NÃO HÁ REVOLUÇÃO SEM INDIGNAÇÃO MORAL – Reflexões sobre “O Jardineiro Fiel” (The Constant Gardener), de Fernando Meirelles, na companhia de Jankélévitch

“Para ter a coragem de fazer a revolução e de descer à rua, para passar da especulação à ordem completamente diferente da ação militante, para atravessar esse limiar vertiginoso, é preciso uma idéia-força, e essa idéia-força não pode nascer senão da indignação moral.”  JANKÉLÉVITCH, Vladimir (1903-1985), filósofo francês, em “O Paradoxo da Moral” (Ed. Papirus. Trad. Helena Esser dos Reis. Pg. 35)

 

O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener), lançado em 2005 e dirigido por Fernando Meirelles (Cidade de Deus, Ensaio Sobre a Cegueira), é um belíssimo filme que nos impulsiona a refletir as multiformes injustiças de que o mundo está repleto e, em meio a tanto caos e fúria, o florescimento desta força material ainda misteriosa e mal compreendida: a indignação moral. O cenário para este épico da militância anti-capitalista e anti-corporativa é uma África devastada pelas mazelas: superpopulação e sub-alimentação brutais, analfabetismo extremo, 80% dos casos de AIDS no mundo, corrupção política altamente disseminada, violência tribal fora-de-controle…

Como cereja do bolo macabro, a ganância e inescrupulosidade de mega-corporações farmacêuticas que usam os africanos como cobaias para o teste de seus remédios. Seja bem-vindo às escaldantes latitudes do “perigoso, decadente, pilhado e falido Quênia… que já fora britânico” (nas palavras de John Le Carré, autor do romance no qual o filme é baseado). 

Estamos durante a era do presidente Moi, que ficou no poder por mais de 20 anos (1978-2002). A escaldância do Sol é tremenda: 40ºC na sombra. Hienas e chacais são mais comuns que ratos (“uma boa hiena cheira sangue a 10 km de distância…”, p. 21). “As montanhas estão cheias de bandidos e tem tribos roubando o gado umas das outras. O que é normal… só que há dez anos tinham lanças e agora têm AKs-47s” (p. 19). 

O que seria de se esperar da esposa de um alto diplomata, a serviço da Rainha da Inglaterra, senão que se encerrasse no círculo da “pequena nobreza diplomática” que se esconde detrás de “portões de aço, cercas elétricas, sensores de janela e luzes de alarme para garantir sua preservação” (p. 37)? O heroísmo de Tessa (Rachel Weisz) está justamente em sua recusa desse comodismo preguiçoso, cúmplice dos horrores perpetrados contra os fracos. É este confortável trabalho na segurança de escritórios com vidro blindado o que ela recusa, preferindo a isto ganhar as ruas, adentrar as favelas de Kibera e visitar os mais miseráveis subúrbios de Nairóbi.

Tessa mistura-se às massas, à la Simone Weil, ao invés de lidar com elas somente através do anteparo de relatórios e estatísticas. Mais que isso: fornece abrigo em sua própria casa àqueles que despertam sua compaixão e necessitam de seu auxílio, a ponto de “sua casa parecer um albergue pan-africano para deficientes físicos e miseráveis” (p. 49). 

Há poucas personagens do cinema contemporâneo que ilustre tão bem o que significa ser um “ativista”, que encarne tão bem um ideal ativo de transformação social, e talvez este não seja um ídolo indigno para nossos conturbados tempos. Tessa se engaja nas mais variadas frentes: laboratórios de conscientização dos direitos sexuais; programas mundiais de alimentação; movimentos de homossexuais que brigam contra a discriminação; coletivos de mulheres vítimas de estupro ou violência etc. À medida que se conscientiza das corrupções sistêmicas que corrompem a vida política do governo Moi, vai crendo cada vez mais que o poder precisa ser melhor compartilhado entre os gêneros: em seu “feminismo” crê que é preciso “dar a África às mulheres e a coisa vai funcionar” (p. 23).

É com imensa temeridade que Tessa se engaja na luta contra graúdos inimigos, pondo sua sobrevivência em risco ao mexer no vespeiro corporativo e cutucar a onça com vara curta. A vigorosa dedicação de Tessa a causas assistenciais é amplamente reconhecida pelos diplomatas: “Neste ritmo, terá salvado a África inteira quando sairmos daqui”, diz Justin (Ralph Fiennes), em um momento de ternura hiperbólica, admirando a esposa por “fazer de tudo, desde limpar bundinha de bebês até reunir-se com advogados para tomar conhecimento de direitos civis” (p. 26). 

Nem Meirelles nem Carré poupam no lirismo quando empreendem o retrato desta jovem heroína, corajosa até a temeridade, extremamente ativa na luta contra as injustiças, dotada de “um sorriso sábio demais para sua idade” (pg. 51). E injustiças há em violenta profusão no Quênia, como mesmo o diplomata resignado e submisso aos superiores, Sandy Woodrow, admite: “O governo Moi é extremamente corrupto. O país está morrendo de AIDS. Está falido. Não existe nenhum canto dele, do turismo à vida selvagem, da educação ao transporte, da saúde às comunicações, que não esteja caindo aos pedaços por causa da fraude, da incompetência e do descaso. (…) Ministros e funcionários estão desviando caminhões de comida e de medicamentos destinados a refugiados famintos, às vezes com a conivência de empregados das agências de assistência…” (p. 52) 

A diferença entre Tessa e a grande maioria do corpo diplomático é que ela arregaça as mangas e parte para a batalha. Os outros cruzam seus braços, querendo acreditar, talvez com a mais deslavada má-fé, que o mais importante é proteger os interesses comerciais britânicos: “fazer negócios com os países emergentes os ajudaria a emergir” (p. 53). Contra tal discursinho padrão, Tessa esbraveja: “O comércio não está tornando os pobres ricos. Lucros não compram reformas. Compram funcionários corruptos do governo e contas bancárias na Suíça. (…) A mãe das democracias uma vez mais se revela como uma mentirosa hipócrita, pregando a liberdade e os direitos humanos para todos, exceto onde espera faturar uma grana.” (p. 53) Pedrada.

Gosto que esse seja um filme de impacto global que teve seu leme comandado, e com mãos de mestre, por um diretor brasileiro tão ousado, inteligente, renovador – e que já havia marcado a história do cinema nacional com seu Cidade de Deus. Meirelles estreou com muita dignidade nas produções gringas com Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira. Aprecio este “ponto de vista de Terceiro Mundo” que domina o filme estrelado por Weisz, escancarando o modo grotesco como as grandes corporações (e os governos federais do primeiro mundo, que frequentemente são coniventes a elas) utilizam a África como um quintalzinho onde a vida é barata e desimportante – e cuja exploração paga muitos dos benefícios da nossa querida civilização ocidental… E isso faz séculos e séculos.

Gosto do fato de que Fernando Meirelles tenha convencido toda sua equipe a filmar realmente no Quênia, ao invés de alguma outra locação fingida, obrigando a equipe a realmente se afogar naquele ambiente sufocante de calor e de miséria, para que pudessem conhecer o real que pretendem representar… Muita da autenticidade do filme vem dos habitantes reais de Nairóbi, aparecendo frequentemente na tela, sem disfarces, sem atuação e sem roteiro. Isso dá um clima de realidade e de improviso a um filme que, também no seu estilo de filmagem e montagem, é sempre vivo, urgente, pulsante como o coração de sua desassossegada protagonista.

O filme demonstra bem o quanto as empresas procuram fabricar uma fachada de preocupações humanitárias (testes gratuitos para tuberculose, remédios gratuitos supostamente distribuídos para a população…), que escondem interesses e atos repugnantes.

A KDH e a Three Bees, as empresas fictícias do filme, à primeira vista parecem preocupadas com a melhora das condições de saúde da população africana, mas depois se torna claro que estão somente usando os quenianos como COBAIAS para o teste de remédios que podem causar sérios e letais efeitos colaterais. Os quenianos aqui não são nada muito diferente de ratos de laboratório que, se acabam por morrer, bem… o cinismo e a arrogância dos ocidentais relega à trivialidade. “Só estamos matando gente que iria morrer de qualquer jeito”, ousa dizer Sandy, um dos empresários. 

Gosto do medo que o filme nos causa a respeito da nossa futura dependência em relação a alguma dessas empresas farmacêuticas – cada dia mais poderosas, tão astronômicas são as vendas dos Prozacs, dos Viagras, das Aspirinas… – na eventualidade de uma grande epidemia global. 

Virando pelo avesso o hino utópico “Imagine” de John Lennon, vamos fazer um exercício de compor um quadro de uma “Imagine” distópica. Imaginem só quão conveniente seria, para o capitalismo em geral, se uma doença perigosa se disseminasse mundo afora e uma empresa multinacional tivesse o monopólio do medicamento para curá-la. Imaginem os preços do produto subindo com o aumento exponencial da procura. Imaginem os estratos mais pobres da população mundial sem condições de comprar o remédio. 

Imaginem os governos nacionais incapazes de intervirem diante das políticas impostas pelas empresas privadas. Imaginem um quinto, um quarto, um terço da humanidade extinta, e justamente os mais pobres… Que formidável ferramenta de “limpeza étnica” não seria esse vírus! Temo ao imaginar que alguma empresa farmacêutica tenha a idéia diabólica de criar uma doença e espalhá-la pelo mundo só para ter o prazer de depois vender os medicamentos para uma Terra que se tornou, inteirinha, uma clínica… 

É exagerar na paranóia? É ver malignidade demais nas multinacionais? Não sei. I wouldn’t be so sure. Gosto que “O Jardineiro Fiel”  seja uma “escola da suspeita” e nos deixe alertas e desconfiados. This way we won’t get fooled again…

Há razões bem mais “pessoais” que explicam porque este filme de Meirelles é pra mim tão querido, altamente prezado: ele me comunica uma energia que talvez provenha da empatia com a indignação alheia. Também é um exemplo inspirador de ousadia a um só tempo moral e física. Um filme que eu ousaria chamar até mesmo de “sábio”, por mais incomum que seja dar este adjetivo a uma obra da sétima arte (mas por que o cinema não deveria aspirar, também ele, à sabedoria?). Leio nele, latentes, estas mensagens de sophia: o excesso de prudência não nos deve impedir de ousar coragens. Que ousemos levantar pedras para ver as sujeiras que há debaixo delas. Que não tremamos na base à voz altissonante das autoridades – armadas até os dentes! – que mandam-nos desviar o olhar, engolir a raiva, não meter o nariz onde não somos chamados… 

Tessa, mestra e professora do afeto sem preconceito, da audácia transformadora, da temeridade jubilosa, da indignação impulsionante, da luta que se enfrenta no ardor da certeza de sua dignidade e de sua urgência, é uma mulher sábia em um mundo transtornado por injustiças multiformes.

 A tragicidade do filme está no fato de que o “jardineiro fiel” vivido por Fiennes é o sobrevivente de uma catástrofe pessoal e coletiva – a exclusão violenta de Tessa deste mundo dos vivos, que não deixa de evocar exemplos concretos, que atravessam a história, como Flora Tristán, Rosa Luxemburgo ou Marielle Franco. A fidelidade que ele deve a Tessa transcende a própria coexistência dele entre os vivos: é lealdade a uma morta, ao legado, à chama moral que a animou enquanto vivia.

É trágico que pessoas assim tenham que pagar com a vida, como formigas bradando contra elefantes e sendo por eles esmagadas. Ou como pássaros selvagens abatidos em pleno vôo pelos rifles dos donos da bufunfa. Mas é bom que tenham existido pessoas assim, e que existam ainda! Espero que povoem os amanhãs.

“Um outro mundo é possível!” não precisa ser um mote de idealistas iludidos, mistificantes, com a cabeça perdida nas nuvens dos ideais: pode ser o grito de guerra de realistas lúcidos e aguerridos. 

Negar esta possibilidade é que é uma loucura: a mudança não é só possível, é obrigatória e necessária! “There is no refuge from change in the cosmos” [“Não há refúgio contra a mudança no universo”], ensinava Carl Sagan. E a Humana História está tão inserida no cosmos quanto todo o resto. Ao confrontar-se com as imensidões siderais, em meio às quais os humanos aparecem em dimensões minúsculas, concretamente “microscópicas”, Sagan sugere que a Natureza “não é nem hostil, nem benigna, mas simplesmente indiferente aos interesses humanos”. Sim: mas não cortemos os pulsos tão cedo! Pulsos servem também para serem erguidos aos brados! E com pulsos unidos também se constroem rodas-de-dança, cordões humanos, cirandas..

Se não formos nós aqueles a lutar pelos interesses humanos, quem irá? Minha convicção, baseada em ampla experiência, é a de que não há ninguém gerindo este planeta lá de cima, sentado nas nuvens, e é quase inacreditável pensar que bilhões e bilhões de pessoas ainda não tenham percebido que o céu de Deus está vazio – apesar de estar repleto de estrelas. Não é de oração que precisamos: é de conscientização, informação, ação coletiva, simpatia, sinergia. Mão na massa ao invés de mão ao crucifixo! 

“Platão, num diálogo intitulado Teeteto, faz Sócrates falar sobre o sábio Tales: ‘Somente o corpo do sábio tem localização e morada na cidade. Seu pensamento voa por toda parte, sondando os abismos da terra e seguindo a caminhada dos astros […] sem nunca se deixar descer de volta ao que está imediatamente próximo. Assim, Tales observava os astros e, olhos fixos no céu, caía num poço. Uma trácia, criada viva e trocista, caçoa de seu zelo em saber o que acontece no céu, logo ele, que não sabia ver o que tinha diante de si, a seus pés. Essa caçoada vale contra todos os que passam a vida filosofando.’ (174 a-b) Esse exemplo mostra portanto que um sábio não deve olhar unicamente para o seu modelo ideal e racional, mas deve igualmente manter um olhar na terra firme, isto é, na realidade.” – JANKÉLÉVITCH, Vladimir.  Curso de Filosofia Moral.  Ed. Martins Fontes, 2008, Pg. 110. Trad. Eduardo Brandão

Rezar é perda tempo: ninguém lá de cima nos auxilia. Não chove jamais um maná, uma graça, um milagre: ter fé é perder a vida na estação, é desperdiçar tempo precioso no aguardo de um trem que não virá. Esperar Deus e esperar Godot, se são Beckett me permite uma blasfêmia, é a mesmíssima coisa… E que tédio!

Esperar Deus é ser o amante frustrado que derrama lágrimas no deserto implorando a vinda daquele que nunca virá. Quero um heroísmo novo! Que seja de uma heroína sem deus, uma heroína que não luta pelo outro mundo mas por este! Que não deseja o Paraíso, mas a Justiça! Que teme menos a morte do que uma vida indigna! Que não se abstêm de pôr sua carcaça em risco na tentativa de auxílio àqueles em situação de urgentíssima necessidade. Sim: por que não fazer de Tessa uma de nossas novas heroínas? Por que não amá-la, imitar seus trejeitos hippies, cair com toda a vida na estrada da alteridade? Por que não ousar este mergulho na realidade, inclusive na mais dura, na mais amarga, na mais letal das realidades?

Tessa é capaz de inflamar nossa apatia, espantar nossa letargia, com os poucos flashs de sua vida que Meirelles nos permite observar pelo buraco de fechadura de seu filme, auxiliado pelo talento e pela beleza descomunais de Rachel Weisz.

 Ela é amor que arde, e que arde tão alto que não consegue conter-se nos limites do privado, de uma relação única, de uma jaula familiar. Ela é aquele raro tipo de pessoa que consegue ir além das dimensões de Eros e Philia e consegue alçar-se até Agapé: tudo indica que é capaz de caridade especialmente por seus dons de empatia, de conexão, de vínculo, de espontaneidade jorrante… 

Tessa é como uma santa laica lutando para salvar alguns despossuídos que estão sendo vitimados pelo capitalismo neoliberal, nova face do velho colonialismo. Neoliberalismo, aliás, que é outro nome para o velho capitalismo selvagem que quer Estados nacionais sendo geridos como fantoches por mega-corporações transnacionais cujos métodos de maximização de lucros não são apenas questionáveis… são criminosos! 

Será que não há situações em que a caridade deva emergir, não porque o Papai-do-Céu mandou nem porque queremos alcançar a salvação de nossas almas, mas sim como a emergência de um vulcão que se inflama de indignação diante dos sofrimentos de outros humanos e de suas necessidades absolutamente urgentes? 

Será mesmo que é digno ficar de bunda na cadeira, mascando chicletes e babando frente à novela, fiel a um trabalho que não se ama e aos mil consumos que não nos satisfazem, ao invés de unir forças e arregaçar as mangas, a fim de lidar com as injustiças grotescas que maculam o planeta? E o que pode o cinema, como mobilizador de afetos, para inspirar a fazermos juntos uma outra realidade possível, menos sórdida, mais camarada, transcendendo a atual condição em que tantas mortes imerecidas e tantas dores desnecessárias ainda imperam?

Se o filósofo Jankélevitch tem razão ao vincular a revolução à necessidade de uma indignação moral que a instigue – “para ter a coragem de fazer a revolução e de descer à rua, para passar da especulação à ordem completamente diferente da ação militante, para atravessar esse limiar vertiginoso, é preciso uma idéia-força, e essa idéia-força não pode nascer senão da indignação moral”, escreve o grande pensador -, então não se pode desprezar o cinema como força que difunde, através da nossa identificação com personagens representados na telona, a possibilidade de incandescência destas indignações sublimes e revoltas magníficas sem as quais a nossa vida coletiva chafurda no lodaçal dos imobilismos cretinos ou dos retrocessos bárbaros.

Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro – http://www.acasadevidro.com

 

“A simpatia é o ato pelo qual meus irmãos me ajudam a carregar minha cruz, isto é, compartilham ativamente meu destino, participam do nosso destino comum, atestam por sua solidariedade essa comunidade de essência de todas as criaturas que era, segundo Schopenhauer, o fundamento da piedade e, segundo Proudhon, o princípio da justiça.” – Vladimir Jankélévitch (1903-1985), filósofo francês, professor da Sorbonne (de 1951 a 1979), em seus Cursos de Filosofia Moral. Editora Martins Fontes, 2008, Pg. 211.

WALTER BENJAMIN: OS ANÉIS DA EXPERIÊNCIA E A HISTÓRIA DOS VENCIDOS – Por Eduardo Carli De Moraes

“Seria inútil desviar-se do passado para não pensar senão no futuro. O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; somos nós que para o construir devemos dar-lhe tudo, dar-lhe nossa própria vida. Mas para dar é preciso possuir, e não possuímos outra vida, outra seiva, senão os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós. De todas as necessidades da alma humana, não há nenhuma mais vital do que o passado… (…) A perda do passado, coletivo ou individual, é a grande tragédia humana, e nós jogamos fora o nosso como uma criança desfolha uma rosa. É antes de tudo para evitar essa perda que os povos resistem desesperadamente à conquista.”

– SIMONE WEIL em “O Desenraizamento”

PARTE 1: TRAUMAS HISTÓRICOS E O COLAPSO DA PARTILHA

Provérbios, ditados populares, parábolas, mitos, versos, refrões, contos: são tantas as invenções da humanidade para sedimentar seus aprendizados em palavra, para que possam se transmitir através das gerações os anéis da experiência! Logo no início de “Experiência e Pobreza”, Benjamin evoca a imagem de um pai que agoniza em seu leito de morte e compartilha com os filhos um “segredo”: haveria um tesouro escondido no vinhedo, e os filhos só o conquistariam caso cavassem sem folga.

“Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho.

Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: “Ele é muito jovem, em breve poderá compreender”. Ou: “Um dia ainda compreenderá”. Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos.

Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?” – WALTER BENJAMIN, “Experiência e Pobreza” (1933) [1]

Para este pai, o fato de estar prestes a embarcar para aquele continente do qual “nenhum viajante jamais retorna” (para usar a expressão do príncipe Hamlet), confere a seu verbo uma autoridade inédita: a palavra que emerge de um coração humano em tais circunstâncias é oferecida aos ouvidos do outro com uma densidade, urgência e gravidade desconhecidas pela palavra cotidiana, pois “os agonizantes são aureolados por uma suprema autoridade que a última viagem lhes confere”, como escreve Gagnebin [2].

Georg Lúkacs

É o que também aponta Lukács em um trecho de seu “A Teoria Do Romance”:

Em grandes momentos, bastante raros – em geral momentos de morte -, abre-se ao homem uma realidade na qual ele vislumbra e apreende, com uma fulgência repentina, a essência que impera sobre ele e ao mesmo tempo em seu interior, o sentido de sua vida. Toda a vida pregressa submerge no nada diante dessa vivência, todos os seus conflitos, sofrimentos, tormentos e erros por eles causados manifestam-se inessenciais e rasteiros. O sentido é manifestado, e os caminhos rumo à vida viva são franqueados à alma… [3]

A narrativa que nasceria desta situação existencial extrema seria, segundo Benjamin, confiada aos ouvintes como um anel de valor inestimável, já que nele se concentraria o ouro condensado de uma vida que descobriu seu próprio sentido e que se transmuta, na última hora, em conselho. Em contraste com este quadro comovedor de um agonizante que utiliza seu último alento para transmitir o tesouro de sua sabedoria aos que sobreviverão à sua partida, Benjamin, num texto de 1936, faz o diagnóstico cultural melancólico de que “a arte de narrar está em vias de extinção” e que “são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente” (#1 de “O Narrador”).

Benjamin alega que é cada dia mais difícil ouvir palavras como aquelas do pai que, já com um pé na cova, transmite suas vivências de modo a aconselhar e guiar aqueles que sobreviverão a ele. “É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”, afirma Benjamin. Escrito no entre-guerras, sob o impacto da maior carnificina bélica que a humanidade já havia presenciado até então, estes dois textos de Benjamin – “O Narrador” e “Experiência e Pobreza” – parecem marcados pela experiência traumática da guerra e pelos maus agouros que sinalizavam para novas hecatombes ainda por vir, talvez ainda mais cruéis dos que as já enfrentadas.

“A Primeira Guerra consagrou esta ‘queda’ da experiência e da narração”, comenta Gagnebin, “e aqueles que escaparam das trincheiras voltaram mudos e sem experiências a compartilhar. A Primeira Guerra manifesta, com efeito, a sujeição do indivíduo às forças impessoais e todo-poderosas da técnica, que só faz crescer e transforma cada vez mais nossas vidas de maneira tão total e tão rápida que não conseguimos assimilar essas mudanças pela palavra.”

Uma pungente representação cinematográfica de uma condição psicológica similar àquela que acometeu os soldados que voltavam mudos do campo de batalha encontra-se em The Pawnbroker, de Sidney Lumet. Neste filme, lançado em 1964, o protagonista é um judeu sobrevivente dos  campos de concentração, indelevelmente marcado pelos traumas ali vivenciados, pois perdeu esposa e filhos para a máquina mortífera da Solução Final.

Após o fim da guerra, migrou para Nova York mas permaneceu conectado às vivências, que mal consegue verbalizar, vinculadas ao extermínio realizado nos campos da morte do III Reich, tendo perdido a fé em Deus e na humanidade. Poucas vezes na história do cinema pudemos testemunhar uma atuação que comunica toda a dimensão de tormento psíquico e niilismo incurável de um ser marcado a ferro e fogo pelo temporal brutal da história.

Benjamin, já no entre-guerras, testemunha ocular e vítima histórica da ascensão do nazi-fascismo, já percebe que aquela geração “que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história” [6] teria se tornado incapaz de genuína narração, seja por excesso de traumas e feridas dificilmente verbalizáveis, seja por um ensimesmamento progressivo dos indivíduos nas conchas de si-mesmos. Este processo histórico é descrito por Jeanne-Marie Gagnebin como se segue:

O comportamento da burguesia do fim do século XIX, quando esse processo de perda de referências coletivas começou a ficar patente, caracterizou-se pelo seguinte: para compensar a frieza e o anonimato sociais criados pela organização capitalista do trabalho, ela tenta recriar um pouco de calor através de um duplo processo de interiorização.

No domínio psíquico, os valores individuais e privados substituem cada vez mais a crença em certezas coletivas, mesmo se estas não são nem fundamentalmente criticadas nem rejeitadas. A história do si vai, pouco a pouco, preencher o papel deixado vago pela história comum (são os inícios da psicanálise, poderíamos também acrescentar). Benjamin situa neste contexto o surgimento de um novo conceito de experiência, em oposição àquele de Erfahrung… o do Erlebnis (Vivência), que reenvia à vida do indivíduo particular, em sua inefável preciosidade, mas também na sua solidão.

(…) O indivíduo burguês, que sofre de uma espécie de despersonalização generalizada, tenta remediar este mal por uma apropriação pessoal e personalizada redobrada de tudo o que lhe pertence no privado. (…) Embora compreensível, esta reação só faz produzir a ilusão de estar em casa num mundo alienado; não consegue mascarar e, ainda menos, resolver essa separação entre público e privado que a sociedade capitalista exacerba. [7]

Esta tendência para o individualismo e o isolamento social que caracterizaria a modernidade capitalista, a perda da experiência coletiva e da “comunidade de destino” (para usar um termo de Ecléa Bosi), teria resultado no declínio da figura do narrador tal qual a conheceram outras civilizações, como no inescapável paradigma da Grécia Homérica. Segundo Gagnebin, em matéria para a revista Mente e Cérebro:

O ‘narrador’ autêntico, que não pode mais existir hoje, é caracterizado por Benjamin como o narrador épico, enraizado numa longa tradição de memória oral e popular, o que lhe permite colocar por escrito e contar aventuras representativas de experiências das quais todos os ouvintes/leitores podem compartilhar numa linguagem comum. O modelo originário sendo, para Benjamin como para Lukács (na Teoria do Romance, texto com o qual o ensaio de Benjamin dialoga) a Odisséia, relato exemplar de uma longa viagem cheia de provações e descobertas, da qual o herói sai mais rico em experiências e histórias, mais sábio portanto. (…) Essa capacidade infinita de lembrar e de contar (que Benjamin compara a um rio), como também nas Mil e Uma Noites, remete a uma sociedade cujos ritmos de trabalho e descanso (pelo menos para a aristocracia) são totalmente diferentes dos da organização capitalista. [8]

PARTE 2: A TRADIÇÃO ADOENTADA

Benjamin dedicou-se intensamente a refletir sobre o declínio da tradição nas sociedades capitalistas modernas. A modernidade seria o momento histórico da perda de um sentido comum: como a obra de Franz Kafka expressa tão bem, há uma dificuldade do sujeito em reconhecer-se como parte de um conjunto coerente, de uma comunidade mais ampla. Esta “doença da tradição” vinculado a este encolhimento da dimensão coletiva e esta “privatização” cada vez mais exacerbada dos indivíduos é um dos problemas mais discutidos por Benjamin.

Sem dúvida as descrições benjaminianas ressaltam o sentimento de desorientação, de falta de coordenadas, de melancolia que este desmoronamento da tradição provoca. Mas a reflexão de Benjamin não ficou só numa celebração da melancolia. Se, como a alegoria o manifesta, o sentido da totalidade se perdeu, isto se deve também, e mais ainda, ao fato de sentido e história estarem intimamente ligados. [9]

Baudelaire, uma das figuras paradigmáticas da modernidade que Benjamin se dedica a estudar, é “um lírico no auge do capitalismo” cuja obra têm como um de seus fios-condutores a questão da possibilidade da poesia lírica em nossa época. Em Baudelaire, como em muitos outros luminares da literatura moderna, haveria uma consciência aguda da mortalidade – e não só dos indivíduos, mas também das cidades onde estes vivem e caminham. A noção de que “nós, as civilizações, também somos mortais” (Paul Válery), impõe-se ao poeta criador das Flores do Mal: as mudanças da Paris na qual é um flanneur conduzem Baudelaire a considerar a capital francesa como dotada de uma certa fragilidade que Gagnebin descreve nos seguintes termos: “a morte não habita só os palácios de ontem, mas já corrói os edifícios que estamos erguendo”:

A cidade moderna não é mais um simples lugar de passagem em oposição à estabilidade da Cidade divina, mas o palco isolado de um teatro profano onde a destruição acaba por vencer sempre. (…) A ‘reurbanização’ de Paris destrói bairros inteiros, apaga o labirinto das ruazinhas medievais, abre grandes avenidas e alamedas ‘modernas’, num gesto arquitetônico no qual ruínas e fundações se confundem. (…) A busca incessante do novo só é, pois, uma agitação irrisória que mal recobre a atividade subterrânea e tenaz de um tempo mortífero. Segundo Benjamin, esta compreensão da temporalidade é inseparável da produção capitalista, em particular do seccionamento do tempo no trabalho industrial e da transformação dos produtos da atividade humana em mercadorias, ‘novidades’ sempre prestes a se transformarem em sucata. [10]

Segundo Löwy, Benjamin reconhece na obra baudelairiana uma denúncia de muitos males da modernidade, como por exemplo a transformação do trabalhador em autômato, metamorfose maligna já descrita ironicamente por Chaplin em seu Tempos Modernos:

Em seus escritos dos anos 1936-1938 sobre Baudelaire, ele retoma a ideia tipicamente romântica, sugerida em um ensaio de 1930 sobre E. T. A. Hoffman, da oposição radical entre a vida e o autômato, no contexto de uma análise, de inspiração marxista, da transformação do proletário em autômato. Os gestos repetitivos, vazios de sentido e mecânicos dos trabalhadores diante da máquina – aqui Benjamin se refere diretamente a algumas passagens d’O Capital de Marx – são semelhantes aos gestos autômatos dos passantes na multidão descritos por Poe e por Hoffmann. Tanto uns como outros, vítimas da civilização urbana e industrial, não conhecem mais a experiência autêntica (Erfahrung), baseada na memória de uma tradição cultural e histórica, mas somente a vivência imediata (Erlebnis) e, particularmente, o Chockerlebnis [experiência do choque] que neles provoca um comportamento reativo de autômato, “que liquidaram completamente sua memória” [11]

Há de se frisar, porém, que Baudelaire não têm em mente somente o tempo histórico, mas concebe o tempo como uma potência natural ou cósmica que age como uma entidade vampiresca, semelhante ao Cronos que, no quadro de Goya, devora seus próprios filhos. Como diz um poema das Flores do Mal, o Tempo é aquela entidade que “do sangue que perdemos, cresce e se fortifica.”

Ô douleur, ô douleur! Le Temps ronge la vie
Et l’obscur Emnemi qui nous ronge le couer
Du sang que nous perdons croît et se fortifie.

(Oh dor, oh dor! O tempo rói a vida
E o Inimigo obscuro que nos rói o coração
Do sangue que perdemos cresce e se fortifica.) [12]

De modo que a literatura teria como tarefa, como diz Gagnebin, “escrever aquilo que pertence à morte”, num gesto ao mesmo tempo de combate e de conivência: “Benjamin situa a origem da poesia baudelairiana nesta luta, perdida de antemão, contra o tempo devastador.” [13]

Talvez como antídoto contra esta tomada-de-consciência da mortalidade surja, como forte tendência da modernidade, uma incessante procura da novidade, uma fome devoradora por tudo o que está na moda. O “império do efêmero” (Lipovtsky) é o modus operandi da moda, fenômeno que George Bernard Shaw descreve como uma “epidemia induzida” e conduz tudo que é novo, em pouco tempo, ao estado de ruína.

Aquilo que hoje está na crista da onda do hype rapidamente envelhece e “sai de cartaz”, para usarmos uma expressão típica para falar dos blockbusters cinematográficos que somem depois de algumas semanas de exibição e alguns milhões de dólares arrecadados, caindo muitas vezes no completo ostracismo.

PARTE 3: A PERDA DA AURA

O declínio da narrativa genuína têm como fenômeno correlato a perda da “aura” das obras-de-arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Benjamin relembra-nos das transformações ocorridas, na história-da-arte, nas funções sociais das obras: elas outrora possuíram um alto valor de culto e eram investidas de potencialidades mágicas, mas isto foi sobrepujado pelo valor de exposição e comercialização quando passaram a ser produzidas em massa e em série.

Conforme a técnica progrediu, aumentou o grau de exponibilidade das obras-de-arte: o animal que o homem do paleolítico desenhava nas profundezas das cavernas não era “testemunhável” por quase ninguém; já os afrescos ou esculturas de santos nas catedrais medievais avançam um pouco neste quesito, mas as obras prosseguem só acessíveis a um pequeno círculo de pessoas; alguns séculos mais tarde, por exemplo na época da Renascença, quadros são pintados e bustos são esculpidos cuja mobilidade é bem maior e que podem “correr” vários museus europeus, sendo expostos para um público bem mais amplo do que aquele de uma madona fixa em um altar; já a fotografia e o cinema, produtos de uma época dotada de tecnologias extremamente desenvolvidas de produção de cópias, geram um grau de exponibilidade inaudito na história humana.

Este avanço da técnica, porém, acarreta o retrocesso da aura. Para compreendermos o que Benjamin entende por este conceito, uma boa opção é ouvir como ele explica a “aura” que envolve certas fotografias antigas, dos primórdios desta tecnologia. Antigamente, observando uma foto, o sujeito tinha a impressão de estar diante de uma “figura singular”, uma cena irrepetível, representações de “minutos únicos, há muito extintos” [14]. Nos termos de André Bazin, poderíamos dizer que uma fotografia era percebida como a “mumificação de um instante” – sendo que este instante estava irremediavelmente perdido, só restando-nos dele seu souvenir.

O “aqui-e-agora-do-original”, as circunstâncias materiais de sua produção, a tradição em que o produtor estava inserido, o testemunho histórico dos pósteros a quem estas produções foram legadas, tudo isso entra em eclipse quando a obra-de-arte, infinitamente reproduzível, se “descola” de sua história e aparece numa imediatidade que a esvazia. A obra-de-arte não é mais única e sem par; tornou-se igualzinha a milhares de outras, idênticas às mercadorias fabricadas em série nas linhas de montagem daquilo que a Escola de Frankfurt chamará de Indústria Cultural.

O declínio na unicidade e na autenticidade das obras-de-arte é exemplificada por Benjamin também de outros modos: os antigos gregos, quando esculpiam, estavam plenamente conscientes da irreprodutibilidade de seus trabalhos, de modo que cada escultura era absolutamente única e nascia com a intenção de durar para a eternidade. Um fotógrafo moderno, em contraste, sabe que sua fotografia pode ser reproduzida infinitamente, sendo republicada em jornais, revistas ou sites, atingindo um público imenso, sendo além do mais passível de retoques e recalques (o que diria Benjamin da fotografia na Era Digital, capaz de ser transformada radicalmente pela ação de “Photoshops”?).

Em resumo, Jeanne-Marie Gagnebin, lançando um olhar retrospectivo sobre todas as mudanças tecnológicas e suas ressonâncias na civilização e na cultura, conclui que o diagnóstico benjaminiano sobre uma tradição adoentada e indivíduos incapazes de partilhar experiências está intimamente conectada com a ascensão da burguesia, do mercantilismo, do capitalismo e do monstruoso desenvolvimento técnico financiado pelas classes dominantes:

Quando o tempo se torna uma grandeza econômica, quando se trata de ganhar e, portanto, de poupar tempo, a memória também se transforma. O lembrar infinito e coletivo da épica pré-capitalista deixa lugar à narração da vida de um indivíduo sozinho, que luta pela sobrevivência e pelo sucesso numa sociedade concorrencial. O espaço infinito da memória coletiva comum encolhe, dividindo-se em lembranças avulsas de histórias particulares contadas por um escritor solitário: é o advento de uma outra forma literária, o romance. [15]

PARTE 4: A AÇÃO HISTÓRICA DOS HOMENS

Apesar do ímpeto “nostálgico” que se pode perceber em muitas das formulações benjaminianas, e que Gagnebin alega ser “comum à maioria dos teóricos do desencantamento do mundo” [16], seria simplismo classificar Benjamin como um romântico que, melancólico pela harmonia perdida, anseia pelo retorno a um Éden primevo.

Gagnebin frisa que em Benjamin não há nenhum “projeto restaurativo ingênuo”, ou seja, nenhuma vontade retrógrada de “ressuscitar” o passado como este foi um dia. Esta seria uma ambição condenada ao fracasso, aliás, já que o passado não pode retornar em seu frescor primevo. Por que então se debruçar sobre o que foi, já que este ido é irrecuperável? “Contra o pessimismo de Adorno”, aponta Gagnebin, “Benjamin sempre insistirá nas perspectivas salvadoras que esta crise da tradição pode também oferecer à ação histórica dos homens.” [17]

A unicidade da obra de Walter Benjamin, a posição “singular e realmente única que ocupa no panorama intelectual e político do século XX”, proveria de uma reflexão filosófica que, apesar de fragmentária, seria dotada de uma “coerência fundamental”: é o que aponta Michael Löwy, que considera que a chave desta coerência é uma

“afinidade eletiva (no sentido de Goethe) construída por Benjamin entre três discursos heterogêneos: o romantismo alemão, o messianismo judaico e o marxismo revolucionário. O prodígio do pensamento benjaminiano seria, alega Löwy, ter conseguido realizar uma ‘fusão alquímica’ entre estes elementos, criando uma obra que aspira a nada menos do que “uma nova compreensão da história humana.” [18]

Quais seriam os contornos, pois, desta História Humana tal qual Benjamin a enxerga? Exploremos este terreno. Benjamin nos relembra com recorrência o fato de que a História “oficial” foi escrita pelos vencedores e opressores, e não pelos vencidos e oprimidos. Nesta historiografia imposta por aqueles que triunfaram há muito de ideológico, no sentido marxista do termo (uma visão invertida dos fatos), ou mesmo de descaradamente deturpado e mentiroso.

“Benjamin ressalta que a narração da historiografia dominante, sob sua aparente universalidade, remete à dominação de classe e às suas estratégias discursivas”, afirma Gagnebin. “Esta narração por demais coerente deve ser interrompida, desmontada, recortada e entrecortada” [19] Não devemos aceitar irrefletidamente e sem crítica aquilo que a historiografia nos conta, mas sim rasgar o véu de Maia das ideologias e dos interesses de classe.

Em oposição a esta História triunfante em que os Vencedores contam suas façanhas e celebram a si mesmos, o Benjamin dos anos 1930 destaca a necessidade de que a “crítica filosófico-histórica deve extrair, por debaixo da camada terrosa da história oficial, uma história dos excluídos, dos esquecidos e dos vencidos” [20].

Haveria, pois, um imperativo ético e político de contar a história também da perspectiva dos explorados, dos torturados, dos mortos – tarefa, aliás, que alguns autores posteriores a Benjamin, como Ecléa Bosi, Eric Hobsbawn e Howard Zinn, procuraram concretizar. Benjamin, assim, ultrapassa a mera nostalgia romântica por um Paraíso Perdido ao destacar a necessidade de uma ação política verdadeira materialista, em favor da maioria dos excluídos da cultura. Os trechos de Benjamin citados a seguir, retirados de seu texto “Sobre o Conceito de História”, representam uma boa síntese de sua compreensão da História:

Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo que quer apoderar-se dela. (…) O dom de despertar no passado as centelhas de esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

A empatia com o vencedor beneficia sempre os dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.

O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados. […] Tanto o ódio quanto o espírito de sacrifício se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados. [21]

Cumpre frisar, pois, que Benjamin jamais aprovaria a atitude fatalista e apática de quem chora por um passado perdido, permanecendo, no presente, de braços cruzados. O que fazer, tendo em vista a queda da Experiência Coletiva, devidamente partilhada, em tempos de individualismo? Como resgatar o poder da partilha de vivências que faz da narração algo tão essencial à história humana? Gostaríamos de sugerir aqui, brevemente, uma via percorrida em terras brasileiras por uma intelectual altamente “benjaminiana”: Ecléa Bosi.

Em sua monumental obra Memória e Sociedade – Lembranças de Velhos [22], Ecléa Bosi, embasando-se teoricamente nas reflexões de Benjamin, Bergson, Arendt e Halbwachs (dentre outros), constrói um mosaico de histórias narradas por idosos paulistas, pintando o “mapa afetivo de uma cidade perdida”. Neste processo, Bosi partilha com seus leitores as estórias que ouviu dos velhinhos, revelando “um tesouro de que [cada idoso] é guardião”, ao mesmo tempo que “deixa exposta uma ferida aberta em nossa cultura”, como diz Marilena Chauí: “a velhice oprimida, despojada e banida”. A arte de narrar entrou em decadência pois a troca de experiências, ou a vivência de “comunidade de destino”, também se eclipsou. Mas, nesta obra, “a tradição dos oprimidos”, diz Chauí, “(re) conquistou o direito à palavra”. [23]

O procedimento de Ecléa traz à lembrança as andanças do próprio Benjamin em seu exílio em Ibiza, quando este procurou conversar com a gente comum da ilha a fim de coletar estórias direto na fonte [24]. Marilena Chauí acredita que a obra de Ecléa possa ser sintetizada em uma fórmula: “o velho não tem armas; nós é que temos de lutar por ele”: expande:

Por que temos que lutar pelos velhos? Porque são a fonte de onde jorra a essência da cultura, ponto onde o passado se conserva e o presente se prepara, pois, como escrevera Benjamin, só perde o sentido aquilo que no presente não é percebido como visado pelo passado. O que foi não é uma coisa revista por nosso olhar, nem é uma ideia inspecionada por nosso espírito – é alargamento das fronteiras do presente, lembrança de promessas não cumpridas. Eis porque, recuperando a figura do cronista contra a do cientista da história, Benjamin afirma que o segundo é uma voz despencando no vazio, enquanto o primeiro crê que tudo é importante, conta e merece ser contado, pois todo dia é o último dia. E o último dia é hoje. [25]

Os velhos, dotados da amplidão de experiência e da capacidade de conselho, desprezados por uma sociedade capitalista enceguecida pelo Império do Efêmero e pela Tirania da Novidade, recobram seus direitos e recebem da escuta e da pena de Ecléa Bosi seu humilhado direito à Voz! Através da rememoração, diz Ecléa, o velho intenta

Tranquilizar as águas revoltas do presente alargando suas margens (…) Sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos atentos, ressonância. (…) A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda. Repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens caras, pela desaparição de entes amados, é semelhante a uma obra de arte. [26]

Ecléa Bosi, seguindo no rastro de Simone de Beauvoir, sustenta que a “a sociedade industrial é maléfica à velhice”, isto é, em termos benjaminianos, o industrialismo aniquila a narração coletiva e a transmissão da experiência: “nela todo sentimento de continuidade é destroçado, o pai sabe que o filho não continuará sua obra e que o neto nem mesmo dela terá notícia” (Chauí).

De modo altamente benjaminiano, Chauí mostra, em seus apontamentos sobre Memória e Sociedade, que uma ação “daninha e sinistra” é responsável pelo “sufocamento da lembrança”: “a história oficial celebrativa cujo triunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos.”

O cinema latino-americano já dedicou-se ao tema algumas vezes – como, por exemplo, no clássico argentino “História Oficial” (1985), de Luis Puenzo, que revela detalhes sobre a Ditadura Militar (1973-1986) e da resistência das “mães da Plaza de Maio que desfilam, até hoje, colos ultrajados pela falta de seus rebentos, enxovalhando semanalmente seus milicos”. O filme, como aponta Toassa, traz como protagonista “uma professora de história, Alicia, que descobre que sua filha adotiva (Gaby) teve como mãe uma moça torturada e morta nos porões da ditadura. A narrativa retrata a laboriosa passagem da história oficial à história dos vencidos, tão cantada por Benjamin.” [27]

Em síntese, Gagnebin aponta que “o motivo essencial da filosofia da história de Benjamin, desde o livro sobre o barroco até o texto póstumo das Teses, é: a exigência de rememoração do passado não implica simplesmente a restauração do passado, mas também uma transformação do presente tal que, se o passado perdido aí for reencontrado, ele não fique o mesmo, mas seja, ele também, retomado e transformado.” [28] Benjamin, pois, quer manter sempre uma “abertura sobre o futuro, um inacabamento constitutivo”, portas e janelas sempre abertas para a “emergência do diferente”! [29]

* * * * *

PARTE 6: AFINIDADES ELETIVAS – ROMANTISMO, MARXISMO REVOLUCIONÁRIO, JUDAÍSMO MESSIÂNICO

Benjamin é classificado por Michael Löwy como um dos“marxistas românticos”, categoria que se aplicaria também a Ernst Bloch, Herbert Marcuse e José Carlos Mariategui. Löwy explica que tal rótulo lhe parece adequado já que refere-se “a uma forma de pensamento que é fascinada por certas formas culturais do passado pré-capitalista, e que rejeita a racionalidade fria e abstrata da civilização industrial moderna – mas que transforma esta nostalgia em força na luta pela transformação revolucionária do presente.” [30]

O romantismo, pois, não é compreendido aqui apenas como uma escola literária do século XIX, mas como

algo muito mais vasto e profundo: a grande corrente de protesto contra a civilização capitalista/industrial moderna, em nome de valores do passado, que começa no século XVIII com Rousseau e que persiste, passando pela Frühromantik alemã, pelo simbolismo e pelo surrealismo, até os nossos dias. Trata-se, como o próprio Marx já constatara, de uma crítica que acompanha o capitalismo como uma sombra a ser arrastada desde o seu nascimento até o dia (bendito) de sua morte. Como estrutura de sensibilidade, estilo de pensamento, visão do mundo, o romantismo atravessa todos os domínios da cultura – a literatura, a poesia, as artes, a filosofia, a historiografia, a teologia, a política. Dilacerado entre nostalgia do passado e sonho do porvir, ele denuncia as desolações da modernidade burguesa: desencantamento do mundo, mecanização, reificação, quantificação, dissolução da comunidade humana. Apesaar da referência permanente à idade de ouro perdida, o romantismo não é necessariamente retrógado: no decorrer de sua longa história, ele conheceu tanto formas reacionárias quanto formas revolucionárias. [31]

Contrastando duas visões de mundo em choque, Löwy explicita que “se a civilização capitalista/industrial moderna, tal como percebeu Max Weber magistralmente, é caracterizada pelo desencantamento do mundo, a visão romântica do mundo, da qual o surrealismo é ‘a cauda do cometa’ (Breton), é antes de tudo carregada pela ardente – às vezes desesperada – aspiração a um re-encantamento do mundo.” [32]

Ora, mas este projeto de re-encantar o mundo, que Löwy reconhece como marca do romantismo, pode se manifestar de várias maneiras: “enquanto os românticos conservadores sonhavam com a restauração religiosa, os românticos noirs, de Charles Maturin a Baudelaire e Lautréamont, não hesitaram em escolher o campo do Mefistófeles faustiano, este ‘espírito que diz sempre não’…” [33]

O surrealismo se inseriria bem mais neste segundo “time”, já que “nada é mais abominável para os surrealistas do que a religião em geral e a católica apostólica romana em particular; Benjamin não se engana ao insistir na ‘revolta amarga contra o catolicismo a partir da qual Rimbaud, Lautréamont, Apollinaire engendraram o surrealismo’ (Benjamin 1971, pp. 299-301)” [34]. Benjamin teria reconhecido no surrealismo, pois, uma tentativa de reencantamento do mundo que utilizava-se mais da poesia e do mito do que da religião – o que Löwy chama de “iluminações profanas”.

Assim se explica a fascinação e o interesse ardente de Benjamin pelo surrealismo.

Trata-se de uma abordagem que atravessa vários escritos de Benjamin: a utopia revolucionária passa pela redescoberta de uma experiência antiga, arcaica, pré-histórica: o matriarcado (Bachofen); o comunismo primitivo; a comunidade sem classe nem Estado; a harmonia originária com a natureza; o paraíso perdido, do qual somos afastados pela tempestade ‘progresso’; a ‘vida interior’ em que a adorável primavera ainda não perdera seu perfume (Baudelaire). Em todos estes casos, Benjamin não preconiza um retorno ao passado, mas – segundo a dialética própria do romantismo revolucionário – um desvio pelo passado em direção a um futuro novo, integrando todas as conquistas da modernidade desde 1789. [35]

Löwy destaca ainda o “parentesco” de pensamento entre Benjamin e Pierre Naville, autor da obra La Révolution et les intellectuels (qualificada por Benjamin como “excelente”) quanto à questão da “organização do pessimismo”:

Nada parece mais derrisório e idiota aos olhos de Benjamin que o otimismo dos partidos burgueses e social-democratas, cujo programa político não passa de um ‘mau poema de primavera’. Contra este ‘otimismo sem consciência’, este ‘otimismo de diletantes’, inspirado pela ideologia do progresso linear, ele descobre no pessimismo o ponto de convergência efetivo entre surrealismo e comunismo. Desnecessário dizer que não se trata de um sentimento contemplativo e fatalista, mas de um pessimismo ativo, ‘organizado’, prático, inteiramente voltado para o objetivo de impedir, por todos os meios possíveis, o advento do pior. [36]

PARTE 7: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Unindo as doutrinas do pessimismo ativo ao messianismo judaico e ao “marxismo romântico”, Benjamin enxerga a história tendo a “salvação” como objetivo último. Em Aviso de Incêndio, Löwy destaca que “Benjamin gostava de se comparar a Janus, que com uma das faces olha para Moscou e com a outra para Jerusalém. Mas esquece-se frequentemente de que o deus romano tinha duas faces mas uma única cabeça: marxismo e messianismo são apenas duas expressões de um único pensamento.” [37]

A redenção apenas da esfera econômica não parece lhe satisfazer inteiramente: ele espera também pela redenção do intelecto e da sensibilidade, pela ressurreição das aptidões narrativas e criativas humanas, por uma nova concepção da História, que honre os humilhados e faça justiça aos oprimidos. É como se Benjamin sustentasse que não quer uma revolução que não reabilite os laços humanos a fim de que a partilha de experiência existencial volte a tornar-se realidade e os aprendizados realizados junto ao passado possam ser combustível para conceber e concretizar um futuro menos perverso. “A aspiração de Benjamin”, pergunta-se Löwy, “não é – como a de Baudelaire e de André Breton – a criação de um mundo novo onde a ação seria enfim irmã do sonho?” [38]

Em síntese: a modernidade capitalista acarretaria todo um séquito de males como o individualismo, a concorrência, a obsessão com lucros, o “adoecimento” da tradição, a diminuição na capacidade humana de narrar e compartilhar experiências etc. Segundo Hannah Arendt, citada por Ecléa Bosi em epígrafe, “memória e profundidade são o mesmo, ou antes, a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação” [39]. Benjamin talvez assinasse embaixo, concordando que é necessário um relacionamento fecundo com o passado se quisermos escapar a um imediatismo raso e a uma compreensão superficial de nossa realidade histórica e das potencialidades de transformação que nela existem.

“A perda do passado, coletivo ou individual, é a grande tragédia humana”, escreve Simone Weil, autora que sofreu na pele a humilhação da condição operária e soube lamentar-se como poucos sobre nossa condição de “desenraizados”. “E nós jogamos fora o nosso como uma criança desfolha uma rosa…” [40]

Contra este desfolhamento do passado, cujas pétalas são lançadas na sarjeta da história por descuidados e desmemorados imediatistas, convêm sempre manter na lembrança a conclamação benjaminiana à partilha de vivências, ao compartilhamento da sabedoria adquirida, ao constante passar-adiante, de geração em geração, dos anéis da experiência. Pois só assim – neste ativo enraizamento! – podemos inventar um mundo novo.

Por Eduardo Carli De Moraes

Trabalho apresentado à Prof. Carla Milani Damião
Em disciplina cursada no Mestrado em Filosofia da FAFIL – UFG

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] BENJAMIN, W. Obras Escolhidas I – Magia e Técnica, Arte e Política. Ed. Brasiliense, Pg. 114.

[2] GAGNEBIN, JEANNE-MARIE. História e Narração em Walter Benjamin. Ed. Perspectiva. Pg. 58.

[3] LUKÁCS, G. A Teoria Do Romance. in: “Tolstói e a extrapolação das formas sociais de vida”, pg. 156. Ed. 34.

[4] BENJAMIN, W. Obras Escolhidas I – Magia e Técnica, Arte e Política. Ed. Brasiliense, Pg. 198.

[5] GAGNEBIN, JEANNE-MARIE. História e Narração em Walter Benjamin. Ed. Perspectiva. Pg. 59.

[6] BENJAMIN. Op Cit, Pg. 114.

[7] GAGNEBIN. Op Cit, Pg. 59-60.

[8] GAGNEBIN. Memória , história e narrativa. In: Revista Mente e Cérebro – Filosofia – O Homem No Caos do Capitalismo Moderno (Adorno/Horkheimer/Fromm/Benjamin). Editora Duetto. Pg. 60.

[9] GAGNEBIN. História e Narração em Walter Benjamin. Ed. Perspectiva. Pg. 42.

[10] Op Cit. Pg. 50.

[11] LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de Incêndio. Ed. Boitempo. Pg. 28.

[12] BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Poema “L’Enemi” (O Inimigo).

[13] GAGNEBIN, Op Cit. Pg. 52.

[14] BENJAMIN. Obras Escolhidas Vol. 1. Pg. 101.

[15] GAGNEBIN. Memória , história e narrativa. In: Revista Mente e Cérebro – Filosofia – O Homem No Caos do Capitalismo Moderno (Adorno/Horkheimer/Fromm/Benjamin). Editora Duetto.

[16] GAGNEBIN. História e Narração em Walter Benjamin. Pg. 56.

[17] Op Cit. Pg. 31.

[18] LÖWY, M. Walter Benjamin: Aviso de Incêndio. Editora Boitempo.

[19] GAGNEBIN. Op Cit. Pg. 17.

[20] Op Cit. Pg. 43.

[21] BENJAMIN. Sobre o Conceito de História.

[22] BOSI, ECLÉA. Memória e Sociedade – Lembranças de Velhos. Editora Companhia das Letras. 15ª Edição.

[23] CHAUÍ, M. Op Cit. Pg. 18 – 30.

[24] Experiências descritas no livro de Vicente Valerio, Experiencia y pobreza – Walter Benjamin em Ibiza, 1932-33. Barcelona, Ediciones Península, 2011.

[25] CHAUÍ. Op Cit. Pg. 18.

[26] BOSI. Op Cit. Pg. 22.

[27] TOASSA, Gisele. A Bolsa da Valentia – artigo sobre o filme “A História Oficial”. Na internet: http://gtoassa.blogspot.com/search?q=hist%C3%B3ria+oficial

[28] GAGNEBIN. História e Narração… Pg. 21.

[29] Op Cit. Pg. 14.

[30] LÖWY, M. A Estrela da Manhã – Surrealismo e Marxismo. Ed. Civilização Brasileira. Pg. 32.

[31] Op Cit. Pg. 83.

[32] Op Cit. Pg. 43.

[33] Op Cit. Pg. 87.

[34] Op Cit. Pg. 42.

[35] Op Cit. Pg. 46.

[36] Op Cit. Pg. 49.

[37] LÖWY. Aviso de Incêndio. Pg. 36.

[38] Op Cit. Pg. 54.

[39] ARENDT, H. Citada por Ecléa Bosi, Memória e Sociedade, epígrafe.

[40] WEIL, S. O Desenraizamento. Citado na epígrafe deste trabalho.

LIVROS UTILIZADOS

BENJAMIN, W. Obras Escolhidas I – Magia e Técnica, Arte e Política. Ed. Brasiliense. 1985.

BOSI, ECLÉA. Memória e Sociedade – Lembranças de Velhos. Editora Companhia das Letras. 15ª Edição. 2009.

GAGNEBIN. Memória, história e narrativa. In: Revista Mente e Cérebro – Filosofia – O Homem No Caos do Capitalismo Moderno (Adorno/Horkheimer/Fromm/Benjamin). Editora Duetto. Pg. 60.

GAGNEBIN, JEANNE-MARIE. História e Narração em Walter Benjamin. Ed. Perspectiva. 1999.

LÖWY, M. A Estrela da Manhã – Surrealismo e Marxismo. Ed. Civilização Brasileira.

LÖWY, M. Aviso de Incêndio. Ed. Boitempo. 2005.

LUKÁCS, G. A Teoria Do Romance. Editora 34. 2000.

LUKÁCS. O Romance Como Epopéia Burguesa. In: Arte e Sociedade – Escritos Estéticos 1932-1967. Editora UFRJ, 2009, trad. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto.

VALERIO, V. Experiencia y pobreza – Walter Benjamin em Ibiza, 1932-33. Barcelona, Ediciones Península, 2011.

WEIL, S. O Desenraizamento. trad Maria Leonor Loureiro. Ed. Edusc, Bauru, 2001.

SIMONE WEIL: UMA FIGURA HUMANA FORA DO COMUM – Leia o texto magistral que José Paulo Paes escreveu sobre S. Weil, “Epopéia e Miséria Humana”

“Parece-me impossível imaginar para a Europa um renascimento que não leve em conta as exigências que Simone Weil definiu.” Albert Camus

Simone de Beauvoir

Uma das mulheres mais notáveis do último século, Simone de Beavoir, relembra com as seguintes palavras outra figura marcante do pensamento francês no século XX:

“Simone Weil me intrigava por causa de sua grande reputação de inteligência e seu modo extravagante de vestir-se. Uma grande fome acabara de devastar a China e me haviam contado que ao ouvir essa notícia ela tinha soluçado: essas lágrimas forçaram meu respeito ainda mais que seus dons filosóficos. Eu admirei um coração capaz de bater através do universo inteiro. Consegui um dia conversar com ela – e ela declarou num tom cortante que só uma coisa importava hoje sobre a terra: a Revolução que daria de comer a todo mundo.”

Além de Camus e Beavouir, muitos outros reconheceram em Simone Weil uma extraordinária aparição humana que, em tempos de cólera, surge para auxiliar no desabrochar da doçura, da serenidade, da lucidez, da coragem. José Paulo Paes, nosso brilhante poeta e ensaísta que chegou a escrever lindos versos de inspiração weiliana – “a posse é-me aventura sem sentido: só compreendo o pão se dividido” -, também pinta um retrato admirativo de Weil:

“Morta prematuramente aos 34, essa parisiense de físico frágil mas de inquebrável tenacidade de espírito foi uma figura humana fora do comum. Militante de esquerda, pensadora política, professora de filosofia, ela sempre se recusou ao institucionalizado e ao tacitamente aceito, fosse em que domínio fosse. Para poder analisar a condição operária e a opressão social, não se contentou em ler Marx, mas cuidou de fazer o que ele jamais fizera: trabalhar na linha de montagem de uma fábrica. Não se deixou obnubilar pela ortodoxia partidária: criticou abertamente o estalinismo e chegou a polemizar com Trótski.” (J.P. PAES)

Desde a mais tenra infância, a pequenina Simone já apresentava os primeiros sintomas do que mais tarde se tornaria um entusiasmo político tão efervescente que ela estaria pronta a saltar de pára-quedas em Praga, para ajudar os revolucionários, ou unir-se na Espanha às tropas que batalhavam contra o fascismo de Franco durante a Guerra Civil de 1936-39. Como relata Ecléa Bosi, a pequenina Simone, “travessa e indomável”, desde muito cedo manifestava ceticismo e desagrado diante das burguesices:

“Ao ganhar um anel de presente, com três anos, faz todos rirem com sua resposta: ‘O luxo não me agrada!’ […] Com vestidos novos fica encantadora mas desgostosa; queria que todos se vestissem iguais e com roupas baratas. […] Sua fotografia aos sete anos nos mostra uma fisionomia corajosa, paciente, o olhar de uma seriedade rara para a idade e de tão impressionante nobreza que, ainda que nada conhecêssemos dela senão esse retrato, nunca a esqueceríamos. Já são evidentes nesse rosto dois traços que vão permanecer: atenção ao mundo e vontade inquebrantável.” (ECLÉA BOSI)

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“Ainda que nada conhecêssemos dela senão esse retrato, nunca a esqueceríamos.”

Um episódio é exemplar da força, da audácia, do magnetismo desta figura fora-de-série:

“Em 1933, o presidente da república, Albert Lebrun, vem inaugurar um monumento em Saint-Etienne. Os sindicatos resolvem protestar num comício. A polícia de Paris intervém, militantes são presos e espancados. No dia seguinte, durante as cerimônias oficiais, os trabalhadores protestam numa rua próxima. Simone é içada numa janela pelos seus camaradas, que a protegem enquanto cantam a Internacional Comunista. Ela discursa contra a situação da Indochina (colônia francesa) e chama o presidente de lacaio dos fabricantes de canhões.

Mal se ouvem suas palavras encobertas pela banda militar que saúda as autoridades. […] Em dezembro do mesmo ano de 1933, em protesto contra os baixos salários e o desemprego, os mineiros organizam uma grande marcha. Desde seus míseros casebres até a prefeitura, milhares de mineiros marcham ruflando tambores e soando clarins. Todos cantam. Simone conduz à frente do cortejo a grande bandeira vermelha.” (Ecléa Bosi)

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Na sequência, compartilhamos uma coletânea de pensamentos e reflexões de Simone Weil, todos eles retirados da excelente obra A Condição Operária e Outros Estudos Sobre a Opressão, lançado pela Editora Paz e Terra e adquirível por R$43,00 (novo) ou usado na Estante Virtual. É um convite para que mais gente sinta-se entusiasmada a conhecer mais da vida e da obra desta criatura humana extraordinária.

O DESENRAIZAMENTO

“O amor pelo passado não tem nada a ver com uma orientação política reacionária. Como todas as atividades humanas, a Revolução extrai toda a seiva de uma tradição. Marx o sentiu tão bem que fez questão de buscar a origem dessa tradição nas mais longínquas idades fazendo da luta de classes o único princípio de explicação histórica. (…) A oposição entre o passado e o futuro é absurda. (…) Seria inútil desviar-se do passado para não pensar senão no futuro. O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; somos nós que para o construir devemos dar-lhe tudo, dar-lhe nossa própria vida. Mas para dar é preciso possuir, e não possuímos outra vida, outra seiva, senão os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós. De todas as necessidades da alma humana, não há nenhuma mais vital do que o passado. (…) A perda do passado, coletivo ou individual, é a grande tragédia humana, e nós jogamos fora o nosso como uma criança desfolha uma rosa. É antes de tudo para evitar essa perda que os povos resistem desesperadamente à conquista.”

“O pensamento da fraqueza pode inflamar o amor assim como o da força, mas é de uma chama muito mais pura. A compaixão pela fragilidade está sempre vinculada ao amor pela verdadeira beleza, porque sentimos vivamente que as coisas verdadeiramente belas deveriam ter assegurada sua existência eterna e não a têm.” (Ed. Edusc, pg. 111 e 158)

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A CONDIÇÃO OPERÁRIA

“São raros os momentos do dia em que o coração não está um pouco comprimido por alguma angústia. De manhã, a angústia do dia a se viver. Quem saiu em cima da hora tem medo do relógio de ponto. No trabalho, o medo de não estar na velocidade boa. O medo das broncas. Muitos sofrimentos são aceitos só para evitar uma bronca.

É só queixar-se de um trabalho pesado demais ou de uma cadência impossível de acompanhar, que brutalmente vem lembrar-lhe que se está ocupando um lugar que centenas de desempregados aceitariam de boa vontade. Corre-se o risco de ser posto pra fora. É preciso serrar os dentes. Aguentar-se. Como um nadador na água. Só que com a perspectiva de nadar sempre, até a morte. E nenhuma barca que nos possa recolher. Se a gente afunda lentamente, se soçobra, ninguém no mundo dará por isso. O que é que a gente é? Uma unidade na força de trabalho. A gente não conta. Mal existe.

A cada momento estamos na contingência de receber uma ordem. A gente é uma coisa entregue à vontade de outro. Que vontade de poder largar a alma no cartão de entrada e só retomá-la à saída! Mas não é possível. A alma vai com a gente para a oficina. É preciso o tempo todo fazê-la calar-se. Na saída, mitas vezes não a temos mais, porque estamos cansados em excesso. Se a gente se sujeita é, como diz Homero falando dos escravos, ‘bem a contragosto, sob a pressão de uma dura necessidade’.”

(Em “A Condição Operária e outros Estudos sobre a Opressão”, pg. 124-125)

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REFLEXÕES SOBRE A GUERRA E O COLONIALISMO (1933)

“A engrenagem monstruosa da sociedade atual parece-se com uma máquina imensa que está tragando continuamente os homens, e cujos comandos ninguém conhece; e os que se sacrificam pelo progresso social se parecem com pessoas que se agarram aos rolamentos e às correias de transmissão para tentar deter a máquina, fazendo-se moer por sua vez. (…) Em qualquer circunstância, a pior traição possível é sempre aceitar a subordinação a esse aparelho e pisar, para servi-lo, em si mesmo e nos outros, todos os valores humanos.” (pg. 218)

“A tentação cristã: sendo a colonização um meio favorável para as missões, os cristãos se sentem tentados a amá-la por isso, mesmo reconhecendo-lhe as taras. Ora, mas uma questão que mereceria exame detido é: um hindu, um budista ou um muçulmano, ou qualquer um dos que são chamados de pagãos, não possuem em sua própria tradição um caminho para a espiritualidade, diferente do que as igrejas cristãs propõem? Em todo caso, Cristo nunca disse que os navios de guerra devessem acompanhar, mesmo de longe, os que anunciam a boa nova. (…) Só os sacerdotes podem medir o valor de uma idea pela quantidade de sangue que ela fez derramar.

Com a colonização da África negra, os brancos causaram todos os danos possíveis durante 4 séculos com suas armas de fogo e seu comércio de escravos. (…) Privando os povos de sua tradição, de seu passado, a colonização os reduz ao estado de matéria humana.” (pgs. 227-231)

“Que idiotas espalharam o boato de que as idéias não podem ser mortas pela força bruta? (…) Nada mais cruel em relação ao passado do que o lugar-comum segundo o qual a força é impotente para destruir os valores espirituais; em nome dessa opinião nega-se que as civilizações apagadas pela violência das armas tenham um dia existido; isso é possível porque não se teme o desmentido dos mortos. Assim se mata pela segunda vez o que pereceu e nos associamos com a crueldade das armas. A piedade ordena que nos apeguemos aos traços, mesmo raros, das civilizações destruídas.” (Pgs. 243 e 276)

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OPRESSÃO E LIBERDADE

“Nada neste mundo pode impedir o homem de se sentir nascido para a liberdade. Nunca, aconteça o que acontecer, ele pode aceitar a servidão. Nunca deixou de sonhar com uma liberdade sem limites, seja como uma felicidade passada da qual um castigo o teria privado, seja como uma felicidade vindoura que lhe seria devida por uma espécie de pacto com uma providência misteriosa. O comunismo imaginado por Marx é a mais recente forma desse sonho. Já é tempo de renunciar a sonhar com a liberdade e de se decidir a concebê-la.

Uma visão clara do possível e do impossível, do fácil e do difícil, das dificuldades que separam o projeto da realização, faz, sozinha, desaparecerem os desejos insaciáveis e os medos vãos; é daí, e não de nenhuma outra fonte, que procedem a temperança e a coragem, virtudes sem as quais a vida é apenas um vergonhoso delírio. Além disso, toda espécie de virtude tem a sua fonte no encontro que faz o pensamento em seu embate com uma matéria sem indulgência nem perfídia. Não se pode imaginar nada maior para o homem do que um destino que o coloque diretamente no embate com a necessidade nua, sem que tenha nada a esperar senão de si mesmo, e de tal forma que a sua vida seja uma perpétua criação de si mesmo por si mesmo. Vivemos num mundo no qual o homem deve esperar milagres apenas de si mesmo.”

(Pgs. 326- 331)

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SIGA VIAGEM – LEIA TAMBÉM:

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“EPOPÉIA E MISÉRIA HUMANA”
Por José Paulo Paes

“Morta prematuramente aos 34 anos de idade, essa parisiense de físico frágil mas de inquebrável tenacidade de espírito foi uma figura humana fora do comum. Militante de esquerda, pensadora política, professora de filosofia, SIMONE WEIL (1909 – 1943) sempre se recusou ao institucionalizado e ao tacitamente aceito, fosse em que domínio fosse.

Para poder analisar a condição operária e a opressão social, não se contentou em ler Marx, mas cuidou de fazer o que ele jamais fizera: trabalhar na linha de montagem de uma fábrica. Embora tivesse participado ativamente das lutas sociais e antifascistas na França pré-Guerra, não se deixou obnubilar pela ortodoxia partidária: criticou abertamente o estalinismo e chegou a polemizar com Trotski. Suas iluminações místicas não a levaram nunca a aceitar o sacramento do batismo, pelo que foi tida como herética.

Philosophie magazine - Julien Pacaud • Illustration

Philosophie magazine – Julien Pacaud • Illustration

ROOTED

Cabe a Ecléa Bosi o mérito de ter introduzido no Brasil o pensamento por todos os títulos instigante e enriquecedor de Simone Weil através de uma bem organizada coletânea dos seus principais escritos políticos, literários e religiosos; com o título de A Condição Operária e outros estudos sobre a opressão, essa coletânea foi publicada em 1979 pela editora Paz e Terra, do Rio.

Capa

Entre os textos recolhidos neste livro (capa acima) figura A Ilíada ou O Poema da Força, um estudo realmente luminoso pelas reflexões que propõe e que debate. A obra de Homero já suscitou uma imensa quantidade de obras de erudição, no entanto nenhuma é mencionada por Simone Weil. Não porque as desconhecesse mas porque, imagino eu, elas não vinham ao caso para o seu enfoque de leitura. Diante do poema de Homero, Simone Weil não se deixou intimidar pela multissecular erudição a que ele deu origem e enfrentou-o em estado de inocência, por assim dizer, de candidez de espírito. Deixou-se impregnar por ele, em vez de se extraviar por suas glosas ou interpretações.

Esse contato direto é responsável pela força de persuasão do luminoso estudo de Simone Weil. Logo no começo ela diz que a Ilíada pode ser considerada sob dois pontos de vista: como documento de um passado irremediavelmente passado, ou como espelho de circunstâncias e pulsões ainda hoje presentes na história humana. Nisto, ela confirma de certo modo uma visão de Marx a respeito da perenidade da arte grega.

Na Crítica da Economia Política, Marx se perguntava por que, estando tão distantes de nós no tempo as condições históricas que acompanharam o nascimento da arte grega, esta ainda é tida como um padrão de excelência. A resposta dada por Marx é a de que o adulto sempre tem nostalgia da infância e é capaz de revivê-la pela imaginação. Os gregos, pelo esplendor de sua cultura, teriam representado, na história da humanidade, uma espécie de infância de ouro a que todos gostaríamos de remontar.

Simone Weil

Ao debruçar-se sobre a Ilíada com a sua retidão de criança – para usar uma frase feliz de Ecléa Bosi acerca de Simone Weil -, esta como que assumia, pois, o mesmo espírito auroral da cultura grega. Sua candidez de visão tinha outrossim algo a ver com o espírito dos Evangelhos: não disse o Cristo “Se não vos fizerdes como meninos, de modo algum entrareis no reino dos céus?”

Um aspecto fundamental de Ilíada ou Poema da Força, de S. Weil, é o de configurar uma visão retrospectiva do poema de Homero. Retrospectiva no sentido de que ele é ali considerado pela ótica dos Evangelhos, tidos pela própria Simone Weil como a última grande manifestação do gênio grego. (…) A Ilíada tem sabidamente como fontes básicas de interesse o tema da guerra e o tema do debate, vale dizer, as lutas de corpos e as lutas de espíritos.

As cenas de batalha, em cuja descrição brilha a arte do poeta, revelam, de sua parte, um surpreendente conhecimento da técnica militar. Tal ênfase no bélico não é de se estranhar quando se pensa no tipo de audiência para a qual os aedos costumavam recitar as estrofes da Ilíada: uma audiência aristocrática que tinha na guerra uma de suas ocupações preferidas.

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Corpo de Heitor sendo levado de volta a Troia – Alto relevo em mármore, detalhe de um sarcófago romano do século II, atualmente no Museu do Louvre.

Mostra Simone Weil que, por sob os episódios guerreiros – momentos em que é dado ao homem pôr à prova sua força física, sua coragem moral e sua destreza nas armas – há um empenho constante de mostrar o avesso da guerra, “tudo o que está ausente da guerra, tudo o que a guerra destrói ou ameaça.” Ela acentua que “na Ilíada, a fria brutalidade dos fatos de guerra não é disfarçada com nada, porque nem vencedores nem vencidos são desprezados ou odiados.” Uns e outros são vítimas do mesmo processo de desumanização que Simone Weil vê como o objetivo último da guerra.

A guerra transforma os homens em coisas, a matéria viva em matéria inerte. A morte é a própria sombra do soldado, a acompanhá-lo o tempo todo. Se para o comum dos homens, nas épocas de paz, a morte é o limite mais ou menos distante de um futuro, para o combatente ou para a vítima civil é o horizonte ameaçadoramente próximo, que os converte em pré-mortos, mortos em vida. Donde o poder coisificador da guerra, a manifestação mais catastrófica e mais teatral da violência…

O fato de a violência desumanizar, ou seja, alienar de si mesmos seus praticantes e suas vítimas, faz com que ela lhes pareça algo exterior, uma manifestação do destino. Mostra Simone Weil que, embriagado pela própria força, o guerreiro julga iludidamente que tudo lhe é permitido, pelo que acaba sendo atingido pelas consequências de seu abuso. É Nêmesis, a punidora do orgulho humano, o qual provoca a inveja dos deuses, e do excesso, que perturba o equilíbrio do universo.”

José Paulo Paes
Prefácio de “A Condição Operária”, de Simone Weil.
Ed. Paz e Terra, Rio.
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Acima: dois quadros de Giovanni Battista Tiepolo (1696 – 1770) representando a entrada em Tróia do Cavalo, repleto de soldados gregos escondidos em seu bojo, e a crucificação do profeta hebreu Jesus Cristo 


2SIGA VIAGEM:

Desafios, dilemas e descaminhos da democracia representativa na obra de Luis Felipe Miguel (Ed. Unesp, 2013) – Por Eduardo Carli de Moraes @ A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes / A Casa de Vidro / Novembro de 2016

Para refletir profundamente sobre a democracia, seus descaminhos e dilemas, suas aspirações e esperanças, conheço poucas companhias melhores do que a do excelente pensador político brasileiro Luis Felipe Miguel. Neste livraço que é Democracia e Representação – Territórios em Disputa (Editora Unesp, 2013) ele revela o quanto a democracia é desafiadora, problemática:

“São ao menos quatro problemas fundamentais, estreitamente ligados entre si”, afirma Luis Felipe Miguel: “(1) a separação entre governantes e governados, (2) a formação de uma elite política distanciada da massa, (3) a ruptura do vínculo entre a vontade dos representados e a vontade dos representantes e, por fim, (4) no caso da representação de tipo eleitoral, a distância entre o momento em que se firmam os compromissos com os constituintes (a campanha eleitoral) e o momento do exercício do poder (o exercício do mandato).”  (MIGUEL, p. 15-17)

terra-em-transeUm exemplo da problematicidade do poder político e do difícil desafio de instaurar um regime autenticamente democrático está em Terra em Transe, o filme de Glauber Rocha, lançado em 1967, em que populismo e a demagogia do tirano elitista dá o que pensar sobre o problema (4) mencionado acima: “Como responderia o governador eleito às promessas do candidato?”, pergunta o personagem do poeta Paulo Martins.

Excelentemente destrinchado na obra do crítico de arte Ismail Xavier, Terra em Transe põe o espectador diante de um xadrez-do-poder que nos permite refletir sobre o quadrilátero problemático evocado por Miguel. Sabe-se que Glauber inspirou-se na figura de José Sarney, documentado pelo cineasta em Maranhão 66 ainda como jovem líder populista em ascensão, tomando posse como governador de seu Estado, para evocar em Terra em Transe um cenário de golpe de Estado, em que um líder elitista, Diaz, planeja governar apartado do povo, sem vínculo com a vontade dos representados.

A hierarquia política de Eldorado nada tem de democrática. O filme de Glauber é irremediavelmente um fruto da ditadura militar brasileira e busca criticá-la de modo mordaz. Emblemática é a cerimônia de coroação em que “os súditos do reino levantam suas espadas para saudar o novo monarca, todos vestidos como serviçais do Antigo Regime”, “condensando numa cena a estratégia alegórica de Glauber. Representa o chefe de Estado como um rei portador dos emblemas do poder absoluto (a coroa, o cetro, o manto).” (XAVIER, p. 68 de Alegorias do Subdesenvolvimento) 

Diaz, triunfante, em uma cena altamente alegórica e intensamente memorável, é descrito junto com os sustentáculos de seu poder: “o líder do golpe de estado desfila triunfante, em carro aberto, pela capital de Eldorado. Diaz (o branco europeu) chega às praias de Eldorado, acompanhado do conquistador ibérico e do padre, observado pelo índio, e junto a uma enorme cruz na praia celebra a primeira missa.” (op cit, p. 87)

Ou, trocando em miúdos, digamos que, diante de quaisquer de nossos representantes políticos podemos perguntar: qual o tamanho do abismo entre o que ele prometeu e o que ele irá entregar? Como evitar que a democracia degringole num circo das promessas ilusórias tão criticado sob o nome de demagogia?

No Brasil, atravessamos neste turbulento ano de 2016 mais uma fase crítica de exacerbação da crise de representação política. A noção de que o establishment político é corrupto até o osso, viciado até o tutano, que quase ninguém no Congresso Nacional nos representa, atingiu novos cumes com a recente onda de vômito cívico gorfado sobre Michel Temer e Eduardo Cunha, por exemplo. Mas manifesta-se explicitamente também nas urnas, no altíssimo índice de votos brancos e nulos nas eleições, no horror que tantos de nós sentimos diante da hegemonia parlamentar das Bancadas “BBBB” (Boi, Bala, Bíblia e Banco), a corja golpista e plutocrática que acaba de lançar a Democracia, estuprada, para escanteio. Não é piada, é verdade: no Brasil, tem muito candidato eleito que perdeu as eleições para um cabra chamado Ninguém… “Ninguém” é um dos políticos mais populares da pátria.

A catástrofe do sistema de representação política hoje vigente, a contestação deste status quo por parte da militância social (reformista ou revolucionária), está no zeitgeist brasileiro em doses talvez muito mais intensas do que as manifestações de descontentamento que por vezes afloram no Norte da América com algo como o Occupy Wall Street (2011) ou nos riots à la Ferguson que, para além da indignação justa contra a brutalidade policial e o racismo institucionalizado, também são revoltas contra o sistema político estabelecido (stablishment).

“No segundo turno das eleições presidenciais de 2010, no Brasil, 21,5% dos eleitores registrados se abstiveram, o maior índice desde a redemocratização do país. Dos votos contados, 6,7% foram em branco ou nulos. Somem-se a isso os mais de 2 milhões de pessoas em idade de votar que não se alistam (o registro é opcional para analfabetos e jovens entre 16 e 18 anos). No final das contas, quase 30% dos brasileiros em idade de votar desprezaram o direito de escolher a nova presidente da República.” (p. 99)

A crítica deste “sistema que não nos representa” é algo que não nasceu nas Jornadas de Junho de 2013 nem vai morrer com a Primavera Secundarista de 2016. É toda a problemática da “representação”, nas democracias, aquilo que Miguel permite-nos sondar, em profundidade, em sua obra. Debatendo com a obra de Hanna Pitkin (1967), ele mostra que a polissemia, a pluralidade de sentidos, do termo representar merece uma reflexão mais demorada:

“Fazer passar-se por outra pessoa é representar (a atriz representa sua personagem); defender os interesses de outra pessoa é representar. Um quadro de Van Gogh representa um vaso de girassóis, indicando-se aí uma relação de mímese com o objeto representado. Mas uma bandeira representa o país sem que se estabeleça qualquer continuidade desse tipo, por mera convenção. Acrescente-se uma última distinção com inegável repercussão nos debates políticos sobre a representação política: uma amostra aleatória de uma população é representativa, no sentido estatístico.” (p. 18)

POLISSEMIA DAS REPRESENTAÇÕES

Elizabeth Taylor representando Cleópatra

Elizabeth Taylor representando Cleópatra

Van Gogh

Van Gogh “representa” um vaso de girassóis

“Lula, representante do povo brasileiro”

René Magritte, em um quadro irônico que foi recentemente reformulado em homenagem-escracho a Michel Temer, expõe numa imagem pedagógica um pouco da complexidade envolvida no conceito de representação. “Isto não é um cachimbo” (“Ceci n’est pas un pipe”), frase que ele escreve logo abaixo do desenho (da representação) de um cachimbo, revela o abismo entre a linguagem e a coisa.Quando paramos para refletir sobre os problemas da representação política, ou seja, uma manifestação específica da representação, não é possível separar a reflexão linguística da reflexão política, não há segregação possível entre mídia e poder.

Sobram ocasiões em que o representante político pode muitas vezes estar representando em vários diferentes sentidos: no sentido de Elizabeth Taylor quando encarna Cleópatra (Eduardo Cunha estava representando Scarface ou Don Corleone?); similarmente, a palavra representação pode evocar a prática de uma encenação, de um fingimento, de um jogo-de-cena, de um interesseiro e manipulatório mise en scène midiático, como quando dizemos que figuras com Berlusconi, Trump ou Temer “representam” diante das câmeras uma persona que é forjada para o programa eleitoral.

No debate político, outro sentido de representação também aparece frequentemente, em que “estar representando um grupo social” é usado no sentido de “falar em nome de outros”, de ser a expressão singular de um grupo coletivo, como nas frases “Lula, um ex-operário, representa o operariado que chegou à Presidência da República” ou “Jean Wyllys representa a população LGBT na Câmara dos Deputados”. “A polissemia da palavra [representação] faz com que a ideia de representação política seja contaminada pelos diferentes usos nas artes visuais, nas artes cênicas, na literatura e no campo jurídico, entre outros.” (MIGUEL. p. 117)

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Ren? Magritte, The Treachery of Images, 1928–29, Restored by Shimon D. Yanowitz, 2009

Magritte.

Em seu capítulo “A Democracia Elitista”, paradoxal desde seu título, Luis Felipe Miguel explicita as vísceras contraditórias de um sistema político que se pretende, a um só tempo, democrático e gerido por uma elite. Lê-lo faz lembrar, com saudosismo, do falecido Eduardo Galeano, conhecedor profundo das Veias Abertas da América Latina, que ensinava que as eleições atuais, ditas democráticas, muitas vezes só nos permitem escolher com que molho seremos cozinhados.

vomitoMuitas vezes, no “cardápio eleitoral”, só encontramos pratos que nos enchem de repugnância, que de modo algum nos abrem o apetite. Pelo contrário: assistir na TV o horário eleitoral não é muito recomendável para quem acabou de comer pois dá engulhos e pode acabar em vômito. Só nos permitem escolher entre diferentes membros da elite – a um só tempo econômica e política, dotada da conjunção de capital financeiro e cultural, simultaneamente ricos e cheios de prestígio – e quando alguém de classes subalternas começa a atingir, pelo voto, degraus mais altos da pirâmide, ou mesmo alça-se a alturas palacianas, não tardam para que forças se congreguem para, com ou sem tanques e tiros, golpeá-lo e derrubá-lo.

“O pensamento elitista, na sua feição contemporânea, nasce em oposição às correntes igualitárias da modernidade. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, ergueu-se um importante corpo de reflexões políticas que afirmavam a possibilidade e necessidade de maior igualdade nas sociedades, expresso em pensadores como Rousseau, Fourier, Proudhon ou Marx, que, de diferentes maneiras, propugnavam uma sociedade equitativa.

Mas o fantasma da igualdade não estava encarnado apenas em teorias. Na Europa começava a haver, de fato, uma democratização da vida social, sobretudo desde que a classe operária irrompeu com face própria na cena política, com a Revolução de Fevereiro de 1948, na França. Antigos privilégios foram questionados e perderam sustentação legal. O direito ao voto foi paulatinamente estendido até se alcançar o sufrágio universal masculino… Em suma, as estruturas aristocráticas foram sendo corroídas. Uma das análises mais perspicazes do processo foi feita por Alexis de Tocqueville, no clássico A democracia na América (1835-1840).” (MIGUEL, p. 31-32)

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Na contra-mão destas correntes políticas que defendem o igualitarismo, a justiça social, o equilíbrio, a equanimidade, o direito de participação na decisão dos rumos coletivos, o pensamento elitista argumenta pela impossibilidade ou pela indesejabilidade da democracia, o “governo do povo”. Obviamente, o elitismo não é fruto da história recente – é coisa velha, velhíssima, e que infelizmente ainda parece conservar o frescor da juventude ao invés de declinar rumo à morte como é destino da velhice. A definição mais simples de “elitismo”, diz Miguel, é a ideia de que a desigualdade é “natural” e “eterna”:

“No seu sentido corrente, o elitismo pode ser descrito como a crença de que a igualdade social é impossível, de que sempre haverá um grupo naturalmente mais capacitado detentor dos cargos de poder. Não se trata de ideia nova: o sonho de Platão na República, com a divisão de castas (de acordo com a capacidade de cada uma), reflete essa visão, bem como a crença de Aristóteles na existência de ‘escravos por natureza’. A palavra ‘natureza’ é crucial: para o elitismo, a desigualdade é um fato natural. Isto está na raiz da atração que esse pensamento tem sobre aqueles que ocupam posições de elite. Em vez de estarem nestas posições como fruto do acaso, de contingências ligadas à estrutura da sociedade e aos padrões de dominação nela vigentes, seriam recompensados por seus méritos intrínsecos.” (MIGUEL, p. 33)

Já se destacou algumas vezes que Platão, apesar de ter chamado sua sociedade ideal de República, fantasia sobre uma aristocracia monárquica, onde o Filósofo Rei – aquele que tem o mérito superior de sua Razão límpida, ascética, descolada das paixões e seus delírios – há de reinar sobre a multidão ignara, presa dentro da caverna das atrações sensíveis e dos prazeres carnais. O platonismo não tem nada de democrático: instaura a tirania dos que pensam que sabem, bota no poder os que se consideram donos da verdade, e nada tem a conceder, em termos de participação igualitária na definição dos destinos da pólis, às mulheres, aos estrangeiros e aos escravizados (numericamente, a maioria da população de uma cidade dita “democrática” como a Atenas de que Sócrates e Platão foram contemporâneos). O elitismo platônico incide sobre o elitismo aristotélico, que marcará o elitismo escolástico e todas as teocracias monárquicas baseadas no princípio de que devemos ser governados pela casta dos melhores, dos mais sábios, dos que conseguem chegar mais perto de Deus ou da Verdade…

Miguel reconhece e analisa novas modalidades do pensamento elitista no pensamento mais recente – em Ortega Gasset (autor de A Rebelião das Massas) e em Friedrich Nietzsche (que foi de fato um crítico feroz daquelas correntes democratizantes e socialistas que pôde conhecer em sua época e em seu espaço social – porém, demonstra desconhecimento total do marxismo e suas críticas não parecem incidir sobre a teoria e práxis formuladas por Marx e Engels…).

Miguel sonda as raízes daquilo que hoje se conhece pelo nome de meritocracia, ou o governo do mérito, mais recente embrulho para um velho conteúdo: elitismo, elitismo, elitismo…

“Se uma pessoa pensa que tem acesso a determinados bens materiais ou culturais, inatingíveis para boa parte da população, como uma recompensa por suas qualidades inerentes, isto lhe dá um reconfortante sentimento de superioridade, acompanhado do desprezo pelas que não são tão boas. Ela poderia pensar diferente; que estar na universidade, por exemplo, num país de analfabetos, significa que foi privilegiada por uma série de circunstâncias – e então, ao invés da sensação de superioridade, poderia vir um sentimento de responsabilidade social. Mas é muito mais gratificante, para o indivíduo que pertence à elite, olhar para a balconista da loja, para a operária, para a engraxate e pensar ‘puxa, como sou superior’ do que refletir que um pequeno acidente de percurso poderia inverter as posições.

A fruição estética é extremamente importante para gerar esse sentimento de superioridade: o intelectual que lê Proust e ouve Bach menospreza a massa que consome programas de auditório e livros de autoajuda. Isto seria fruto de uma sensibilidade mais apurada, inata. Daí provém o fascínio que muitos artistas e escritores sentiram pelo elitismo, inclusive em sua versão mais extrema, fascista. Ezra Pound, T.S. Eliot, W. B. Yeats, Salvador Dalí, Louis Ferdinand Céline, Knut Hamsun são apenas alguns nomes de uma longa lista. Há um poema de D. H. Lawrence que reflete bem a postura; um dos versos afirma: ‘a vida é mais vívida em mim do que no mexicano que conduz minha carroça’…” (p. 33)

Esta oposição entre democracia e elitismo parece-me interessante para pensar muitos dos problemas políticos contemporâneos e L. F. Miguel mostra em sua obra o quanto esta tensão já existia nas origens gregas da democracia, do kratos (poder) do demos (povo). O que é curioso, no caso da Atenas onde afirma-se comumente que a democracia calhou por nascer, é que por lá o sistema democrático tinha necessariamente uma dimensão de sorteio:

 “a própria instituição da eleição era vista, da Antiguidade ao século XVIII como oposta ao ordenamento democrático, que pressupunha a igualdade entre os cidadãos e, portanto, devia utilizar o sorteio como forma de escolha dos governantes. Mais importante, porém, é o fato de que, em nenhum dos regimes hoje aceitos como democráticos, o povo realmente governa. As decisões políticas são tomadas por uma minoria fechada, via de regra mais rica e mais instruída do que as cidadãs e cidadãos comuns, e com forte tendência à hereditariedade. Tudo isso está longe da concepção normativa que a palavra ‘democracia’ continua a carregar: uma forma de organização política na igualdade potencial de influência de todos os cidadãos, que concede Às pessoas comuns a capacidade de decidirem coletivamente seu destino. Está longe, também, da experiência clássica. Sobre a Atenas dos séculos V e VI a.C., é possível dizer que, em alguma medida, o povo governava – se entendemos por “povo” o conjunto dos cidadãos, que não incluía a maior parte da população (mulheres, escravos e metecos).” (p. 29)

Obviamente, não existe igualdade entre cidadãos para influenciar os destinos públicos quando vivemos em uma sociedade onde os acessos diferenciais aos meios de produção, ao capital cultural e às tecnologias massmidiáticas geram as fraturas sociais que tão bem conhecemos e que, de modo bem didático, o movimento Occupy Wall Street resumiu assim: a batalha entre o 1% e os 99%. A extrema concentração de capital em poucas mãos, conectada à miséria a que são condenados centenas de milhões de espoliados, faz da grande maioria dos países neste mundo que auto-intitulam-se “democráticos” uma fraude hipócrita, onde a igualdade existe como forma vazia, mas não como conteúdo real do espaço social.

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A crise de representação política é a constatação dos limites, muito estreitos e insatisfatórios, da democracia representativa quando enquadrada detrás das grades do liberalismo burguês. “O descontentamento com o desempenho das instituições democráticas se alia a uma firme adesão aos princípios da democracia, que se funda na constatação sensata de que as instituições atualmente existentes privilegiam interesses especiais e concedem pouco espaço para a participação do cidadão comum, cuja influência na condução dos negócios públicos é quase nula. Em suma, de que as promessas da democracia representativa não são realizadas.” (p. 103)

Luis Felipe Miguel lembra das teorizações do sociólogo C. Wright Mills, em especial seu livro A Elite do Poder, em que o autor tornava explícito que, “por trás da fachada democrática e dos reclamos rituais de obediência à vontade popular, cristaliza-se o domínio de uma minoria que monopolizava todas as decisões-chave. Os 3 pilares da elite do poder eram os grandes capitalistas, os principais líderes políticos e os chefes militares. Graças a mecanismos de integração, que geravam uma visão de mundo unificada e interesses compartilhados, formavam uma única elite, dividida em três setores, e não três grupos concorrentes… A perspectiva de Wright Mills coincidia com a denúncia marxista quanto ao caráter meramente ‘formal’ da democracia burguesa.” (p. 109)

A democracia representativa burguesa pode até fornecer a ilusão de que é igualitária, pois o voto do pobretão analfabeto vale, em tese, o mesmo que o voto do empresário CEO de multinacional. Porém, o pobretão analfabeto não só não tem como candidatar-se a cargo público, como tampouco tem a mínima chance de vencer o pleito. Ademais, suas preferências políticas, longe de serem uma decisão independente e autônoma do sujeito que delibera racionalmente, são moldadas e manipuladas por um aparato midiático que, como sabemos muito bem, tem dono e é gerido pela grana. Os donos da mídia: eis figuras que não podemos ignorar se quisermos compreender a crise da representação política, o colapso de nossas democracias de baixa intensidade e a ascensão de um novo tipo de fascismo “teleguiado”, midiaticamente induzido.

“A mídia é, de longe, o principal mecanismo de difusão de conteúdos simbólicos nas sociedades contemporâneas e, uma vez que inclui o jornalismo, cumpre o papel de reunir e difundir as informações consideradas socialmente relevantes. Todos os outros ficam reduzidos à condição de consumidores de informação. Não é difícil perceber que a pauta de questões relevantes, postas para a deliberação pública, deve ser em grande parte condicionada pela visibilidade de cada questão nos meios de comunicação. A mídia possui a capacidade de formular as preocupações públicas. Os grupos de interesses e mesmo os representantes eleitos, na medida em que desejam introduzir determinadas questões na agenda pública, têm que sensibilizar os meios de comunicação.” (p. 120-121)

Resta a questão, crucial, de saber se os meios de comunicação de massa representam uma força social que auxilia o ideal democrático a consolidar-se, ou se, pelo contrário, solapa a democracia ao fornecer-nos dela apenas um simulacro. O poderio midiático, concentrado em poucas corporações capitalistas, que formam verdadeiros oligopólios e perseguem interesses privatistas de lucro empresarial, está bem longe de servir à participação social igualitária, à construção de uma sociedade onde todos tenham voz e vez.

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O filme mexicano A Ditadura Perfeita, de Luis Estrada, é uma brilhante e mordaz sátira do poderio dos donos das mídias-de-massa em manipular a opinião pública e, se quiserem, elegerem governadores e presidentes, transformados em grandes heróis da nação apesar de serem crápulas plutocratas e desumanos genocidas. Também a série britânica Black Mirror tematiza este mega-poderio da mídia em influenciar o processo político quando, no terceiro episódio da segunda temporada, faz do personagem de cartoon Waldo – um urso azul, comandado por um comediante, que fala muitas obscenidades e começa a atacar sem dó os figurões do establishment político – o maior hit eleitoral (saiba mais no excelente artigo de Moysés Pinto Neto).

A bandeira da democratização da comunicação, como explica Luis Felipe Miguel, tem a ver com “a necessidade de que os meios de comunicação representem de maneira adequada as diferentes posições presentes na sociedade, incorporando tanto o pluralismo político quanto o social. Hoje, via de regra, a mídia desempenha mal esta tarefa, por diversas razões, que incluem os interesses dos proprietários das empresas de comunicação, a influência dos grandes anunciantes, a posição social comum dos profissionais do setor e a pressão uniformizadora da disputa pelo público” (p. 124).

A democratização da comunicação “não possui solução mágica”:

“engloba um conjunto de medidas que começa na desconcentração da propriedade de empresas de comunicação. (…) O ponto mais importante é dissociar capacidade de prover informações  – isto é, do usufruto da liberdade de expressão como liberdade positiva – da posse do poder econômico por meio de instrumentos como o direito de antena (que reserva tempo na mídia comercial para movimentos sociais e organizações da sociedade civil veicularem suas posições), o incentivo ao jornalismo, rádio e televisão comunitários e o financiamento público para estimular a expressão de grupos desprivilegiados. São medidas voltadas à equalização do acesso às formas de expressão pública entre os diversos grupos sociais, que devem ter condições de participar do debate com sua própria voz.” (p. 124)

0745621090whichequalmat.inddInspirando-se na obra de Anne Philips, Luis Felipe Miguel dirá também que há “uma precondição do funcionamento de um regime democrático: a difusão das condições materiais mínimas que propiciem, àqueles que o desejem, a possibilidade de participação na política. (…) O ‘empoderamento’ dos grupos sociais marginalizados – ou seja, seu acesso às esferas de poder, com a capacidade de pressão daí derivada – é, por vezes, um prerrequisito para a transformação estrutural, como argumenta Phillips em Which Equalities Matter? (London: Polity, 1999).” (p. 135)

Que o empoderamento dos marginalizados passa também por um empoderamento midiático, em que tornem-se capazes de disseminar suas próprias mensagens e criações através do espaço social, impactando na formação da opinião pública e nos espaços decisórios, não nos deve levar a uma idolatria ingênua da disseminação das novas tecnologias digitais de informação. Uma série televisiva como Black Mirror esforça-se por mostrar, em suas três primeiras temporadas, através de roteiros muito bem bolados e repletos de criticidade à civilização contemporânea, que os avanços tecnológicos estão longe de produzir automaticamente avanços nas nossas capacidades cognitivas, morais e políticas, produzindo avanços nas nossas aptidões para os diálogos mutuamente proveitosos e os  relacionamentos sábios uns com os outros.

Muito pelo contrário, Black Mirror – que recebeu uma pertinente análise de Ivana Bentes em uma Cult recente – oferece uma série de sombrios espelhos onde vemos refletidas as novas barbáries que se manifestam através de celulares, notebooks e PCs conectados à Internet, numa verdadeira procissão de distopias hi-tech que soam bastante plausíveis e lançam duchas de água gelada sobre os otimistas de plantão.

Sobre o tema, Luis Felipe Miguel também tem pertinentes ponderações:

“Não é possível ignorar o impacto crescente das novas tecnologias – embora ainda muito diferenciado de acordo com clivagens de geração e de classe – nos padrões de sociabilidade e na produção das identidades, algo que possui evidente peso político. A internet tem fomentado novas formas de ativismo, muitas vezes marcadas por seu caráter individualista com foco na autoexpressão, mas que representam um fenômeno importante a ser estudado. É uma ferramenta de comunicação primordial para novos e velhos movimentos sociais, grupos minoritários e organizações contra-hegemônicas, proporcionando compartilhamento de informação de forma quase instantânea e a baixo custo. Mas o jornalismo, em particular, e os conteúdos simbólicos da grande mídia empresarial, em geral, continuam ocupando uma posição central.

O jornalismo permanece sendo o grande alimentador da informação, graças à sua condição de ‘sistema perito’. Redes de ativistas podem cumprir um papel importante na disseminação de visões de mundo alternativas, mas é o jornalismo profissional que está equipado para distribuir informação abrangente, geral, de forma permanente. Os grandes conglomerados de mídia ocupam a posição de principais provedores de informação no próprio espaço da internet, por meio de portais que aproveitam a sinergia oferecida pelas estruturas de produção de notícias para os meios convencionais; seus conteúdos são, com enorme frequência, a principal ou mesmo única fonte de outros emissores dentro da rede.

Assim, esses conglomerados seguem sendo capazes de gerar o ambiente social de informação compartilhada, isto é, a agenda comum do público; e os grupos alternativos permanecem nas posições (importantes, mas secundárias) de comentaristas que reagem a essa agenda, de ativistas que tentam influenciá-la a partir das margens ou de comunidades de gueto que mantêm uma faixa própria, paralela, com pouco ou nenhum diálogo com o público mais amplo. É a diferença entre uma página qualquer da internet – potencialmente acessível a todos, mas de fato procurada apenas por umas poucas pessoas – e um grande portal que concentra fluxo de visitantes e cujo conteúdo é acessado, comentado e reproduzido inúmeras vezes.

cibercultua(…) As utopias iniciais de uma nova era em que os meios de comunicação estariam pulverizados eram também utopias de um salto numa política pós-representativa, em que todos poderiam se fazer ouvir e sentir de forma direta, plástica e ‘molecular’, como dizia, nos anos 1990, seu principal arauto, o francês Pierre Lévy em obras como Cibercultura A Inteligência Coletiva. Hoje, aparece muito mais a ideia de uma representação autoinstituída, em que cada um se coloca como porta-voz nas redes sociais, e que se une à ideia de uma pluralização selvagem das fontes de informação. Mas, sem negar relevâncias às múltiplas apropriações alternativas dos novos meios, a importância crescente da internet continua ocorrendo dentro do modelo da comunicação de massa, em que uns poucos centros emissores são capazes de distribuir conteúdos simbólicos a uma multiplicidade de receptores cuja capacidade de resposta é limitada.” (MIGUEL, p. 145)

A determinação dos resultados eleitorais está umbilicalmente vinculada à capacidade dos candidatos de utilizarem os aparatos da comunicação em massa, o que torna a democracia refém dos grandes oligopólios empresariais de mídia e suas predileções políticas. Que Donald Trump tenha sido eleito o presidente dos EUA em 2016, e não Bernie Sanders (que perdeu as primárias dos Democratas para Hillary Clinton), também envolve o grau de exposição midiática muito superior do primeiro, como bem analisado pela excelente jornalista norte-americana Amy Goodman, âncora do Democracy Now!, um dos mais interessantes exemplos de um bem-sucedido empreendimento de jornalismo alternativo e contra-hegemônico que põe as novas tecnologias a serviço da verdadeira democracia – que é pra já e não pode esperar.

Em sua lúcida explanação, Amy Goodman faz menção ao pensamento de Noam Chomsky e sua noção de que a mídia “manufatura consenso” (manufactures consent), ou seja, é um instrumento ideológico de alta penetração nas consciências dos eleitores e com alta capacidade de moldar condicionar as decisões do eleitorado. Amy cita como exemplo a rede de TV ABC, que chegou a dedicar 81 minutos de sua cobertura ao candidato Donald Trump, tendo relegado Bernie Sanders à quase-invisibilidade de meros 20 segundos on air! A pergunta que não quer calar: o que teria acontecido caso Bernie Sanders tivesse tido, por parte da mídia corporativa Yankee, um tratamento mais igualitário e equânime em relação a Trump? Em uma constelação midiática que fosse de fato democrática, e não altamente oligopolizada como é nos EUA, não seria concebível que Sanders, o único candidato autenticamente democrático e de ideais renovadores e inclusivos, vencesse o pleito?

Sobre o tema, Luis Felipe Miguel também é um comentador perspicaz: “o que os elitistas apontam como natural – a desigualdade política, a profunda divisão entre governantes e governados – é fruto de uma organização social que concentra em poucas mãos o capital político. Alguns poucos monopolizam a capacidade de intervir no campo político, exatamente porque os outros internalizam a própria impotência e oferecem o reconhecimento de que aqueles poucos são os ‘líderes’. Se o reconhecimento social é a chave da conquista do capital político, avulta a importância da mídia, principal difusora do prestígio e do reconhecimento social nas sociedades contemporâneas.” (p. 153)

A mídia corporativa, oligopolizada, é uma força anti-democrática e proto-fascista quando só dá voz e vez àqueles que são dotados de capital, lançando ao silêncio e à invisibilidade toda a pluralidade de perspectivas e interesses que constitui uma sociedade. Ao trancar para fora imensos contingentes populacionais que não ganham nunca o direito de terem voz e vez na mídia de massas, esta mídia trabalha em prol da elite do poder e acaba contribuindo sobremaneira para a consolidação do poderio de tiranos bons de Ibope como Silvio Berlusconi, na Itália, ou Donald Trump, nos EUA.

“A democratização da esfera política implica, portanto, tornar mais equânime o acesso aos meios de difusão das representações do mundo social. Isto significa, principalmente, dar espaço na mídia às diferentes vozes presentes na sociedade, para que participem do debate político. Mas significa também, e crucialmente, gerar espaços que permitam aos grupos sociais, em especial os dominados, formular suas próprias interpretações sobre suas necessidades e seus interesses – os contrapúblicos subalternos tematizados por Nancy Fraser. O caminho, portanto, não passa pela ‘neutralidade’ dos meios de comunicação, como se depreende do modelo Habermasiano da esfera pública, mas por um verdadeiro pluralismo, que os mecanismos de mercado, como visto, não proveem.” (MIGUEL, p. 154)

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Reagan e Schwarzenegger em 1984

Reagan e Schwarzenegger em 1984

O problema central do livro de Miguel – democracia e representação – acaba necessariamente levando o autor a adentrar o labirinto das representações midiáticas, dado o fato de que as eleições ditas democráticas, na atualidade, estão totalmente imbricadas com a capacidades do candidato de tornar-se uma espécie de celebridade. Foi o que ocorreu, nos EUA, com Ronald Reagan, medíocre ator de Hollywood e garoto-propaganda de um sem-número de anúncios televisivos, que depois se elegeria governador da Califórnia e presidente da república. Reagan está longe de ser exceção ou caso isolado: o bombadão dos blockbusters da truculência pipocável, Arnold Schwarzenegger, trilhou caminhos semelhantes e serviu dois mandatos como governador da Califórnia. No Brasil, é impensável o sucesso eleitoral de figuras como o palhaço Tiririca se não fosse o efeito sobre as urnas causado pela celebridade midiática.

“O que se observa é que a visibilidade na mídia é, cada vez mais, componente essencial da produção do capital político. A presença em noticiários e talk-shows parece determinante do sucesso ou fracasso de um mandato parlamentar ou do exercício de um cargo executivo… a celebridade midiática tornou-se o ponto de partida mais seguro para quem deseja se lançar na vida política. (…) Isto fica especialmente claro na grande quantidade de profissionais de mídia que ingressam na vida política, sobretudo ocupando cargos parlamentares. São radialistas, repórteres de televisão, apresentadores de programas de variedades… Os exemplos, só na política brasileira, são incontáveis: Antônio Britto, Celso Russomanno, Cidinha Campos, Ratinho, João Paulo Bisol, Marta Suplicy, Hélio Costa.” (p. 158)

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Co-autor, em parceria com Flávia Biroli, do livro Feminismo e Política (Boitempo Editorial), Luis Felipe Miguel também é um autor muito atento ao problema da representação feminina nos cargos públicos. Mundo afora, o voto feminino é uma conquista muito recente, que só começa a ser consolidada a partir do século XX (vejam, sobre o tema, a excelente crônica cinematográfica sobre o movimento britânico das Sufragistas, um filme de Sarah Gavron). É verdade que hoje não nos parece mais tão anormal que uma mulher seja chefe-de-Estado em um país importante: Dilma Rousseff no Brasil, Michelle Bachelet no Chile e Angela Merkel na Alemanha são exemplos de presidentas da república que assumiram cargos outrora reservados aos machos (nos EUA, por exemplo, jamais aconteceu de uma mulher ser eleita para a Casa Branca…). Porém, estas conquistas ainda estão longe de ter aniquilado as assimetrias entre homens e mulheres nos cargos públicos. Sobre o tema, Miguel comenta:

9789896413484“É possível, ainda hoje, encontrar quem leia tal situação como demonstração de um desinteresse ‘natural’ nas mulheres pela política. Uma percepção minimamente sofisticada, porém, entende que o acesso à franquia eleitoral é uma condição necessária, mas nem de longe suficiente, para se chegar às esferas  de exercício do poder político. A participação política das mulheres é limitada por fatores materiais e simbólicos que prejudicam sua capacidade de postular candidaturas, reduzem a competitividade daquelas que se candidatam e atrapalham o avanço na carreira política daquelas que se elegem. Principais responsáveis pela gestão das unidades domésticas e pelos cuidados com as crianças, as mulheres dispõem de menos tempo livre, recurso crucial para a ação política. Também tendem a receber salários menores e a controlar uma parcela inferior de recursos econômicos. Ao mesmo tempo, o universo da política é construído socialmente como algo masculino, o que inibe o surgimento, entre elas, da ‘ambição política’, ou seja, da vontade de disputar cargos. Há, aqui, uma excelente ilustração daquilo que Pierre Bourdieu chamava de efeito de doxa, isto é, nossa visão do mundo social constrange nosso comportamento, comprovando (e naturalizando) aquilo que pensamos.” (p. 204)

Aquilo que o mesmo Bourdieu teorizada sob o nome de Dominação Masculina, e que as feministas denunciam como O Patriarcado, até hoje têm uma insidiosa influência até mesmo sobre os estudiosos de política: não faltam tratados sobre política que discutem apenas as teorias e práticas de homens, como se mulher nenhuma já tivesse dito algo que chegasse aos pés das ponderações de um Aristóteles, de um Hobbes, de um Marx. Diante deste preconceito lamentável, nunca é demais afirmar que a nossa capacidade de reflexão e ação políticas ficaria enormemente empobrecidas caso decidíssemos ignorar as inestimáveis contribuições de Hannah Arendt, Rosa Luxemburgo, Emma Goldman, Simone Weil, Angela Davis, Marilena Chauí, Márcia Tiburi, Maria Rita Kehl, Judith Butler, dentre muitas outras. Um dos méritos do livro de Miguel, aliás, está na intensa interlocução que ele estabelece com autoras como Iris Marion Young, Nancy Fraser, Hannah Pitkin, dentre outras.

Uma mais interessantes reflexões de Miguel diz respeito à presença das mulheres na literatura, espaço onde tendemos a pensar que elas possuem uma representação mais forte, dada a grande quantidades de “gênias” das letras que somos capazes de citar (Jane Austen, Virginia Woolf, Clarice Lispector, Katherine Mansfield, Toni Morrisson, Hilda Hilst etc.). Porém, a hegemonia masculina também aí manifesta-se com força, como fica claro pelo fato de nos mais de 115 anos de Prêmio Nobel de Literatura, apenas 14 mulheres venceram-no (8 delas, é bom que se diga, foram laureadas recentemente, a partir dos anos 1990). Comentando a obra de Regina Dalcastagnè (2005, p. 31 e 47), pondera Miguel:

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“Embora em princípio qualquer um possa fazer literatura ou fazer política, o reconhecimento de um discurso como literário ou como político passa pela adequação aos códigos consagrados no campo. (…) Tomando como base os romances publicados pelas editoras de maior prestígio entre 1990 e 2004, verifica-se que 93,9% dos autores são brancos, 78,8% têm diploma universitário, 72,7% são homens. As personagens também são quase todas brancas, heterossexuais e pertencentes às elites econômicas ou às classes médias, com uma significativa maioria do sexo masculino, disparidades acentuadas quando são isolados os protagonistas. Num universo de 258 romances analisados, aparecem apenas 3 mulheres negras como protagonistas e uma única é narradora. Nesse cenário, surgem, vez por outra, vozes diferenciadas. O caso mais emblemático é o de Carolina Maria de Jesus, negra, pobre, favelada, mãe solteira, catadora de papel, descoberta por um jornalista e que publicou seu diário – Quarto de Despejo – em 1960.” (MIGUEL, p. 228-29)

Somente confrontando as assimetrias de gênero e de classe, sedimentadas em privilégios injustos e em representação política desigual, é que uma democracia digna deste nome se instaurará. Miguel aponta que “trabalhadores, mulheres e negros formam grupos que se encontram severamente sub-representados nas esferas de representação política formal, um indício poderoso de sua subalternidade. Como as interdições legais foram revogadas, após décadas de lutas dos integrantes desses grupos, não deixam de surgir exceções, algumas delas relevantes. Mas o fato de que, no Brasil, uma mulher tenha sucedido a um ex-operário na Presidência da República (ou que, nos EUA, o cargo tenha sido ocupado por um negro [Obama]) não cancela o caráter classista, machista e racista do campo político.” (p. 304)

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Um infame exemplo desta predominância classista, machista e racista no campo político é o próprio Ministério instalado no Brasil após o golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016, em que Michel Temer, após a fraudulenta derrubada de Dilma Rousseff no putsch que usou como pretexto as “pedaladas”, nomeou apenas homens, brancos, ricos e cis para os cargos naquilo que mereceria mudar de nome para Esplanada do Machistério Patriarcal dos Plutocratas Golpistas. A mulher foi novamente “posta em seu lugar” através da disseminação midiática do paradigma “bela, recatada e do lar” encarnado pela Marcela Temer, uma espécie de boneca Barbie de carne-e-osso.

Para não deixar dúvidas sobre o seu caráter elitista, o desgoverno Temer logo buscou impor a famigerada PEC 241-55, que pretende precarizar os sistemas públicos de saúde, educação e previdência, num verdadeiro genocídio planificado que incide de modo cruel e desumano sobre a vida e a dignidade dos milhões de brasileiros mais desvalidos e vulneráveis. Após terem estuprado e chutado para escanteio a jovem e frágil democracia brasileira, os usurpadores que assaltaram o poder só fazem a crise de representação se acirrar e atingir níveis cada vez mais críticos, uma vez que eles explicitamente assumem um programa que não representa ninguém além do 1% no tope da pirâmide do dinheiro.

Assim como C. Wright Mills, em A Elite do Poder, “acusa as democracias realmente existentes de não cumprirem sua promessa central: o governo do povo”, um autor como Robert Dahl realizou “a primeira síntese abrangente de uma teoria pluralista da democracia”. “Reservando o termo ‘democracia’ para um ideal que raras vezes é concretizado no mundo real (e nunca em agrupamentos tão numerosos e complexos quanto Estados-nações), Dahl cunha a palavra poliarquia para designar a aproximação possível a esse ideal. O ponto crucial – que transparece já no significado etimológico da palavra – é a presença de uma multiplicidade de polos de poder, sem que nenhum seja capaz de impor sua vontade de dominação a toda a sociedade.” (p. 111)

Avesso e antônimo da oligarquia (o governo dos ricos) e da monarquia (o governo de um só), a poliarquia seria o governo (arche) da multiplicidade (poli). A democrática poliarquia seria uma constelação em micro-poderes em diálogo, em que a sociedade em sua intrínseca pluralidade acolheria uma governança poliárquica e polifônica, onde a ninguém seria negado o direito de ter voz e vez. A democracia, assim concebida, é decerto uma utopia que flamula no horizonte e que, como dirá Eduardo Galeano, pode até afastar-se dez passos a cada passo em sua direção que damos, mas que serve justamente para isso: para que caminhemos.

Eduardo Carli de Moraes – Goiânia, Novembro de 2016

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SOBRE O AUTOR DE “DEMOCRACIA E REPRESENTAÇÃO”:

luis-felipeLuis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). Trabalha nas áreas de mídia e política, teoria da democracia, representação política e gênero. É doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e publicou, entre outros, os livros Mito e discurso politico (Editora Unicamp, 2000), Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), e O nascimento da política moderna: de Maquiavel a Hobbes (Editora UnB, 2015).

ASSISTA:

ESCOLA DEMOCRÁTICA:

MULHER E MÍDIA:

TRAJETÓRIA DO GOLPE: aspectos políticos e jurídicos de uma ruptura democrática. 11 de agosto de 2016. Debate promovido pela Frente Ampla de Trabalhadoras e Trabalhadores do Serviço Público pela Democracia, com Beatriz Vargas, professora da Faculdade de Direito da UnB, e Luis Felipe Miguel, professor do Instituto de Ciência Política da UnB.

“O golpe não iniciou em 17 de abril ou 12 de maio, ou mesmo no pedido de recontagem de votos após as eleições presidenciais. Que elementos, nas relações sociais e políticas em nosso país, possibilitaram o advento do golpe? Quais falhas da esquerda impulsionaram os movimentos conservadores (e machistas, e racistas, e elitistas) na construção do golpe? De que forma o judiciário vem sendo utilizado como elemento facilitador do golpe? Que interpretações jurídicas podem ajudar a barrar o golpe ou ao menos, denunciá-lo?” Na ocasião, a Frente também lança o documento “90 dias de desgoverno golpista”, que apresenta uma sistematização de diversas análises produzidas com o objetivo de evidenciar os ataques aos direitos sociais e os retrocessos ocorridos nestes 90 dias de governo interino, bem como suas consequências para o desmonte das diversas políticas públicas.

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APROFUNDE-SE NOS AUTORES ESTUDADOS:

HANNAH PITKIN

Hanna Pitkin, Professor Emerita of Political Science at the University of California, Berkeley, talks about her life and career with Nancy Rosenblum, Professor of Ethics and Politics in Government at Harvard University and Co-Editor of the Annual Review of Political Science. Dr. Pitkin discusses her childhood, growing up between two “Jewish intellectual left-wingers” who fled 1930s Germany to Oslo, Prague, and eventually Los Angeles. She describes how her refugee status and acquisition of new languages led her to become a scholar in political science. In 1967, she published “The Concept of Representation,” which won the 2003 Johan Skytte Prize in Political Science “for her groundbreaking theoretical work, predominantly on the problem of representation.” She went on to study other topics such as gender and politics in Machiavelli and Hannah Arendt’s concept of “the Social.”

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ROBERT DAHL

Download dos ebooks Poliarquia – Participacion y Oposicion (em espanhol) Dilemmas of Pluralist Democracy (em inglês)

REFLEXÕES SOBRE A FORÇA E A VIOLÊNCIA NA FILOSOFIA DE MICHEL SERRES E SIMONE WEIL

PRELÚDIO

“Por que não deixaríamos
o banquete da vida
como convivas saciados?” 

Lucrécio (Séc. I A.C.)

Que sejam bem-vindos todos os mortais, convidados à convivência fraternal aqui neste cyberjardim, onde planta-se a semente da Philia no chão comum, na vontade de que germine e frutifique!

 Entrego aqui à Teia Mundial da WWW um hipertexto, verbal e audiovisual, aberto à devoração antropofágica e ao comentário livre de todos e quaisquer dos humanos mortais que saibam decifrar sua linguagem talvez um pouco tortuosa (mas é que são tortuosos os caminhos da força e da violência, que se trata aqui de sondar com curiosidade e sem medo!).

Os textos aqui entregues foram tecidos talvez como uma vereda de caminhos difíceis, mas caminháveis, nos quais compartilho alguns frutos de estudos, algumas explorações de temas que andam me interessando e me inquietando – e não sei filosofar senão na inquietude!

É uma tentativa de pesquisar em aberto. Aqui no blog vão sendo disponibilizados estes escritos, que são como que os cadernos de um professor-aprendiz, rebentos de uma outra fase, de alguém que vê-se na condição repleta de novidade do sujeito ensinante. Textos nascidos de dentro do processo de estar vivenciando muitas ótimas experiências como próf de filô no IFG (Instituto Federal de Goiás), mas que continuam sendo textos de alguém que prossegue no pique do aluno, nos corres da descoberta

Creio que professor tem que seguir investigando, caso contrário torna-se uma múmia paralítica, a promulgar verdades fixas do alto de sua cátedra. E professor não é padre, pastor, demagogo, idéologo, porra nenhuma: é a antítese do pregador de verdades absolutas e divinas. Aquele que pretende-se dono da verdade e quer pregá-la para forçar os outros a segui-la é alguém de atitude que não me atrai nem um pouco e que, nos professores que tive, dava-me uma certa repulsa. Pra lembrar Gonzaguinha, creio que há virtude em alguém sentir-se “eterno aprendiz”.

Hoje, sem me sentir velho, tampouco sinto-me “verde” e imaturo: este que atingiu suas 3 décadas de vida humana chegou não a um lugar de paragem, de fixidez, mas pelo menos ao resultado atual de um amadurecimento, e agora vê-se nesta fascinante posição, tão cheia de responsabilidade e promessa, do sujeito ensinante. Um professor-aluno na era da Internet, tentando ir em frente e avante, mas rodeado pela barbárie e acossado pelas marés montantes dos fascismos horrendos.

Nunca foi fácil ser vivo. Sempre foi perigoso ser mortal. Ainda assim, prosseguimos e convivemos.

Sinto visceralmente que professor que chegou a um estado onde parou de aprender e agora só ensina é um bicho bastante preocupante. Professor tem que continuar sendo aluno, pois professor que não aprende tem tudo para tornar-se um chato pedante, um arrogante papagaio de saberes supostamente acabados. Não sinto-me acabado, mas um mortal que vive e vai se fazendo, num improviso existencial um tanto  jazzístico. Ensinar é um aprendizado e sempre se vive um pouco de improviso. Professor que não aprende com aluno é bicho tapado.

Aqui, em aberto, neste blog, neste texto (e nos outros), pretendo praticar um questionamento e uma reflexão no aberto e no fluxo – como num Jardim de Epicuro, ao qual todos vocês estão convidados a frequentar… Deitem à vontade nas relvas, puxem um papo sempre que quiserem, colham frutos e embriaguem-se com suaves ervas, aqui reina a philia! 

Quero pôr-me a praticar aqui uma filosofia sem mapas prévios, sem ideologias a servir de joelhos. Uma filosofia para andarilhos sem respostas. Uma filosofia para questionadores, para fascinados, para aqueles que enxergam a vida, individual e coletiva, um pouco como mistério (em parte decifrável), um pouco como quebra-cabeça (e sempre faltam tantas peças para compreendermos o quadro todo, “the big picture” [como canta Bright Eyes!]).

A Internet possibilita que, ao invés de manter preso na gaveta aquilo que tenho pesquisado e descoberto, que isto seja posto em comum, para que também possa ser influenciado por esta própria abertura, pelos comentários e repercussões que o autor muito contente ficaria de receber: o eco dos feedbacks é uma das maravilhas que faz com que a vida não seja deserto solitário, mas espaço de convivência. Os mortais são convivas debaixo das mesmas estrelas. Embarcados no mesmo rio cósmico, somos corpos-barcos seguindo o declive desta enxurrada que é a vida. Irmãos em potencial somos: ainda que não tenhamos nascido das mesmas mães, somos todos filhos da Natura Creatrix, da Pachamama, da PanPresente Gaia.

Se falo como um hippie, é culpa desta mescla de Hendrix com Michel Serres, de Lennon com Suzuki, de Leminski com Raul Seixas, que constitui este meu cérebro aberto às influências dos meus semelhantes. Busco neles ardor e verdades, furor e loucuras, sem pudor de misturar poetas e pintores, filósofos e músicos. Conhecer é múltiplo. E às vezes desnorteia. Não troco por nada este desnorteio excitante pela apatia da ignorância.

Infelizmente, somos também capazes de fratricídio e barbárie. Com potencial para a fraternidade e para a chacina, oscilamos nessa gangorra. Cabelos ao vento, de pés agarrados ao chão deste planeta que já viu extinguirem-se Neandertais e Dinos, seguimos nosso caminho tão repleto de insânia, tão raramente iluminado por sábios preciosos como os Epicuros e Budas e Spinozas. Vivemos com os joelhos atolados no pântano deste rio de sangue que derramamos, o sangue de nossos semelhantes, o sangue dos mortais e dos animais, e ainda assim temos algo que nos impele para esta bela tarefa da construção de convívio, convivência, comunidade.

Que o convívio humano possa ser fraternal e belo é algo que meu coração um tanto anarquista encontra felizmente realizado em certos pontos do real. Fortaleço-me em minha humanidade ao pensar nos camaradas de Sierra Maestra, outrora, e nas montanhas de Chiapas, nos últimos tempos, apesar de admirá-los à distância, inspirado pelo exemplos de figuras como Che e  Marcos. O cortejo triunfal da violência e da barbárie, é o que me fortalece, não passa nunca sem que se confronte com uma resistência, com a indignação dos rebeldes, com a virtude corajosa dos que se recusam a deixar a opressão e a tirania reinar inconteste.

Sei também dos conjuntos humanos aprazíveis e benéficos; e não sei exemplificá-los melhor do que dizendo: ó que lindeza é uma orquestra filarmônica! Que harmonia coletiva emana de um coro de vozes e uma sinfonia de instrumentos! Que boniteza indizível é esta polifonia harmônica trazida à tona pela interação conjunta dos músicos quando estes vivificam, através da performance comum, a beleza pungente e deliciosa de um Mozart, um Schubert, um Beethoven, um Dvorak…

Por outro lado, a que extremos de discórdia e de chacina não podem chegar os humanos! Diante de tal mistura de angelical e demoníaco, de herói e de vilão, quis explorar o mistério de ser humano, sua glória e sua miséria, sem pressupostos, navegando com meus guias filosóficos prediletos. Saio aqui em viagem de pensamento, jornada de reflexão, e pretendo escrevê-la em aberto, tecendo minha teia verbal na rede, pois ¿não age assim também a  aranha ao ir tecendo a sua teia?

Esta aranha humana que aqui vos interpela, mortais, pretende apenas capturar em sua teia algumas realidades, ainda que de gosto amargo, ainda que pareçam indigeríveis. Este andarilho pelas pradarias do saber, este aventureiro das ciências e das artes, este aprendiz que quer aprendizados colhidos entre sábios e entre loucos, este buscador que aceita lição de gays e de prostitutas tanto quanto de presidentes e papas, este awestruck wanderer que guia-se mais pelo espanto e pela dúvida do que pelas certezas ortodoxas, ataca aqui o problema tão difícil, tão fascinante, que na vida de cada um de nós impõe-se tão radicalmente, da violência, da barbárie, enfim, o antiquíssimo tema do mal. Mal tão arcaico e tão sempiterno, tão antigo e tão contemporâneo. Mal lá fora, mal aqui dentro.

É também uma busca por esta força justa que contrapõe-se ao maléfico, ao danoso, ao mortífero, ao que adoece nosso corpo e avilta nossa dignidade; esta força ativa e criativa, aquilo que os filósofos chamam de virtude, de sabedoria, de aretê, de sophia. Força alegre de criação e invenção daquilo que nos supera e nos amelhora. Pois o que importa é jamais repetir as carnificinas de outrora: que não haja mais Ifigênias imoladas. Que o futuro seja desprovido de Hitlers. Que os fascismos e o totalitarismos sejam mortos e enterrados, restritos aos museus e livros de história. A tarefa é fazer com que Philia reine, que Vênus prevaleça sobre Marte, que o Jardim Fraterno tenha primazia sobre a carnificina das batalhas. Lucrécio, subindo nos ombros de Epicuro, aponta o rumo. Assim como Michel Serres e Simone Weil. E também os mestres zen. Eis a jornada pela frente, brevemente delineada.

I. DO ABISMO ENTRE DIREITO & JUSTIÇA

“Nunca se esqueça que tudo que Hitler fez na Alemanha era legalizado.” (Martin Luther King)

Só em um mundo ideal, harmônico, perfeito, utópico (do grego a-topos, sem lugar, pois não se encontra em lugar nenhum do real, habitando neste “espaço” meramente especulativo do Ideal…), só aí, na Utopilândia, na Cucolândia das Nuvens de que nos fala Aristófanes, a Justiça e o Direito estão perpetuamente em um amplexo amorável, em cópula gostosa, unidos e indissociáveis, constituindo o Reino Róseo da Fraternidade Humana Oni-Harmoniosa.

No real, a utopia é algo que sonha-se, mas que escapa ao nosso abraço, como diz Eduardo Galeano: caminhamos dez passos em sua direção, e a utopia dá dez passos atrás, furtando-se ao encontro. No entanto, caminhamos. Não necessariamente para o melhor.  Pois neste grande pesadelo desperto da História (“History is a nightmare from which I’m trying to awake”, para lembrar James Joyce), neste Theatrum Mundi onde desenrola-se de fato a vida dos mortais, não é preciso ser Shakespeare para perceber que o Direito às vezes é injusto, as leis com frequência infames e bárbaras, os árbitros e juízes com frequência tenebrosos, corruptíveis, vingativos, cruéis, kafkianos.

Por exemplo, como dizia Martin Luther King (que morreu assassinado pela barbárie), havia na matança organizada pelo regime Hitlerista todo um esforço de justificação, de legalização, de tornar lícito no Direito aquilo que hoje tão claramente sentimos como o fascismo bárbaro e terrorista da Shoah, da horrenda “Solução Final”, este ápice das atrocidades naquilo que o historiador Eric Hobsbawm chamou “A Era dos Extremos”.

A partir de 1933, quando chega ao poder o chanceler messiânico, autor do Mein Kampf, líder supremo deste totalitarismo genocida que tanta barbárie causou entre 1933 e 1945, instaurou no Direito, como legítimo, o extermínio em massa dos judeus. E tudo o que os nazis fizeram, todos os atos da Gestapo e dos SS, eram legais, ou melhor, foram tornados legais a partir do domínio sobre o aparato Jurídico, Policial, Militar, Carcerário, Burocrático, enfim: Estatal, conquistado por esta facção política que eram os nazis, infelizmente demasiado apoiados por vastas massas populares. Uma das mais tristes lições da História é esta: o Fascismo às vezes é Pop. Daí seguem-se devastações imensas. 

Eichmann, no tribunal de Jerusalém, como Hannah Arendt tão bem relatou, poderá manter sua pose de “cidadão de bem”, defensor da família, da religião, da propriedade, da tradição, justificando sua participação cotidiana no massacre da Shoah com uma velha desculpa: “eu apenas seguia ordens.” O fascismo funciona como maquinaria autoritária de controle e extermínio, exercida por uma fração da sociedade sobre o que esta facção decreta como “resto”. Judeus, ciganos, negros, índios, homossexuais etc., quando são declarados como sub-humanos sacrificáveis, eis o fascismo em uma pílula.

Mas o fascismo só ganha eficácia se puder pôr a seu serviço toda uma legião de funcionários. O führer era um só, é verdade, mas havia milhares de funcionários descerebrados dispostos a liberar o venenoso pesticida Zyklon B sobre seus irmãos, afinal “eram ordens de cima”.  Tampouco faltaram aqueles yankees obedientes que, dos seus aviões, borrifavam o Vietnã com o Agente Laranja (made by Monsanto) – o chefe tinha mandado, as ovelhinhas desumanas obedeciam. Todo regime fascista precisa de “gente normal” a manipular como títeres – e é chocante a quantia de gente que se presta a isso e que deixa-se aliciar por psicopatas demagogos, obedecendo àquilo que a dignidade humana e a fraternidade possível manda-nos recusar.

 O Holocausto evidentemente não era justo, mas tornou-se legalizado – abismo entre Direito e Justiça. O III Reich fez de seu Direito uma encarnação da barbárie. Por que o fascismo torna-se pop? A melhor resposta, creio eu, está em Erich Fromm e Wilhelm Reich, elucidada por Medo à Liberdade Psicologia de Massas do Fascismo. A liberdade pode ser sentida como um fardo, que nos implica com nossa escolha, que pesa sobre a consciência como responsabilidade, de modo que é mais fácil seguir o fluxo, obedecer às ordens, atribuir todo poder decisório a alguém que ordena, de cima para baixo, o caminho a seguir.

O fascismo torna epidêmico os descerebrados obedecimentos dos autômatos, a ausência perigosa de autonomia e capacidade crítica. O fascismo é simplista, reducionista, sectário, apelando para os piores ímpetos tribais arcaicos das massas que mobiliza: o líder fascista apela para que as pessoas identifiquem-se com a facção, que gozem com seu pertencimento a uma partição social, e que vejam todo o mal e toda a vilania em um certo outro, alteridade condenada e diabolizada, bode expiatório a ser imolado pela gangue de fascistas em grupo, psicopatas em facção, KKK ou SS. Diante de cenários assim, Howard Zinn, historiador norteamericano, dirá sob a influência das doutrinas de Desobediência Civil, celebremente defendidas por Thoreau e Gandhi:

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“A desobediência civil não é o nosso problema. Nosso problema é a obediência civil. Nosso problema é que muitas pessoas ao redor do mundo obedeceram às ordens dos líderes de seus governos e foram a guerra, e milhões foram mortos por causa dessa obediência… nosso problema é que as pessoas são obedientes por todo o mundo diante da pobreza, da fome, da estupidez, da guerra e da crueldade. Nosso problema é que as pessoas são obedientes diante de cadeias que estão cheias de batedores de carteira, enquanto grandes bandidos governam a nação. Eis aí o nosso problema.” – Howard Zinn, historiador e cientista político. ACESSE: HOWARD ZINN EM PORTUGUÊS [BLOG]

Michel Serres falará de uma tendência histórica que há, contrapondo-se à barbárie, que procura fazer a História avançar, progredir, melhorar:

“A História avança, se podemos dizê-lo, quando uma disposição legal, aparentemente mais justa, substitui e anula a precedente, subitamente experimentada  como sobrecarregada de iniquidade. Sem esse movimento, jamais teríamos mudado de governo, nem nossas instituições e costumes evoluiriam. As leis saltam de injustiças duras para outras, mais brandas, com a justiça servindo de horizonte inacessível? Sejamos realistas; pois, como temos experimentado, nossa história constitui-se também de recuos; retrocessos misturam-se a progressos. Pior: nem sempre conseguimos avaliar o verdadeiro sentido, positivo ou negativo, desses dois movimentos.” (SERRES, A Guerra Mundial, pg. 88)

Nada nos permite crer na lenda otimista de uma História que só vai em direção ao melhor. O Progresso necessário é um mito, ou seja, quiçá uma mentira. Muitas guerras já foram deflagradas com a justificação de que trariam o progresso. Aqueles que envolvem-se em guerras quase sempre procuram justificativas para a carnificina, oferecem-nos uma explicação dos porquês da violência, chegando às vezes à curiosa e perigosa noção de guerra justa. Mas será que uma guerra pode mesmo ser justa, ou ela é justamente uma ofensa escabrosa à justiça? “Desconfio até inexistir, jamais ter havido guerra justa, o horror dos combates terminados em cadáveres amontoados sobrepujando, em atrocidade, a ideia de ser possível dizimar para estabelecer alguma equidade…” (SERRES, p. 88)

Zentralbild II. Weltkrieg 1939 - 45 Nach der Besetzung Frankreichs durch die faschistische deutsche Wehrmacht im Juni 1940 besucht Adolf Hitler Paris. UBz: Adolf Hitler mit seiner Begleitung nach der Besichtigung des Eifelturms. vlnr: SS-Gruppenführer Wolff, [Architekt Hermann Giesler], dahinter Generalfeldmarschall Wilhelm Keitel, SA-Gruppenführer Wilhelm Brückner, Reichsminister Albert Speer, Adolf Hitler, dahinter Reichsminister Martin Bormann, [Bildhauer Arno Breker], Reichspressechef Staatssekretär Otto Dietrich. 5527-40

Michel Serres fala, em A Guerra Mundial, de sua experiência própria, vivenciada em carne-e-osso: “durante a Liberação”, quando os franceses batalhavam para libertar-se da ocupação Nazi (que se estendeu de maio de 1940 a dezembro de 1944) , “uma guerra civil feroz estourou na França, e os mortos abundavam nos campos e nas ruas; (…) nós soubemos da Shoah (Holocausto), de Hiroshima e Nagasaki, de Dresden… Salváramos fugitivos, judeus, ciganos, mas, em relação ao número diluviano de cadáveres, eram migalhas.” (SERRES, p. 12)

Ora, Serres é um pacifista convicto, na práxis, alguém que escolheu a via da recusa ao belicismo. Mas ele compreende a guerra como algo que já pertence à história do Direito, ou seja, das táticas de regulação e domesticação da violência. “Na juventude, eu me demiti da Escola Naval, movido pelo que se chamava na época objeção de consciência. Enganei-me, confesso, ao confundir o exercício da violência com a existência do exército. Esse, não inventa nem consuma a violência, limita-a. Ele só faz combaterem adultos jovens, homens, antigamente mercenários, voluntários outrora, alistados na época… excluindo dos combates eventuais os anciãos, mulheres e crianças.” (SERRES, pg. 47)

O Direito não é santo. A guerra é um de seus meios, os exércitos às vezes suas ferramentas. Serres vai mais longe: só há guerra após o advento dos Estados. Para que seja possível que os beligerantes consintam com armistícios, tratados de paz, cessar-fogos, é preciso que já exista pelo menos um rudimento de Estados, constituídos, com algum Direito. “São necessários Estados para fazer a guerra, isto é, instituições já legais. A expressão “O Estado faz a guerra, e a guerra faz o Estado” parece-me conter também esse sentido jurídico(…) A guerra pressupõe um Contrato social. Ela se segue a ele; não conseguiria precedê-lo; acho mesmo que são contemporâneos.” (SERRES, pg. 90)

DENTRE OS TALENTOS HUMANOS, A MATANÇA ORGANIZADA E  A INCAPACIDADE DE ABOLIR A VIOLÊNCIA

“A guerra pode ser definida como organização da matança“, escreve Michel Serres em A Guerra Mundial (Editora Bertrand, Rio de Janeiro, 2008, pg. 25). Desde tempos imemoriais acontecia (e acontece até hoje em dia) que “depois de mil massacres na fornalha das batalhas, alguns medrosos grisalhos e frios, sãos e salvos, condecoravam os sobreviventes, feridos, com medalhas e os tratavam de heróis.” (pg. 26)

Serres também lembra, com René Girard, dos bodes expiatórios de que a História – pesadelo que passa? – está repleta: “ritos arcaicos e sacrificais, inteiramente inventados para desviar a violência coletiva para a imolação de uma vítima, o bode expiatório, que todos os que o matavam acreditavam culpado.” (p. 119) Ifigênia, lamentada por Lucrécio no Canto I de Da Natureza, é o símbolo imorredouro: virgem, pura, inocente, degolada no altar, a mando de seu próprio pai Agamemnon, o que arranca do poeta romano o seguinte lamento, cheio de blues: “A tão grandes males a superstição humana pode conduzir!”

A violência não é nova, na real é antiquíssima. A heroicização do homem viril, briguento, derramador de sangue, Hercúleo, bombado, que fala grosso, com fúrias de Aquiles, sangue-no-zóio como Agamemnon (que não tem misericórdia nem mesmo de sua filha Ifigênia!), tudo isso é bem arcaico e bem atual. Ainda hoje, temos serial killers com “sangue-azul”, gananciosos por tronos feito os Shakespeareanos Macbeths e Ricardos Terceiros. O belicismo viril, o falocentrismo briguento, a rivalidade descerebrada, a agressão gratuita, são dessas desgraças persistentes, destes estrupícios duráveis, que fazem da vida este treco um tanto difícil de ser digerido. A matança organizada prossegue entre nós como um legado obsceno do Patriarcado (Dominação Patriarcal que é ao mesmo tempo atual e arcaica). Hoje sobrevive uma barbárie cuja data de nascença é muito antiga e que continua sendo nossa tarefa contemporânea enfrentar, desconstruir e vencer. Smash it!

Estamos, é claro, muito longe de abolir a violência: não passa no mundo um minuto onde não registrem-se inúmeros casos de violência, e não somente os humanos, pois o lobo refestela-se com o banquete fornecido pelo assassinato que comete contra a lebre. Todo bicho que come um dia acaba por ser comido, lei natural necessária e sem escapatória. Resta a pergunta: é possível alguma sociedade, algum arranjo comunitário, onde a violência seja reduzida ao mínimo?

A utopia de uma sociedade que tivesse abolido a violência: quem é capaz de crer na possibilidade de realização disto? É claro que temos lindos exemplos de comportamento pacifista, belamente expressado, nas figuras de um Mahatma Gandhi ou de um John Lennon. Boto fé que há muito neles a ser aplaudido e celebrado (e por que não teríamos nossos heróis muito mais entre os pacíficos do que entre os guerreiros?). Mas ambos morreram assassinados. Tornar-se porta-voz do pacifismo, do brotherly love, da filantropia epicurista, do amai-vos uns aos outros, nada disso impede que um psicopata enfurecido ou um fascista bronco retire do coldre seu trabuco fálico e nos exploda o crânio com tiros. Filosofia trágica, real cheio de ágon.

Os fascistas não respeitam o paz-e-amor preconizado pelos hippies. Tem muito pacifista, na história, que tem seu discurso calado à bala. Como, diante desse quadro, agir? Em um mundo onde há a chance sempre presente de que sejamos vítimas da violência, como viver e conviver? Questão, creio eu, das mais contemporâneas que há, mas enraizada em uma vasta história. Questão que, me parece, era também visceralmente uma das experiências existenciais essenciais de Simone Weil  (1909-1943), esta pensadora preciosa e frágil, tão corajosa e tão fraca… Na companhia de Weil e Serres, coloco-me como missão, neste texto que aqui teço, sondar o enigma: a humanidade está impossibilitada de abolir a violência?

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III. POEMA DA FORÇA: SIMONE WEIL LÊ A ILÍADA

Ela, que viveu na pele a opressão que vivencia o operário e a desumanização que toma conta de todos em época de guerra, tinha em sua vida subjetiva esta mescla complexa e fascinante de gravidade e graça, de pacifismo e combatividade, que faz da leitura de Simone Weil algo que afeta o leitor em um nível muito mais fundo do que a razão. Simone emociona até o tutano dos ossos, comove como nenhum melodrama consegue. E que surpresa que tudo isto esteja escondido por trás de um livro com um título promissor de áridos marxismos – como A Condição Operária. 

Leitora da Ilíada, Simone Weil enxerga ali o problema filosófico da força, que interessa-lhe intensamente. O problema da violência, de sua abolição possível, está conectado ao problema da força, e não apenas da força humana. Homero é um poeta tão poderoso pois a Ilíada e a Odisséia são palcos iluminados para as manifestações da força, os embates entre diferentes forças, o conflito que há na existência e que os gregos chamavam de ágon. 

“Como definir força? É aquilo que transforma aquele submetido a ela em uma coisa”, escreve S. Weil em Ilíada – Poema da Força. “Exercida até o limite, a força realmente transforma o ser humano que é submetido a ela em uma coisa ao fazê-lo virar um cadáver. Fulano estava lá, vivo, e um instante depois não há nada ali além de um morto: eis um espetáculo que a Ilíada não cansa de apresentar-nos.” (SIMONE WEIL, Iliad: Poem of Force, pgs. 3-4-10.)

Pessimismo? Ou realismo? De todo modo, Weil e Serres sabem muito bem que a vida e a violência enredam-se de tal maneira uma com a outra que parecem indissociáveis. Era também a experiência de Heráclito e Nietzsche, de Foucault e Karl Polanyi. A ideia de que o ágon é parte integrante da condição humana, que a violência e o conflito fazem parte do próprio tecido da natureza, também marca presença em alguns dos pensadores mais importantes dos últimos séculos: Darwin e seu struggle for existence, a luta pela sobrevivência; Marx & Engels afirmando a luta de classes como motor da história; Sigmund Freud especulando sobre o Instinto de Morte, em conflito com Eros, e meditando em sua psicologia – tanto a individual quanto a de massas – sobre ímpetos agressivos, marciais, tanatocêntricos; todos esses caldeiões de ideias são evidências desta presença, através de todo o tecido do real, da força, do combate, da violência.

Capitalisme - Child Labor

A história do Capitalismo e do Patriarcado, o império da dominação burguesa e viril, imbricam-se para erigir um sistema social que cotidianiza a violência e a opressão, como vemos nas crianças operárias da foto acima, pequenos “motores” de carne-e-osso da Revolução Industrial e suas fábricas que eram como “moinhos satânicos” (Cf. A GRANDE TRANSFORMAÇÃO, de Karl Polanyi)

* * * * *

Na sequência, compartilho um texto que escrevi em Toronto, durante o ano que passamos no Canadá (2014), para o blog paralelo Awestruck Wanderer, em que falo sobre o livro de Simone Weil, Ilíada – Poema da Força, e tento conectá-lo com o zen budismo. Infelizmente, não tenho tempo no momento para traduzi-lo do inglês ao português:

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“The true hero, the true subject, the center of the Iliad is force. Force employed by man, force that enslaves man, force before which man’s flesh shrinks away.

To define force – it is that X that turns anybody who is subjected to it into a thing. Exercised to the limit, it turns man into a thing in the most literal sense: it makes a corpse out of him. Somebody was there, and the next minute there is nobody here at all; this is a spectacle the Iliad never wearies of showing us.

 Nearly all the Iliad takes place far from hot baths. Nearly all of human life, then and now, takes place far from hot baths…

Such is the empire of force, as extensive as the empire of nature.”

SIMONE WEIL  (1909-1943),
Iliad: Poem of Force, pgs. 3-4-10.

 

6Simone Weil reads the Iliad as if she’s witnessing, before her compassionate eyes, those occurrences evoked by the poet’s verses: she doesn’t turn her face away, refusing to see, when the horrors of war are graphically depicted in Homer’s blood-soaked pages. The war between Trojans and Greeks offers infinite occasions for us to reflect upon Force, especially in its deathly effects. What always results from battles is men laying lifeless on the ground, “dearer to the vultures than to their wives”, as Simone Weil stresses, and even the greatest heroes – Hector or Achilles – are frequently reduced to things by the enemy’s force. “The bitterness of such a spectacle is offered us absolutely undiluted. No comforting fiction intervenes; no consoling prospect of immortality; and on the hero’s head no washed-out halo of patriotism descends.” (WEIL: p. 4)

If there’s a lot of tragedy in the Iliad – and it surely has, even tough it was written centuries before the Greek tragedians (Aeschylus, Sophocles, Euripides etc) were born – it’s because force is often employed with tragic effects. It’s clear to me that Simone Weil uses the concept of “force” to denote something she morally condemns, and in such a manner that one might fell she has affinities with several branches of Eastern wisdom, especially Buddhist ethics.

For example, D. T. Suzuki’s Zen Buddhist philosopy, in which he opposes Power and Love and describes them as hostile to one another. Force/power is imposed upon a subject in order to reduce him to a thing, either by killing him (and thus forcingly throwing him back into the inanimate world), either by violating, humiliating, opressing or harming him in such a way that the person is still alive and breathing, but is no longer an autonomous subject. “A man stands disarmed and naked with a weapon pointing at him; this person becomes a corpse before anybody or anything touches him… still breathing, he is simply matter.” (WEIL: pg. 5)

A difference or imbalance between the forces of two individuals are excellent evidence of the onthological presence of Simone Weil’s force or Suzuki’s power among all that’s human. Trivial examples abound. Someone with a bazooka overpowers someone with a knife. A knifed man forces an unarmed woman into carnal processes she wouldn’t unforcibly agree to – I’m describing a rape. There are hundreds of movie scenes, especially in westerns and action-packed blockbusters, that tell stories about this battle of forces and powers. But for millenia before cinema was invented, human history contained in its bosom duels, rivalry, competion. One of the most ancient of literary monuments of the world, Homer, has the blood of battles soaked all over his pages. To speak like a Greek, human history is filled with ágon and húbris.

Weil writes about the Iliad being a French woman in the industrial-commercial age. Surely her experience in Renault’s factory, where she worked in order to experience in the flesh the fate of the proletariat, informs her readings of History as a whole. The factorys of the 20nd century are forces that dehumanize men, turns humans into things. The oppresion she dennounced on her writings, such as La Condition Ouvrière, well, she can sense similars processes of oppression and murderous folly, all mirrored in the Iliad.

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“There are unfortunate creatures who have become things for the rest of their lives. Their days hold no pastimes, no free spaces, no room in them for any impulse of their own. It is not that their life is harder than other men’s nor that they occupy a lower place in the social hierarchy; no, they are another human species, a compromise between a man and a corpse. The idea of a person’s being a thing is a logical contradiction. Yet what is impossible in logic becomes true in life, and the contradiction lodged in the soul tears it to shreds. This thing is constantly aspiring to be a man or a woman, and never achieving it – here, surely, is death but death strung out over a whole lifetime; here, surely is life, but life that death congeals before abolishing.” (WEIL: p. 8)

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In the epoch that the Iliad narrates, that is: The Greeks against Trojans Mega-War, it was the destiny of a conquered enemy to become a slave, that is, to be turned into a thing, deprived of autonomy. Homer describes in some occasions how people are forced into ships, taken away “to a land where they will work wretched tasks, laboring for a pitiless master” (HOMER. Iliad. Apud WEIL: p. 9).

A person enslaved is being treated like a beast, like a horse on reins. 12 Years A Slave, Scott McQueen’s film, is a fresh reminder of these horrors. Simone Weil denounces the in-humanity in human affairs wherever she sees it: be it on a Greek epic-poem, be it in the factories of the capitalism’s car-making industries. In this we can see how Simone Weil joins hands once again with Buddhist ethics: she denounces the ways in which misused force, or tyranny, disrespects sentient beings by treating them as if they were inert matter.

What Weil and Suzuki denounce in the workings of Force and Power is that lack of compassion which Buddhist ethics, by dissolving the ego, aims to cure ourselves of. Enlightnement or Nirvana, in Buddhism, can’t be achieved without compassion. And it may also be argued that French philosophy in the 20nd century has few voices more compassionate than Simone Weil’s.

“Force is as pitiless to the man who possesses it, or thinks he does, as it is to its victims; the second it crushes, the first it intoxicates. The truth is, nobody really possesses it. In the Iliad there is not a single man who does not at one time or another have to bow his neck to force.” (WEIL: p. 11)

There’s no simplistic, dualistic division between the forceful and the forceless in Weil’s philosophy – of course one can be a slave for a whole lifetime, and one can be a master and tyrant from birth to grave, but force isn’t something a human being can only exert upon others. Nature itself overpowers tremendously each and every one of the sentient and living creatures in its bosom, in such a way that even the most powerful among humans is still a frail thing – and always mortal, transient.

Let’s remember that the Iliad begins when a heated controversy is tearing apart two very powerful Greeks, Agamemnon and Achilles. This fight for supremacy is all around Homer’s poem, everyone wants to increase his own power, and this can’t be done by any other way than at the expense of others. The result of this mad rivalry is huge bloodshed. “He that takes the sword, will perish by the sword. The Iliad formulated the principle long before the Gospels did, and in almost the same terms: Ares is just, and kills those who kill.” (p. 14)

Mars, god of war, always ends up killing the killers.

1Certainly inspired and influenced by the philosophy of one of her dearest teachers, Alain  (Émile-Auguste Chartier, 1858-1961, author of Mars ou La Guerre Jugée), Simone Weil is a passionate apologist for philosophy’s powers against inhumanity. Because “where there is no room for reflection, there is none either for justice or prudence.” (p. 14) And she argues also: the horrors and tragedies that Homer depicts can be understood as results of lack-of-reflection, of hastiness to act, of an incapacity to refrain from agression etc.

 “Hence we see men in arms behaving harshly and madly. We see their sword bury itself in the breast of a disarmed enemy who is in the very act of pleading at their knees. We see them triumph over a dying man by describing to him the outrages his corpse will endure. We see Achilles cut the throats of twelve Trojan boys on the funeral pyre of Patroclus as naturally as we cut flowers for a grave. These men, wielding power, have no suspicion of the fact that the consequences of their deeds will at lenght come home to them – they too will bow the neck in their turn.” (WEIL: p. 14)

What’s astonishing about these last words is how closely Weil gets close to the Buddhist idea of karma. And what’s also touching is how compassionate Simone Weil truly is when she describes those numerous occasions when we fail to treat ourselves as “brothers in humanity” (WEIL: p. 15). But Weil is no Buddhist, and in the text we are following here she’s interested mainly in the Greeks, and how they also had a concept similar to karma, some sort of “retribution which operates automatically to penalize the abuse of force”. She claims this is the “the main subject of Greek thought”:

Nemesis

Greek goddess Nemesis

“It is the soul of the epic. Under the name of Nemesis, it functions as the mainspring of Aeschylus’s tragedies. (…) Wherever Hellenism has penetrated, we find the idea of it familiar. In Oriental countries which are steeped in Buddhism, it is perhaps this Greek idea that has lived on under the name of Karma. The Occident, however, has lost it, and no longer even has a word to express it in any of its languages: conceptions of limit, measure, equilibrium, which ought to determine the conduct of life are, in the West, restricted to a servile function in the vocabulary of technics.” (WEIL: p. 16)

In André Comte-Sponville’s philosophy, especially in his Short Treatise Of Great Virtues, Simone Weil’s ethical legacy lives on. It’s enough to read his wise chapters on “temperance”, “prudence” or “love” to get convinced that France’s philosophers are beautifully keeping alive the flame of these virtues, or at least hoping to spread them by inviting more humans to practise them. “A moderate use of force, which alone would enable man to escape being enmeshed in its machinery, would require superhuman virtue, which is as rare as dignity in weakness.” (WEIL: p. 20)

In Simone Weil’s ethics, moderation of force, care for the feelings of others, awareness of alterity, are virtues to be practised by those who see themselves as brothers and sisters in humanity. But when we look back at History we have few reasons to be optimistic. And besides, as Simone Weil points out with irony, we still live in times where “there is always a god handy to advise someone to be unreasonable.” (p. 21)

Simone Weil’s writings frequently denounce inhumanities commited by humans. She spreads awareness of our common humanity by showing how frequently we treated ourselves in a subhuman ways. And it’s not true that only the slaves are turned into subhumans when they are forced into slavery: the master also loses his humanity when he enslaves. And war and slavery are dehumanizing forces because they work towards destruction and death, “yet the idea of man’s having death for a future is abhorrent to nature. Once the experience of war makes visible the possibility of death that lies locked up in each moment, our thoughts cannot travel from one day to the next without meeting death’s face.” (WEIL: p. 22)

Is Weil, then, simply a pacifist, a Gandhian? Or did she approve armed uprisings against the Nazi’s occupation of Paris, for example? Her condemnation of war – bot only on “moral” grounds, but in a much broader sense, in an existential level – would necessarily lead her to a practice of non-resistance? The answer is hard to give, considering that Simone Weil, during the Spanish Civil War (1936-1939), enlisted to fight against the fascists. She can be seen in a famous photograph with a shotgun in her hands, quite willing to add a little bit of force to the Anti-Franco militias. But Simone Weil was no brute – on the contrary, she was gentleness incarnate, and her personal favorite in the Iliad is “Patroclus, who knew how to be sweet to everybody, and who throughout the Iliad commits no cruel or brutal act.” (WEIL: p. 26)

The possession of a fire arm does not imply the right to brutality or cruelty. Being armed isn’t a license to act with mad húbris. When I think of Simone Weil armed with a shotgun in Spain, willing to fight against Fascism when she saw it dangerously spreading through Europe, I can’t be simplistic about pacifism, as if it was some kind of ethical absolute. I don’t believe it is – and neither did Simone Weil back in the 1930s or did the Zapatistas under the guidance of Marcos in Chiapas, Mexico, nowadays.

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War turns us into subhumans beasts killing themselves in mad rivalry, but how on Earth are we to build a planetary community in which war has been banned, and ample dialogue and mutual enlightnement between cultures reign? For thousands of years, war seems to follow humanity, always on its trail. That ideal sung by John Lennon in “Imagine”, the Brotherhood of Man, remains to be futurely made flesh. It ain’t here now, it hasn’t been around lately, I guess, I suppose…

In Homer’s Iliad Simone Weil sees nothing to be optismistic about, just “a picture of uniform horror, of which force is the sole hero.” (p. 27) But what’s sublime about Homer’s art: the lasting artistic value of ancient epic poetry lies in the poet’s capacity to portray suffering befalling all – both Greeks and Trojans. Thus it points out to the fact that we’re all brothers in sorrow, and that’s an excellent reason for peace and compassion, as a Buddhist could put it.

“However, such a heaping-up of violent deeds would have a frigid effect, were it not for the note of incurable bitterness that continually makes itself heard. It is in this that the Iliad is absolutely unique, in this bitterness that proceeds from tenderness and that spreads over the whole human race, impartial as sunlight. Never does the tone lose its coloring of bitterness; yet never does the bitterness drop into lamentation. Justice and love, which have hardly any place in this study of extremes and of unjust acts of violence, nevertheless bathe the work in their light without ever becoming noticeable themselves, except as a kind of accent. Everyone’s unhappiness is laid bare without dissimulation or disdain; no man is set above or below the condition common to all men; whatever is destroyed is regretted. (…) Whatever is not war, whatever war destroys or threatens, the Iliad wraps in poetry; the realities of war, never. (…) The cold brutality of the deeds of war is left undisguised; neither victors nor vanquished are admired, scorned, or hated. An extraordinary sense of equity breathes through the Iliad. One is barely aware that the poet is a Greek and not a Trojan.” (WEIL: p. 30 – 32)

For Simone Weil, the poet who wrote the Iliad acted with marvelous impartiality, and sang about the misfortunes and losses, about the victories and triumphs, of both sides of the conflict, in such a way that Greeks and Trojans are shown as co-participants of a common process.

“Attic tragedy, or at any rate the tragedy of Aeschylus and Sophocles, is the true continuation of the epic. The conception of justice enlightens it, without ever directly intervening in it; here force appears in its coldness and hardness; (…) here more than one spirit bruised and degraded by misfortune is offered for our admiration.” (p. 34) The enduring existential value of such art lies in this: to be aware of human misery is “a precondition of justice and love”, claims Weil. (p. 35)

When Simone Weil affirms also that “misery is the common human lot” (p. 35), she’s once again approaching a landscape familiar to Buddhists: one of the Four Noble Truths enounced by the enlightened Sidharta Gautama is:  “all is suffering”. From this awareness  springs compassion. Love, justice, compassion, can’t arise without the clear perception of our brotherhood in suffering. However, it’s clear as water that, even tough she was born in a Jewish family, Simone Weil is deeply suspicious of the doctrines and dogmas of Judaism:

“With the Hebrews, misfortune was a sure indication of sin and hence a legitimate object of contempt; to them a vanquished enemy was abhorrent to God himself and condemned to expiate all sorts of crimes – this is a view that makes cruelty permissible and indeed indispensable. And no text of the Old Testament strikes a note comparable to the note heard in the Greek epic, unless it be certain parts of the book of Job. Throughout 20 centuries of Christianity, the Romans and the Hebrews have been admired, read, imitated, both in deed and word; their masterpieces have yielded an appropriate quotation every time anybody had a crime he wanted to justify.” (p. 36)

Belief in gods is seen as highly problematic in Simone Weil’s philosophy, even tough it would be an exageration to call her an atheist, considering the intense mystical impulses that she manifests so vividly in her ouevre. What Weil can’t stand is the arrogance of those who use religion to falsely believe they are superior to the rest, that they are immune from evils that will only befall others. When religion leads to the denial of our common humanity, Weil rejects it: “the only people who can give the impression of having risen to a higher plane, who seem superior to ordinary human misery, are the people who resort to the aids of illusion, exaltation, fanaticism, to conceal the harshness of destiny from their own eyes.” (p. 36)

We still have a lot to learn from the Greeks, including its great epic poet, and Simone Weil admires Homer’s Iliad so much that she claims that

“in spite of the brief intoxication induced at the time of the Renaissance by the discovery of Greek literature, there has been, during the course of 20 centuries, no revival of the Greek genius. Something of it was seen in Villon, in Shakespeare, Cervantes, Molière, and – just once – in Racine. To this list of writers a few other names might be added. But nothing the peoples of Europe have produced is worth the first known poem that appeared among them. Perhaps they will yet rediscover the epic genius, when they learn that there is no refuge from fate, learn not to admire force, not to hate the enemy, nor to scorn the unfortunate. How soon this will happen is another question.” (WEIL: p. 37).

These words also sound, to my ears, in tune with Buddhist ethics, especially for the praise of compassion for the suffering of others. And of course that within the realm of The Other we should include Life-As-A-Whole, and not only human life. The Buddhist notion of “sentient beings” is such a great idea, methinks, because it describes something much vaster than Mankind, something that, without being a god, certainly transcends the individual self. Dogs and cats, lions and owls, sunflowers and worms, they all belong to the great family of the living, they are all sentient beings, even tough the degree of self-cousciousness greatly varies.

If both Simone Weil’s philosophy and Buddhist ethics are worthy of our attention, study and discussions, methinks it’s mainly because of the imminent ecological catastrophes that will quake our future and will shatter the current “Western Way of dealing with Nature”. Or, to put it in another words, it won’t be possible for the West to continue in its industrial-commercial path, on its productivist húbris, in its crazy consumerism meddled with egotisticall individualism, simply because the Earth’s biosphere won’t stand for it. And if we keep on going in the same direction, we can only expect mass-scale tragic consequences arising from so much atmospherical pollution, fossil-fuel burnings, deforestations, oil spills… A wiser relationship with Nature urgently needs to emerge from the cultural slumber of destructive capitalism – or else we’re damned.

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“Westerners talk about conquering Nature and never about befriending her. They climb a high mountain and they declare the mountain is conquered. They suceed in shooting a certain type of projectile heavenwards and then claim that they have conquered the air. (…) Those who are power-intoxicated fail to see that power is blinding and keeps them within an ever-narrowing horizon. Love, however, transcends power because, in its penetration into the core of reality, far beyond the finiteness of the intellect, it is infinity itself. Without love one cannot see the infinetly expanding network of relationships which is reality. Or, we may reverse this and say that without the infinite network of reality we can never experience love in its true light.

To conclude: Let us first realize the fact that we thrive only when we are co-operative by being alive to the truth of interrelationship of all things in existence. Let us then die to the notion of power and conquest and be resurrected to the eternal creativity of love which is all-embracing and all-forgiving. As love flows out of rightly seeing reality as it is, it is also love that makes us feel that we – each of us individually and all of us collectively – are responsible for whatever things, good or evil, go on in our human community, and we must therefore strive to ameliorate or remove whatever conditions are inimical to the universal advancement of human welfare and wisdom.”

(D. T. Suzuki, The Awakening of Zen, “Love and Power”, pg. 70)

Article by Eduardo Carli de Moraes,
at Awestruck Wanderer.

Toronto, Canada. March 2014.

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BILIOGRAFIA BÁSICA

A GUERRA MUNDIAL, de Michel Serres

ILÍADA: POEMA DA FORÇA, de Simone Weil. In: WEIL, Simone; BESPALOFF, Rachel. War and Iliad. Preface by Christopher Benfley. New York Review Books Classics, 2005.

THE AWAKENING OF ZEN, de Daisetz Teitaro Suzuki. The Awakening of Zen. Edited by Christmas Humphreys. Boston: Shambhala, 1980.

Shaking Hands with Other People’s Pain

Gaza, July 2014

Gaza, July 2014

“Nous n’avons pas toujours assez de force pour supporter les maux d’autrui.” 
LA ROCHEFOUCAULD (1613 – 1680)

Here’s the trouble with solidarity, altruism, compassion, brotherhood and other values we often pay lip service to, while practising them so shabbily: it isn’t always easy or pleasant to join in a common struggle with some human being or community who is suffering a terrible fate. As the French moralist said: “We don’t always have enough strenght to bear other people’s sufferings.” (La Rochefoucauld) Let’s not idealize human beings: egotistical as we so often are, we would rather turn a blind eye to other people’s pains and keep paying attention only to our tiny little selves. Human as I am, when confronted by events that would disturb my peace-of-mind, like these who are flooding the news during the last weeks, my first impulse is to run for cover in the comfort of blissful ignorance. Why should I care if the Israeli army is bombing Gaza to a heap of ruins? Why should I look at the photographs of dead babies, injured women, dismembered elderly? Why shouldn’t I be allowed to choose the easiest path and retreat from these horrible occurrences, refusing to acknowledge their existence? Am I to blame if I’d rather act like an ostrich that hides its head in the sand?

Voltaire (1694 – 1778) once said that “every one is guilty of all the good he did not do”. That sounds to me a much more courageous and demanding statement than the one quoted in the epigraph. La Rochefoucauld’s phrase sounds like someone who uses a personal weakness to justify his choice of indifference. Voltaire wants us to take responsability on our hands and act on behalf of others; doing nothing may be sometimes considered a criminal cumplicity to the perpetrators of oppresion or genocide. La Rochefoucauld’s comment, on the other hand, seems to excuse a behaviour of inaction and voluntary ignorance and lassitude, when we’re confronted with “les maux d’autrui”. Myself, I can’t help but feel some contempt for the attitude of those who don’t give a damn about other people’s miseries and care only about their private little matters. My heart fills with admiration by people like Arundhati Roy or Joe Sacco, Simone Weil or Che Guevara (to mention just a few), highly sensitive and creative persons, who devote their life-works to shaking hands with other people’s pain. And acting in order to diminish human grief in our Samsarian planet (good planets are hard to find). Empathy, methinks, is a praiseworthy virtue, and one of the best definitions of it I know of is by Ernesto ‘Che’ Guevara: “feeling anguish whenever someone was assassinated, no matter where it was in the world, and of feeling exultation whenever a new banner of liberty was raised somewhere else.”

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Such thoughs have been fermenting in my mind during insomnias and daytime anxieties, as the numbers of injured and dead keep getting higher and higher in Palestine. But let’s not take numbers too seriously and forget the real heartfelt human suffering that numbers tell us nothing about. Let’s not allow our minds become numb with an overdose of tragic numbers. Each number is to be perceived as flesh-and-blood, as sentience and conscience, as beating heart and thinking brain, torn apart by war.

From a safe distance, I follow the news and they tell me a lot about other people’s miseries – “gunshot injuries, broken bones, amputees” (Sacco, pg 30). I feel powerless as I witness this horrors brought to me by Youtube, Facebook, Twitter, and the Blogosphere. I feel impelled to do something, even though I know quite well how little difference I can make by sharing Al Jazeera videos, sending to my friends the photos of demonstrations, or writing a post in a tiny little corner of the World Wide Web. A bitter taste of powerlessness and despodency nails me down to the chair as I witness the Zionists’ latest massacres in Gaza. Then I remember Voltaire and he inspires me to decide: the fact that one person can’t do much isn’t a reason to do nothing. If only everyone did this tiny bit, perhaps it would add up to something powerful enough to bring down from their bloody pedestals all these Masters of War?…

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Sitting at home, far from refugee camps, I take a journey aboard Joe Sacco’s compelling graphic novel Palestine. Sacco takes me to see a re-presentation of what he himself has witnessed in Cairo, Jerusalem, Ramallah, Gaza etc. In Sacco’s pages, I see kids  throwing stones against tanks and getting shot at by soldiers armed with M-16s and other hi-tech rifles. My brain fills with some sort of psychic vomit when I picture such scenes. If I had been born in Gaza, if I was a Palestinian kid, wouldn’t I be the one throwing stones against the invading army? Wouldn’t I howl in rage against these grown men in uniform who only speak the language of violence? Which language would I learn to speak, in such an environment, if not the language of precocious rebellious stone-throwing? And if my best friend’s life had been taken away from this world by a bullet in the heart, wouldn’t I be angry enough to, a few years later, join a jihadist group and become a suicide-bomber on the road to glorious martyrdom?

gandhi_-_an_eye_for_an_eye_will_make_the_whole_world_blind_-_quote_large_poster__gn0097Unfortunately, there’s no end in sight for Intifadas, I fear, because no community will accept without resistance the sort of life conditions imposed by Israel in the occupied territories. Too many wounds have stirred too much rage, too much hunger for revenge, for any peace to be something reasonable to expect in the short term. Fuel keeps getting added to the fire of mutual hate. “An eye for an eye will make the whole world blind”, said the barefoot bald-headed pacifist Mahatmas Gandhi. But neither Zionists nor Jihadists seem to give a damn about Gandhi, especially when the wounds are fresh and the heart screams for vendetta.

I can’t begin to understand how and when all this mess began. I look back into the past, trying to get a grip of the historical roots of the conflict, but History looks like a mad circus of chaotic antagonism. It seems to me that Israel was born as a consequence of one the hugest tragedies of the 20th century – the Holocaust. The Nazi’s III Reich almost wiped-out the Jews from the face of the Earth, and when Hitler’s regime fell in 1945 it was mandatory to find the survivors a Safe Home,  in which they would be protected from ever having to be victims of such a mass-scale massacre. The “ideal” Israel would be a nation for the victims, for the survivors of that “Industry of Death”, to quote Steven Spielberg, which the Nazis set in motion in their collective psychosis of anti-semitism, racism, blind nationalism and totalitarianism.

But an old and un-answered question I’ve got is this: why should the Palestinians pay for the crimes of the Nazis? If Germany, infected by anti-semitic ideologies and imperialism, went on a killing frenzy against the Hebrews, why weren’t the Germans obliged, as the main perpetrators of the Holocaust, to offer some just compensation? Why shouldn’t Germany be made to concede, let’s say, one third of their territory for a Jewish State? Yeah: I see perfectly well that this solution wouldn’t work out. These neighbours, I suspect, wouldn’t live peacefully side-by-side with such monstruous memories of past bloody deeds haunting their coexistence. Despite the fact that Holy Jerusalem is considered a conditio sine que non by Jews: there’s no Israel without it.

Reading about these matters, I also discover, in the works of Joe Sacco and Arundhati Roy, that the plan to create a Jewish state in Palestine pre-dates the II World War. In 1917, the English minister of Foreign Relations, Lord Balfour, signs a Declaration in which the British Empire makes a commitment to create a nation for the Jews in Palestine – a place which, according to a deceitful Zionist slogan, was a “land with no people for a people with no land”. Which, of course, is bollocks. Big time bullshit. At least 700.000 Arabs were living then in this land which the Zionists’s cynicism claimed to be a desert – and promised to them by God himself. But, as Bob Dylan sang in the 60s, “you don’t count the dead when God’s on your side”.

Sacco1 Sacco2 What awes me is also how yesterday’s victims can metamorphose into today’s oppressors. How was it possible that the people who survived the Nazi Holocaust became perpetrators of a new “Palestinian Holocaust”? What Israel is doing in Gaza – bombing schools, hospitals, UN-shelters; killing hundreds of babies, children, women, elderly, civilians… – isn’t this reducing a whole community to a status of Subhumanity? People in Gaza know today how it felt for Jews in Auschwitz to be treated as less-than-human and devoid-of-basic-rights.

One could argue that Jewish experience in Europe was far from sweet and didn’t teach them much about gentleness between different cultures and nations. Pogroms, persecutions, concentration camps, gas chambers – these were some of the tragic cards the Jews were dealt throughout their wandering existence of chronic sufferers. In 1948, when they declared “Independence” and Israel was born, maybe they dreamt of Peace, finally? Anyway, if they did, the Dream has been shattered over and over again, for decades. There was never any peace. Israel is born into war and the nation’s first events, the first steps of this new-born child, have been tough as hell. Israel’s first breath was still sailing in the wind and the country was already dealing with the 1948 invasion from the Arab’s armies. After the defeat of the III Reich – who was supposed to last for a 1.000 years, according to the Nazi’s megalomania, but crumbled apart after 12 years – the Jews wouldn’t be allowed no peaceful retreat into well-deserved tranquility. They still felt endangered, they still feared annihilation, there were still enemies to fight. If they didn’t defend themselves, they feared that the Arabs would drown them all in the Sea.

Sacco3 I would argue that fear and violence often go hand-in-hand: a frightened animal is much more likely to attack than a tranquil, unafraid one. The human animal is also capable of bursting into terrible violence when he’s terribly afraid. When I look back at History’s madness, I see the Jews, after the II World War, trembling with fear and shocked with trauma. They had lost 6 or 7 million to the Nazi’s machinery of mass murder. And yet their survival instinct, their conatus (to speak in Spinozean language), was surely alive and kicking. To survive this tragedy they would need some radical means to establish themselves in some sort of safe spot. They would a massive Police State; one of Earth’s strongest armies; why not some atomic bombs? The U.S. would provide the means for Israel to become a military power whose self-confidence would be boosted by the  possession of weapons of mass destruction. Israel, then, was born like a Bunker State, warmed to the teeth, with one of the world’s most rigid and paranoid Defense Mecanisms of any nation on Earth.

But did they really believe they would build a safe haven in Israel after kicking out almost a million people from their homes in 1948? I’m sorry for my language: I’m quite aware that kicking out is not quite the right word. They did much more than kick out – they burned entire villages, they massacred entire populations, they created a huge mass of refugees, pushed very ungently, at gun point, into Gaza and the West Bank. Israel’s masterminds certainly don’t like this comparison, but this is how it feels to me: just like the Nazis deported the Jews from their homes and pushed them into the trains headed for the concentration camps, the Jews kicked out the Palestinians from their homes and pushed them into Palestine’s open-air concentration camps. Now it’s July 2014 and the world is asking in horror: is Israel applying the Final Solution? Is there anywhere or anyone in Gaza that isn’t a target?

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In the occupied territories, most of what we take for granted as civilization’s basic gifts to citizens simply don’t exist – right now, as you’re reading this, more than 1 million people in Gaza have no access to proper drinking water. Almost no one has access to electricity – especially after the only power plant in Gaza was bombed to ashes in July 29. In Joe Sacco’s book, I discover that, in the Palestinian schools, it’s forbidden by the Israelis to teach history or geography with any book that mentions Palestine – it’s not supposed to exist in the textbooks. Israel would like to erase it from the maps. Is Israel trying to accomplish in fact the lie that has been written in textbooks, that is, “Palestinians don’t exist”?

In a clinic, Joe Sacco meets two doctors who reveal that they see “a lot of respiratory illnesses from bad ventilation and overcrowding, problems related to political and social conditions” (p. 48). Life in Gaza and the West Bank can be quite cruel, unealthy, insecure, always threatned to end precociously. But the web of everyday violence is woven by acts of cruelty not only to people, but also to their means of existence. Joe Sacco draws, for example, a heartbreaking scene with decapitated olive trees, cut off by the Israelis, and then gives voice to the Palestinians’ suffering:

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“The olive tree is our main source of living… We use the oild for our food and we buy our clothes with the oil we sell… Here we have nothing else but the trees… The Israelis don’t give people from our village permits to work in Israel… The Israelis know that an olive tree is the same as our sons… It needs many years to grow, six or seven years for a strong tree… Two years ago the israelis cut down 17 of my trees… my father planted those trees… Some of them were 100 years old… They obliged me to cut the trees myself. The soldiers brought me a chainsaw and watched… I was crying… I felt I was killing my son when I cut them down.” (Sacco, pg. 62)

This personal wound may seem tiny, but we need only to multiply it to get a picture of the collective wound inflicted by 120.000 trees up-rooted by the Israelis during the first four years of the Intifada.  Besides the massive bulldozing of trees, Palestian homes were also demolished in great numbers: 1.250 of them were brought down to the ground during the same four first years of the Intifada; in the same period, no less than 90.000 Palestians were arrested and put behind Israeli barbed wire, watched by soldiers with their fingers on the trigger (Sacco, pgs. 69 and 81). All those who dared rise up against Israel were crowded into prisons, put into cages, treated not so differently than the Nazis did with the inmates of Dachau or Auschwitz. One man interviewed by Sacco remember the time he was arrested in an overcrowded tent, “a sort of hell”, “3×4 meters with 21 persons”, in which “the ventilation was very bad, just a coin-sized hole in the door for injecting gas in case of a riot.” (Sacco, pg. 84)

Eduardo Carli de Moraes @ Awestruck Wanderer
Toronto, July 2014

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(TO BE CONTINUED IN ANOTHER POST…)

Recommended reading & viewing:

Reflexões sobre a Sabedoria e a Felicidade – por Alain (Émile-Auguste Chartier, 1858-1951)

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Alexandre e Bucéfalo (Detalhe de mosaico romano encontrado em Pompeia. Museu Arqueológico Nacional, Nápoles, Itália)


I. BUCÉFALO E SUA SOMBRA

“Quando Bucéfalo, cavalo ilustre, foi apresentado ao jovem Alexandre, nenhum cavaleiro conseguia se manter sobre o lombo deste animal formidável. Sobre isto um homem vulgar dizia: “Este é um cavalo malvado.” Alexandre, no entanto, procurou o X da questão, e logo encontrou, observando que Bucéfalo estava terrivelmente apavorado diante de sua própria sombra. Como o seu medo fazia agitar-se a sombra, o pavor não acabava mais. Alexandre então dirigiu o nariz de Bucéfalo em direção ao Sol, e então, nesta posição, pôde tranquilizar e domar o animal. Assim, o aluno de Aristóteles já sabia que nós não temos nenhuma potência sobre as paixões enquanto não conhecemos suas causas reais.”  ALAIN, Propos Sur Le BonheurGallimard, 1928. Pg. 9.

AlainEvocando a imagem de Alexandre e Bucéfalo, Alain (1868-1951) inicia seu livro de reflexões sobre a felicidade, Propos Sur Le Bonheur, publicado em 1928. O pavor de Bucéfalo diante de sua sombra é lido por Alain como um símbolo do descontrole e da inquietude que as paixões exercem sobre suas vítimas. Alexandre, por sua vez, aparece nesta parábola como representante da inteligência, da racionalidade, capaz de serenizar os arroubos irracionais e controlar a selvageria do temor e da intranquilidade.

Eis algo que deve soar bem familiar àqueles acostumados a flanar pela história da filosofia, onde é recorrente a ideia de que a Razão deve agir como um cavaleiro que doma o corcel selvagem da Emoção. Enquanto formos semelhantes a Bucéfalo, ou seja, aterrorizados por fenômenos que não compreendemos, que nos assustam justamente pois somos ignorantes de suas verdadeiras causas, estaremos bem longe da serenidade e daquilo que em francês é conhecido pelo bela expressão la joie de vivre.

O que também me parece notável, e que eu gostaria de explorar mais a fundo na sequência, é que o “caso Bucéfalo” nos permite refletir sobre o medo distinguindo entre suas manifestações legítimas e aquilo que eu chamaria de um medo-sem-fundamento.

Para evocar um exemplo que está na crista-da-onda, marcando presença nas mídias: se você é um habitante de Gaza, em Julho de 2014, tem amplas razões para temer por sua vida e por sua integridade física, mesmo que você não tenha conexão alguma com o Hamas ou com qualquer organização islâmica militante, já que existem provas empíricas aos milhares de que a ofensiva militar de Israel tem matado e ferido os palestinos sem grandes esforços de distinção entre civis e militares. Em Gaza, o medo é um afeto plenamente legítimo, justificado pela presença de perigos reais, e a ausência deste afeto em tais circunstâncias é que pareceria bizarra, incompreensível e anormal.

Bucéfalo, ao contrário, oferece-nos um exemplo de um medo desproporcional ao perigo real: a sombra, afinal, não tem o mínimo potencial de destruição. Se o cavalo se debate em pavores, é pois se equivoca em seu juízo eqüino e enxerga uma ameaça onde não há nenhuma. Dando um passo além, poderíamos inclusive dizer que Bucéfalo ilustra um comportamento supersticioso, que tem suas similaridades com o pavor sentido, em épocas mais remotas, por aqueles que presenciavam um eclipse ou um terremoto: incapazes de compreender as causas dos fenômenos físicos, perdiam o sono em temores e taquicardias, imaginando que os deuses estavam furiosos.

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II. O IMAGINÁRIO COMO INIMIGO

Com esta distinção entre medos legítimos e medos injustificados em mente, fica mais fácil compreender algumas das principais teses de Alain – como esta: “o imaginário é nosso inimigo” (XV, Sur La Mort, pg 45). Os poderes de imaginação da mente humana nem sempre agem em nosso favor: não é incomum que a pessoa saudável imagine doenças possíveis e assim contamine sua saúde com males imaginados, meramente possíveis, que provavelmente não vão se materializar.

Mesmo que esteja em um estado físico ótimo, sem dores corporais ou sinais de desagregação orgânica, a pessoa pode sofrer com as ansiedades, as insônias e os pavores decorrentes de uma imaginação demasiado pessimista. Em seus comentários psicológicos, Alain destaca com frequência o quanto a imaginação “compõe horrores”  (p. 39), em especial quando se lança ao futuro e representa os próximos estágios do percurso existencial – que tem a morte, necessariamente, por horizonte.

Diante das superstições humanas que levam ao temporal desnorteante da esperança e do temor, Lucrécio já pintava o retrato do sábio como aquele que, em terra firme, observa em serenidade os navegantes em mar revolto. Se Lucrécio, em seu poema-filosófico Da Natureza, visa como um de seus objetivos supremos o de libertar os humanos das superstições, utilizando para isto a doutrina de seu mestre Epicuro, é pois as superstições são consideradas como doenças do imaginário que desviam-nos do caminho da sabedoria. “A superstição consiste sempre, sem dúvida, em explicar efeitos reais por causas sobrenaturais”, escreve Alain (XVIII, Prières, pg. 53).

Hortus Deliciarum

Ilustração medieval do Inferno no manuscrito Hortus deliciarum, de Herrad of Landsberg (aprox. 1180) – via Wikipedia

 Àqueles que não dormem à noite, ou que se supliciam durante o dia, pois temem estarem sendo reprovados por um deus vingador, que os observa furibundo sentado em sua nuvem, o sábio apenas recomenda a dissipação da ilusão como melhor remédio. Assim como Bucéfalo não tem razão para temer sua própria sombra, não há razão para temer o Inferno ou qualquer outra punição do além-túmulo. Não há sabedoria ou felicidade possível sem que antes nos livremos de fantasias, compostas por imaginações humanas e escritas por mãos humanas em livros ditos “sagrados”, que tendem a disseminar temores sem fundamento e terrores sem realidade.

O X da questão, para Alain, é que tanto o cavalo Bucéfalo quanto o devoto que teme a fúria de Jeová, os  relâmpagos de Zeus ou o inferno criado por Deus-Pai para queimar os ímpios, sofrem de verdade com seus males imaginários. Para recuperar o exemplo citado acima: a pessoa saudável que age como o personagem de Moliére, O Doente Imaginário, acaba sofrendo de fato com seus temores, ansiedades e inquietudes. Pois bem se sabe que não é só fisicamente, “na carne”, que sofre o homem; um sofrimento não é menos sofrido por ser “psicológico”, por estar “na mente”.

 Ao invés de ser vítima de seus afetos, arrastado pelas circunstâncias a cóleras e pavores, transtornado constantemente  em seus humores por tudo o que lhe ocorre, o sábio tem o bom senso de temperar os arroubos passionais e serenizar seus temporais internos ao compreender – “clara e distintamente”, como recomendam Sócrates, Descartes ou Spinoza – as causas reais daquilo que é sentido.

Como dirá André Comte-Sponville, fiel discípulo de Alain, compreender a causa de uma tristeza já é um começo de alegria. “Les malheurs sont rendus légers par la connaissance des causes”, escreve Alain (X, Argan, p. 30), ou seja, os infortúnios e desgraças são suavizados e tornam-se mais leves através do conhecimento de suas causas. Algo que se assemelha ao motto spinozista que recomenda: “não desprezar, não lamentar, não odiar, mas compreender”. No divã do psicanalista, por exemplo, o melancólico tem a chance de se libertar de sua condição de prisioneiro da paixões tristes quando começa a compreender os porquês dos afetos, das paixões, dos sonhos, que o acossam e o afligem. Compreender, contudo, não é tudo. Falta o essencial, que é o agir.

III. O PERIGO DA RAZÃO EXTREMISTA

Não faltaram na História os que explicaram o Mal a partir da Ignorância – para ficarmos só entre os gregos, duas figuras de considerável impacto na posteridade, Sócrates e Epiteto, sustentaram que o saber racional, em especial o conhecimento daquilo que nos move, a compreensão das causas de nossos sentimentos, é o “caminho do bem”. Donde o “conhece-te a ti mesmo!”, mais célebre dos mottos socráticos, inscrito no Templo à Apolo em Delfos ao lado de outra “dica” existencial apolínea: “nada em demasia”. Um dos valores cardinais da civilização grega era justamente a sophrosyne – traduzível por temperança, moderação ou auto-controle.

O difícil, porém – e ninguém disse que a sabedoria é fácil! – é saber dosar o quanto de “controle racional” sobre as paixões deve ser exercido. Aristóteles sustentava que a virtude está em encontrar o ponto ótimo entre dois excessos: por exemplo, a virtude da coragem encontra-se entre os dois extremos, o de sua carência (a covardia) e seu excesso (a temeridade).

Também a racionalidade nos oferece um risco duplo: por um lado, um excesso vicioso, o desregramento passional, que leva, por exemplo, um homem a enforcar sua esposa em um arroubo de ciúme injustificado, como faz Otelo contra Desdêmona na obra de Shakespeare (com o auxílio cruel do invejoso Iago, desejoso de envenenar o deleite do casal). Por outro lado, outro excesso vicioso, o racionalismo ultra-controlador, que pode levar alguém a dotar-se de um caráter rígido, autoritário, severo em demasia, descrito muito bem pela gíria da língua inglesa control freak.

9780140443295Na história da filosofia, um dos mais importantes legados do pensamento de Nietzsche é justamente ter colocado em questão a predominância, na filosofia ocidental, de um racionalismo hiperbólico que se manifesta com frequência como moralismo castrador, repressor, autoritário. A crítica que Nietzsche empreende contra o do Ideal Ascético, tão presente no seio da ética judaico-cristã,  visa justamente questionar os efeitos de doutrinas que querem lidar com as paixões com a tática do extermínio, como faria um dentista que, diante das cáries de seu paciente, só soubesse receitar a extração dos dentes.

Contra Sócrates, encarnação do “homem teórico” que transforma a Razão em ídolo, Nietzsche nos põe em guarda contra aqueles que querem transformar a razão em panacéia e que pensam servir a este novo deus quando praticam, contra si e contra os outros, a repressão sexual, a supressão dos prazeres sensórios, a caça às “bruxas” e aos “hereges” etc.

Em seu Propos Sur Le Bonheur, Alain decerto reflete do interior de uma tradição filosófica ancestral, que atravessa os séculos, mas consegue nos dizer algo de novo, ou melhor, algo de peculiarmente seu. Quando recorda as razões que o levaram a abandonar o catolicismo, remete-nos a uma vivência que experimentou aos seus 10 anos de idade: visitar uma “capela mortuária onde os mortos permaneciam por uma semana, para edificação dos viventes. Estas imagens lúgubres  e este odor cadavérico perseguiram-me por muito tempo. Todo meu ser se revoltava e eu me livrava da religião deles como de uma doença.” (LXXIII, Bonne humeur, 10 Octobre 1909) Alain manifesta uma repulsa visceral contra a morbidez tão frequente em certos cultos religiosos Tanatocêntricos, que pregam o quietismo e a resignação.

Alain, ao contrário, busca sua sabedoria em outras fontes: em Spinoza, por exemplo, que considera um “mâitre de joie” (pg. 57), um mestre do júbilo. A ênfase que a filosofia spinozista devota à afetividade humana – a Ética sendo em larga medida um tratado psicológico que procura explicar os complexos mecanismos causais dos sentimentos humanos – é amplamente abraçada por Alain. A crítica da esperança e do temor, compreendidos como “irmãos gêmeos”, é algo que Alain também assume como um legado spinozista digno de permanecer vivo – e que Comte-Sponville posteriormente expandirá e detalhará como um dos temas-chave de sua obra (em especial no Tratado do Desespero e da Beatitude). 

O remédio contra a “síndrome de Bucéfalo”, isto é, com a tristeza de padecer com paixões que não controlamos nem compreendemos, está não só na compreensão mas também na ação. Trata-se de viver no esforço de agir ao invés de padecer; entender ao invés de ignorar; enfrentar os perigos reais ao invés de temer, na impotência e no tremor, perigos imaginários.

A felicidade, pois, não é algo que a gente receba como um presente, ou que devamos esperar sentados com a bunda confortavelmente instalada nos sofás da inação esperançosa. A felicidade está em agir para construi-la. E não há situação mais infeliz do que aquela do devoto que, em lágrimas, de joelhos, implora por ajuda do alto.

Uma longa tradição filosófica, que inclui Epicuro, Lucrécio, Spinoza, Alain, Comte-Sponville, une-se em coro para cantar: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.” A felicidade nunca vem de graça; é preciso conquistá-la. E há boas razões para crer que jamais alguém a conquista em solidão, ao contrário do que pregam ascetas e anacoretas.

Chris McCandless, vulgo Alex Supertramp, precisou buscar o isolamento extremo, nas geleiras do Alaska, para descobrir, em Into the Wild: “happiness is only real when shared”. Os filósofos assinariam embaixo, e Alain entre eles: o amor e a amizade são elementos sine qua non na construção de qualquer felicidade, que é sempre trans-individual, conectada com a presença de uma teia de relações humanas em que a convivência aumenta a potência de existir (e, logo, a alegria) daqueles que interagem.

Into the Wild

IV. EPÍLOGO: A FELICIDADE É POESIA 

A sabedoria, como aponta a etimologia,  é a meta suprema do filósofo, aquele que nutre philia (amor ou amizade) pela sophia (sabedoria). Ler Alain é uma experiência filosófica seminal pois equivale a encontrar alguém motivado por um engajamento existencial na busca pela vida sábia (e, logo, feliz). Este grande educador e escritor francês, autor de cerca de 5.000 propos (termo francês traduzível por reflexões em português, ou por remarks em inglês), teve sua obra celebrada por um de seus alunos, André Maurois, como digna de figurar em todas as bibliotecas ao lado dos Ensaios de Michel de Montaigne (1533-1592). Não é elogio pequeno.

A carreira de Alain como professor de filosofia foi longa e fecunda, tendo influenciado o pensamento de alunos que viriam a marcar época, caso de Georges Canguillem (1904-1995), Simone Weil (1909-1943) e André Comte-Sponville (1952 – ). Pouco conhecido no Brasil, onde existem poucos de seus livros traduzidos, Alain não é um filósofo de sistema, mas muito mais um pensador-artista, um filósofo-literato, cujos textos tem o sabor de pequenas obras-de-arte verbais, que instigam a refletir e ensinam os caminhos que o autor descobriu para um autêntica arte de viver e de gozar.

Sem dúvida, Alain pende mais para uma sabedoria apolínea, baseada na temperança e na primazia da razão, do que para uma sabedoria trágica ou dionisíaca (como Nietzsche, p. ex., procurou pensar). De certo modo, é como se Alain quisesse agir sobre seu leitor de modo similar ao que Alexandre fez com Bucéfalo: suas reflexões parecem animadas pelo ímpeto de ajudar o leitor a curar-se das paixões tristes, dos afetos mortificantes, das confusões mentais caóticas. O caminho da serenidade passa pela compreensão das causas reais de nossos sentimentos, sustenta Alain, o que significa que grande parte dos males afetivos de que padecemos tem relação com uma imaginação desregrada que é preciso “domar”.

Para que nos libertemos da impotência triste a que nos entrega o fatalismo, e da ansiedade apavorada a que nos condena um imaginário desregrado, Alain recomenda um remédio simples: compreensão e ação. A felicidade, logo, é como a poesia: é preciso criá-la, construí-la, escrevê-la, com um arranjo próprio e inimitável de palavras, ao invés de esperar por ela, rezar por ela, sonhar com ela. O ser humano gosta bem mais dos prazeres que ele conquista do que daqueles que lhe vem de graça: o alpinista, ainda que sofra e pene para atingir o topo da montanha, goza muito mais intensamente com a paisagem solar que observa quando atinge o pico, tendo ali chegado através de seu esforço e de sua ação, do que aquele que “um trem elétrico conduziu ao célebre cume e que não pode encontrar ali o mesmo Sol” (XLIV, pg. 116).

Filósofo que ama o bom humor e a alegria, Alain sabe ser duro contra “aquela feroz religião que nos ensinou que a tristeza é grande e bela, e que o sábio deve unicamente pensar na morte, enquanto cava seu próprio túmulo. (…) Resta-nos, após termos descartado as mentiras dos padres, abraçar a vida nobremente e não atormentarmos a nós mesmos e uns aos outros com declamações trágicas” (LXXIII, Bonne Humeur, pg. 184). 

Ao invés de exagerar a tragicidade da existência, Alain recomenda que não transformemos pequenas pedras em montanhas, nem perigos imaginários em razões para inquietudes de Bucéfalo.

Ao invés de acusar amargamente o mundo e os outros pela infelicidade própria, convêm muito mais perceber que cada um de nós é seu pior inimigo quando padece com seus juízos falsos, seus temores vãos, seus conformismos preguiçosos.

O primeiro passo para a sabedoria está em despertar para o fato de que nossas relações com o futuro não devem ser norteadas pela imaginação ou pela esperança, mas sim pela ação, que constrói um futuro ao invés de padecer com um futuro que tomba sobre nós ou nos atropela. A felicidade é poesia: trata-se de sacudir a impotência, despertar nossas forças criativas e criá-la – como se escreve um poema, como se compõe uma sinfonia, como se nutre uma amizade, como se constrói um amor.

Henri Matisse, "La Joie de Vivre" (1906)

“Tout bonheur est poésie essentiellement, et poésie veut dire action; l’on n’aime guère un bonheur qui vous tombe; on veut l’avoir fait.” – ALAIN (1858-1951), Propos Sur Le Bonheur (XLII, “Agir”, pg. 111. 3 Avril 1911). Pintura de Henri Matisse, “La Joie de Vivre”, 1906.

Eduardo Carli de Moraes
Toronto, Julho de 2014.

“Vivemos num mundo no qual o homem deve esperar milagres apenas de si mesmo…” – Simone Weil (1909-1943)

“Parece-me impossível imaginar para a Europa um renascimento que não leve em conta as exigências que Simone Weil definiu.” Albert Camus

Simone de Beauvoir

Uma das mulheres mais notáveis do último século, Simone de Beavoir, relembra outra figura marcante do pensamento francês no século XX:

“Simone Weil me intrigava por causa de sua grande reputação de inteligência e seu modo extravagante de vestir-se. Uma grande fome acabara de devastar a China e me haviam contado que ao ouvir essa notícia ela tinha soluçado: essas lágrimas forçaram meu respeito ainda mais que seus dons filosóficos. Eu admirei um coração capaz de bater através do universo inteiro. Consegui um dia conversar com ela – e ela declarou num tom cortante que só uma coisa importava hoje sobre a terra: a Revolução que daria de comer a todo mundo.”

Além de Camus e Beavouir, muitos outros reconheceram em Simone Weil uma extraordinária aparição humana que, em tempos de cólera, surge para auxiliar no desabrochar da doçura, da serenidade, da lucidez, da coragem. José Paulo Paes, nosso brilhante poeta e ensaísta que chegou a escrever lindos versos de inspiração weiliana – “a posse é-me aventura sem sentido: só compreendo o pão se dividido” -, também pinta um retrato admirativo de Weil:

“Morta prematuramente aos 34, essa parisiense de físico frágil mas de inquebrável tenacidade de espírito foi uma figura humana fora do comum. Militante de esquerda, pensadora política, professora de filosofia, ela sempre se recusou ao institucionalizado e ao tacitamente aceito, fosse em que domínio fosse. Para poder analisar a condição operária e a opressão social, não se contentou em ler Marx, mas cuidou de fazer o que ele jamais fizera: trabalhar na linha de montagem de uma fábrica. Não se deixou obnubilar pela ortodoxia partidária: criticou abertamente o estalinismo e chegou a polemizar com Trótski.” (J.P. PAES)

Desde a mais tenra infância, a pequenina Simone já apresentava os primeiros sintomas do que mais tarde se tornaria um entusiasmo político tão efervescente que ela estaria pronta a saltar de pára-quedas em Praga, para ajudar os revolucionários, ou unir-se na Espanha às tropas que batalhavam contra o fascismo de Franco durante a Guerra Civil de 1936-39. Como relata Ecléa Bosi, a pequenina Simone, “travessa e indomável”, desde muito cedo manifestava ceticismo e desagrado diante das burguesices:

“Ao ganhar um anel de presente, com três anos, faz todos rirem com sua resposta: ‘O luxo não me agrada!’ […] Com vestidos novos fica encantadora mas desgostosa; queria que todos se vestissem iguais e com roupas baratas. […] Sua fotografia aos sete anos nos mostra uma fisionomia corajosa, paciente, o olhar de uma seriedade rara para a idade e de tão impressionante nobreza que, ainda que nada conhecêssemos dela senão esse retrato, nunca a esqueceríamos. Já são evidentes nesse rosto dois traços que vão permanecer: atenção ao mundo e vontade inquebrantável.” (ECLÉA BOSI)

Um episódio é exemplar da força, da audácia, do magnetismo desta figura fora-de-série:

“Em 1933, o presidente da república, Albert Lebrun, vem inaugurar um monumento em Saint-Etienne. Os sindicatos resolvem protestar num comício. A polícia de Paris intervém, militantes são presos e espancados. No dia seguinte, durante as cerimônias oficiais, os trabalhadores protestam numa rua próxima. Simone é içada numa janela pelos seus camaradas, que a protegem enquanto cantam a Internacional Comunista. Ela discursa contra a situação da Indochina (colônia francesa) e chama o presidente de lacaio dos fabricantes de canhões.

Mal se ouvem suas palavras encobertas pela banda militar que saúda as autoridades. […] Em dezembro do mesmo ano de 1933, em protesto contra os baixos salários e o desemprego, os mineiros organizam uma grande marcha. Desde seus míseros casebres até a prefeitura, milhares de mineiros marcham ruflando tambores e soando clarins. Todos cantam. Simone conduz à frente do cortejo a grande bandeira vermelha.” (Ecléa Bosi).

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Na sequência, compartilhamos uma coletânea de pensamentos e reflexões de Simone Weil, todos eles retirados da excelente obra A Condição Operária e Outros Estudos Sobre a Opressão, lançado pela Editora Paz e Terra e adquirível por R$43,00 (novo) ou usado na Estante Virtual. É um convite para que mais gente sinta-se entusiasmada a conhecer mais da vida e da obra desta criatura humana extraordinária.

O DESENRAIZAMENTO

“Seria inútil desviar-se do passado para não pensar senão no futuro. O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; somos nós que para o construir devemos dar-lhe tudo, dar-lhe nossa própria vida. Mas para dar é preciso possuir, e não possuímos outra vida, outra seiva, senão os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós. De todas as necessidades da alma humana, não há nenhuma mais vital do que o passado. (…) A perda do passado, coletivo ou individual, é a grande tragédia humana, e nós jogamos fora o nosso como uma criança desfolha uma rosa. É antes de tudo para evitar essa perda que os povos resistem desesperadamente à conquista.”

“O pensamento da fraqueza pode inflamar o amor assim como o da força, mas é de uma chama muito mais pura. A compaixão pela fragilidade está sempre vinculada ao amor pela verdadeira beleza, porque sentimos vivamente que as coisas verdadeiramente belas deveriam ter assegurada sua existência eterna e não a têm.” (Ed. Edusc, pg. 111 e 158)

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A CONDIÇÃO OPERÁRIA

“São raros os momentos do dia em que o coração não está um pouco comprimido por alguma angústia. De manhã, a angústia do dia a se viver. Quem saiu em cima da hora tem medo do relógio de ponto. No trabalho, o medo de não estar na velocidade boa. O medo das broncas. Muitos sofrimentos são aceitos só para evitar uma bronca.

É só queixar-se de um trabalho pesado demais ou de uma cadência impossível de acompanhar, que brutalmente vem lembrar-lhe que se está ocupando um lugar que centenas de desempregados aceitariam de boa vontade. Corre-se o risco de ser posto pra fora. É preciso serrar os dentes. Aguentar-se. Como um nadador na água. Só que com a perspectiva de nadar sempre, até a morte. E nenhuma barca que nos possa recolher. Se a gente afunda lentamente, se soçobra, ninguém no mundo dará por isso. O que é que a gente é? Uma unidade na força de trabalho. A gente não conta. Mal existe.

A cada momento estamos na contingência de receber uma ordem. A gente é uma coisa entregue à vontade de outro. Que vontade de poder largar a alma no cartão de entrada e só retomá-la à saída! Mas não é possível. A alma vai com a gente para a oficina. É preciso o tempo todo fazê-la calar-se. Na saída, mitas vezes não a temos mais, porque estamos cansados em excesso. Se a gente se sujeita é, como diz Homero falando dos escravos, ‘bem a contragosto, sob a pressão de uma dura necessidade’.” (em “A Condição Operária e outros Estudos sobre a Opressão”, pg. 124-125)

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REFLEXÕES SOBRE A GUERRA E O COLONIALISMO (1933)

“A engrenagem monstruosa da sociedade atual parece-se com uma máquina imensa que está tragando continuamente os homens, e cujos comandos ninguém conhece; e os que se sacrificam pelo progresso social se parecem com pessoas que se agarram aos rolamentos e às correias de transmissão para tentar deter a máquina, fazendo-se moer por sua vez. (…) Em qualquer circunstância, a pior traição possível é sempre aceitar a subordinação a esse aparelho e pisar, para servi-lo, em si mesmo e nos outros, todos os valores humanos.” (pg. 218)

“A tentação cristã: sendo a colonização um meio favorável para as missões, os cristãos se sentem tentados a amá-la por isso, mesmo reconhecendo-lhe as taras. Ora, mas uma questão que mereceria exame detido é: um hindu, um budista ou um muçulmano, ou qualquer um dos que são chamados de pagãos, não possuem em sua própria tradição um caminho para a espiritualidade, diferente do que as igrejas cristãs propõem? Em todo caso, Cristo nunca disse que os navios de guerra devessem acompanhar, mesmo de longe, os que anunciam a boa nova. (…) Só os sacerdotes podem medir o valor de uma idea pela quantidade de sangue que ela fez derramar.

Com a colonização da África negra, os brancos causaram todos os danos possíveis durante 4 séculos com suas armas de fogo e seu comércio de escravos. (…) Privando os povos de sua tradição, de seu passado, a colonização os reduz ao estado de matéria humana.” (pgs. 227-231)

“Que idiotas espalharam o boato de que as idéias não podem ser mortas pela força bruta? (…) Nada mais cruel em relação ao passado do que o lugar-comum segundo o qual a força é impotente para destruir os valores espirituais; em nome dessa opinião nega-se que as civilizações apagadas pela violência das armas tenham um dia existido; isso é possível porque não se teme o desmentido dos mortos. Assim se mata pela segunda vez o que pereceu e nos associamos com a crueldade das armas. A piedade ordena que nos apeguemos aos traços, mesmo raros, das civilizações destruídas.” (Pgs. 243 e 276)

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OPRESSÃO E LIBERDADE

“Nada neste mundo pode impedir o homem de se sentir nascido para a liberdade. Nunca, aconteça o que acontecer, ele pode aceitar a servidão. Nunca deixou de sonhar com uma liberdade sem limites, seja como uma felicidade passada da qual um castigo o teria privado, seja como uma felicidade vindoura que lhe seria devida por uma espécie de pacto com uma providência misteriosa. O comunismo imaginado por Marx é a mais recente forma desse sonho. Já é tempo de renunciar a sonhar com a liberdade e de se decidir a concebê-la.

Uma visão clara do possível e do impossível, do fácil e do difícil, das dificuldades que separam o projeto da realização, faz, sozinha, desaparecerem os desejos insaciáveis e os medos vãos; é daí, e não de nenhuma outra fonte, que procedem a temperança e a coragem, virtudes sem as quais a vida é apenas um vergonhoso delírio. Além disso, toda espécie de virtude tem a sua fonte no encontro que faz o pensamento em seu embate com uma matéria sem indulgência nem perfídia. Não se pode imaginar nada maior para o homem do que um destino que o coloque diretamente no embate com a necessidade nua, sem que tenha nada a esperar senão de si mesmo, e de tal forma que a sua vida seja uma perpétua criação de si mesmo por si mesmo. Vivemos num mundo no qual o homem deve esperar milagres apenas de si mesmo.”

(Pgs. 326- 331)

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