontornável a própria conduta na vida, tanto privada como pública, como quintessencial a qualquer prática pedagógica libertária e sábia. Por essas e outras é que acredito que a filosofia nas escolas é um ingrediente imprescindível pra qualquer educação que seja autenticamente destinada à emancipação e não à opressão. Mas uma filosofia que inclua os rebeldes, os revoltados, os ímpios, os questionadores, os espíritos livres, os injuriados e caluniados (Epicuro, Spinoza, Voltaire, Nietzsche…)!

Desconfiar das idolatrias, pôr em dúvida os dogmatismos, refletir ao invés de se submeter a todos os catecismos, esses são alguns dos efeitos íntimos e psicoafetivos gerados por um contato duradouro com o fogo e o ânimo, irrefreáveis e fecundos, daqueles que podemos chamar de “filósofos rebeldes”, ou de “espíritos livres”. Como ler Nietzsche, deixando-se afetar pela potência de sua linguagem, sem sentir-se transformado em alguém com um senso crítico mais apurado, com um faro para as farsas que se torna aprimorado? Como seguir de joelhos diante da autoridade da moral, da razão, da ciência, após termos sido alertados por Foucault, Adorno, Horkheimer, Hans Jonas, e tantos outros, de todos os pesadelos que foram gerados quando estes ídolos foram sacralizados, quando nos rendemos acriticamente a ele?

Que superstições ignorantes sobrevivem ao benefício gerado por um convívio com Lucrécio, Comte-Sponville, Albert Camus? O perigo, porém, é aquele de transformar a filosofia em um novo ídolo, para em seguida fazer diante dela, de rosto baixo, uma genuflexão submissa e servil. Ao invés de exercitar o pensamento autônomo e ousado com a ajuda, na companhia, no debate, com os filósofos, corremos o risco de nos tornar dogmáticos papagaios do que outros pensaram, e que nós não fazemos senão repetir como um eco, tal qual a ninfa amaldiçoada por Hera e negligenciada por Narciso.

Não me parece ser jamais isso – subserviência e servilismo – aquilo que a filosofia que é digna desse nome demanda daqueles que a praticam. A filosofia não põe à toa entre o seu inventário de virtudes, de excelências humanas, de inestimáveis aretés, os valores e as práticas da justiça, da coragem, da generosidade, da tolerância, da responsabilidade, do amor.

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O leque das “virtudes” filosóficas, que tanto merecem estar no currículo escolar de qualquer instituição educativa que busque educar para a vida e não só para o mercado, foram excelentemente exploradas no já clássico Pequeno Tratado Das Grandes Virtudes, de André Comte-Sponville, obra magistral e preciosa, inspirada nas reflexões de mestres éticos como Jankélévitch, Alain e Simone Weil.

Uma reflexão meramente teórica sobre as virtudes é uma infâmia, já que elas existem para serem postas em prática. Ética: indissolúvel dança, em sintonia, da reflexão e da ação, guiados pela sabedoria possível e pela amizade desejável que norteiam as mentes e as vidas dos filósofos (estes funcionários das forças da Sophia e da Philia). Ao menos é assim que estou tentando compreender, cada vez com mais afinco e mais visceralidade, esta tal de “ética”, que minha atual situação como professor (do ensino público e numa era de tragédias!) obriga-me a confrontar. Em termos mais concretos: não vejo como um professor de filosofia possa se esquivar da ética, dedicando suas aulas a outros assuntos mais “neutros” e supostamente dela desconectados.

Fernando Savater, em seu agradável livrinho Ética Para Meu Filho, sustenta que é imprescindível à pedagogia dos nossos jovens que falemos de ética, pois isto é o mesmo que refletir sobre o sentido da liberdade:

“Deve-se falar em ética no ensino médio? De início parece-me nefasto apresentar uma matéria com esse nome como alternativa à aula de doutrinamento religioso. A pobre ética não veio ao mundo para dedicar-se a escorar ou substituir catecismos… pelo menos não o deveria fazer. Mas não tenho nenhuma certeza de que devam ser evitadas algumas primeiras considerações gerais sobre o sentido da liberdade… A reflexão moral não é apenas um assunto especializado para quem deseja fazer cursos superiores de filosofia, sendo, antes, parte essencial de qualquer educação digna desse nome.”  (SAVATER, 2012) [5]

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REVOLUCIONÁVEIS MANEIRAS DE SER

As maneiras-de-ser são revolucionáveis: eis uma das apostas da ética. Também é uma das esperanças do marxismo. Uma certa leitura reducionista e estreita do marxismo acaba por transformar este num “economicismo”, como se Marx e Engels estivessem sugerindo que a única coisa que importa é revolucionar o sistema de produção capitalista e mais nada, quando é evidente que a revolução envolve uma reestruturação radical também das chamadas “subjetividades”, no sentido da superação da alienação, na vitória sobre os véus ilusórios da ideologia internalizada, além das revoluções simultâneas no âmbito da cultura, das artes, das mídias etc. E “é aqui que a educação – no sentido mais abrangente do termo – desempenha um importante papel”:

“Desde o início o papel da educação é de importância vital para romper com a internalização predominante nas escolhas políticas circunscritas à ‘legitimação constitucional democrática’ do Estado capitalista que defende os seus próprios interesses. (…) A tarefa histórica que temos de enfrentar é incomensuravelmente maior que a negação do capitalismo… Tendo em vista o fato de que o processo de reestruturação radical deve ser orientado pela estratégia de uma reforma concreta e abrangente de todo o sistema no qual se encontram os indivíduos, o desafio que deve ser enfrentado não tem paralelos na história. Pois o cumprimento dessa nova tarefa histórica envolve simultaneamente a mudança qualitativa das condições objetivas de reprodução da sociedade e a transformação progressiva da consciência em resposta às condições necessariamente cambiantes. Portanto, o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente.” (MÉSZÁROS, p. 65)

A questão da educação está vinculada, nas sociedades capitalistas, à preparação para o mercado de trabalho, porém sabemos o quão desigual e injusto é todo o “mundo do trabalho” sob o capitalismo globalizado, que permite a coexistência de centenas de bilhões de trabalhadores que ganham salários-de-fome com um punhado de multibilhonários ociosos cujo único labor é apostar nos cassinos das bolsas de valores…

Já tem uma longa história a crítica aos ricos que coçam o saco enquanto os pobres derramam o suor, tanto que Paracelso (1493 – 1541), um dos modelos que inspirou o Fausto de Goethe, “chegou ao ponto de defender a expropriação da fortuna dos ricos ociosos, de forma a compeli-los a ter uma vida produtiva.” (p. 68)

Na verdade, o negócio não é exatamente o contrário do ócio para aqueles que detêm o capital roubado aos trabalhadores. Os produtores das mercadorias, sob o capitalismo, jamais têm seu trabalho pago com justiça: a mais-valia, que está na raiz da propriedade de capital, é em essência um roubo, como Proudhon, antes de Marx, já havia compreendido. O negócio do capitalista é seu pretexto para ficar “de papo pro ar” enquanto seus funcionários fazem os “corres” todos, gastando grande parte dos seus tempos-de-vida nas linhas de montagem frenéticas tão bem satirizadas por Chaplin em Tempos Modernos.

A própria existência de capitalistas é sinal de um mundo do trabalho regido pelo acinte da opressão, da desigualdade imposta pela violência, do apartheid social que fratura o social entre os que não trabalham e gozam com luxos e confortos, por um lado, e os que só trabalham e quase nada tem, por outro lado…  É um pouco o que revela o samba de Elton Medeiros e Paulinho da Viola, “Maioria sem Nenhum”:


“Uns com tanto
Outros tantos com algum
Mas a maioria sem nenhum!”

Diante da urgência do tempo histórico – vivemos, como diz o título do novo livro de Isabelle Stengers, In Catastrophic Times – a educação também precisa colocar-se urgentemente em posição de luta em prol da emancipação, já que a omissão significaria a cumplicidade com as forças da destruição. “É suficiente apontar duas diferenças literalmente vitais que colocam em acentuado relevo a urgência do tempo em nossa própria época”, escreve Mészáros. “Em primeiro lugar, o poder de destruição antes inimaginável que se encontra hoje à disposição da humanidade, pelo qual se pode alcançar facilmente o completo extermínio da espécie humana por meio de uma variedade de meios militares. Isso é gravemente acirrado pelo fato de que testemunhamos, no último século, tanto a escala como a intensidade sempre crescentes de conflagrações mundiais efetivas, incluindo duas guerras mundiais extremamente destrutivas.” (p. 107)

Além da ameaça das armas nucleares que pesam sobre o cérebro dos vivos – apocalipse tecnocrático tão bem retratado e satirizado por Stanley Kubrick em Doutor Fantástico – soma-se hoje uma “segunda condição gravemente ameaçadora”, como também lembra Mészáros, que é “a natureza destrutiva do controle sociometabólico do capital em nosso tempo – manifesta pela predominância cada vez maior da produção destrutiva, em contraste com a mitologia capitalista tradicionalmente autojustificadora da destruição produtiva – e que encontra-se no processo de devastação do ambiente natural, arriscando com isso diretamente as condições elementares da própria existência humana neste planeta.” (p. 108)

Diante da “magnitude sem precedentes das tarefas em jogo e da urgência historicamente única de nosso tempo”, espremidos entre o perigo do militarismo desenfreado, por um lado, e da hecatombe ecológica, por outro, só resta a certeza, pulsante e urgente, da “necessidade de instituir com êxito uma alternativa historicamente sustentável à crescente destrutividade do modo de controle sociorreprodutivo do capital.” (p. 110) Estamos diante da encruzilhada do Antropoceno, na era do duelo épico que, na formulação de Naomi Klein, opõe capitalism vs the climate (o capitalismo versus o clima). Ou, como disse Hubert Reeves, “estamos em guerra contra a natureza: se vencermos, estamos perdidos”.

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a ser continuado…

SIGA VIAGEM:

Leia o artigo de Mészáros:
Educação: o desenvolvimento contínuo da existência socialista

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes Necessários à Prática Educativa. Ed. Paz e Terra.
JINKINGS, Ivana. Apresentação de Educação Para Além Do Capital.
SADER, Emir. Prefácio a Educação Para Além Do Capital.
MARX, K; ENGELS, FTeses sobre Feuerbach.
MÉSZÁROS, István. A Educação Para Além do Capital. Ed. Boitempo.
SAVATER, Fernando. Ética Para Meu Filho. Trad. de Monica Stahel. Ed. Planeta, 2012.
COMTE-SPONVILLE. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Ed. Martins Fontes.

P.S.  

Café Filosófico: “História da Subjetividade no Ocidente”, por Jurandir Freire Costa

“História da Subjetividade no Ocidente”,
por Jurandir Freire Costa:

Fala completa

#Foucault #Agamben #Psicanálise #Cristianismo #CulturaGreco-Romana

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Leitura sugerida:

Jurandir2

“O Vestígio e Aura – Corpo e Consumismo na Moral do Espetáculo” [Compre @ Estante Virtual]

:: Cidade do Cão ::

Da Suíça à Etiópia,
em um quarteirão.
Cidade do cão.

Um domingo atrás,
fui um aristocrata paulistano
ou em erudito endinheirado
por um dia — estranho dia.

O concerto matinal mensal da OSESP,
gratuito, é uma rara chance pr’um
FFLCHiano des-bolsado e pobretão
banhar seus tímpanos em linda música
Sem ficar 100 contos mais pobre —
Ou seja, próximo da indigência.

Sempre que piso na Sala SP,
sinto como se saísse do Brasil
por uma espécie de mágico portal
e fosse dar em Viena ou Paris,
como as idealizo, sem conhecer.

Adentro o ventre dum
imponente deus de pedra,
onde muito graves e chiques
desfilam as gravatas e paletós
as jóias e os belos vestidos:
Quase uma cena de Proust,
de um luxo que quase não dá nojo.

Quase.

Quase choro de emoção quando a orquestra
com cem simultâneas adagas ataca o silêncio,
agita os ventos e impõe seu império sobre o éter.

A “mesma” obra, ouvida em casa, gravada,
me deixou indiferente.

A “Grande Páscoa Russa”, de Rimsky-Korsakov,
como que me pega pelo colarinho
e me espanca com sua beleza
Até que eu quase vá a nocaute.
Beleza tão excessiva que
quase dá em desmaio.

Penso nos russos e imagino-os trágicos,
doloridos, cheios de rugas e sofrimentos.
Pinto-os na imaginação aguerridos,
catárticos, cheios de lamentos viris,
uivando a dor de viver
pelas frias catacumbas da matéria…

Depois vem Villa-Lobos.
O mais desconhecido das massas
De todos os “orgulhos nacionais”,
ficando bem atrás da Canarinho e do Senna,
quase anônimo frente ao Fausto, o Silva, e o Silvio.

Esta beleza bachiana-tropical me choca menos:
é tranquila, pacífica, harmoniosa,
como se vivéssemos num cosmos,
e não num num caosmos.

A boniteza daquilo
me fede um pouco a otimismo,
viro um pouco o rosto,
chego a sentir sono.

(Há coisas belas que dão sono.)

Sinto falta da ebulição do sangue,
dos jatos sônicos de angústia,
que eu julgo ouvir nos russos,
e que me fizeram sentir,
quando vi, faz uns anos,
a “Sagração da Primavera”,
no coro, debruçado sobre os tambores,
como se uma enxurrada
de força selvagem e primal
se derramasse impolida e incontida
sobre minha pobre e grata carcaça.

Os russos!

Penso, mais uma vez, no quanto a música é mágica.
Relembro uma de minhas frases-de-efeito prediletas,
que guardo como um zap na manga,
aguardando o dia para  lançá-la na mesa de jogo,
para causar grande efeito:
“A música é a redenção da humanidade”.

E ralhem o quanto quiserem contra o Nietzsche;
o fato é que ao menos uma incontestável verdade ele disse:
“Sem música, a vida seria um erro.”

Se alienígenas predadores nos invadissem o planeta,
dispostos a eliminarem a nossa fracassada raça,
para recomeçarem o planeta do zero,
talvez a única chance de sobrevivência,
o único meio de dissuadi-los do genocídio,
seria dar a eles alguma prova indubitável de nosso valor.

Mas para isto não serviriam nossas metrópoles,
tão sujas de miséria e balbúrdia,
nem nossos aviões, tantas vezes usados
como armas de morte por kamizakes e xiitas,
nem mesmo isto que chamamos de História,
tão escabrosamente violenta,
oceano transbordante de sangue.

Creio eu que nossa única salvação seria a música.
O fato de termos inventado coisa tão bela
Nos redimiria, talvez, no juízo dos aliens!
Acho difícil acreditar num Beethoven marciano…

* * * * *

Mas o sonho encantado
de embarcar numa Viena provisória
logo se esvai.

O encantamento não dura mais que hora e meia,
ainda que o vivido e experenciado nesta fração de tempo
seja absolutamente inquantificável,
um pesadelo para a matemática…

Logo dou meus passos para longe do palácio,
e caio direto nas ruas de São Paulo.

Eu, com a alma benta de Bach,
lavada com a água límpida do sublime,
avanço para fora do Castelinho de Música
ousando até, para meu pasmo,
sentir uma terna gratidão
por uma cidade que me proporciona, de graça,
um espetáculo tão lindo,
uma experiência estética tão encantadora….

E aí a realidade abre sua bocarra
e bafeja em mim seu bafo de bêbado.
Vomita carne mau-digerida sobre minhas flores.
Nubla com miséria meus céus azuis.

A poucos metros do Colossal Teatro onde
as melodias mais sublimes me encantaram,
minhas narinas tem a ousadia horrível
de reclamarem do fedor que soltam os
farrapos dos mendigos, maltrapilhos,
mau-lavados, que não vêem banho
faz mês e meio, quem sabe um ano…

A poucos passos da Suíça brasileira,
já se agita a nossa Etiópia.
A Crackolândia já levantou-se
para um novo dia,
indigno de ser vivido,
no qual homens e mulheres
irão atrás do crack nosso de cada dia,
e também do pão,
esta prioridade segunda,
enquanto sonham, talvez,
em serem os novos Ronaldinhos.

Os transeuntes caminham apressados,
indiferentes aos corpos estendidos no passeio,
destes que morrem na contramão
atrapalhando o tráfego.

Aqueles que estão ali,
jogados pelo chão,
tratados como piolhos,
poderiam talvez,
com um punhado oportunidade e incentivo,
se tornar nossos Jimis Hendrix ou Gil-Scott-Herons.

Mas a única música que ouvem
é a que faz seus estômagos que roncam.
Ou no máximo um CD Pirata dos Racionais,
comprado num camelô da Santa Ifigênia,
a ser ouvido em algum MP3 roubado
de algum gringo ou plêiba incauto
que deu bobeira na Rio Branco.

Penso, então, naquilo que chamam de
“o pessimismo de Lars Von Trier”
e volto a achar que não passa de realismo.
Não temos razão para,
terminada a saga de Grace,
nos sentirmos reconfortados,
alegres e saltitantes,
pois moramos em São Paulo.

Dogville é aqui.