Da angústia solitária à revolta solidária: sobre a filosofia de Albert Camus || A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.”
ALBERT CAMUS em “Núpcias” [1]

CAPÍTULO 1: A Indesejada das Gentes

Confinados na implacável finitude da vida, nós, os mortais, temos acesso a poucas certezas inabaláveis, dignas do estatuto de verdades absolutas. A mais irrecusável das certezas, para cada um e todos, é a de que todos nós um dia vamos morrer – como diz o provérbio: morte certa, hora incerta.

Por ser aquilo que nos é comum, não importa em que latitude e longitude vivamos, nossa finitude nos une. No entanto, sermos finitos não é simplesmente algo aceito e acolhido como um fato bruto, mas sim algo que é “vestido” pela consciência humana com as mais variadas roupas, embalado nas vestes de crenças multiformes. O único bicho que sabe que vai morrer é também o animal simbólico, faminto por sentido. A vivência do perceber- se mortal é de extrema diversidade conforme as crenças (ou ausência destas) que a pessoa nutra (ou que tenha destroçado em si).

Além disso, é variável o grau de realização da morte [2], ou seja, o sujeito considera como real tal condição num gradiente que vai da negação de quem finge que a morte nunca virá, à obsessão mórbida de quem pensa-se como “cadáver adiado” (Fernando Pessoa) [3] a todo momento de todos os dias. As dinâmicas psíquicas do recalque / repressão desta consciência de nossa radical limitação espaço-temporal, socialmente consolidadas em ideologias destinadas ao negacionismo da finitude, são tema do clássico A Negação da Morte (The Denial of Death) de Ernest Becker [4].  

O fato de sermos mortais, ao mesmo tempo que nos une na mesma condição que nos é comum, também nos separa radicalmente: assim como “ninguém vive por mim” (cantou lindamente Sérgio Sampaio) [5], também podemos dizer a qualquer um: ninguém vai morrer no teu lugar, a tua própria morte é algo que você vai ter que encarar, cedo ou tarde, querendo ou não. Cada um encara o processo de morrer num estado onde a solidão se manifesta de modo mais extremo do que em outras vivências humanas. Pode ser que o poeta chileno Nicanor Parra tenha razão ao propor que “a morte é um hábito coletivo” [6], mas cada sujeito a vivencia de maneira singular. E arrasta para o túmulo e seu eterno silêncio o segredo incomunicável do que se passou por dentro naqueles últimos momentos vitais antes do fatal ponto-final.

Pedra irremovível no caminho do desejo de imortalidade que muitas vezes os humanos nutrem, a morte existe sobretudo como horizonte. Está presente por sua iminência. O que nos condena à angústia como parte integrante da condição humana. Costuma-se dizer que somos os únicos animais no planeta Terra que sabem que vão morrer, mas talvez fosse mais preciso dizer que o sentimos mais que sabemos. A angústia é este afeto em nós que atesta a nossa finitude.

Na história da filosofia, a reflexão sobre o futuro estado de esqueleto de cada um de nós já foi alvo de muitas reflexões: a sabedoria Epicurista pretendia curar o medo da morte e dos deuses, causadores de intranquilidades da alma que impedem a sábia ataraxia, com uma argumentação que a Carta a Meneceu (Sobre a Felicidade) sintetiza assim: “Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações.” [7] Quase dois milênios depois, Michel de Montaigne, em um de seus mais célebres ensaios, exploraria a noção de que “filosofar é aprender a morrer” [8].

É preciso aprender que, querendo ou não, a morte é nosso quinhão e que dar sentido a uma vida que acaba é nossa perpétua tarefa. A sensação de absurdo que às vezes se espraia pela existência tem a ver com o fato de que a foice às vezes pode arrasar com um vivente em momento inoportuno, em hora precoce, quando ele ou ela ainda estava cheio de sonhos, planos e forças.

Por isso, raros são aqueles que enfrentam a vida sem medo algum: a possibilidade da morte, sobretudo injusta, súbita, dolorida, tira-nos o sossego. Talvez nunca tenha nascido e completado sua trajetória finita entre os vivos nenhum animal humano que possa dizer, do berço ao túmulo: “atravessei o tempo sem nunca temer a morte”. Para o poeta Manuel Bandeira, a morte é “a indesejada das gentes”, a “iniludível” (aquela que não se pode burlar ou enganar) [9]:

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.

Pintura de Arnold Boecklin


CAPÍTULO 2: A CLARIVIDÊNCIA, IMPRESCINDÍVEL VIRTUDE CAMUSIANA 

Para Albert Camus (1913 – 1960), não há escapatória: “a angústia é o ambiente perpétuo do homem lúcido” – e a questão das questões, como o príncipe Hamlet sabia, consiste em escolher entre o sim à vida (ainda que angustiada) ou o não à ela (o caminho do suicídio) [10]. Quem vê claro, nesta vida, não escapa de sentir o fardo de afetos angustiantes. O que importa é que a angústia não nos paralise, que possa inclusive servir à nossa ação e ao nosso Combat – nome do jornal com o qual Camus colaborou, crucial na cobertura de eventos históricos como a Resistência à ocupação nazista da França, a Guerra de Independência da Argélia e o Maio de 1968.

Neste livro (Folio, 2013, 784 pgs), estão reunidos 165 artigos publicados por Camus no jornal Combat, onde ele atuou como editor chefe entre agosto de 1944 e junho de 1947. Saiba mais.

Publicado em 1947 pela Editora Gallimard, o romance “A Peste” expressa a atitude existencialista Camusiana diante dos flagelos que parecem querer soterrar a humanidade sob os escombros de um sentido arruinado. Diante da irrupção do absurdo coletivo que é a peste, esta máquina mortífera que ceifa vidas de animais humanos como se estes fossem moscas, o que propõe o artista-filósofo franco-argelino?

Para começo de conversa, o absurdo, para Camus, é um ponto de partida e não de chegada. Não se deve ficar estagnado diante do absurdo, como se ele fosse uma barreira intraponível que deveria nos fazer desistir de qualquer ação, abandonando-nos à passividade. A percepção do absurdo deve conduzir à revolta solidária dos humanos em luta contra os males de seu destino. Se, de fato, a revolta e a solidariedade são valores basilares do ethos camusiano, é preciso destacar ainda o posição de destaque que a virtude da clarividência ocupa no universo temático de Camus.

Isto que a língua francesa chama de clairvoyance tem um sentido próximo ao de lucidez. A lúcida clarividência está fortemente presente em A Peste, como se Camus quisesse ensinar que é preciso ver claro em meio ao horror se não queremos aumentá-lo ou colaborar com ele. Perder a lucidez, deixar ir pelo ralo a clarividência, em nada ajuda a frear a expansão das epidemias, nem auxilia a vencer as infestações do fascismo. O médico Bernard Rieux, narrador do romance, trabalha arduamente em meio à proliferação da doença, ainda que sinta seu cotidiano de combatente anti-peste como um trabalho de Sísifo, repleto de “intermináveis derrotas”.

É preciso compreender que Bernard Rieux é uma espécie de Sísifo em tempos de flagelo coletivo, numa época em que há a irrupção do absurdo em escala massiva. O rochedo que ele tenta arrastar montanha acima é a saúde de seus pacientes. Muitos de seus esforços médicos são em vão: a peste vence frequentemente e o paciente morre. Mas a batalha perdida não finda a guerra. Novos infectados não param de chegar aos hospitais, como novos rochedos a tentar empurrar montanha acima rumo à saúde sempre precária.

Rieux jamais desiste da luta, por mais que seja muitas vezes derrotado em seu intento de curar os adoentados ou de diminuir o sofrimento dos agonizantes. Rieux, apesar do tom afetivo que o domina ser o de um pessimismo de homem ateu, não cai nunca no derrotismo ou na resignação imóvel. Rieux é um trabalhador: não fica de braços cruzados diante dos males concretos que afligem os corpos de seus concidadãos. Não espera ou pede nenhum auxílio divino ou sobrenatural. Por isso, apesar de tantas derrotas diante da peste mortífera, o Doutor Rieux não se torna nunca um derrotado no sentido que dá a esta palavra o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, para quem “os únicos derrotados são os que baixam a cabeça, que se resignam com a derrota.  A vida é uma luta permanente, com avanços e retrocessos”. [11]

Imaginem se Mujica, em algum momento de angústia extrema, durante o período de 12 anos em que esteve confinado nos cárceres da Ditadura Militar uruguaia, tivesse desistido da luta. Se tivesse gasto até a última fibra de sua coragem e resiliência de tupamaro, se tivesse utilizado a saída do suicídio para escapar dos horrores de estar entre os vivos em tais condições horríficas, aí sim teria sido um derrotado – e não o futuro presidente do Uruguai e um ícone das esquerdas latinoamericanas. Por isso, no poster do filme Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner, que retrata as vivências de Mujica e outros dois prisioneiros, destaca-se a frase: “los únicos derrotados son los que bajan los brazos”. [12]

História semelhante se poderia contar sobre Nelson Mandela, Oscar Wilde, Antonio Gramsci ou Luiz Inácio Lula da Silva: na prisão, eles não abaixaram a cabeça, não se renderam à opressão deixando a resiliência cair estilhaçada ao solo, seguiram determinados em sua luta, clarividentes e revoltados em face de absurdos insultantes. Atravessando a noite que parece interminável. Nunca aderindo à preguiça dos passivos ou à inação dos resignados.


CAPÍTULO 3: A LITERATURA DAS ENCRUZILHADAS

Vários debates filosóficos atravessam o romance de Camus: A Peste é um romance repleto de difíceis encruzilhadas em que os personagens tentam escolher entra as alternativas que o destino lhes impõe. O jornalista Rambert, por exemplo, está separado da mulher que ama, preso na Oran empesteada, de onde as autoridades não permitem que ninguém entre ou saia. Tomando medidas para pagar por uma fuga, Rambert entra em negociações com contrabandistas, mas os acordos não avançam muito bem. Retido na cidade em quarentena, Rambert decide-se a trabalhar junto com o Dr. Rieux enquanto aguarda ocasião mais oportuna de escapar dali para se re-encontrar com sua amada.

Depois de muito refletir, quando enfim se apresenta a ocasião da fuga, Rambert prefere ficar ao invés de partir. Explica que “se partisse sentiria vergonha”. Ao que Rieux responde com firmeza que isto é uma “estupidez” e que “não há vergonha em preferir a felicidade”. Ou seja, em meio à desgraça toda, os personagens debatem sobre o hedonismo enquanto doutrina ética, a noção de que uma prazeirosa felicidade é o fim último (télos) da existência humana.

Rambert, nesta sua encruzilhada ética, sopesa as alternativas: fugir em direção à mulher de quem sente saudades é sua tentação mais forte, sua vontade quase irreprimível, pois é este o caminho que lhe aponta sua ânsia de felicidade, sua fome relacional, seu ímpeto de gozo afetivo, sexual, de estima carnal. Porém, o outro caminho que se desenha na encruzilhada é o de ficar na cidade para trabalhar, junto com os outros, em prol de uma melhoria da condição de todos. Rambert prefere ficar, argumentando, contra Rieux e seu hedonismo, que pode sim ser motivo de vergonha “querer ser feliz sozinho” (être heureux tout seul) [13].

Em contexto de flagelo coletivo, Rambert acaba por concluir que não tem direito à fuga na direção de sua felicidade individual. Terceira voz neste diálogo, Tarrou percebe bem que a natureza da escolha na qual Rambert se debate envolve um desejo de empatia para com os que sofrem durante a peste. Porém, esta empatia pode mergulhar o sujeito numa tal maré de compaixão que ameaça destruir completamente sua possibilidade de vivenciar afetos alegres e vivificantes. Para Tarrou, se Rambert “quisesse partilhar da infelicidade dos homens, não haveria jamais tempo para a felicidade. Era preciso escolher.”

Rambert, apesar do sofrimento da separação, que às vezes o conduz a gritar a plenos pulmões (op cit, item 13, p. 185) em montes desertos da cidade, acaba por decidir-se que não quer suportar a vergonha de fugir tentando ser feliz alhures, argumentando que “essa história nos concerne a todos”. Sua atitude tem pontos de contato com Sócrates tal como descrito no diálogo platônico Crítono filósofo se recusa a fugir da prisão de Atenas onde está condenado a morrer pela cicuta, argumentando que ser vítima de uma injusta é preferível a ser injusto violando as leis da pólis.

O Dr. Rieux, de maneira similar ao jornalista Rambert, está separado de sua esposa, com quem se comunica por cartas e telegramas, mas nunca lhe ocorre a tentação de escapar: ele chega a trabalhar 20 horas por dias nos meses de auge da peste, como heróico médico que vê sua fadiga e exaustão crescerem até os extremos, sem nunca desistir de seus deveres ou “amarelar” diante do fardo de sua responsabilidade.


CAPÍTULO 4: CAMUS E NIETZSCHE: UM DIÁLOGO FECUNDO

Ganhador do Nobel de Literatura de 1957, Camus devotou muitos esforços a um diálogo fecundo e crítico com a obra de Nietzsche (1844-1900): “o filósofo alemão agiu como um álcool forte sobre Camus”, defende Michel Onfray [14].

No Brasil, um livro brilhante de Marcelo Alves, pesquisador graduado em Filosofia e Mestre em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), explora com maestria o tema: Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche (um livro que nasce de sua tese de mestrado disponível na íntegra) [15].

Unidos na “fidelidade à terra”, como dizia Zaratustra, Nietzsche e Camus estão sintonizados no interesse que compartilham pelo amor fati, o amor ao destino. O ethos do espírito livre consiste em amar a vida  exatamente como ela é, sem exclusão de tudo que existe nela de contraditório, problemático, horrendo e assustador. Camus fala assim das “núpcias” do homem com a natureza:

“Aprendo que não existe felicidade sobre-humana, nem eternidade fora da curva dos dias. Esses bens irrisórios e essenciais, essas verdades relativas são as únicas que me comovem. (…) Não encontro sentido na felicidade dos anjos. Só sei que este céu durará mais do que eu. E o que chamaria de eternidade, senão o que continuará após minha morte?

A imortalidade da alma, é verdade, preocupa a muitos bons espíritos. Mas isso porque eles recusam, antes de lhe esgotar a seiva, a única verdade que lhes é oferecida: o corpo. Pois o corpo não lhes coloca problemas ou, ao menos, eles conhecem a única solução que ele propõe: é uma verdade que deve apodrecer e que por isso se reveste de uma amargura e de uma nobreza que eles não ousam encarar de frente.” (CAMUS) [16]

Alves comenta:

“O corpo é a medida do homem lúcido diante da sua condição. Amar a natureza é reconhecê-la, antes de tudo, enquanto limite e possibilidade da vida humana. Amor trágico esse, na medida em que se ama o que por fim nos aniquila. Muitos homens, no entanto, preferem recusar essa sabedoria trágica e transformar o seu medo da morte na esperança de outra vida… Mas custa caro desprezar a verdade do corpo, ser infiel à terra, deixar-se iludir por uma esperança, isto custa o preço da própria vida, ‘porque se há um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por uma outra vida e se esquivar da implacável grandeza desta’, como escreve Camus. (…) Fidelidade à terra é justamente o que Zaratustra não cessa de pedir encarecidamente a seus discípulos, alertando-os ao mesmo tempo sobre a ‘enfermidade’ característica dos ‘desprezadores do corpo’, dos ‘transmundanos’ e dos ‘pregadores da morte’.” (M. ALVES) [17]

Esta valorização do corpo, da vida encarnada, das verdades relativas, da sensorialidade palpável, nada tem a ver com uma idealização do corpo que apagasse tudo que há nele de problemático e trágico: Camus chama o corpo de “uma verdade que apodrece” e não cessa de refletir sobre a revolta humana diante da morte, ou seja, da finitude deste corpo matável e adoecível. Camus quer manter-se fiel à Terra e à virtude da lucidez, o que exige vivenciar nossa condição corpórea em tudo que ela comporta de delícia e de tragédia: é com o corpo que se pode entrar no êxtase das núpcias dionisíacas com a natureza, mas é com o corpo que se pode também sofrer os horrores da angústia e as indizíveis dores da agonia.

“Para Camus ser fiel à terra inclui ser fiel aos homens de carne e osso que conosco compartilham, aqui e agora, a experiência de viver. (…) A solidariedade assim praticada é uma chance ao possível, uma chance àquilo que só através dos homens em luta comum contra sua condição pode vir à existência: a liberdade, a justiça, a felicidade e o amor.” (ALVES, op cit., p. 90-91) [18]

Ao analisar “A Peste”, Marcelo Alves destaca que Camus está ali “trabalhando literariamente as críticas formuladas nas Cartas sobre o nazismo” (em especial a Carta a Um Amigo Alemão), de modo que “é preciso tomar o mal como o símbolo maior do romance: o mal que o nazismo produziu e o mal a que o homem está condenado a sofrer por sua própria condição. Trata-se do mal no sentido trágico, do mal que se expressa através do sofrimento físico e moral daquele que vive sob o peso inexorável da mortalidade. É nesse sentido que Camus pode afirmar que a peste é a mais concreta das forças.” (op cit, p. 97) [19]

Escrevendo sobre o tema, o autor português Hélder Ribeiro aponta outras similaridades e sintonias entre Camus e Nietzsche:

“A origem da ética de Albert Camus está na monstruosidade que consiste em sacrificar os corpos às ideias. Encontramos talvez aqui o segredo do laço que une as concepções de Camus e de Nietzsche. Se Nietzsche empreende uma genealogia da moral cristã, para compreender como esta veio a produzir a negação da própria vida, e isto no contexto da sociedade burguesa do século XIX, Camus empreende uma genealogia da moral política do século XX, para compreender como esta veio a produzir a negação hitlerista e estalinista da vida.

Como na Genealogia da Moral, Camus pensa que a cultura e a moral do Ocidente chegaram a um envenenamento inexorável da vida e trata-se de tirar a máscara. (…) Que deve Camus a Nietzsche? Mais do que afirmações, o clima do seu pensamento, e acima de tudo a recusa global da ficção platônico-cristã dos dois mundos. Não há Além que repare a decepção multiforme de cá-de-baixo e que nos conduza ao Uno. Quando Camus suspira pela unidade, não a refere à ideia platônica que supõe o ultrapassar das aparências. As aparências são a única verdade. O Uno deve descobrir-se na própria dispersão do sensível e a tentação mística só pode ser naturalista.

“Todo o meu reino é deste mundo”, escreve Camus. É a fórmula mais flagrante desta convicção. O corolário é a exaltação do corpo e das verdades que o corpo pode tocar. A verdade do corpo ultrapassa a verdade do espírito. Ora, o mais alto poder do corpo é a arte, que opera uma transmutação do sensível sem o recusar.

O niilismo de Nietzsche, procedendo de uma experiência extrema do desespero, quebrando todos os ídolos do progresso com o mesmo cuidado com que recusava a sombra de Deus, chega, no entanto, a um consentimento radioso, dionisíaco, ao Todo do ser real do mundo, na sua totalidade e em cada realidade particular. O consentimento que dorme na revolta de Camus e lhe dá um sentido, esse “amor fati” que no sim à vida inclui a própria morte, de modo que chega a chamá-la de “morte feliz”, provém em parte de Nietzsche…”. (RIBEIRO, H.) [20]


CAPÍTULO 5: RELEVÂNCIA DE CAMUS NA ATUALIDADE PANDÊMICA

Diante da pandemia de covid-2019 que assola o mundo em 2020, “A Peste” teve uma notável re-ascensão e tornou-se um dos livros mais procurados na Europa, como relata a reportagem da BBC Brasil [21]. Seu status de best-seller na conjuntura deste evento traumático do séc. 21 é prova inconteste não só da atualidade da literatura Camusiana, mas também do brilhantismo com que seu autor sobre tratar dos flagelos da doença somados aos horrores da política. Pois se sabe que a obra nasce sob a influência da Ocupação Nazifascista de Paris, onde Camus escrevia no jornal libertário Combat e participava da Resistência contra a extrema-direita alemã.

O paralelo com o Brasil de 2020 é extremamente possível: a “peste” da covid-19 já é uma lástima terrível por si só, mas a ela se soma o fato de estarmos sob o desgoverno neofascista da seita obscurantista do Bolsonarismo. O chefe da seita, durante toda a pandemia, foi criminosamente irresponsável, acarretando milhares de infecções e mortes ao negar a gravidade do problema, boicotar medidas de isolamento e dar preferência a CNPJs e não a CPFs – ou seja, preferindo agradar empresários, banqueiros e rentistas, aderindo ao “matar ou deixar morrer” no que diz respeito aos trabalhadores empobrecidos pela crise. Além disso, o ocupante do Palácio da Planalto notabilizou-se globalmente por ser o líder do negacionismo do coronavírus, desdenhando de uma doença que em Maio de 2020 já havia ceifado mais de 300.000 vidas, mas que segundo Seu Jair não passa de um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta” e que não deve fazer parar as rodas da economia.

No romance de Camus, o fenômeno do negacionismo da peste, típico do Bolsonarismo na atualidade, também dá as caras. Alves escreve: “A primeira dificuldade dos homens diante da peste é a de reconhecer a sua existência. Por todos os meios procuram negá-la. Muitas vezes simplesmente dando-lhes as costas, outras encarando-a como uma abstração. Primeiro, a administração pública hesita em tomar as providências para não alarmar a população…. Depois, mesmo diante dos sintomas, muitos recusam-se a admiti-la: ‘Mas certamente isso não é contagioso.’, diz um personagem. Por fim, mesmo após o reconhecimento oficial do flagelo e do isolamento importo à cidade, os habitantes ainda resistem a aceitar o fato…” (ALVES, M. p. 98) [22]

A seita necrofílica dos Bolsonaristas tornou-se mundialmente famigerada justamente por este tipo de funesta e macabra irresponsabilidade das ações negacionistas.  Ao seguirem como ovelhas obedientes os ditames do Grande Líder, muitos cidadãos Bolsominions acabaram sabotando medidas de contenção, aglomerando-se para manifestações golpistas, fazendo coro à pregação de Jair de que algumas milhares de mortes eram preferíveis à diminuição dos lucros empresariais. Tudo isso tornou Bolsonaro uma figura internacionalmente repudiada como um dos piores presidentes do mundo em seu trato com a peste, tendo sido denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais.

Neste contexto, a leitura de Camus torna-se ainda mais relevante ao grifar sempre a importância crucial de transcendermos a angústia solitária e isolada, rumo à solidariedade na revolta:

“A vitória sobre a peste só acontece quando o homem reconhece que se trata de uma tragédia coletiva e, no lugar do isolamento individual, faz da sua cumplicidade trágica com os outros homens um só grito de revolta e lucidamente dá início à sua tarefa de Sísifo: ‘colocar tanta ordem quanto possa em uma condição que não a possui’. É verdade que nesse caso a vitória é sempre provisória, jamais definitiva, mas é a única vitória possível e desejável para aqueles que procuram nada negar nem excluir: nem a condição humana, nem a dor do homem. O médico Rieux, personagem e narrador do romance, encarnará o homem camusiano que vive entre o sim e o não: aquele que não se esquiva da condição humana, mas não se resigna às suas misérias; aquele que aceita o peso da existência, aceita rolar a sua pedra, que é o espelho opaco da sua virtude, mas se recusa a aumentar o mal, tanto através da ação quanto da omissão.” (ALVES, M., op cit, p. 101) [23]

O Dr. Bernard Rieux, encarnação da lucidez e da solidariedade, age em A Peste com um ethos de Zaratustriana fidelidade à terra e a seus viventes. Mesmo que na época em que o romance se passa a cidade argelina de Orã esteja empestada, mergulhada nos flagelos da doença e do sofrimento, Rieux permanece aferrado a este princípio: “O essencial era impedir o maior número possível de mortes e de separações definitivas. E o único meio para isto era combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas consequente.” (CAMUS, A Peste, I, 1327) [24]

Na verdade, Bernard Rieux não é um Übbermensch super-heróico, mas um médico de carne-e-osso, sujeito à fadiga e ao desespero, mas que decide suportar o peso de sua lucidez e agir incansavelmente com base na sua ética da solidariedade, da empatia e da revolta contra a peste. Esta peste é tanto doença em si quanto, de maneira metafórica, a política fascista, aquilo que chamaríamos hoje, a partir de conceito proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, de necropolítica [25].


CAPÍTULO 6: A AGONIA DE UMA CRIANÇA DIANTE DE UM MÉDICO E UM PADRE

No enredo, o médico Rieux também aparece como o antípoda do padre Paneloux. Onde o cristianismo prega oração e resignação, o médico ateu defende a ação coletiva solidária e obstinada contra o mal. Alves comenta: “Rieux combate ídolos, contesta abstrações, não a marteladas, mas através de sua obstinação em cuidar dos corpos… O médico é aquele que sabe dos limites da condição humana, mas não se submete a eles; sabe que não salvará tudo ou a todos, mas decide agir segundo as suas forças para salvar o que pode ser salvo: alguns corpos, por algum tempo.” (Alves, p. 106) [26]

No destino do Padre Paneloux, Camus nos fornece um memorável memento do que significa o desprezo pela Ciência em tempos de peste. Em meio à Orã transtornada pela epidemia, o padre Paneloux fazia sermões pregando que o flagelo era uma punição divina pelos pecados de alguns de seus concidadãos. Daí saltava para a idéia de que a vontade divina utilizava-se da peste como seu instrumento. E daí foi só um passo até que passasse à noção de que seria heresia ir contra a vontade de Deus: a atitude de um autêntico cristão consistiria na aceitação plena dos decretos do Céu.

No capítulo 3 da parte IV, uma cena-chave de A Peste se desenrola: uma criança gravemente enferma será cobaia para um teste de uma vacina (sérum), uma das esperanças de conter a epidemia. O sofrimento horrendo desta criança dá ensejo para que os personagens reflitam a fundo sobre a condição humana, os males do mundo e as injustiças de que nossa situação existencial está repleta. A tentativa de curar a criança não é bem sucedida e após uma longa agonia, extremamente sofrida, o menino morre. Ao redor do leito, Dr. Rieux, padre Paneloux, Tarrou realizam um debate crucial nesta situação excruciante.

O que está em questão, em última análise, é a dor infligida aos inocentes, em todo seu escândalo. A agonia de uma criança parece causar o desmoronamento da argumentação teológica exposta no primeiro sermão do Padre Paneloux (cap. 3, parte II), segundo o qual a infelicidade (malheur) seria sempre merecida, pois toda peste é punição contra pecadores, um purgativo enviado por Deus (p. 91). Caso aceitássemos o argumento do padre, Orã seria similar a Sodoma e Gomorra e “a peste teria origem divina e caráter punitivo” (p. 95). Daí decorre que o padre recomende a seus concidadãos que se ajoelhem, se arrependem e orem aos céus por misericórdia. Com fé, Deus os ouvirá e salvará. Seu discurso traz o dedo em riste, acusatório, lançando sobre os pecadores a culpa pelo flagelo vivido pela cidade. Assim, inventa-se um sentido como antídoto para o absurdo num procedimento que Slavoj Zizek chama de “the temptation of meaning” [27].

Esta cena d’A Peste em que a agonia da criança é sentida diferencialmente pelo médico e pelo padre está entre as obras-primas da dramaturgia Camusiana e aí também se jogam os lances decisivos para a apreciação plena do que pensa o autor sobre a fé. O sofrimento horrendo de uma criança que agoniza põe em crise o discurso do padre Paneloux, sua noção de que os afligidos pela peste eram pecadores: para manter tal ideologia, seria preciso dizer que a criança era culpada, ou mesmo que nasceu com a culpa provinda do princípio dos tempos, ou seja, do Pecado Original de Adão e Eva. É assim que a fé judaico-cristã pretende nos convencer que é merecido o sofrimento na infância?

O Dr. Rieux opõe-se a esta ideologia religiosa que culpabiliza para que possa manter a fé, ainda que num Deus abjeto e que se sirva da agonia infantil como um de seus perversos instrumentos de vingança contra os pecadores. O Dr. Rieux é muito mais ateu e a vivência da peste só aprofunda seu ateísmo. O suplício e a agonia de uma criança lhe parecem um escândalo injustificável, uma absurdidade que estilhaça a possibilidade de crer em Deus.  Porta-voz do ateísmo Camusiano, o Dr. Rieux se recusa em amar uma criação onde crianças são torturadas, ou seja, recusa a própria noção de um Criador que pudesse ter aceito, como parte do mundo criado, a agonia injusta de pequenas pessoas que vieram ao mundo recentemente e que acabam por ser expulsas dele em meio a um absurdo sofrer.

Na história da filosofia contemporânea, o filósofo Marcel Conche inspirou-se em argumentos muito próximos aos Camusianos para formular suas provas da inexistência de Deus com que abre sua obra Orientação Filosófica. [28]

O ateísmo, em Camus, parece ser a decorrência necessária da lucidez daqueles que não escamoteiam o absurdo da existência e que, através da revolta, alçam-se do “eu sou” ao “nós somos”: superando o racionalismo idealista de René Descartes e seu cogito (“penso, logo existo”), Albert Camus propôs o cogito existencialista-ateu, digno de virar bandeira de todos nós que nos solidarizamos na revolta contra os males de que o mundo terrestre está repleto: “eu me revolto, logo somos”.

Ao adoecer, o padre Paneloux recusa-se terminantemente a chamar um médico – ainda que soubesse que o Doutor Rieux estaria a postos, prestativo, para atendê-lo, sem poupar esforços para salvá-lo. Para o padre Paneloux, há uma contradição insolúvel entre a fé e a ciência: para manter-se crente, ele precisa recusar a medicina. No extremo do delírio desta fé auto-destrutiva, prefere fechar as portas ao socorro que poderia lhe vir dos terráqueos, permanecendo aberto apenas ao socorro que lhe viria do divino. Agarra-se ao crucifixo, recusando hospitais e remédios.

A desastrosa escolha de Paneloux o conduz a uma agonia horrorosa, sem analgésicos nem morfina, em que ele decide imolar a saúde num altar imaginário onde pensava estar encontrando a salvação. Encontrou apenas a morte absurda dos que desdenham daquilo que o ser humano pôde inventar, neste mundo, em prol do auxílio mútuo e da solidariedade concreta.

No livro de George Minois sobre A História do Ateísmo, Camus aparece como um artista-pensador que jamais recomenda que percamos tempo de vida com a ânsia de ascensão a um Paraíso transcendente, prometido aos “eleitos”, aos que tenham sido dóceis e obedientes nesta vida. Camus convoca para que trabalhemos juntos neste mundo para torná-lo menos opressivo e mais amável, o que exige que possamos assumir nossas responsabilidades. Não aquela responsabilidade de “servir a um ser imortal”, mas sim a de livrar-se desta subserviência para assim “assumir todas as consequências de uma dolorosa independência”. (MINOIS: p. 671) [29]

Como diz Marcelo Alves, na obra A Peste está ilustrado que “o pessimismo de Camus, longe de ser resignado ou valorar negativamente a vida, pretende, através da revolta diante da peste, culminar num lúcido sim à vida.” (ALVES, M. Pg 98) [30] De modo que a lucidez é uma das virtudes que Camus celebra entre as supremas. Não a lucidez derrotista, resignada ou solitária, mas a lucidez clarividente, a capacidade de enxergar com clareza, inclusive e sobretudo os males concretos que nos afligem e aos quais só a solidariedade das revoltas pode fazer frente.


 

CAPÍTULO 7: A CONCRETUDE EM CARNE-E-OSSO DE NOSSA CONDIÇÃO

A tarefa de ver claro torna-se mais difícil diante dos flagelos da peste, da pandemia, da guerra, pois enxergá-los em toda sua horrífica realidade é perturbador para a psiquê humana, que vê-se em apuros para “digerir” tais experiências. Preferimos então recusar a concretude dos sofrimentos das pessoas de carne-e-osso para olhar o problema através do prisma de pálidas abstrações e estatísticas. Pode-se ler em livros de História que umas 30 pestes que o mundo conheceu fizeram cerca de 100 milhões de mortos, mas quem nunca viu nem conheceu sequer um desses vivos transformados em cadáveres pode se ver tentado a deixar-se esse número torna-se uma fumaça na imaginação, sem carne e sem sangue.

Por isso a literatura é tão crucial e imprescindível: ao ler uma obra como A Morte de Ivan Ilítch, de Tolstói, podemos ter acesso a uma morte concreta e individualiza, que nos comove pelo que tem tanto de idiossincrática quanto de expressiva da condição humana geral. A Peste de Camus também funciona maravilhosamente como um dispositivo literário de concretização, um livro destinado a nos ensinar como os seres humanos de carne-e-osso lidam com o flagelo pestífero. A certo ponto, o Doutor Rieux relembra da peste de Constantinopla, que em seu pico fazia 10.000 vítimas fatais por dia, e pede que imaginemos o público de 5 grandes cinemas sendo assassinado na saída do filme (pg. 42).

Dar concretude às estatísticas, fornecer carnalidade aos números, fazer-nos sentir visceralmente aquilo que se esconde por trás de relatórios burocráticos ou meditações abstratas, é uma das funções essenciais da literatura. Rieux está impedido por seu ofício de médico de “abstrair” em meio à peste pois é obrigado a lidar com a concretude de doentes e mortos, de tosses e catarros, de agonias e cadáveres. Sua lucidez é trágica! E a única salvação que concebe é a união solidária de pessoas que trabalham juntas contra o flagelo. Pois isolar-se, fechar-se na mônada e no monólogo, não é nenhuma solução contra o absurdo. Separação e isolamento nunca serão panacéias.

O ator William Hurt, que interpreta o médico Rieux na adaptação cinematográfica do romance de Camus realizada por L. Puenzo em 1992

Rieux recusa a resignação, a prece, a passividade. Tampouco deseja fazer pose de herói. Sua humildade lúcida está em saber que não salvará todo mundo, apenas alguns corpos por algum tempo. Este médico sabe que suas vitórias são sempre provisórias mas que esta não é uma razão para cessar de lutar. Trata-se sempre de adiar a morte para mais tarde, pois restabelecer a saúde de alguém jamais significa livrá-lo da incontornável finitude.

– Já que a ordem do mundo é regrada pela morte, talvez convenha a Deus que não se creia nele e que se lute com todas as forças contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se esconde. (ALVES, op cit, p. 106) [31]

Este ateísmo Camusiano, que se manifesta em Rieux, tem a ver com uma crítica que o autor de O Homem Revoltado faz ao processo de sacrifício de pessoas concretas em nome de um ideal, um valor absoluto, uma abstração descarnada. Até mesmo Marx e Nietzsche são denunciados por Camus por terem instituído uma espécie nova de idealismo em que a sociedade sem classes do futuro comunismo ou os espíritos livres e Übermensch do porvir serviriam como ideais laicizados. Assim, substituem a noção religiosa de outra vida, acessível pela morte, por uma outra vida a ser construída e concretizada mais tarde – trocam o além pelo mais tarde. Chamo isto de uma oposição entre uma transcendência vertical (as pessoas que crêem numa ascensão ao céu, após a vida terrena) e a transcendência horizontal (as pessoas que crêem numa transfiguração desta vida terrena nos amanhãs cantantes de um futuro que está no horizonte). 

Se o entendo bem, Camus propõe uma imersão na imanência em que possamos celebrar as núpcias com a vida e a natureza, nas quais devemos amorosamente nadar como peixes deleitando-se na imensidão do mar. É óbvio que este mar está repleto de tubarões, que há predação e peste, sofrimento e finitude, injustiça e opressão, mas também extremas belezas e deleites, uma grandeza implacável que devemos aceitar e abraçar com toda lucidez e clarividência que pudermos. Viver é mergulhar no absurdo mas não deixar-se afogar aí. Este banho de absurdo só pode ser redimido pela cumplicidade revoltado dos solidários, dos justos, dos que trabalham juntos em prol de uma realidade menos absurda. A medicina, para Rieux, é um trabalho de Sísifo ateu – e é preciso imaginá-lo feliz, empurrando pedregulhos montanha acima, no aprendizado perene com todos os esforços e tombos.

Em O Mito de Sísifo, Camus escreveu: “Se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos contra sua vontade. Se ele não existe, tudo depende de nós.” [32] A fé em Deus desempodera o ser humano, coloca-nos na dependência de uma vontade alheia e de uma autoridade transcendente, condenando-nos à “minoridade” tutelada de uma criança que não ousa fazer uso pleno da força de sua razão [33]. Já o ateísmo nos liberta para as difíceis tarefas da responsabilidade, da solidariedade, das construções coletivas de sentido que façam frente aos absurdos que sempre ameaçam nos submergir.

Confinados na finitude de uma vida que fatalmente terminará, condenados à angústia que é o ambiente perene do ser humano lúcido, temos somente esta vida, este mundo, este espaço, este tempo, para celebrar nossas fenecíveis núpcias com o real. Quem não se revolta contra as injustiças e opressões que impedem estas núpcias, quem não se solidariza diante dos males que nos afligem em comum, este é um semi-vivo ou um zumbi, sempre necessitado de ser despertado pelas amargas mas salutares verdades que a arte e a filosofia podem conceder.

Sem além nem deus, espíritos livres Camusianos plenamente fiéis à terra, sejamos Sísifos felizes! Estejamos aqui-e-agora solidários, lúcidos, clarividentes e reunidos na revolta. Somando forças, alentos, beijos, amplexos, vozes e obras que permitem nossas núpcias com a vida, a natureza e os outros. Sem nunca esquecer que a angústia solitária precisa ser transcendida por uma revolta solidária que seja o emblema em ação de nossa “insurreição humana” – aquela que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, “em suas formas elevadas e trágicas não é nem pode ser senão um longo protesto contra a morte, uma acusação veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.” [34]

Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro [www.acasadevidro.com]
Goiânia, Maio de 2020

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REFERÊNCIAS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS, CINEMATOGRÁFICAS E FONOGRÁFICAS

[1] CAMUS, Albert. Núpcias  / O Verão. Editora Círculo do Livro, 1985.

[2] THE FLAMING LIPS. Ao usar a expressão “grau de realização da mortalidade”, penso sobretudo nos versos de uma canção da banda estadunidense de rock alternativo The Flaming Lips, chamada “Do You Realize?” (também interpretada por Sharon Von Etten), presente no álbum Yoshimi Battles The Pink Robots, em que o ouvinte é interpelado pela questão: “você realmente percebe que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?” The Fearless Freaks é um excelente documentário sobre a trajetória da banda.

“Do you realize that everyone you know someday will die?
And instead of saying all of your goodbyes, let them know
You realize that life goes fast
It’s hard to make the good things last
You realize the sun doesn’t go down
It’s just an illusion caused by the world spinning round…”

[3] PESSOA, Fernando. Mensagem. O trecho completo diz: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. A mesma expressão aparece nas Odes de Ricardo Reis:

NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas feitas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A quem um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

— Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), in “Odes”.

[4] BECKER, Ernest. A Negação da Morte (The Denial Of Death). Vencedor do prêmio Pulitzer, o livro também inspira o documentário The Flight From Death (2005), que compartilhamos na íntegra a seguir:



[5] SAMPAIO, Sérgio. Canção “Ninguém Vive Por Mim”. Em: Tem Que Acontecer. Saiba mais neste artigo em A Casa de Vidro.
[6] PARRA, Nicanor. O poeta chileno que viveu 103 anos (1914 – 2018), irmão da lendária cantora, compositora e folclorista Violeta Parra, escreveu muitas profundas reflexões sobre a morte.
[7] EPICURO. Carta Sobre a Felicidade (a Meneceu). Sobre o tema, acesse em A Razão Inadequada o artigo Epicuro e a Morte da Morte.
[8] MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Capítulo XX. Em: Os Pensadores, Abril Cultural.
[9] BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. Publicado originalmente em 1930.
[10] CAMUS, AlbertO Mito de Sísifo. Ed Record, 2004.
[11] MUJICA, José. Em: Rede Brasil Atual.
[12] BRECHNER, Alvaro. La Noche de 12 Años (2018), filme uruguaio que retrata ações do militantes Tupamaros, que lutavam contra a ditadura militar, e suas vivências na cadeia.
[13] CAMUS, ALa Peste. Folio: 1999, Pg. 191.
[14] ONFRAY, Michel. A Ordem Libertária – A Vida Filosófica de Albert Camus. Flammarion, 595 págs. Citado a partir de artigo na Revista Cult.
[15] ALVES, MarceloCamus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche. Florianópolis, 2001, Ed. Letras Contemporâneas.
[16] CAMUS. Essais, Paris: Gallirmard, 1993, 75 – 80.
[17] [18] [19] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[20] RIBEIRO, Hélder. Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Pg. 89-90.
[21] BBC News Brasil. ‘A Peste’, de Albert Camus, vira best-seller em meio à pandemia de coronavírus.
[22] [23] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[24] CAMUS, A. La Peste. Op cit.
[25] MBEMBE, AchilleNecropolítica. Saiba mais em A Casa de Vidro.
[26] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[27] SLAVOJ ZIZEK fala em “the temptation of meaning” ao responder as questões de Astra Taylor, realizadora do filme documental Examined Life: “Meaning allows us to create fantasies which defend ourselves from the awful truth that we’re bags of meat who can never escape death. That is, the turn towards subjectivity is itself a defense mechanism against the fact that the universe doesn’t care. God, whether He be loving or vengeful, is a way of turning this utter indifference into a fantasy of mattering.”

[28] CONCHE, Marcel. Orientação Filosófica. Ed. Martins Fontes. Coleção Mesmo Que O Céu Não Exista.
[29] MINOIS, George. História do Ateísmo. Ed. Unesp, pg. 671.
[30] [31] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[32] CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Citado em: MINOIS, op cit, idem item 29.
[33] A conclusão atéia não condiz com as apostas kantianas na necessidade de Deus como “apêndice” da razão prática, mas aqui penso no auxílio salutar que o ateísmo concede ao sapere aude tal como descrito por Immanuel Kant em seu texto sobre o Iluminismo / Esclarecimento.
[34] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Capítulo: “Niilismo e História”. Ed. Record, 2003, p. 125.

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Um combate contra o Absurdo | Albert Camus (documentário completo e legendado)

MAIS VIVOS DO QUE NUNCA: Apesar dos esforços da Idiocracia, da Cruzada por um Brasil Medieval dos Bolsominions e da seita “Escola Sem Partido”, Paulo Freire e a Pedagogia do Oprimido resistem

Um dos maiores intelectuais latino-americanos do século 20, o criador da Pedagogia do Oprimido e Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire (1941 – 1997) poderia dizer, na esteira de Isaac Newton: “se eu vi mais longe foi por estar sobre os ombros de gigantes“. O que poucos sabem é que o educador pernambucano subiu nos ombros de gigantes do pensamento africano e de-colonial como Franz Fanon, Amílcar Cabral e Albert Memmi.

Estes mestres da libertação contra as opressões coloniais, que tanto inspiraram a práxis Freireana, têm obras cruciais que o leitor brasileiro tem cada vez mais oportunidade de conhecer a fundo através de importantes livros publicados por aqui: a exemplo de Pele Negra, Máscaras Brancas (FANON, Ed. UFBA), Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo (VILLEN, Ed. Expressão Popular)Retrato do Colonizador precedido de Retrato do Colonizado (MEMMI, Ed. Paz e Terra).

Nascido na Tunísia em 1920, Albert Memmi compartilha com seu xará argelino, o Albert Camus, outros elementos além do enraizamento em um país do Norte da África banhado pelo Mediterrâneo. Memmi e Camus também compartilham uma versatilidade de escrita notável: ambos aventuraram-se tanto na literatura (A Estátua de Sal é o romance mais conhecido de Memmi, e sabe-se que Camus venceu o Prêmio Nobel de Literatura por vasta obra em que se destacam O Estrangeiro e A Peste) quanto em escritos ensaísticos sobre ética, filosofia, política, relações internacionais, guerra e paz, dentre outros temas candentes.

Além disso, ao irromperem no cenário literário francês do século 20, figuras como Camus e Memmi trouxeram para o epicentro da discussão pública as questões candentes do imperialismo e do colonialismo, enxergados por um viés crítico que explicitava as proveniências africanas de ambos (um, da Argélia, outro da Tunísia), com forte presença também da escola-de-pensamento (e de vida) que viria a ser conhecida como Existencialismo.

Cá no Brasil e atravessando seus muitos exílios, Paulo Freire tomou aprofundado contato com os existencialistas, tendo sido também impactado enormemente pela figura grandiosa, no cenário intelectual do século, de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Freire compartilha com todos estes autores um interesse pelo estudo e pela decifração das relações sociais de opressão imperial, um estudo todo atravessado pela ética freireana, comprometida com a nossa libertação coletiva das garras da Opressão.

O ensinamento central de Freire é que a opressão desumaniza tanto os oprimidos quanto os opressores. A opressão é péssima para ambos. Os opressores, ao impedirem e sabotarem os ímpetos de transformação social liderados pelos oprimidos em seu processo de partejar uma realidade menos desumana, agem contra seus próprios melhores interesses: a conservação da opressão, na verdade, não interessa nem mesmo aos opressores pois os desumaniza e os enche de uma culpa dificilmente lavável.

“A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas sim resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser-menos. (…) O ser-menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.” – PAULO FREIRE, Pedagogia do Oprimido

“Se a colonização destrói o colonizado, ela apodrece o colonizador”, escreve Memmi (p. 22). Neste livro impressionante em que pinta retratos de colonizados e colonizadores, subdividindo cada grupo em certos subtipos, Memmi explorou o tema da opressão colonial de maneira muito próxima àquela que marcará a visada Freireana. Ambos enxergam a realidade socialmente construída do Sistema Colonial como “organização da injustiça”, e Memmi nos pede que imaginemos alguém recém-desembarcado em Túnis sob domínio do Império Francês:

“Acontece de o recém-desembarcado, estupefato desde seus primeiros contatos com os pequenos aspectos da colonização, a multidão de mendigos, as crianças que circulam quase nuas, o tracoma etc., pouco à vontade diante de tão evidente organização da injustiça, revoltado pelo cinismo de seus próprios compatriotas (‘não preste atenção na miséria! Você vai ver, a gente se acostuma rápido!’), logo pensar em ir embora.” (MEMMI: RJ, 2007, p. 56)

Caso decida ficar, este hipotético sujeito, nascido na metrópole e transplantado para a colônia, poderá sentir a tentação perigosa do humanitarismo. Sentindo piedade pelos oprimidos, sofrendo com a miséria dos miseráveis, permitindo que seu coração bata em sintonia com os corações que sangram na sarjeta e só comem as migalhas caídas da mesa dos ricos, este sujeito pode sentir-se atraído, em sua revolta, pela revolução dos oprimidos. Porém, como ironiza Memmi:

“O romantismo humanitário é considerado na colônia como uma doença grave, o pior dos perigos: não é nem mais nem menos que a passagem para o campo do inimigo. Se ele se obstinar, aprenderá que embarca para um inconfessável conflito com os seus, o qual permanecerá para sempre aberto, jamais cessará, a não ser com sua derrota ou seu retorno ao redil do colonizador. Muitos se surpreendem com a violência dos colonizadores contra o compatriota que põem em perigo a colonização.” (op cit, p. 57)

Freire aprendeu muito, na escola de Memmi, Fanon e Amílcar Cabral, a realizar uma leitura psico-social da realidade marcada pela opressão onidesumanizante: para ele, a realidade psicológica dos sujeitos designados pelos termos oprimido e opressor é bem mais complexa do que sonha nosso ingênuo simplismo. O oprimido pode hospedar dentro de si uma espécie de versão íntima do opressor. Já o opressor, em alguns casos (infelizmente raros), pode deixar-se comover pelo destino dos oprimidos e decidir-se a cometer o suicídio de classe que Amílcar Cabral tematizou e que figuras como Friedrich Engels e Fidel Castro cometeram na prática.

Ora, para que possa dar o salto essencial de auto-superação de sua condição oprimida, é preciso que o sujeito vença a consciência ingênua através de um esforço da consciência crítica que vai desvelando esta realidade psíquica complexa: o oprimido que hospeda dentro de si os valores, os modos de pensar, os jeitos de viver, as maneiras de enxergar o mundo, as formas de fruir de seu tempo livre, as epistemes e tábuas de valores pegas de empréstimo do cabedal do opressor. Donde a necessidade suprema de uma educação comprometida com a descolonização de corações e mentes. Mas isto não é tudo: a Pedagogia do Oprimido, ao contrário do que pensam muitos, não foi concebida para educar somente os oprimidos.

Paulo Freire estava no mundo também para educar os opressores, para ensiná-los sobre a desumanização de si mesmos em que caem, abismo sem fundo, ao apegarem-se a seus privilégios injustos e às suas usurpadas posições de poder opressivo. Esta fusão entre marxismo e cristianismo que Paulo Freire busca efetivar enxerga em seu horizonte utópico – síntese entre denúncia e anúncio – o advento de um Reino onde a fraternidade seja de fato um valor vivido e encarnado, e não apenas ídolo distante ao qual se presta apenas serviço labial. Fraternos seríamos caso não mais estivéssemos em uma sociedade cindida entre a elite opressora e as massas oprimidas. Por isso é do interesse de toda a Humanidade a proposta da Pedagogia do Oprimido: a opressão nos desumaniza a todos.

Na atitude de figuras como Memmi, Freire, Amílcar, Gramsci, dentre outros, temos claramente um engajamento existencial em prol da transformação radical de uma realidade social marcada pela injustiça organizada – e sabemos muito bem que o fascismo é uma das expressões máximas desta organização do injusto, desta “banalidade do mal” que torna a injustiça cotidiana como o pão com manteiga: “O que é o fascismo senão um regime de opressão em proveito de alguns?”, pergunta-se Memmi, lembrando-nos que “toda nação colonial carrega assim, em seu seio, os germes da tentação fascista”:

“Toda a máquina administrativa e política da colônia não tem outra finalidade senão a opressão em proveito de alguns. As relações humanas ali provêm de uma exploração tão intensa quanto possível, fundam-se na desigualdade e no desprezo e são garantidas pelo autoritarismo policial. Não há qualquer dúvida, para quem o viveu, de que o colonialismo é uma variação do fascismo…” (MEMMI, op cit, p. 100)

Hitler e Mussolini não tiraram suas práticas “do nada”: puderam se inspirar no apartheid que o Império Britânico instalou na África do Sul. Escrevendo em 1957, quando muitas das nações da África atual ainda não tinham conquistado plena independência, Memmi fala sobre “esse rosto totalitário, assumido em suas colônias por regimes muitas vezes democráticos”, que prossegue de tanta atualidade: muitas metrópoles pretensamente humanitárias, que se auto-decretam o cume e auge da evolução histórica do ser humano, como a França do Iluminismo, mostram sua face fascista no trato com suas colônias.

Tanto é assim que os Jacobinos Negros da Revolução no Haiti tiveram que realizar uma insurreição armada em prol de sua independência, e que os argelinos se envolveram numa longa e custosa Guerra de Independência contra o Império francês já no pós-2a Guerra Mundial (cuja crônica cinematográfica incomparável está em A Batalha de Argel, obra-prima do italiano Gillo Pontecorvo).

Os EUA, que vestem diante do mundo a máscara de Democracia Liberal que guia o mundo nos caminhos do Capitalismo Com Face Humana, manifestam um rosto fascista-totalitário nas ações imperialistas que realizam nas partes do mundo que desejam reduzir a colônias: foi assim na Guerra do Vietnã (que espalhou-se para o Camboja), foi assim nos inúmeros regimes ditatoriais que patrocinou e apoiou na América Latina e Central (com golpes militares apoiados por Tio Sam na Guatemala em 1954, no Brasil em 1964 e no Chile em 1973, para ficar só em três episódios históricos paradigmáticos), está sendo assim na atual Guerra Contra o Terror (e contra o Estado Islâmico) turbinada por xenofobia islamofóbica e petrodollars.

Paulo Freire o sentiu na pele: se, no começo dos anos 1960, revolucionava a educação nacional, comandava um programa de alfabetização que renovou todas as noções e práticas sobre o tema, logo depois do coup d’état manu militari acabou sendo preso e posteriormente exilado. Pôde assim perceber bem o quanto a ditadura militar, uma espécie de Estado fantoche servindo aos interesses do imperialismo norte-americano, investia pesado na manutenção das bases materiais da opressão capitalista continuada. O que diria se estivesse vivo diante das evidências de que, em 2019, o Brasil volta à posição ajoelhada diante do Tio Sam?

O pseudo-patriota Bolsonaro, aquele que presta continência para a Star Spangled Banner, tem atuado com total subserviência diante do establishment estadunidense, o que se manifesta não só pela escolha de Olavo de Carvalho como grande “guru do governo” (teleguiado desde o QG em Richmond, Virginia) mas também pelas já explicitadas analogias entre a mentalidade racista-supremacista de Jair e a da Ku Klux Klan. Poderíamos dizer que aquele que idolatra Ustra e Pinochet hoje não encontra nada melhor a fazer senão pagar-pau pra Olavo, David Duke e Donald Trump. Diante de tal catástrofe – um “projeto de Hitler tropical”, como diz Mário Magalhães em sua biografia de 2018 -, obviamente a Educação se insurgiu.

TRÊS LEVANTES EM 30 DIAS DE RE(X)ISTÊNCIA

TSUNAMI DA BALBÚRDIA – Uma trilogia documental produzida por A Casa de Vidro nas manifestações cívicas de 15 de Maio, 30 de Maio e 14 de Junho em Goiânia.

ASSISTA AOS TRÊS CURTAS:

DOC #1: Tsunami da Balbúrdia


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DOC #2: Somos Gotas Nesse Mar de Revolta


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DOC #3: É Greve porque é Grave


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As Jornadas de Maio de 2019, que busquei retratar nos três documentários sobre o #TsunamiDaEducação, foram motivadas pela percepção, a meu ver muito acertada, de que Bolsonaro é inimigo da Educação, agente da Barbárie e da Imbecilização. E como foi comovente ver que Paulo Freire saiu dos livros e ganhou as ruas: suas frases berravam nos cartazes, as capas de suas obras foram reproduzidas em escudos de papelão, sua memória foi reavivada pelos manifestantes. Não eram protestos apenas contra os cortes anunciados pelo MEC: 30% das verbas discricionárias, um montante de aprox. R$ 5.700.000.000 e que o Ministro Weintraub teve a pachorra de comparar a 3 chocolatinhos e meio.

Eram protestos contra uma visão cretina e brucutu da Educação, típica do Bolsonarismo, pois esta tirania neofascista deseja o fim da educação comprometida com o desenvolvimento da consciência crítica. O que os Bolsonaristas desejam é o fim de uma escola que possa ensinar-nos o engajamento em prol da transformação do mundo na direção de menos-opressão, ou seja, na direção de um coletivo ser-mais.

 Os Bolsonaristas querem a morte da utopia e o triunfo do conformismo: deveríamos nos resignar à velha educação que coloniza as mentes. O velho esquema da “injustiça organizada”, em que se racha a educação entre uma área VIP para a elite (universidades “de ponta”, só pra ricos!) e uma vasta área de educação precarizada e apêndice-do-mercado para os pobres, a quem se oferece somente uma formação meramente técnica e a quem destina-se a integrar as vastas fileiras do proletariado em sua nova versão, o Precariado: em tempos de “uberização” dos trampos, vemos a proliferação de um ideal capitalista neofascista: os proletários pós-CLT, pós-Aposentadoria, pós-SUS, pós-Direitos, na era da Idiocracia de Direita.

Neste cenário distópico, Paulo Freire volta a ser nosso precioso aliado. E estou entre aqueles que deseja caminhar acompanhado por este peregrino da utopia que, diante das opressões multiformes que maculam o estar-sendo do mundo, via na educação crítica e libertadora o caminho principal para o partejar de um outro mundo possível, “outra realidade menos morta”, onde estivessem abolida esta triste ordem onde reina “tanta mentira, tanta força bruta”.

PARTE 2: A LIBERDADE É NOSSA RESPONSABILIDADE

Os Zapatistas de Chiapas – lá onde “o povo manda e o governo obedece” – tem um belo ensinamento: “A liberdade é como a manhã: alguns a esperam dormindo, porém alguns acordam e caminham na noite para alcançá-la.” Esta reflexão, atribuída ao Subcomandante Marcos (hoje conhecido pelo codinome Galeano), está bem em sintonia com os ensinamentos de Paulo Freire e seus mestres, dentre eles Albert Memmi: para eles, a liberdade não é uma doação ou uma graça, que nos seria simplesmente concedida, mas é fruto de nossa luta coletiva. Mais que isso: a liberdade é nossa responsabilidade.



Evocar o exemplo do Zapatismo na atualidade mexicana, ou do Movimento Sem-Terra no Brasil, é essencial para esta reflexão sobre liberdade e responsabilidade. Tanto os Zapatistas quanto o MST são compostos por pessoas que desejam ser os sujeitos e não os objetos da História, ou seja, são os que atravessam a madrugada despertos tentando conquistar a manhã ao invés de esperá-la dormindo. Sabem da verdade vivida que Freire enunciou quando disse que “ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão”, um dos pensamentos onde melhor se sintetiza o marxismo cristão deste pensador.

Se a educação é tão essencial à transformação social profunda é pois não basta revolucionar as condições econômicas e políticas caso se deixe intocado todo o âmbito do psíquico dos sujeitos: o que é necessário não é apenas romper com um sistema de produção baseado na espoliação injusta dos frutos do trabalho de proletários e camponeses, mas também ajudar os injustiçados a saírem do lodaçal da consciência ingênua, mistificada, fatalista. Não tenho o conhecimento empírico nem fiz a pesquisa de campo necessária para afirmar que o ideal pedagógico Freireano está em ação nas escuelitas dos zapatistas em seus caracoles, mas parece-me que há muitas convergências de utopia e de práxis estabelecendo uma espécie de ponte entre o educador pernambucano e os revolucionários de Chiapas.

Nas escuelitas zapatistas, ou dentro do MST, a Pedagogia do Oprimido que se coloca em prática tem muito a ver com esta ação ética e política de suprema importância: os sujeitos assumindo a responsabilidade pela liberdade. Em algumas das mais belas páginas que escreveu, Albert Memmi fala sobre os oprimidos em uma situação de opressão colonial (os “colonizados”), em contraste com “os cidadãos dos países livres” (ou seja, os sujeitos que vivem na metrópole):

“A mais grave carência sofrida pelo colonizado é a de ser colocado fora da história e fora da cidade. A colonização lhe suprime qualquer possibilidade de participação livre tanto na guerra quanto na paz, de decisão que contribua para o destino do mundo ou para o seu, de responsabilidade histórica e social.

É claro que acontece de os cidadãos dos países livres, tomados de desânimo, concluírem que nada têm a ver com as questões da nação, que sua ação é irrisória, que sua voz não tem alcance, que as eleições são manipuladas. A imprensa e o rádio estão nas mãos de alguns; eles não podem impedir a guerra nem exigir a paz; nem sequer obter dos eleitos por eles respeitados que, uma vez empossados, confirmem a razão pela qual foram enviados ao Parlamento…

Mas logo reconhecem que têm o direito de interferir; o poder potencial, se não eficaz: que estão sendo enganados ou estão cansados, mas não são escravos. São homens livres, momentaneamente vencidos pela astúcia ou entorpecidos pela demagogia. E às vezes, excedidos, ficam subitamente enraivecidos, quebram suas correntes de barbante e perturbam os pequenos cálculos dos políticos. A memória popular guarda uma orgulhosa lembrança dessas periódicas e justas tempestades!

Considerando bem, eles deveriam antes de tudo se culpar por não se revoltarem mais frequentemente; são responsáveis, afinal, por sua própria liberdade, e se, por cansaço ou fraqueza, ou ceticismo, não a usam, merecem punição.

Mas o colonizado não se sente nem responsável nem culpado nem cético; simplesmente fica fora do jogo. De nenhuma maneira é sujeito da história; é claro que sofre o peso dela, com frequência mais cruelmente do que os outros, mas sempre como objeto. Acabou perdendo o hábito de toda participação ativa na história e nem sequer a reivindica mais. Por menos que dure a colonização, perde até mesmo a lembrança da sua liberdade; esquece o quanto ela custa ou não ousa mais pagar o seu preço.

Senão, como explicar que uma guarnição de alguns poucos homens possa sustentar um posto de montanha? Que um punhado de colonizadores frequentemente arrogantes possa viver no meio de uma multidão de colonizados? Os próprios colonizadores se espantam, e é por isso que acusam o colonizado de covardia.” (MEMMI, op cit, p. 133 – 134).

Albert Memmi, filósofo e escritor tunisiano.

Ora, se os oprimidos-colonizados acabam por aderir, ao menos parcialmente, à ideologia da classe dominante, ou seja, dos opressores-colonizadores, então torna-se óbvio que a tarefa revolucionária também consiste em ejetar de dentro dos oprimidos esta inculcada mistificação que serve aos dominadores.

mistificação é o instrumento da opressão: “a ideologia de uma classe dirigente, como se sabe, se faz adotar em larga escala pelas classes dirigidas” (p. 125), como lembra Memmi. A imagem-do-colonizado que o colonialista impõe a seus dominados muitas vezes encontra eco nos próprios dominados, que muitas vezes toleram o racismo e a presunção de superioridade que se manifesta em tudo que o colonialista diz e faz.

A marca do colonizador é sua arrogância, seu apego à noção de sua própria superioridade aos nativos pelo mero fato de ser proveniente da poderosa metrópole. E a marca da ideologia mistificadora que o colonizador propaga consiste, em última análise, na generalização ilegítima que subjaz ao racismo: todos os colonizadores seriam preguiçosos, ladrões em potencial, incapazes de liberdade e condenados à tutela, já que pertencem às raças inferiores etc. Memmi frisa:

“É notável que o racismo faça parte de todos os colonialismos, sob todas as latitudes. Não é uma coincidência: o racismo resume e simboliza a relação fundamental que une colonialista e colonizado. (…) Conjunto de comportamentos, de reflexos aprendidos, exercidos desde a mais tenra infância, fixado, valorizado pela educação, o racismo colonial é tão espontaneamente incorporado aos gestos, às palavras, mesmo as mais banais, que parece constituir uma das estruturas mais sólidas da personalidade colonialista… Ora, a análise da atitude racista revela 3 elementos importantes:

1 – Descobrir e pôr em evidências as diferenças entre colonizador e colonizado;
2 – Valorizar essas diferenças em benefício do colonizador e em detrimento do colonizado;
3 – Levar essas diferenças ao absoluto afirmando que são definitivas e agindo para que passem a sê-lo…

Longe de buscar o que poderia atenuar seu desenraizamento, aproximá-lo do colonizado e contribuir para a fundação de uma cidade comum, o colonialista, ao contrário, se apóia em tudo o que o separa dele. E nessas diferenças, sempre infamantes para o colonizado e gloriosas para si, encontra a justificação de sua recusa… É preciso impedir que se tape o fosso.” (MEMMI, p. 108)

A ideologia do colonialista, marcada pelo racismo, pela presunção de superioridade, pelo rebaixamento e desumanização do outro, por ação dos aparatos de transmissão ideológica (como a escola, a imprensa, a igreja etc.) acaba por dominar em parte os corações e mentes dos colonizados. Daí a importância crucial de uma educação descolonizadora, que ensine os sujeitos a se empoderarem como sujeitos históricos em pé de igualdade com aqueles que, no topo de pirâmides sociais e de dentro de palácios governamentais ou mercadológicos, pretendem rebaixá-los, oprimi-los, escravizá-los.

No século 16, o jovem Étienne de la Boétie, o amigo de Michel de Montaigne, em seu livro Sobre a Servidão Voluntária, já se perguntava pelo segredo do predomínio dos tiranos diante de uma massa tão mais numerosa do que ele e sua corte de aliados. Mas só o número não basta: os oprimidos são numericamente superiores, mas boa parte deles está “nas garras” das mistificações produzidas pela ideologia dominante – patriarcal, teocrática, bancária etc.

Por isso, além de combaterem com penitenciárias e massacres, com exílios e expurgos, todos aqueles movimentos sociais organizados através dos quais os oprimidos buscam partejar um mundo melhor para todos, os opressores /  colonialista / dominadores preferem reinar sempre exibindo o espetáculo da força brutal com a qual podem esmagar qualquer revolta que ouse se manifestar. Portanto, não é justo que acusem os oprimidos de covardes, que digam dos dirigidos / dominados que não tem apreço pela liberdade nem coragem para defender seu direito a ela. Memmi, escrevendo em 1957, quando os aparatos de repressão ainda não eram tão hightech quanto hoje, lembra das violências destravadas pelos opressores contra qualquer levante que conteste o status quo: caso sintam-se ameaçadas, as classes dominantes e dirigentes rapidamente convocam auxílio:

“Todos os recursos da técnica, telefone, telegrama, avião colocariam à sua disposição, em alguns minutos, terríveis meios de defesa e destruição. Para um colonizador morto, centenas, milhares de colonizados foram ou serão exterminados. A experiência foi renovada – talvez provocada – um número suficiente de vezes para ter convencido o colonizado da inevitável e terrível sanção. Tudo foi feito para apagar nele a coragem de morrer e de enfrentar a visão do sangue.

Torna-se muito claro que, se se trata de fato de uma carência, nascida de uma situação e da vontade do colonizador, está limitada a apenas isso. Não há como associá-la a alguma impotência congênita em assumir a história. A própria dificuldade do condicionamento negativo, a obstinada severidade das leis já o demonstram… É por isso que a experiência da última guerra foi tão decisiva. Ela não apenas, como se disse, ensinou imprudentemente aos colonizados a técnica da guerrilha. Lembrou-lhes, sugeriu-lhes a possibilidade de um comportamento agressivo e livre.

Os governos europeus que, depois dessa guerra, proibiram a projeção, nas salas de cinema coloniais, de filmes como A Batalha dos Trilhos (La Bataille du Rail, de René Clement, 1945)tinham razão, de seu ponto de vista. Os westerns americanos, os filmes de gângster, os anúncios de propaganda de guerra já mostravam, objetaram-lhes, a maneira de usar um revólver ou uma metralhadora. Mas a significação dos filme de resistência é completamente diferente: alguns oprimidos, muito pouco ou nada armados, ousavam atacar seus opressores.” (MEMMI, p. 135)

Nenhuma revolução possível, pois, sem educação libertadora, e esta é necessariamente anti-racista e deve seguir ensinamentos delineados por pensadoras magistrais como Audre Lorde, Angela Davis e Bell Hooks. A leitura de Freire, Fanon, Memmi, dentre outros, conduz ao aprendizado de que os oprimidos, em sua luta coletiva por libertação, precisam conquistar os meios para vencer também dentro de si a presença do opressor. Este “tirano interior”, que Freud chamou de “super-ego” e que consistiria numa espécie de interiorização da autoridade externa, precisa ser derrubado tanto quanto os tiranos exteriores. “O colonizado hesita, de fato, antes de retomar seu destino em suas próprias mãos”, escreve Memmi (p. 136).

É função do educador comprometido com a superação das sociedades-de-opressão fornecer todo seu suor e toda as sinapses de seu cérebro, toda a arte de suas mãos e pernas, todo o sangue de suas sístoles e diástoles, para o partejar comum de um mundo onde possamos ser-mais, não mais cindidos entre exploradores e espoliados, mas sim camaradas humanizando-se no vitalício aprendizado da existência conjunta que se põe, como horizonte comum, a manhã da liberdade, da fraternidade, da justiça.

Esta liberdade jamais se fará caso aguardemos dormindo pela chegada da manhã. Temos que caminhar juntos na madrugada sabendo que a liberdade, sem as ações daqueles que a amam, não é nada senão um fantasma ineficaz ou ideal inútil evocado em poemas que ninguém lê. A liberdade necessita que a encarnemos, o que é missão para aqueles que estão acordados, mesmo nas madrugadas de breu mais intenso. Despertos para a sua passageira presença na Terra como sujeitos de uma História que os transcende, sabemos que a liberdade não é só o mais precioso dos bens a ser desejado. Sabemos que seu advento e sua consumação é nossa responsabilidade.

Eduardo Carli de Moraes 
19 de Junho de 2019

ASSISTA TAMBÉM:

VÍDEOS: “EI PROFESSOR, VOCÊ É DOUTRINADOR?”, palestra com as professoras da UFG Dra. Agustina Rosa Echeverría e Dra. Maria Margarida Machado, em evento realizado no anfiteatro da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás no dia 7 de junho de 2019.

1a parte, Dra. Echeverría:

2a parte, Dra. Machado:

Filmagem: A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com)

LEIA TAMBÉM:

“O Medo à Liberdade & A Servidão Voluntária” ● Sobre o pensamento de Étienne De La Boétie ● Café filosófico com Leandro Karnal ● #Livros #Filosofia #História #MichelDeMontaigne

Discurso sobre a servidão voluntária

Autor:
 Étienne de la Boétie (1530 – 1563)
Prefácio: Leandro Karnal
Tradutora: Evelyn Tesche

“Bem-vindo à aventura fascinante de enfrentar o fantasma da liberdade. O livro diante de você dialoga com este sonho e é um marco no pensamento ocidental. Aproveite e reflita. Para Étienne, só existe uma prisão possível: aquela que você mesmo construiu e cuja porta, por estranho deleite, você fechou. Saiba sempre que toda servidão é voluntária. Sua liberdade é sua, e você pode entregá-la a qualquer um que desejar. Os tiranos agradecem.” – LEANDRO KARNAL, em prefácio para esta edição

Sinopse: Marco do pensamento humanista, este pequeno tratado foi escrito em 1549, quando Étienne de la Boétie contava apenas 18 anos. O texto defende que é possível resistir à opressão de forma pacífica no momento em que o povo decide não mais se sujeitar à tirania. O autor antecipa em séculos fundamentos teóricos que estarão presentes em, por exemplo, Desobediência civil, de Henry David Thoreau, na luta de Gandhi pela independência da Índia, no movimento antissegregação de Luther King nos Estados Unidos e também nas manifestações populares contra ditaduras ao redor do mundo. A presente edição traz, ainda, introdução do editor Paul Bonnefon, um dos desbravadores da obra de La Boétie e responsável pela edição francesa de 1922, que serviu de base para esta tradução. Além disso, o prefácio, escrito pelo historiador e professor da Unicamp Leandro Karnal, situa o tratado em seu contexto de origem e ao mesmo tempo em relação ao momento político atual. Leitura obrigatória para os dias de hoje, em que todo cuidado é pouco e todo esclarecimento histórico se faz fundamental.

Sobre o autor: Étienne de la Boétie (1530-1563), filósofo francês, teve grande parte dos seus escritos divulgada postumamente a partir dos manuscritos deixados ao amigo Michel de Montaigne. O teor humanista e libertário de seus escritos o coloca entre os precursores das ideias anarquistas. Sua obra mais conhecida é o Discurso sobre a servidão voluntária em que o autor questiona a inclinação dos povos a se deixar dominar por tiranos e afirma que o caminho para a liberdade é a rebelião voluntária e pacífica contra a tirania.

Sobre a tradutora: Evelyn Tesche é bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua na tradução de obras francesas, principalmente nas áreas de Filosofia, de Literatura e de Ciências Humanas.

Sobre o autor do prefácio: Leandro Karnal é historiador, doutor em História social pela USP e professor na UNICAMP.  É convidado de programas como o Jornal da Cultura e Café Filosófico. Escreveu em autoria ou co-autoria mais de dez livros, alguns dos quais estão entre os mais vendidos do Brasil, como “Verdades e Mentiras” ; “Felicidade ou Morte”; “Pecar e Perdoar”; “Detração – breve ensaio sobre o maldizer”; “História dos Estados Unidos “ e “Conversas com um jovem professor”. É membro do conselho editorial de muitas revistas científicas do país. É colunista fixo do jornal Estadão e tem participações semanais nas rádios e canais de TV do grupo Bandeirantes. Seus vídeos e frases circulam pela internet com grande popularidade.

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A CORAGEM DA VERDADE: A filosofia como aposta no risco


A CORAGEM DA VERDADE:
A filosofia como aposta no risco

Uma das obras mais fascinantes de Foucault chama-se A Coragem da Verdade (Le Courage de La Verité) e talvez possa servir de emblema de toda sua vida. Em 1984, ano de sua morte, Foucault explora a fundo em suas aulas a noção de parresía, palavra grega que poderia ser traduzida com esta expressão poética – a coragem da verdade – que o autor de Vigiar e Punir usa para batizar este derradeiro fruto de seus hercúleos labores do espírito.

A verdade, longe de ser apenas o alvo visado por uma investigação intelectual, longe de ser apenas aquilo que a razão do homem visa descobrir, é inserida por Foucault no âmbito da ética, logo no terreno da vontade e da ação: a verdade é algo que deve determinar nosso comportamento, forjar nosso ethos, definir nossa prática, e não há sabedoria (sophia) possível sem que tenha a verdade como norte. Porém nada disso é fácil ou simples pois o serviço da verdade é uma coisa perigosa. É perigoso perseguir a verdade, e mais perigoso ainda ousar expressá-la aos outros. Vejamos porquê.

A parresía, parece-me, será descrita por Foucault tanto como um direito quanto como virtude. Na obra teatral de Eurípides, ensina Foucault, o termo parresía “aparece designando o direito de falar, o direito de tomar publicamente a palavra, de dizer a sua palavra, de exprimir sua opinião numa ordem de coisas que interessam a cidade.” (8 de Fevereiro de 1984, p. 31) Podemos dizer, provisoriamente, que parresía traduz-se por “liberdade de expressão”, ou seja, direito de dizer o que acreditamos ser verdadeiro.

Em uma peça como As Fenícias, por exemplo, podemos aprender o que significa parresía através da experiência de exilado de Polinice, um dos quatro filhos nascidos do casamento amaldiçoado de Édipo e Jocasta. A tragédia do Rei Édipo, originalmente uma trilogia escrita por Sófocles, também foi tema para Eurípides e este nos apresenta vários impressionantes quadros dos sofrimentos horríveis da estirpe infeliz nascida do descomunal crime de Édipo (o assassinato do pai seguido pelo matrimônio com a mãe).

A parresía  é aquilo que Polinices perde ao ir para o exílio, é aquilo de que ele fica privado ao abandonar o seu torrão natal e perder o vínculo com o território onde era reconhecido como cidadão, integrante da pólis: “no exílio, não se tem o direito de falar, somos escravos dos senhores e não podemos nem mesmo nos opor à loucura deles.” (pg. 32)

Ou seja, se o exílio é difícil para Polinices suportar, não é apenas pois no exílio somos estrangeiros numa terra estranha, strangers in a strange land, mas porque ali estamos privados de qualquer voz e vez na determinação dos destinos coletivos, estamos excluídos de todos os processos de participação, de deliberação, de decisão.

Perder a parresía é equivalente a perder alguns dos direitos políticos mais elementares. Quando não temos direito à fala pública, quando não há espaço para a expressão daquilo que julgamos ser a verdade, a política naufraga. E neste vácuo quem arrisca-se a vencer é a guerra, a violência, a tirania: o despotismo da opinião ao invés da democratização do diálogo.

Antígona enterra o corpo de seu irmão Polinice

É imperativo que a pólis justa extenda a todos o direito à parresia, ou seja, à fala pública, àquilo que poderíamos chamar de participação social ou exercício da cidadania. Trata-se, afinal de contas, de defender a liberdade de expressão, de manifestação, de debate franco com nossos concidadãos, algo consubstancial tanto ao ideal democrático quanto à vida filosófica. Talvez por isso Cornelius Castoriadis afirme que democracia e filosofia são como carne-e-osso, dois elementos inseparáveis e consubstanciais, um sendo incompreensível sem o outro, até mesmo em virtude de sua emergência histórica conjunta, simultânea. (Cf A Instituição Imaginária da Sociedade)

Democracia e filosofia, ademais, estão unidas pela parresía. Trata-se de apostar numa coletividade onde a diversidade de opiniões possa manifestar-se na arena pública, para ali ser debatida, com posições e opiniões conflitantes sendo resolvidas em assembléias, pela via do voto etc.

É inimaginável uma república democrática – ou seja, um arranjo político onde a voz do povo, em sua diversidade de cores e opiniões, possa manifestar-se e debater sobre os melhores caminhos para a gestão do bem público, da res publica –  onde a parresía não seja direito e valor. A coragem da verdade é indispensável à política – e digo mais: algo que nenhuma utopia política pode negligenciar.

Para além desta dimensão de um direito cívico, com frequência desrespeitado ou não concedido, a parresía também é um imperativo ético, uma virtude que deveríamos nos esforçar por praticar. É próxima daquilo que André Comte-Sponville analisa no Pequeno Tratado das Grandes Virtudes em seu capítulo sobre “a boa fé” (a veracidade), texto em que ele esclarece muito bem este sentido de parresía como virtude daqueles quem praticam a fala franca, sincera, autêntica.

A fala franca é ao mesmo tempo a fala justa: falar a verdade é prestar tributo de justiça àquilo que sentimos e pensamos de fato. Uma linda expressão musical disto está também na canção, tão maravilhosamente entoada por Ceumar, onde “justo é o equilíbrio perfeito entre o dito e o feito, entre o ato e o discurso”:

O sujeito dotado de parresía é aquele que busca ser sempre veraz; não conta nunca uma mentira deliberada; não busca ludibriar os outros com falsas lisonjas ou argumentos que sabe serem falaciosos; trata-se do princípio do não enganar os outros para que não sejamos por eles enganados, erguido a uma espécie de patamar ético fundacional, fundamental.

Foucault, no fim de sua vida, ecoando e desenvolvendo os temas que lhe ocuparam durante os três volumes da História da Sexualidade, interessa-se pelas multiformes encarnações, através da História, de um ideal ético baseado na coragem da verdade e no cuidado de si.

Mas por que descrever a verdade como algo que exige nossa coragem? Alguns argumentariam que a verdade poderia ser simplesmente um alvo para a razão, aquilo que o lógos persegue. Por que Foucault esforça-se tanto por transformar um problema que poderíamos restringir ao âmbito da ciência, ou que poderíamos manter na “gaveta” da epistemologia, em algo tão visceralmente conectado à ética?

A verdade, poderíamos dizer bem toscamente, é desvelada por Foucault como um problema não só para a cabeça, mas também para o coração. O que a verdade exige de nós é coragem, além de inteligência. Não basta ser esperto, para encontrar a verdade é preciso ousar sair à sua caça, derrubar as barreiras que se interpõem no nosso caminho para ela, inclusive aquelas cegueiras voluntárias através das quais às vezes preferimos não enxergar certas verdades desconfortáveis (“mentir pra si mesmo”, cantava Renato Russo, “é sempre a pior mentira”).

Confesso que tudo isso exerce um imenso fascínio sobre este jovem professor de filosofia, tão ansioso em despertar, durante as aulas, um senso da aventura excitante e perigosa que a filosofia pode ser! Pois uma filosofia que recusa o risco e o perigo é uma pseudo-filosofia e uma fanfarronada de covardes. Um filósofo que não tem a coragem da verdade não é digno do nome de amigo da sabedoria.

Por que a busca da verdade pode ser perigosa? Primeiro, é óbvio, pois exige que recusemos o conforto de repousar a-criticamente no divã estofado das opiniões recebidas, dos preconceitos inculcados, das crenças aprendidas.

A aventura do pensamento exige que lancemos aos mares tempestuosos nossos barcos, levantando âncora do porto dos saberes reconhecidos. A mera submissão à ideologia hegemônica – um dizer-sim de ovelha àquilo que prega o pastor ao seu rebanho, como se fosse a verdade absoluta e indiscutível – jamais fará um filósofo digno deste nome.

Filosofar envolve necessariamente a contestação de ideologias vigentes, o exame crítico de idéias que são vendidas como verdadeiras, mas que talvez sejam embustes. A crença cega e a obediência acéfala estão nas antípodas da atitude filosófica.

Porém, não se pode excluir o filósofo, jamais, de seu contexto sócio-histórico, de seu enraizamento político. A coragem da verdade não é apenas questão de heroísmo pessoal, mas de possibilidades concretas. Não se trata de elogiar o herói solitário que ousa descobrir verdades e propô-las em alto e bom som; trata-se de pensar em uma sociedade que permita a presença da parresía como direito cívico fundamental e como virtude reconhecida como essencial ao bem comum.

Vejamos o caso de Atenas, o berço da democracia ocidental: dela diz Foucault que, “orgulhosa das suas instituições, pretendia ser a cidade na qual o direito de falar, de tomar a palavra, de dizer a verdade, e a possibilidade de aceitar a coragem desse dizer-a-verdade eram efetivamente realizados melhor que em outros lugares.” (p. 33)

Ora, Atenas vende-se como pólis da parresía, como sociedade que permite e incentiva a fala franca. Porém, a mesma Atenas, tão celebrada como berço da democracia, exclui da cidadania as mulheres, os escravizados, os estrangeiros (os metecos) – são os inumeráveis, pois muito numerosos, párias da parresía. A mesma Atenas irá condenar o filósofo Sócrates à morte, legando à posteridade um emblema imorredouro do quão perigoso pode ser uma vida filosófica “falastrona”.

O trágico desenlace da vida de Sócrates – sua condenação à morte em Atenas – é um dos problemas mais complexos na história da filosofia e Foucault encara-o em seus últimos dias com sua extraordinária ousadia investigatória. Nestes derradeiros cursos que ofertará no Collège de France, onde lecionava deste 1971, Foucault  demonstra toda sua fascinação diante do “ciclo da morte de Sócrates”. No ano em que morreria, Foucault focava boa parte de seus esforços intelectuais na decifração de um dos maiores enigmas da história da filosofia: as últimas palavras de Sócrates.

“A Morte de Sócrates”, por Jacques Louis David.

Antes de morrer, Sócrates solicita a seu discípulo Críton que sacrifique um galo em homenagem ao deus Esculápio. Por que diabos, após engolir a cicuta, ele teria se despedido dos vivos de modo tão bizarro, tão inquietante, tão difícil de decifrar?

Muitos comentadores, entre eles Nietzsche, irão dizer que Sócrates revela-se aí como alguém que concebia a vida como uma doença. O veneno viria para salvá-lo da doença que é viver. Ou seja, Sócrates moribundo reitera para seus discípulos, como o Fédon de Platão deixa explícito, que é um homem de fé. A morte não passa, em sua visão, de uma separação entre alma e corpo, e depois da morte a alma continuaria sua existência em outro plano.

Nietzsche destacará muitas vezes que Sócrates morre dizendo aos seus discípulos: não descuidem de pagar a dívida com Esculápio, o deus da medicina, pois com esta cicuta estou me curando desta doença terrível que é ter uma alma atada a um corpo. Em seu delírio fatal, Sócrates acredita que o veneno, no fundo, lhe fará muito bem. Ele acredita que o veneno mortal lhe fará bem, mas não por causa de um argumento niilista – “o nada é melhor que a vida”. Sócrates não é Cioran e tampouco é um budista. Seu argumento é proto-cristão: morrer pode ser um bem pois a morte virá libertar a alma de seu cativeiro-corporal.

O que é impressionante na condenação de Sócrates em Atenas é que isto parece gerar o colapso completo da noção de que esta cidade-Estado grega é o berço esplêndido da democracia e da liberdade de expressão. O crime cometido por Sócrates, afinal, não pode ser descrito como nenhum derramamento de sangue, nenhuma violência psicopata: Sócrates não matou ninguém, não é mandante ou executor de nenhum homicídio, tampouco é culpado de crimes contra a propriedade privada alheia.

Não sendo nem assassino, nem ladrão, nem estuprador, nem malfeitor na gestão pública, torna-se misteriosa a razão que fez Atenas condená-lo à pena mais severa que existe, a pena capital. A acusação de que ele é ímpio e corruptor de menores leva-nos à suspeita de que Atenas tenha, em Sócrates, executado um preso político, alguém que estava sendo punido principalmente por suas opiniões e práticas, por seu ethos.

Ora, na aula de 15 de fevereiro de 1984, Michel Foucault escancara suas opiniões sobre a posição emblemática de Sócrates na história do pensamento:

“Sócrates é aquele que prefere enfrentar a morte a renunciar a dizer a verdade, mas não exerce esse dizer-a-verdade na tribuna, na Assembleia, diante do povo, dizendo sem disfarces o que pensa. Sócrates é aquele que tem a coragem de dizer a verdade, que aceita se arriscar à morte para dizer a verdade, mas praticando a prova das almas no jogo da interrogação irônica.” (p. 63)

São frases em que Foucault reconhece em Sócrates uma espécie de ativista da parresía, mas alguém que preferiu exerceu seu direito à fala franca não no âmbito da política institucional, mas no calor dos diálogos cotidianos. Eu arriscaria até um paralelo com nossa atualidade: se morasse em Brasília, em 2017, ao invés da Atenas do século IV a.C., Sócrates não seria um político profissional, um senador engravatado, que fala dentro do Congresso; seria sim um senhor impertinente que fica vagando pela cidade, papeando com os transeuntes na Esplanada dos Ministérios, sempre inquisitivo e irônico, botando as crenças dos sabichões em maus lençóis com uma avalanche de perguntas.

Sócrates pratica algo que Foucault reconhece como inovação política: uma vida filosófica, que tem valor pedagógico, mas que se dá em interação com o povo; Sócrates ensina, de fato, mas é através de uma pedagogia da pergunta, cujo motor é o diálogo, processo sem fim de exame das opiniões, norteado pelo desejo de chegar à verdade, à alethéia, e usando como meio ou faculdade o lógos, a razão.

Obviamente que Sócrates não é a-político, não recusa totalmente a política, mas sim propõe um outro modo de agir politicamente, bem diferente, por exemplo, da atuação de Sólon. Se há sábios que agem no âmbito do Estado instituído, como Sólon, há também sábios que preferem agir no âmbito da sociedade mais ampla, como fizeram não só Sócrates, mas também muitos dos chamados cínicos, a começar pelo lendário Diógenes. (Saiba mais em A Razão Inadequada)

Diógenes e Alexandre, por Edwin Henry.

Conta a lenda, lembremos, que um dia Diógenes, dormindo em seu barril, totalmente despreocupado em relação aos seus trajes (ou falta deles), andrajoso e negligente com sua aparência a ponto de ter o visual de um velho mendigo pulguento, recebe a visita do super-poderoso imperador Alexandre, o Grande. Alexandre aparece ricamente paramentado, bem-vestido e bem perfumado, acompanhado pelos soldados de sua guarda pessoal, na pompa de um proto-metrosexual que caminha sobre o mundo na empáfia de quem foi educado por ninguém menos que Aristóteles. O todo-poderosismo de Alexandre é logo reduzido a escombros por Diógenes. Este, quando o imperador lhe oferece um cargo político importante, teria respondido: tudo o que quero, senhor, é que você saia da frente do meu sol.

Há algo de similar na atitude de Sócrates, talvez: ele não quis ser, em Atenas, um Sólon ou um Péricles. Porém, não se trata, nem no caso de Sócrates, nem naquele de Diógenes, de uma recusa completa da política, mas sim de modos diferentes de agir politicamente. Sócrates não quer escrever livros complexos e ser lido apenas pela minoria minúscula de aristocratas letrados; pelo contrário, Sócrates é um filósofo da fala, um tagarela incansável, um questionador oral que age na cidade como a também lendária “mosca” que irrita os cidadãos, picando-os com o ferrão de sua crítica e assim acordando-os para a tarefa mais importante da vida: o cuidado de si, compreendido como indissoluvelmente ligado a uma ética ascética, onde a busca da verdade e a prática das virtudes devem ter primazia sobre a ânsia de ir atrás dos objetos de nossos desejos carnais.

Não sejamos ingênuos: Sócrates pode até gabar-se de sua capacidade inaudita de reconhecer sua própria ignorância. Mas Sócrates é um pseudo-cético e não é possível levar tão a sério o seu famoso “só sei que nada sei”. Acredito que podemos ler os diálogos platônicos que descrevem o fim da vida de Sócrates como evidências de uma série de crenças dogmáticas que este filósofo nutria na época em que Atenas o condena à cicuta. Reler, na sequência, a Apologia, o Críton e o Fédon revela um homem de uma empáfia tão imoderada, de uma convicção tamanha em certos artigos-de-fé, que mais parece um precursor de Jesus Cristo do que um livre-pensador célebre por seu ceticismo.

O Fédon, por exemplo, traz Sócrates argumentando em prol da imortalidade da alma em um modo de parresía que evoca não um cético fanfarrão e lúdico como Diógenes, mas sim algo mais solene, pomposo e autoritário – como esta imagem de São Paulo pregando, tal como retratado pelo pincel de Rafael:

Podemos ficar estarrecidos com a dificuldade em compreender como Atenas, cidade que se gaba de ser “democrática”, condena à morte um filósofo, como Sócrates, somente por dar expressão às suas opiniões, ou seja, por praticar aquela parresía que parece consubstancial à própria democracia. Sócrates, porém, não é um democrata; o fato de dialogar cotidianamente com pessoas de vários estratos sociais não significa que ele defenda a democracia como melhor sistema político.

Sócrates está em conflito com Atenas na querela sobre a democracia; Sócrates participa, talvez, de um movimento de contestação da democracia que em A República torna-se explícito: a utopia, ali, consiste no governo de um só, o filósofo-rei. Sócrates, afinal de contas, era um… monarquista! Acreditava que o rei deveria ser o mais sábio, e que ele, Sócrates, um dia apontado pelo próprio deus Apolo, através do oráculo de Delfos, como o mais sábio dos homens, era nada menos que o modelo deste monarca do porvir, que iria gerir a pólis ideal.

Se Sócrates é “ímpio”, corruptor da juventude, cidadão de atitudes inaceitáveis, segundo o julgamento de Atenas, talvez seja pelo altíssimo conceito de si que ele nutre e que o faz merecedor de uma espécie de coroa do narcisismo, de cúmulo da arrogância: ele crê-se apontado pelo deus Apolo para servir como benefício à humanidade…

O “sei que nada sei” aparece assim como mera máscara de modéstia. Este homem acreditava-se eleito por Apolo para desenvolver na terra uma tarefa divina, um encargo dos céus: não seria difícil enxergar aí alguns dos sintomas que caracterizam, através dos tempos, a figura do fanático religioso. Guiado por um enigmático daimon interior, que hoje chamaríamos de “voz da consciência”, mas que os primeiros cristãos interpretaram como manifestação do Espírito Santo, Sócrates revela-se, em seus últimos dias, muito mais próximo de um padre do que de um bufão. Muito mais próximo de Pitágoras e sua seita de crentes na transmigração de almas do que de Diógenes e dos cínicos.

Sócrates, como bem veria Nietzsche, mostra-se como um dogmático pregador de um governo baseado na monarquia meritocrática: o filósofo-rei é quem merece reinar sozinho. Revela-se também dogmático em matéria de religião, afirmando a imortalidade da alma e sua separabilidade do corpo – é isto que permite, como relatado no Fédon, sua morte serena. O filósofo morre com a morfina da fé correndo em suas veias para reconfortá-lo. Morre sonhando que acordará curado da doença que é ter um corpo, que levantará todinho-alma no Olimpo, que em breve estará na companhia de Esopo, tecendo fábulas em sua morada celeste…

Se Sócrates é um exemplo tão excelente do que significa parresía, é pois seu destino demonstra todo o perigo e toda a aventura da filosofia como abertura ao risco de dizer em público aquilo que acreditamos ser a verdade.

Filosofia sem debate, sem diálogo, não é filosofia; monólogo solipsista pode até ter seu interesse no âmbito da arte ou da literatura, da filosofia e da psiquiatra, mas filosofia é essencialmente interlocução, engajamento social, debate público, direito à expressão, dever de escuta do outro etc. Sócrates pagou com sua própria vida o ter-se lançado aos mares tempestuosos da parresía. Ensina-nos, por seu exemplo, que a política é o âmbito do conflito, do antagonismo, da discordância, mas que é preferível à guerra, ou seja, à decisão na base da força física ou da técnica militar. Política é gerir os conflitos pela via do diálogo, da deliberação, do sopesamento sábio das razões em discórdia etc.

Sócrates, longe de neutro e apolítico, longe de cético e cínico, não encarna uma atitude realmente condizente com a frase mais famosa que lhe atribuem: “sei que nada sei”. Pois Sócrates pretendia saber muita coisa sobre o melhor modo de nos conduzirmos na vida. Sócrates acreditava piamente em certas verdades éticas e religiosas que ele propugnava: crê, sobretudo, na excelência da

“vida filosófica, a vida pura, a vida que não é perturbada por nenhuma paixão, nenhum desejo, nenhum apetite não refreado, nenhuma opinião falsa. Ele diz que a vida filosófica consiste em ‘evitar com cuidado a sociedade e o comércio do corpo, salvo em caso de força maior, sem nos deixar contaminar por sua natureza, mas, ao contrário, permanecendo puros de seu contato até a hora em que a própria divindade nos libertar.'” (Foucault, p. 88)

Sócrates aparece-nos então, como apareceu também para Nietzsche ou para Oswald de Andrade, como dogmático pregador do ideal ascético, avô de todos os puritanismos religiosos que se seguiriam, “professor” de austeridade e de repressão sexual, patriarca de uma visão de mundo falocêntrica e logocêntrica, anti-democrata radical que vê a panacéia na monarquia do filósofo-tirano.

Que ele tenha talhado o ideal do filósofo-rei partindo de seu próprio exemplo – ou que Platão o tenha realizado a despeito de seu mestre – importa pouco, o fato é que trata-se de um monumento do narcisismo humano, um caso limite de húbris ou de exagero no auto-enaltecimento. Sócrates quer que o governo seja monárquico e que o governante supremo – o soberano – seja caracterizado por seu perfeito ascetismo, por sua pureza moral, por sua capacidade de ser todo espírito e de renegar toda a carne.

A tirania do puritanismo e do ascetismo decorre do ideal político socrático com tal clareza que não faltarão aqueles que verão em A República, texto de Platão de nome tão enganador, nada menos que o advento primeiro de uma utopia totalitária. Tirano solitário em seu trono de pureza, o filósofo-rei proclama seu próprio exemplo de ascetismo e devoção ao cultivo da alma imortal como verdade suprema. Expulsemos da pólis os artistas que ousarem discordar! Lançemos às chamas os poemas e as canções que ousarem propor uma estilo de vida mais hedonista, que busquem propor a redenção dos corpos e a beleza da carne

! As fogueiras da Inquisição nunca estão muito longe das propostas políticas de Sócrates. É o que tentarei mostrar no futuro, dando continuidade a estas reflexões, tomando como base a crítica absolutamente devastadora e extremamente atual que André Comte Sponville efetuou da filosofia política do socratismo-platonismo nos dois volumes de O Mito de Ícaro – O Tratado do Desespero e da Beatitude Viver.

Que Sócrates tivesse todo o direito de falar com franqueza sobre suas idéias e crenças, não há dúvida: sem parresía, a sociedade acaba segregada entre os que tem voz e os que são silenciados, situação análoga e simultânea à coletividade cindida entre dominadores e oprimidos. Sócrates assumiu o risco da fala franca, exemplificou a coragem da verdade, porém a cartilha dogmática de seus últimos dias precisa ser radicalmente questionada e desconstruída.

É um dentre os inúmeros méritos de Foucault ter, na esteira do Nieztsche, problematizado tão a fundo a questão da vontade de verdade e da coragem de verdade, que alguns chegam ao extremo – ao qual não me arrisco – de dizer, como Oswaldo Giacóia, que vige no pensamento foucaultiano a noção de uma “inexistência da verdade”.

Questão imensa, a ser encarada em outra ocasião. Minha sensação – muito mais do que uma conclusão racional e plenamente fundamentada – é que Foucault não é um cético tão radical assim, um relativista total, um daqueles que bate o martelo e diz: “não há verdades, só interpretações”.

Seus imensos esforços intelectuais não parecem se explicar senão por um interesse infatigável e uma curiosidade pluriforme que Foucault tinha pela história do pensamento e pela variabilidade impressionante dos modos de perseguir e dizer a verdade, além é claro do fascínio que dele emana diante da pluralidade das maneiras de viver, cuidar de si e relacionar-se com os outros.

Falar da impossibilidade de chegarmos um dia à Verdade é uma coisa; reduzir o verdadeiro à mera inexistência é outra. Foucault, se tanto nos fascina, inspira, informa, provoca e encanta, só pode ser, proclama meu coração, pois é ele mesmo um emblema vivo do que significa devotar a existência à coragem da verdade.

Eduardo Carli de Moraes
Maio de 2017

LEIA TAMBÉM: VOMITANDO A VERDADE – DIÓGENES, O CÍNICO

TODAS AS CITAÇÕES:

FOUCAULT, Michel. A Coragem da Verdade. Curso no Collège de France (1983-1984). Volume II de O Governo de Si e dos Outros. Ed. Martins Fontes, 2014, trad. Eduardo Brandão.

LITERATURA FUNDAMENTAL – SÉRIE DE PROGRAMAS DA TV UNIVESP (30 MIN. CADA) – Baudelaire, Camus, Conrad, Dostoiévski, Homero, Montaigne, Platão, Sartre, T.S. Eliot etc.

literatura-fundamental-univesp

Uma seleção de alguns problemas da série Literatura Fundamental da UNIVESP, na íntegra:

* * * * * *


“O BANQUETE”, de Platão
por ADRIANO RIBEIRO MACHADO

* * * * *


“A REPÚBLICA”, de Platão
por ROBERTO BOLZANI

* * * * * *


“AS METAMORFOSES” de OVÍDIO (43 a.C.)
por ALEXANDRE HASEGAWA

* * * * *


“O CORAÇÃO DAS TREVAS”, de Joseph Conrad
por MARCOS CÉSAR SOARES

* * * * *


“A TERRA DESOLADA”, de T.S. Eliot
por VIVIANA BOSI

* * * * *


“OS CAMINHOS DA LIBERDADE” (Trilogia), de Jean Paul Sartre
por FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

* * * * *


“OS ENSAIOS”, de Michel de Montaigne
por SÉRGIO XAVIER GOMES ARAÚJO

* * * * *


“ILÍADA”, de Homero
por ANDRÉ MALTA

* * * * *


“ODISSÉIA”, de Homero
por ANDRÉ MALTA

* * * * *


“AS FLORES DO MAL”, de Baudelaire
por ÁLVARO FALEIRO

* * * * *


“CRIME E CASTIGO”, de Dostoiévski
por ELENA VÁSSINA

* * * * *

“O ESTRANGEIRO”, de Albert Camus
por CLÁUDIA AMIGO PINO

Dançando à Beira do Abismo: Nietzsche segundo Stefan Zweig

Nietzsche2

Some remarks upon...

nietzsche zweig
STEFAN ZWEIG (1881-1942),
“The Struggle With The Demon – Kleist, Hölderlin and Nietzsche”
Introduction and Translation by Will Stone.
Hesperus Press, London, 2013.


stefan-zweig-nietzsche-le-combat-avec-le-demon_2254061-MArticle by Eduardo Carli de Moraes:

PART I. A DANGEROUS LIFE

Maybe the thrill in our veins when we read Nietzsche derives from the sense of danger that his words exhale: he’s inviting us to dance near the abyss, and without safety nets. Nietzsche desires life to be risky and full of surprises, and is furious against all tendencies of sheepish conformity. A true lover of art and poetry, Nietzsche was both a great thinker and a great artist – one who claimed that “we have art so that we might not die of the truth.” For him, an authentic “free spirit” doesn’t shy away from confrontation with the riddles of existence, even the most scary and painful ones: if you want knowledge, you’ll have to face the monsters of the abyss, and let the abyss stare into you!

As Karl Jaspers wrote on his awesome book about Nietzsche, the philosopher worthy of his task is a figure similar to Theseus: he enters boldily into the labyrinth, willing to be face the danger of being eaten by Minotaurs. In Stefan Zweig’s writings on Nietzsche we feel the emphasis falling upon the dangerousness of Nietzsche life and fate. In his introduction, Will Stone recalls how much Zweig’s book focuses on “the decisive abandonment of security by Nietzsche and his propensity to take an ever more self-destructive tightrope walk, where all safety nets are strictly forbidden.” (Will Stone, Introduction, XIX)

“Voluntarily, in all lucidity, renouncing a secure existence, Nietzsche constructs his unconventional life with the most profound tragic instinct, defying the gods with unrivalled courage, to experience himself the highest degree of danger in which man can live.” (Zweig, p. 6)

Few philosophy books can be said to be as exciting as a roller-coaster ride or a bungee-jump. I believe Nietzsche’s impact on posterity has to do, partly, with those adrenaline shots we receive from his writings. We can re-read his words many times because they provoke us, entice us, marvel us, enfuriate us – but hardly ever leave us indiferent. The flame of life, in each to us, seems to burn more brightly and intensely when we come to spend so time in company with Nietzsche’s flaming words. My experience as a reader of Nietzsche’s books leads me to cherish him as a powerful voice who affects people deeply – some may disagree with him, but this disagreement itself is usually so vehement and intense that it serves as a sign of the echoes, either consonant or dissonant, that Nietzsche’s words arouses. Philosophy in the 20th century was profoundly shaken and inspired by Nietzsche’s books, but in his life, as Zweig points out, he was eaten alive, bit by bit, by the demon of solitude.

Despite his attempts to make his voice be heard, many commentators point out that Nietzsche lived an utterly lonely, isolated existence – “a solitude deprived even of God”, writes Zweig. Nietzsche ended up “crushed by the world’s silence.” (pgs. 5-7) In the following lines, Zweig is less a biographer than a painter: he’s trying to get us in synch with the philosopher’s emotional mood: “One feels here is a man residing in the shadows, apart from all social conviviality, (…) a man who over the years has lost the habit of social interaction and dreads the prospect of being asked too many questions.” (pg. 10)

Nietzsche’s health can be seen as one reason for his choice of an isolated life-style, but it doesn’t explain why the philosopher chose to cut himself even from the most basic of relationships needed, for survival reasons, for someone in his condition: the relationship with a doctor! Nietzsche rarely sought aid of professionals in the medicine field: he mostly self-medicated. He kept away from alcoholic beverages, never drank cofee nor smoked cigarettes. His pension-room had always among its furnishing elements, according to Zweig’s lively description, “an horrifying arsenal of poisons and narcotics”:

 “On a shelf, innumerable bottles, flasks and tinctures: for headaches, which regularly occupy so many wasted hours, for stomach cramps, spasmodic vomiting, instestinal weakness, and above all, those terrible medicaments to control insomnia – chloral and veronal.” (11)

nietzsche-munch

A portrait of the philosopher by Norwegian painter Edvard Munch


Imagine Zweig as a painter, and his words as drawings in our imagination, and let’s hear how he further paints Nietzsche portrait: the philosopher’s eye-sight is poor, without his glasses he would be blind as a bat. But that seems to be no impediment to his will to devote so much energy into the activities of reading and writing (which demand so much eye-labor). Most nights, Nietzsche’s brain just won’t turn off, and he can only restore his energies by sleep if he ingests some kind of soporific medicine.

“Sometimes he spends the whole day confined to bed. And no one comes to his aid, not even a helping hand, no one to lay a cool compress on his burning brow. No one to read to him, to chat with him, to laugh with him… never a warm naked female body beside his own.” (p. 11-12)

A grim picture of disease and loneliness is painted before our eyes by these Zweigian words, but they serve merely as background for the main figure in the painting: a tragic hero in the realm of knowledge, Nietzsche himself, and the process by which he falls down into the abyss. Would we dare, right here and right now, rebelling against the silence that springs from his grave, delve into the mystery of Nietzsche’s life and death?

friedrich-nietzsche (1)

Zweig seems to want his reader to pity the fragile and lonesome state of poor Nietzsche – friendless, abandoned, unloved. I couldn’t help imagining how Nietzsche himself would judge Zweig’s portrait. Nietzsche himself was never attracted by self-pity, and it may be argued that he chose voluntarily to lead a life in which we wouldn’t bother others with his health issues – as if he was trying to put to practise a radical attempt at self-reliance, even in the worst conditions. As Jacob Burckhardt points out, Nietzsche lived as if his task were “to increase independence in the world” (quoted by Zweig, pg. 89), and it’s hard to imagine a philosopher who took so seriously the task of being independent. The fluctuations of his health had profound impact upon his emotional state and the “mood” of his tought: by his own life-experience Nietzsche extracted awesome insights into the inner workings of the human mind. He’s arguably one of the greatest psychologists of the 19st century (he claimed to have learnt psychology mainly with Stendhal and Dostoivésvki), an certainly a pioneer in pre-Freudian times.

 Zweig’s book focuses a lot on Nietzsche’s life, especially the connection between his existential loneliness and his outstanding artistic and philosophical productions. It leads the reader to ask himself: why did this philosopher, who had demolished the moral ideals of asceticism (mainly in his Genealogy of Morals), chose to live in a condition of isolation similar to those hermits he criticised so much? What caused Nietzsche’s attitude of removal from sociability: was it arrogance or pride ? What could have acted as an impediment in the route to Alterity, in Nietzsche’s life? What was the obstacle he couldn’t trespass, keeping him from crying out for help and accepting the aid of human love? Were the people around him to blame for being indiferent and uncomprohensive?

According to Zweig, aways, everywhere he lived, Nietzsche was a foreigner. And that usually doesn’t make easier the task of building friendship. It can’t be said that friendship is highly valued in his books. And it doesn’t seem to me that Nietzsche pursued in his life, with much interest or passion, a quest for human warmth and love. Lou Salomé is maybe the sole female figure in Nietzsche’s life to have aroused in him some kind of dream about redemption by love, some passionate widening of his emotional chest to the realm of the Other, but we know well things didn’t turn out that rosely. Nietzsche couldn’t see la vie en rose and his passion for Lou Salomé turned out to be a devasting heart-break. After the rupture with Lou Salomé, facing what he calls “the greatest crisis of his life”, he writes Zarathustra, a work-of-art and an philosophical poem that carry the mark of something unique. His bond with Lou had collapsed, in ruins were all the bridges of dreams, and in utter solitude he set out to write a book about a character who spent ten years far from all human contact, and tries to re-descend among the humans, to reveal what he learned whilst dwelling in the wilderness, only to discover that everyone miscomprehends him. A book born out of Nietzsche’s abyss, filled with dancing stars, chaotic and colourful as life itself. 

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PART II. THE WOUND OF NO REPLY

“The year-in year-out lack of a really refreshing and healing human love, the absurd loneliness that it brings with it, to the degree that almost every remaining connection with people becomes only a cause of injury; all that is the worst possible business and has only one justification in itself, the justification of being necessary.” – Letter sent by Nietzsche to his friend Overbeck, 3.2.88

Much speculation about Nietzsche breakdown in Turin is to be found in dozens of books. To this pile of speculation, Zweig adds his own contribution:

“For 15 years this cave life of Nietzsche continues from rented room to rented room, while he remains unknown…. only the flight of Dostoyevsky, almost at the same moment in time, with equitable poverty and neglect, is illuminated by the same cold grey spectral light. Here, as there, the work of a titan conceals the gaunt figure of the poor Lazarus who daily expires from his despair and infirmity in solitude, as day by day, the miracle savior of creative will awakens him from the depths. For 15 years, Nietzsche emerges thus from the coffin of his room, moving upwards and downwards, with suffering upon suffering, death upon death, resurrection upon resurrection, until, over-heated by such a flood of energy, his brain breaks apart. (…) Un-accompanied and unkown, the most lucid genius of the spirit rushes headlong into his own night.” (13)

Tough Nietzsche suffered a lot, he didn’t turn angrily against life, nor did he sought final relief in suicide. His philosophy is born out of the dwellings of his mind with his pains: “pain always searches to know the causes, whilst pleasure remains in a fixed position and does not look backwards”, he wrote. “Mighty pain is the last liberator of the spirit; she alone forces us to descend into out ultimate dephts.” And elsewhere: “I know life better, because I have so often been at the point of losing it.” (p. 23)

“Nietzsche never sets up house, with a view to economizing and conserving, he builds no spiritual home; he wants (or perhaps he is forced by the nomadic instinct in his nature) to remain eternally without possessions, the solitary Nimrod who wanders with his weapons through all the forests of the spirit, who has no roof, no wife, no child, no servant, but who, on the other hand, has the thrill and pleasure of the hunt; like Don Juan, he adores not the enduring feeling but the fleeting moments of greatness and ecstasy. He is solely attracted by an adventure of the spirit, by that ‘dangerous perhaps’ that stimulates and excites as long as the chase is on but as soon as attainmet is reached loses its grip.” (29)

In Zweig’s perspective, Nietzsche sounds the alarms and alerts us – prophetically – against the ills of nationalism and praises cosmopolitism:

“Nietzsche is content to be without country, without home or possessions, cut off forever from that ‘parochialism of the fatherland’, from all ‘patriotic subjugation’. His perspective will be the lofty one of the bird in flight, of the ‘good European’, of that ‘essentially nomadic race of men who exist outside of nations’. (…) Once Nietzsche has established himself in the south, he steps definitively beyond his past; he is peremptorily de-Germanized, de-Christianized… the navigator to the realm of the future is too happy to be embarking on ‘the fastest ship to Cosmopolis’ to experience any nostalgia for his unilateral, uniform and univocal fatherland. That is why all attempts to re-Germanize him should be strongly condemned.

At the same time as de-Germanizing him, the south also serves to de-Christianize him completely. Whilst like a lizard he enjoys the sun on his back and his soul is lit right through to his innermost nerves, he ponders what exactly had left the world in shadow for so long, made it so anguished, so troubled, so demoralized, so cowardly conscious of sin, what had robbed the most natural, the most serene, the most vital things of their true value, and had prematurely aged what was most precious in the universe, life itself. Christianity is identified as the culprit, for its belief in the hereafter, the key principle that casts its dark cloud over the modern world.This ‘malodorous Judaism, concocted of Rabbinic doctrines and superstition’ has crushed and stifled sensuality, the exhilaration of the world and for fifty generationshas been the most lethal narcotic, causing moral paralysis in what was once a genuine life force. But now (and here he sees his life as a mission), the crusade of the future agains the cross has finally begun, the reconquest of the most sacred country of humanity: the life of the world.” (pg. 61-63)

Zweig also suggests that, with Nietzsche, it appears for the first time upon the high seas of German philosophy the black flag of a pirate ship. With Nietzsche, it dawns

“a new brand of heroism, a philosophy no longer clad in professorial and scholarly robes, but armed and armored for the struggle. Others before him, comparably bold and heroic navigators of the spirit, had discovered continents and empires; but with only a civilizing and utilitarian interest, in order to conquer them for humanity, in order to fill in the philosophical map, penetrating deeper into the terra incognita of thought. They plant the flag of God or of the spirit on the newly conquered lands, they construct cities, temples and new roads in the novelty of the unkown and on their heels come the governors and administrators, to work the acquired terrain and harvest from it the commentators and teachers, men of culture. But the final objective of their labours is rest, peace and stability: they want to increase the possessions of the world, propagate norms and laws, establish a superior order.

Nietzsche, in contrast, storms into German philosophy like the filibusters making their entrance into the Spanish empire at the end of the 16th century, a wild unruly swashbuckling swarm of desperados, without nation, ruler, king, flag, home or residence. Like them he conquers nothing for himself, or anyone following him, not for a god, or a king, or a faith, but uniquely for the pleasure of conquest, for he wants to acquire, conquer and possess nothig. He concludes no treaty nor build a house, he scorns the rules of war put in place by philosophers and he seeks no disciple… Nothing was more foreign to Nietzsche than to merely proceed towards the habitual objective of philosophers, to an equilibrium of feeling, to repose in a tranquilitas, a sated brown wisdom at the rigid point of a unique conviction. He spends and consumes successive convictions, rejecting what he has acquired, and for this reason we would do better to call him Philaleth, a fervent lover of Aletheia, truth, that chaste and cruelly seducing godess, who unceasingly, like Artemis, lures her lovers into an eternal hunt only to remain ever inaccesible behind her tattered veils.” (pg. 43)

In Nietzsche’s fate we can read the tragedy of someone who, tortured by disease and anguish, embarks head-on in Knowledge’s dangerous adventure. Alone and frail, but bold and curious, he’s a man who, like a serpent, exchanged skins thoughout his life. But, as Zweig points out, his only homeland was solitude. Wherever he lays his hat, there he’s alone. He journeys through the land, but doesn’t seem ever to leave loneliness behind. There’s a song by Portishead in which Beth Gibbons wails: “This loneliness just won’t leave me alone”. It’s quite possible Nietzsche knew a lot about this emotional mood. The philosopher has been acquainted with the blues. Sometimes, it seems, he tries to believe isolation is a merit and that the geniuses of humanity shouldn’t mix with the riff-raff – that’s why many nostrils can smell arrogance in Nietzsche attitude, some aristocratical eliticism, as if the man believes he shouldn’t wallow in the mud of common vulgarities.

This loner consoles himself, to lessen the pains of his solitude,  with the idea that posterity will understand and honour him. Free spirits yet to be born keep him company through his darkest hours. He warms himself by the fireside of his imagination of future glories. Zarathustra is filled with images, bursting from a mind intoxicated by poetry, of better days to come, of men who have outgrown mankind as we know it. The question I pose is: how maddening is it to seek human warmth on the imaginary realm? Can you cure yourself from loneliness with the dreamt shadow of future friends?

In Nietzsche’s final years, he gets increasing bombastic. Now he brags he’s dynamite. His previous books were almost completely ignored by the general population of the planet, and he can’t deal with this easily, emotionally speaking: he felt “only immutable solitude multiplied” and this is what, according to Zweig, “turns his soul gangrenous”: the wound of no reply.” (75)

 His descent into the abyss is portrayed by Zweig as a tragedy of utter solitude. Nietzsche sinks, his brain shatters, because the burden of the world’s indifference and deafness is too much to bear. Nietzsche’s own judgement of his past achievements, in Ecce Homo, may sound deeply narcisistic and self-glorifying: he believes, for example, that Zarathustra is the biggest gift ever given to humanity, the greatest book ever written, and that whole universities should be created and devoted to its study. Some chapters of Nietzsche’s intriguing auto-biography are filled with self-celebration and megalomania, as if he’s trampling modesty underfoot: Nietzsche explains to his readers why he  is so wise, how does he manage to write such great books, and considers himself to be an event in History that will divide it in two epochs. Zweig’s interpretation invites us to understand this as a symptom of his social isolation, of his frustration about the silence that surrounded his ideas, and which was so rarely broken in Europe during his life (only George Brandes, professor in Copenhagen, made an effort to spread Nietzsche’s ideas in academic circles during the philosopher’s life).

When he reached the period when he wrote his last books – among them are The Antichrist, Twilight of the Idols, Ecce Homo… –  Nietzsche seems to be increasingly furious, bombastic. He writes with outbursts of rage and indignation, striving to get some answer from the world around him. Even hostility from readers seems to him to be better than silent indifference. This is how Zweig describes this late Nietzschean works:

“There are contained the most unbridled scornful cries of rage and heavy groans of suffering, flayed from his body by the whip of impatience, a savage growling through foaming mouth and bared teeth… provoking his epoch so that they react and let go a howl of rage. To defy them still, he recounts his life in Ecce Homo with a level of cynicism which will enter into universal history. Never has a book exhibited such a craving, such a diseased and feverish convulsion of impatience for response, than the last monumental pamphlets of Nietzsche: like Xerxes insubordinately battling the ocean with a scourge, with insane bravado he wants the indifferent to be stung by the scorpions of his books, to defy the weight of immunity which enshrouds him. (…) In the glacial silence and lost in his own entrancement, he lifts his hands, dithyrambic his foot twitches: and suddenly the dance begins, the dance around the abyss, the abyss of his own downfall.” (p. 77)

Stefan Zweig’s book is filled with this kind of highly dramatical images, as if he’s trying to honour Nietzsche with a painting worthy of a tragic hero. It’s certainly a very impressive and sensitive portrayal of Nietzsche, tough in its less than 100 pages it doesn’t share many details of the philosopher’s life (this has been done by Curt Paul Janz, Rudiger Safranski and other biographers). Zweig’s perspective is filled with melancholia and he decribes the “struggles with the demon” experienced by Hölderlin, Kleist and Nietzsche as something he also has experienced in his own flesh. Zweig’s life, similarly to that of Nietzsche, can’t be said to have ended happily: he was living in Rio de Janeiro, Brazil, when he commited suicide in 1942. He had sought refuge from the horrors of the World War in Europe, a jew fleeing from the claws of the Holocaust. For a while, he believed Brazil to be “the country of the future”, a safe harbour where no racism or anti-semitism existed. In his book, Brazil – Country of The Future, he idealizes his new home with the eyes of the refugee who was leaving behind a world of intolerance, hatred and persecution. Then, frustration takes over, and he shoots himself in Petropolis. But that’s another story.

I believe Zweig’s Nietzsche is a book whose great merit lies in the description of Nietzsche’s existential position, one of social isolation of almost complete lack of community bonds. He’s downfall, according to an interpretation by Brazillian philosopher Oswaldo Giacoia, one of the leading figures in Nietzsche studies in Latin America, is deeply related the fact that he couldn’t belong to what Hannah Arendt used to call “a common world”. One of the most interesting psychological problems posed by Nietzsche’s fate, it seems to me, is this: how important for psychic health are the lived experienced of community bonds? What are the consequences of radical rupture with the whole dimension of alterity? Or, put more simply, what’s the price that pays the person who lives without any of the warmth provided by friendship and love? 

stefan_zweig

Stefan Zweig, author of “The Struggle With The Demon – Hölderlin, Kleist and Nietzsche”. Click here to read an excerpt of the last chapter of Zweig’s book.

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A iniciativa de disponibilizar este prodigioso banquete cultural é do Arquivo Kronos. Deixamos aqui manifesta nossa gratidão por este serviço público que estão prestando aos estudiosos das mais variadas vertentes das ciências humanas ao reunir e disponibilizar este excelente arsenal. Se isto é “pirataria”, um grande viva aos piratas! 🙂

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:: A Estética de Schopenhauer ::


O CLARO ESPELHO DO MUNDO

Reflexões sobre a estética de Schopenhauer

– Por Eduardo Carli de Moraes –


PRIMAZIA DA VONTADE SOBRE O CONHECIMENTO

Clément Rosset, em sua obra Schopenhauer: Filósofo do Absurdo, considera Schopenhauer como um “precursor” de grandes correntes de pensamento posteriores a ele, como a psicanálise freudiana, o procedimento “genealógico” nietzschiano, o existencialismo camusiano, citando ainda suas reverberações nas obras de pensadores e literatos como Marcel Proust, Henri Bergson e Jorge Luis Borges. Rosset destaca que Schopenhauer é um “filósofo in-atual”, “estrangeiro a seu tempo”, uma vez que rompe com um certo “racionalismo” então vigente.

Schopenhauer est un philosophe inactuel, étranger à son temps. (…) La philosophie de Schopenhauer surgit à une époque òu la foi en une raison directrice et ordonnatrice de toutes choses, loin de s’affaiblir, s’est presque exacerbée au travers du grand espoir que le XVIIIe siècle avait attaché au développement du rationalisme, pour abourtir aux constructions de Hegel qui voit dans le devenir du monde la réalisation progressive de l’Esprit absolut, au point d’assimiler réalité et rationalité.”1

Prenunciando o que dirá Freud, Schopenhauer sublinha com recorrência que os conceitos racionais possuem uma existência secundária, derivada, dependente da Vontade. “Em regra geral, o conhecimento permanece sempre a serviço da vontade, do mesmo modo que ele nasceu para este destino e está, por assim dizer, implantado sobre a vontade como a cabeça está sobre o tronco”.2

É o que Jair Barboza também destaca, ao dizer que “é chegada a vez do sentimento ganhar um inédito estatuto, selando aquilo que pode ser considerado como um mérito de Schopenhauer na história da filosofia e que tanta influência exerceu sobre a psicanálise: o primado da vontade sobre o intelecto.” 3 É o que Ferenczi também aponta: “As verdades da psicanálise são inteiramente compatíveis com uma filosofia que vê a essência e origem do universo num ímpeto cego [Vontade], não inteligente e não moral, como Schopenhauer o concebe.”4

“O conhecimento, em geral, tanto racional como puramente intuitivo, procede, pois, da vontade e pertence à essência dos graus mais altos da sua objetivação”, lê-se ao fim do 2º Livro de O Mundo Como Vontade e Representação. “Originariamente ligado ao serviço da vontade e ao cumprimento dos seus desígnios, ele permanece quase continuamente pronto a servi-la; é assim em todos os animais e em quase todos os homens.”

Como também frisa Anatol Rosenfeld, que prefaciou o excerto dos Parerga e Parelipomena publicado no brasil como “Metafísica do Amor, Metafísica da Morte”:

“Freud sempre negou ter lido Schopenhauer, mas a influência indireta, através de múltiplos canais subterrâneos, é tão evidente que não é preciso insistir nisso. É a obra de Schopenhauer que pela primeira vez focalizou sistematicamente a atenção nos fenômenos sexuais, inspirando com isso um exército de pensadores e autores, de Freud a Weininger, de Forel a D. H. Lawrence. (…) Toda a teoria freudiana de que o impulso sexual é a raiz inconsciente do nosso comportamento – representando o consciente uma crosta superficial – é de origem schopenhaueriana. A suposição freudiana da preponderância do irracional e inconsciente sobre o racional e consciente – base da metafísica de Schopenhauer – tornou-se, desde então, um lugar comum e pode-se dizer que o nosso tempo, no seu pessimismo quanto à capacidade do “homo sapiens” de guiar-se pelo intelecto e pela razão, é tributário direto ou indireto da concepção de Schopenhauer, e o comportamento atual da humanidade parece ser um único, gigantesco esforço destinado a provar a metafísica do grande pessimista.”5

VONTADE: A ESSÊNCIA DE TODOS OS FENÔMENOS

Uma dificuldade comum que o leitor leigo de Schopenhauer tende a enfrentar frente a seu conceito de Vontade é o fato deste transcender a esfera humana. Esta Vontade de que fala Schopenhauer não só não é privilégio humano, nem mesmo está presente exclusivamente nos animais, mas é vista como a essência de todos os fenômenos, inclusive os vegetais, minerais e quaisquer outras forças e energias presentes na natureza. É o que Aramayo explica, frisando que ao utilizar o termo “Vontade” Schopenhauer

utilise seulement la meilleure des dénominations possibles, puisque notre vouloir [le vouloir humaine] n’embrasse pas tout le domaine de la volonté au sens large du terme. La volonté recouvre em effet non seulement les volitions humaines, mais en outre les appétits animaux et toutes les forces ou énergies qui animent l’ensemble de la nature.”6

Portanto, é essencial que nos desembaracemos da noção comum de vontade que possuímos, ou seja, a concepção do senso comum que vê na vontade uma espécie de motivo consciente que impele para a ação, ou, em outras palavras, um desejo humano do qual nos apercebemos e que pode, se não for contraposto por um interdito ou outro desejo mais forte, conduzir-nos à busca por sua satisfação. A Vontade que Schopenhauer têm em mente não possui como um de seus atributos essenciais a consciência, de modo que esta Vontade pode operar (e de fato opera) de modo “cego” e “inconsciente” em várias de suas manifestações. Deste modo, haveria uma espécie de “Inconsciente Cósmico” (no sentido de um Cosmos Inconscientemente Desejante), do qual a vontade consciente e inconsciente dos seres humanos não passaria de um exemplar.

…a Vontade Cósmica tem o hábito de abandonar a eterna noite da inconsciência e despertar para a vida como uma vontade individual, para retornar mais tarde à sua inconsciência originária depois de ter sonhado o pesadelo da vida.”7

De modo que Schopenhauer concede o conceito de Vontade como a “chave” para a decifração de todos os enigmas do mundo, comparando sua filosofia à cidade de Tebas, cujas mil portas conduziam ao mesmo centro.


ÉTICA DA COMPAIXÃO

O reconhecimento da essência comum compartilhada por todos os fenômenos do Universo conduz à uma noção ética baseada na “unidade da vida” por detrás de suas diferentes manifestações. De modo que, segundo uma célebre e eloquente imagem de Schopenhauer, o carrasco que faz mal à sua vítima está fazendo mal a si mesmo, já que fere no outro a mesma essência que carrega em si.

“Les différences entre la victime et son bourreau n’existent que sous le principe d’individuation, c’est-à-dire dans le temps. Mais lorque se dissipe ce que la sagesse indienne apelle le voile de Maya, la vision de ces apparences s’évanouit et on reconnaît alors que tous les phénomènes du monde sont la manifestation d’une seule et unique essence comunne dont tous identiquement procèdent.”8

O apelo à noção de véu de Maya, uma espécie de correlato hindu da Caverna de Platão, é constante em Schopenhauer. Quando o sujeito vence a ilusão de se considerar como um indivíduo separado de todo o resto, e supera as considerações ditadas pelo princípio de razão, mergulhando numa intuição imediata que o constitui como “espelho do mundo”, adquire um “conhecimento direto da identidade do querer em todos os seus fenômenos”. E isto possui consequências éticas muito importantes, tornando o sujeito capaz de “fazer sua a miséria do mundo inteiro”, como explica o filósofo no seguinte trecho:

“Quando o véu de Maya, o princípio de individuação, se levanta diante dos olhos de um homem, a ponto de este homem já não fazer uma distinção egoísta entre a sua pessoa e a de um outro, quando ele participa tanto nas dores do outro como se fossem suas, e assim chega a ser, não só muito caridoso, mas completamente pronto a sacrificar a sua pessoa, se pode com isso salvar a de muitos outros, então é evidente que este homem, que em cada ser reconhece a si mesmo no que tem de mais íntimo e mais verdadeiro, considera também as dores infinitas de tudo aquilo que vive como sendo as suas próprias dores, e assim faz sua a miséria do mundo inteiro. Daí em diante, nenhum sofrimento lhe é estranho. Todas as dores dos outros (…) pesam sobre o seu coração como se fossem suas.”9

O filósofo romeno Cioran (1911-1995), cuja obra possui uma alta carga de influência de Schopenhauer, enxergou muito bem o quanto sofreria descomunalmente um homem que possuísse uma “sensibilidade ao sofrimento” e uma “aptidão para a piedade” extraordinárias. Mas destaca muito bem o estado de exceção que representa uma tal capacidade de empatia, destacando o quanto o egoísmo e a tirania do princípio de individuação representam regras raramente superadas:

Quem chegasse, por uma imaginação transbordante de piedade, a registrar todos os sofrimentos, a ser contemporâneo de todas as penas e de todas as angústias de um instante qualquer, esse – supondo que tal ser pudesse existir – seria um monstro de amor e a maior vítima da história do sentimento. Mas é inútil imaginarmos tal impossibilidade. Basta-nos proceder ao exame de nós mesmos, praticar a arqueologia de nossos temores. Se avançamos no suplício dos dias, é porque nada detém esta marcha, exceto nossas dores; as dos outros nos parecem explicáveis e suscetíveis de ser superadas: acreditamos que sofrem porque não têm suficiente vontade, coragem ou lucidez. Cada sofrimento, salvo o nosso, nos parece legítimo ou ridiculamente inteligível; sem o que, o luto seria a única constante na versatilidade de nossos sentimentos. Mas só estamos de luto por nós mesmos. Se pudéssemos compreender e amar a infinidade de agonias que se arrastam em torno de nós, todas as vidas que são mortes ocultas, precisaríamos de tantos corações quanto os seres que sofrem. E se tivéssemos uma memória milagrosamente atual que conservasse presente a totalidade de nossas penas passadas, sucumbiríamos sob tal fardo. A vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória.”10


DESEJO E SOFRIMENTO

Ecoando a mensagem de Buda, Schopenhauer, após constatar a onipresença da Vontade como coisa-em-si de todos os fenômenos, irá constatar o caráter cego e sem fundamento desta Vontade, chegando à conclusão de que o sofrimento humano em todas as suas formas é decorrente de nossa submissão de Íxions e Sísifos à procissão infindável de desejos, cujas satisfações particulares não conduzem jamais à nenhuma felicidade duradoura.

Chegando às raias da misantropia, de um desprezo quase generalizado pelas “massas” e seus modos de pensar, proceder e existir, diz o filósofo:

“Na verdade, custa a crer a que ponto é insignificante, vazia de sentido, aos olhos do espectador estranho, a que ponto é estúpida e irrefletida, para o próprio ator, a existência que a maior parte dos homens leva: uma espera tola, sofrimentos estúpidos, uma marcha titubeante através das quatro idades da vida, até esse termo, a morte, na companhia de uma procissão de idéias triviais. Eis os homens: relógios; uma vez montados, funcionam sem saber por quê.” (op cit, pg. 338)

De modo que Schopenhauer, levando ao ápice seu “pessimismo”, chega a sugerir que a existência da maioria dos humanos não passa de um pêndulo oscilando entre o sofrimento e o tédio. O seguinte trecho do Mundo… é uma boa síntese destas idéias:

“Todo querer procede de uma necessidade, isto é, de uma privação, isto é, de um sofrimento. A satisfação põe-lhe um fim; mas, para cada desejo que é satisfeito, dez pelo menos são contrariados; além disso, o desejo é demorado, e as suas exigências tendem para o infinito; a satisfação é curta, parcimoniosamente medida. Mas este contentamento supremo é apenas aparente: o desejo satisfeito cede lugar em breve a um novo desejo; o primeiro é uma decepção ainda não reconhecida. A satisfação de nenhum desejo pode conseguir contentamento durável e inalterável. É como a esmola que se lança a um mendigo: ela salva-lhe hoje a vida para prolongar a sua miséria até amanhã. – Enquanto a nossa consciência está preenchida pela nossa vontade, enquanto estamos subjugados pelo impulso do desejo, pelas esperanças e pelos temores contínuos que ele faz nascer, enquanto somos súditos do querer, não existe para nós nem felicidade duradoura, nem repouso.” (op cit, pg. 206)

Porém, o pessimismo schopenhauriano não é absoluto, nem o labirinto que ele pinta com tintas tão sombrias é irremediável e sem saída. Novamente ecoando os ensinamentos orientais que tanto apreciava, o filósofo sugere que há sim um modo de se libertar do jugo do desejo e seu séquito de sofrimentos e aborrecimentos. A dissolução do eu, de que tão frequentemente falam muitas escolas do budismo, por exemplo, re-aparece em Schopenhauer, que concebe a “salvação” ou o Nirvana nos termos de uma superação do “princípio de individuação”, que funcionaria como um véu de Maia separando o homem da percepção da unidade de essência entre todos os fenômenos cósmicos. Portanto, para o “Samsara” da dor e do tédio que Schopenhauer descreve como sendo consubstanciais à ditadura do desejo, haveria um “Nirvana” de quietude e repouso, estado em que o desejo se cala e o sujeito se faz contemplação cristalina do cosmos.

“…a supressão espontânea e total, a negação do querer, o verdadeiro nada de toda vontade, em resumo, esse estado único em que o desejo se detém e se cala, em que se encontra o único contentamento que não se arrisca a passar, esse único estado que liberta de tudo… eis o que chamamos o bem absoluto… eis onde vemos o remédio radical e único para a doença, enquanto que todos os outros bens são puros paliativos, simples calmantes.” (op cit, pg. 380)

Bruegel

O PAPEL DA ARTE EM RELAÇÃO À VONTADE

A constatação da quase universal submissão do conhecimento aos interesses e impulsos da Vontade, de que tratamos há pouco, não impede que o filósofo considere a possibilidade de uma “libertação” deste jugo: “em alguns homens o conhecimento pode subtrair-se desta escravidão, rejeitar este jugo e permanecer puramente ele mesmo, independente de todo alvo voluntário, como puro e claro espelho do mundo: é daí que procede a arte”.11

A arte possui para Schopenhauer o poder de suprimir, ainda que por um tempo limitado, esta submissão do conhecimento à vontade. Na experiência estética consumada, absorvido em contemplação profunda, várias “modificações” são notáveis: o sujeito, antes dominado pelo querer, torna-se “sujeito puro do conhecer”, isento de vontade; e o princípio de individuação, que causa a ilusão da individualidade, torna-se inoperante, de modo que “nos esquecemos de nossa individualidade, da nossa vontade e só subsistimos como puro sujeito, como claro espelho do objeto, de tal modo que tudo se passa como se só o objeto existisse, sem ninguém que o percebesse, que fosse impossível distinguir o sujeito da própria intuição e que ambos se confundissem no mesmo ser” (LIII, #34, p. 187).

Schopenhauer procura descrever o modo como através da arte é possível uma superação da dualidade sujeito-objeto, característica do mundo como representação. Quando atinge o estado de contemplação profunda que caracteriza a experiência estética, o sujeito, que antes “enxergava” uma clara distinção entre si mesmo e os objetos representados, passa a “confundir-se” com eles, constituir com eles uma unidade, espécie de eco da unidade de essência que os une: a essência comum que compartilham, a vontade.

“A vontade é uma só e idêntica no objeto contemplado e no indivíduo que ao elevar-se a esta contemplação toma consciência de si mesmo como puro sujeito; ambos, por conseguinte, se confundem, visto que eles são, em si, apenas a vontade que se conhece a si mesma” (L3, 34, p 189).

É o que Jair Barboza expõe nos seguintes termos:

“Doravante não se trata mais do conhecimento individual, comum, cotidiano, brotando do intelecto-lanterna, correlato do princípio de razão em conluio com a vontade individual, mas sim do conhecimento estético, independente do princípio de razão, ocupado com aquilo que sempre é e nunca vem-a-ser. (…) O conhecimento, que originariamente era mekané, servidor da vontade, passa a ser desinteressado e a vontade é negada, já que com a supressão da individualidade a vontade renuncia aos fins desejáveis de serem atingidos, logo, os motivos não têm mais eficácia sobre ela.” “Resta tão-só uma unidade entre contemplador e contemplado, a ser considerada como mais um dentre os reflexos da unidade cósmica.”12

A experiência estética, pois, é um momento beatífico, de iluminação, em que um eu antes carregado de desejos e interesses pessoas torna-se um “neutro” e límpido “sujeito puro do conhecer”. É o que Barboza exprime de modo belamente poético quando diz: “Indiferente é se se está num paço real ou num calabouço, se quem olha é um rei ou um prisioneiro. A impessoalidade do instante é total. O olho que vê não é de um particular, mas o ‘claro olho cósmico’…” (op cit, pg. 62) E frisa ainda que este “estado estético” é “plenamente reconfortante”. “Ao contemplar uma árvore, o claro olho cósmico não procura sua explicação, deixa-a tranquilamente diante de si, perde-se na sua imagem, fruindo-a…” (op cit, 63)

Não seria despropositado, tendo isto em mente, sugerir que um poeta como Alberto Caeiro, alter-ego de Fernando Pessoa, seja uma espécie de eu-lírico que encarna em algumas poesias a vivência estética descrita por Schopenhauer. Em um poema clássico como “O Guardados de Rebanhos”, de 1911-1912, Caeiro enfatiza sua libertação do jugo da Vontade (“não tenho ambições nem desejos / ser poeta não é uma ambição minha…), manifesta desprezo pela “racionalidade” (“pensar incomoda como andar à chuva”; “pensar é estar doente dos olhos”), e descreve um “olhar nítido como um girassol” só alcançável por aquele que atinge um “pasmo essencial”.

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…

Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a demais por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar…

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…

ALBERTO CAEIRO13

TODA COISA PODE SER BELA

O conceito de “belo”, para Schopenhauer, engloba tudo aquilo, seja na arte ou na natureza, capaz de causar em seu espectador um estado contemplativo que escape à ditadura do querer. Por esta razão, como aponta Clément Rosset, pode “tornar-se belo” “qualquer objeto, assim que deserta o domínio daquilo que interessa à vontade para unir-se aos objetos da pura contemplação, dos quais se desinteressa a vontade”14.

“Encontramos na contemplação estética dois elementos inseparáveis: o conhecimento do objeto considerado, não como coisa particular, mas como idéia platônica, isto é, como forma permanente de toda uma espécie de coisas; depois a consciência, aquele que conhece, não como indivíduo, mas como puro sujeito que conhece, isento de vontade” (MVR, L3, 38, 205).

Aí está a chave para compreendermos a idéia de Schopenhauer de que “toda coisa é bela”, ao menos de direito: “tout objet est beau dès lors que le regard qu’on porte sur lui est affranchi de tout intérêt désirant et personnel. Selon Schopenhauer une chose est belle, non parce qu’elle se distingue par sa beauté du reste des choses, mais parce qu’elle peut se prêter à un regard non faussé par les intérêts du désir (ou de la volonté).” (Rosset, op cit).

A admiração de Schopenhauer pelos pintores flamengos de naturezas mortas, que frequentemente representavam cenas domésticas “banais” em seus quadros, explicita que o filósofo acreditava que até mesmo os objetos mais “insignificantes” de nosso cotidiano poderiam se tornar belos caso um gênio soubesse enxergar neles suas Idéias e fixá-las em sua obra, tornando-as acessíveis aos demais humanos.

Além disso, o sereno estado de ânimo que foi imprescindível a estes pintores para que pudessem retratar em tantas minúcias e com tamanho cuidado os objetos que pintaram é testemunho de um proeminência do intelecto sobre a vontade que Schopenhauer considera admirável. Talvez não haja tanta distância entre esta noção schopenhauriana e aquilo que sugeriu Merleau-Ponty quando refletiu sobre Cézanne: “artista é aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem saber”15.

Vale notar que esta definição da beleza parte muito mais dos efeitos gerados no espectador do que nas qualidades inerentes ao objeto. Pode ser julgado “belo” todo objeto, artístico ou natural, capaz de “despertar” naquele que o observa um estado contemplativo, de intuição pura, durante o qual se calam temores e esperanças, ânsias e preocupações.

Rosset sugere até mesmo que algo criado com funções meramente utilitárias, e que é utilizado em nosso cotidiano por seu valor de uso, sem ter sido concebido como portador de um “valor estético”, possui uma certa “potencialidade” para gerar este estado contemplativo que Schopenhauer vincula ao objeto belo. Deste modo, seria possível enxergar na obra de um artista como Marcel Duchamp (1887-1968) um preceito schopenhauriano posto em prática. É o que Rosset aponta:

Il n’y a donc pas de différence fondamentale entre un objet conçu em fonction d’une finalité esthétique et un objet fabriqué em fonction d’une finalité utilitaire ou comerciale. Quand il expose un séchoir à bouteilles, une roue de bicyclette ou un urinoir, Marcel Duchamp ne se doute certainement pas qu’il met ainsi em pratique un précepte de l’esthétique de Schopenhauer.”16

A arte funcionaria, pois, como um calmante da vontade, uma Maracujina do desejo, estando aí o maior de seus méritos. Clément Rosset diz:

“l’art agit comme un calmant: il possède, à la manière d’une potion magique, telle celle mise au point par le druide Panoramix dans les aventures d’Astérix, le pouvoir de rendre l’homme invincible, capable de triompher un moment des tortures psychologiques qui jallonent son existence d’être vivant et soufrrant.”17

O apelo à poção de Panoramix, por parte de Rosset, pode parecer despropositada, mas indica bem outra característica essencial deste calmativo ou anestesiante que é a arte: seu caráter efêmero, já que seu efeito, tal qual o da poção, logo se desfaz — e logo recomeça o Samsara da vida comum. A arte representaria, pois, um “oubli momentané des peines”, na expressão de Rosset (op cit, p. 143).

Em suma: uma obra-de-arte seria admirável em proporção de sua capacidade de nos fazer escapar às garras tiranas do interesse pessoal e da vontade individualizada, por assim dizer. O gênio, pois, aquele capaz de criar as mais potentes das obras-de-arte, não deixa de ser, para Schopenhauer, um professor de resignação, um mestre a guiar a humanidade no caminho do conhecimento e da renúncia à vontade tirânica. Por isso Jair Barboza sugere que “o gênio é o correlato do asceta, como toda genuína vivência do belo é um momento beatífico, de iluminação”.18

Cabe fazer a ressalva de que para um pensador como Nietzsche, em sua crítica ao que considerava como uma postura “niilista” de Schopenhauer, a arte não será concebida em função de suas capacidades de “acalmar a vontade”, mas muito mais pelo seu potencial de exaltar a vontade de potência, para Nieztsche um “valor” positivo e digno de ser afirmado.

Ludwig Van!

A FIGURA DO GÊNIO

Estabelecendo uma cisão entre o conhecimento racional e o conhecimento “intuitivo”, Schopenhauer descreve através de vivas metáforas as diferenças entre estes:

“O primeiro [o conhecimento racional] assemelha-se a uma violenta tempestade que passa, sem que se lhe conheça nem a origem nem o fim, e que curva, agita, arranca tudo no seu caminho; a segunda [a contemplação] é o calmo raio de sol que fura as trevas e desafia a violência da tempestade. O primeiro é como a queda das gotas inumeráveis e impotentes que numa cascata mudam sem cessar e não têm um instante de repouso; a segunda é o arco-íris que paira tranquilo acima deste tumulto desenfreado” (L3, 36, 195-96).

O homem que Schopenhauer concebe como “gênio” não possuiria um talento especial para o raciocínio lógico e as inferências racionais, mas sim para a contemplação das idéias eternas:

“É apenas através desta contemplação pura e completamente absorvida no objeto que se concebem as idéias; a essência do gênio consiste em uma preeminente aptidão para esta contemplação; ela exige um esquecimento completo da personalidade e das suas relações; assim, a genialidade é apenas a objetidade mais perfeita, isto é, a direção objetiva do espírito, oposta à direção subjetiva que termina na personalidade, isto é, na vontade. Por conseguinte, a genialidade consiste em uma aptidão para se manter na intuição pura e aí se perder, para libertar da sujeição da vontade o conhecimento que lhe estava originariamente submetido; o que se resume em perder completamente de vista os nossos interesses, a nossa vontade, os nossos fins: devemos, durante um tempo, sair inteiramente da nossa personalidade, ser apenas o puro sujeito que conhece, olhar límpido do universo inteiro…” (L3, 36, 195)

Nesta capacidade extraordinária de se furtar aos desiderata da vontade pessoal se encontra uma das características principais do gênio, capaz de uma “intuição objetiva” que o homem comum raramente consegue conquistar:

“O homem comum, esse produto industrial que a natureza fabrica à razão de vários milhares por dia, é, como dissemos, incapaz, pelo menos de uma maneira contínua, desta percepção completamente desinteressada, sob todos os pontos de vista, que constitui a contemplação… ele só pode fazer incidir a sua atenção sobre as coisas na medida em que elas têm uma certa relação com a sua própria vontade.” (op cit, pg. 196)

Jair Barboza afirma, pois, que o gênio possui um “intelecto emancipado”. Em linguagem freudiana, poderíamos dizer que gênio é aquele que, ao invés de ser conduzido cegamente, feito uma marionete, pelos ditados de sua libido, consegue dominá-la, refreá-la e sublimá-la, tornando-se senhor desta “vontade cega” que provêm das profundezas de seu inconsciente e que é exemplar particular de uma Vontade natural una que se manifesta de várias formas no universo.

Alçando-se acima do interesse pessoal e dos desejos mesquinhos de “Vossa Majestade, o Eu”, o gênio é aquele capaz de dissolver sua personalidade própria e tornando-se o “claro espelho do mundo” de que fala Schopenhauer. “O gênio: esquecimento dos interesses, dissolução no intuir” — é como o define Jair Barboza (op cit, pg. 70).

Um extraordinário poder de imaginação, que “alarga o círculo de visão do gênio”, também é descrita como “o correlativo e mesmo a condição do gênio”.É como se, na pessoa do gênio, a balança do conhecimento conseguisse sobrepujar a balança da vontade: “no homem de gênio, a faculdade de conhecer, graças à sua hipertrofia, subtrai-se por algum tempo ao serviço da vontade; por conseguinte, ele pára para contemplar a vida por ela mesma”. Por isso, muitas vezes o homem genial é desastrado em sua vida prática. “E o gênio, em consequência de sua aversão ao conhecimento racional, desvia-se do conhecimento matemático e símiles” (BARBOZA, op cit, pg. 67).

…um homem de gênio é muitas vezes presa de violentas afeições e paixões insensatas. A causa deste fato não é, no entanto, de modo algum, a fraqueza da razão; é, em parte, a energia extraordinária do fenômeno da vontade que constitui o homem de gênio e que se traduz pela veemência de todos os seus atos voluntários; em parte, a preponderância do conhecimento intuitivo dos sentidos e do entendimento sobre o conhecimento abstrato: daí, com efeito, uma tendência declarada para a contemplação; ora a intuição ativa brilha com uma luz tão soberana ao lado dos conceitos incolores que ela os fere de impotência e reina, daqui em diante, sozinha sobre a conduta, que se torna, por este mesmo fato, insensata; aliás, a impressão presente tem tanto poder sobre eles, que os leva à irreflexão, ao arrebatamento, à paixão.” (op cit. 199-200)

Schopenhauer não concebe o homem de gênio, porém, como num estado constante de “contemplação pura”; esta vem em marés, por assim dizer, e é por esta razão, sugere o filósofo, que muitos acreditam numa inspiração que os tomasse tal como uma possessão. A estética schopenhaueriana nos leva a pensar que isto não passa de superstição e que a diferença do gênio em relação ao homem comum é a maior aptidão e frequência com a qual o gênio consegue alçar-se acima dos ditados de sua vontade e experenciar o mundo através de uma intuição cristalina, tornando-se sujeito puro do conhecimento.

MISTICISMO?

É sabido que Schopenhauer conhecia a fundo as filosofias orientais, em especial o budismo e o hinduísmo, chegando a citar em muitos pontos de seu percurso textos como os Upanixades, os Vedas e outros textos fundadores de “religiões” na Índia e adjacências. Talvez por isto seja possível sugerir que há um certo “tropismo” para uma concepção “mística” de inspiração oriental em Schopenhauer. Alguns dos principais estudiosos e divulgadores da sabedoria oriental no Ocidente, como Aldous Huxley e Joseph Campbell, possuem formulações que soam muito aparentadas àquelas de Schopenhauer.

Huxley, que deixou minuciosos relatos de suas experiências estéticas e místicas, inclusive relatando sua percepção musical e intuitiva sob o efeito de substâncias como a mescalina, também sugeria que a “Iluminação” consistia numa superação da dualidade entre sujeito e objeto — exatamente o processo que Schopenhauer sustenta ocorrer na experiência estética.

“…a consciência mística mais alta só surge quando se está livre do conhecido, quando não há meta em vista, por mais intrinsecamente excelente que seja, mas sim abertura pura”, sugere Huxley. E não seria absurdo supor que há um íntimo parentesco entre a “intuição desinteressada” de Schopenhauer e a “abertura pura” à qual Huxley se refere. Este último ajunta ainda que esta experiência estética-mística de “transcender a dualidade” ocorre através da

“des-subjetificação daquele que percebe, que não vê mais o mundo exterior com desejo ou aversão, não julga mais automática e irrevogavelmente, não é mais um ego emocionalmente carregado, mas descobre ser um elemento na realidade dada, que não é um negócio de objetos e sujeitos, mas uma unidade cósmica de amor.”19

Já Alan Moore, uma das mentes mais brilhantes hoje operantes no que se costuma chamar de cultura pop, e que se auto-declara um “xamã”, soa altamente schopenhaueriando quando declara:

“When we are doing the will of our true Self, we are inevitably doing the will of the universe. (…) Every human soul in is fact one human soul. It is the soul of the universe itself and as long as you are doing the will of the universe, then it is impossible to do anything wrong.” 20

INFLUÊNCIA DE SCHOPENHAUER

É sabido também que Schopenhauer conquistou entre literatos, poetas, romancistas e pintores uma admiração rara, influenciando muitas obras que estão fora do domínio propriamente filosófico. É o que destaca Anatol Rosenfeld: “A concepção estética do filósofo de Frankfurt empolgou gerações de autores e artistas e o conceito particular do gênio, como foi concebido por ele, encontrou ainda recentemente expressão num romance de Thomas Mann (Dr. Fausto), o autor dos Buddenbrooks, obra em que O Mundo como Vontade e Representação desempenha um papel decisivo”21.

Clément Rosset, um dos filósofos contemporâneos que melhor soube enxergar os ecos do pensamento de Schopenhauer em pensadores posteriores a ele, destaca sua enorme influência sobre o pensamento e a literatura do século 20, chegando a sugerir que o romance A Náusea, de Jean Paul Sartre, assemelha-se a um “romance de juventude” de Schopenhauer:

“Son influence est néanmoins sensible chez certains penseurs du XXe siècle: par exemple chez Cioran; chez Georges Bataille qui lui emprunte sans le savoir, dans L’Érotisme, plusieurs de ses thèmes fondamentaux; enfin dans tout le courant dit ‘existentialiste’ qui lui emprunte, toujours sans le savoir, les thèmes de la facticité et de l’absurdité de l’existence. Ainsi La nausée de Sartre pourrait-elle être consideré comme une sorte de roman de jeunesse de Schopenhauer.”22

O escritor italiano Italo Svevo (1861-1928) confessou abertamente que seu primeiro romance, Una Vita, “foi inteiramente feito à luz da teoria de Schopenhauer” 23, de modo análogo à inspiração freudiana que “regeu” a redação de A Consciência de Zeno. Influências também podem ser percebidas em autores como Marcel Proust, Henri Bergson ou Jorge Luis Borges. O autor argentino, por exemplo, escreveu belíssimas palavras de reflexão sobre a questão do sonho em Schopenhauer, filósofo que apreciava muito a fórmula de Caldéron “a vida é um sonho”:

“Si le monde est le rêve de quelqu’un, s’il y a en ce moment quelqu’un qui est em train de nous rêver et qui rêve l’histoire de l’univers, alors l’anéantissement des religions et des arts, l’incendie général des bibliothèques n’importent guère plus que la destruction des meubles d’un rêve. L’esprit qui une fois les a rêvés les rêvera de nouveau; tant que l’esprit rêvera, rien ne sera perdu. La conviction de cette vérité, que l’on dirait fantastique, a fait que Schopenhauer a comparé l’histoire à un kaléidoscope òu les figures changent, mais non les morceaux de verre, à une éternelle et confuse tragi-comédie òu les rôles et les masques changent, mais non les acteurs.” 24


SOFRIMENTO E ASCETISMO

Uma vez que nenhuma felicidade absoluta é obtenível, e já que a gangorra entre o sofrimento e o tédio constitui a gema do pesadelo da vida, só resta a Schopenhauer sugerir como uma via de liberação a negação desta vontade produtora de tamanho sofrimento.

Rien ne peut faire que la volonté arrête de vouloir sans cesse, car nulle satisfaction ne parvient à remplir définitivement ce tonneau des Danaïdes qu’est notre vouloir inépuisable. Il est impossible de trouver un bien absolu, un bien qui ne soit pas provisoire, et le seul bien suprême est la complète négation de la volonté qui décide de se supprimer elle-même par la voie de l’ascétisme, em cessant de vouloir, afin de se libérer de la souffrance qui domine le monde.”25

O “pessimismo” de Schopenhauer, pois, não é tão desolador e desesperante quanto possa parecer, uma vez que uma estreita porta rumo a uma beatitude possível permanece sugerida pelo filósofo. É como se renunciar à busca pela felicidade fosse o único meio de nos aproximarmos de uma felicidade; não uma felicidade positiva e “colorida”, composta por prazeres e deleites, mas uma felicidade que estaria mais num repouso d’alma, numa ataraxia imperturbável, numa tranquilidade búdica.

A experiência estética representaria, na “jornada espiritual” que conduz a esta beatitude possível, um dos primeiros passos. Quando, através da contemplação de uma obra de arte, conseguimos nos alçar acima da dolorosa tirania do desejo, nos tornando “sujeitos puros” do conhecer, sem temores nem preocupações, experimentamos alguns dos instantes mais felizes que são acessíveis aos seres humanos. Decerto que é provisória esta delícia; mas ela é o bastante para fornecer a Schopenhauer uma espécie de “modelo” de experiência em que o sujeito torna-se o “espelho sereno do mundo” — condição à qual o filósofo convida incessantemente seu leitor a procurar realizar.

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:: REFERÊNCIAS ::

1ROSSET, Clement. Schopenhauer, philosophe de l’absurde. Paris: Presses Universitaries de France (PUF), 1967.

2SCHOPENHAUER. O Mundo Como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto. 2ª ed, 2004. Trad. M. F. Sá Correia. Livro III, #33, pg. 186.

3BARBOZA, Jair. A Metafísica do Belo de Arthur Schopenhauer. São Paulo: Editora Humanitas – FFLCH-USP, 2001. Pg. 33.

4FERENCZI. Psicanálise I. In: Obras Completas. São Paulo: Martins Fontes, 1991. P. 216.

5ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto I. Editora Perspectiva, Coleção Debates.

6ARAMAYO, Robert R. L’Optimisme Du Rêve Éternel D’Une Volonté Cosmique Chez Schopenhauer. In: La Raison Devoulée – Études Schopenhauriennes. Paris: J. Vrin, 2005.

7ARAMAYO. Op cit. P. 19.

8ARAMAYO. Op Cit. P. 21.

9SCHOPENHAUER. MVR. Op Cit. L IV, #68, pg. 397.

10CIORAN, Emil. Breviário de Decomposição (Précis de Décomposition). Tradução de José Thomaz Brum. Editora Rocco. Página 34.

11SCHOPENHAUER. MVR. Op. Cit. Livro II, #27, pg. 161.

12BARBOZA, Jair. Op cit. Pg. 60.

13CAEIRO, Alberto. Poemas Completos. Ed Martin Claret, Pg 34.

14ROSSET, Clément. Remarques Sur L’Esthétique de Schopenhauer. In: La Raison Devoulée – Études Schopenhauriennes. Paris: J. Vrin, 2005.

15MERLEAU-PONTY. A dúvida de Cézanne. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Pg. 120.

16ROSSET, C. Op Cit, pg. 141.

17ROSSET, C. Op Cit. P. 143.

18BARBOZA, Jair. A Metafísica do Belo de Arthur Schopenhauer. São Paulo: Editora Humanitas – FFLCH-USP, 2001. Introdução. Pg. 9.

19HUXLEY, Aldous. Moksha – textos sobre Psicodélicos e a Experiência Visionária (1931-1963). Organizado por Michael Horowitz e Cynthia Palmer. Ed. Globo, 1983, pg. 108-111.

20MOORE, Alan. The Mindscape of Alan Moore. Documentário inglês de Dez Vylenz e Moritz Winkler.

21ROSENFELD, Anatol. Schopenhauer, o filósofo do pessimismo.

22ROSSET, Clément. Écrits Sur Schopenhauer. Préface. Pg. 6. Paris: PUF, 2001.

23SVEVO, I. Profilo autobiografico di Italo Svevo. RSPS, p. 800-801.

24BORGES, Jorge Luis. Otras inquisiciones.

25ARAMAYO. Op Cit. Pg. 21.