O último filme de Ken Loach faz uma radiografia da pandemia de “Uberização” laboral || A Casa de Vidro

A tragédia da riff-raff britânica na era da Uberização laboral: eis o cerne de Sorry We Missed You (Você Não Estava Aqui), novo filme do mestre Ken Loach (UK, 2019, 100 min), duas vezes premiado com a Palma de Ouro em Cannes. Partindo de uma narrativa que foca suas atenções sobre uma família específica, o filme manda seu recado sobre uma situação geral daquela fração da classe trabalhadora, em constante expansão, que inclui aqueles apelidados de infoproletários e de “Precariado” (analisados em minúcias, no Brasil de hoje, por cientistas sociais como Ruy Braga e Ricardo Antunes).

No roteiro escrito por Paul Laverty, o destino da família protagonista serve como emblema para a condição do Precariado na atualidade. Esta classe sofre com a insegurança extremada conectada à informalidade, com o colapso da jornada de trabalho de 8 horas e com a perda de direitos elementares à saúde, à educação e à previdência. Estes trabalhadores precarizados frequentemente são enforcados pelas dívidas, sendo assim algemados a neo-servidões e neo-escravidões.

Conquistas dos movimentos sindicais, sociais e revolucionários do passado vão se perdendo no grande desmonte privatista neoliberal conforme a crueldade capitalista adere às núpcias sinistras com o fascismo. Como ensinou Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio” – hoje, neofascismo e neoliberalismo tem transado em praça pública e sua prole é tenebrosa.

As linhas de montagem não são mais aquelas dos Modern Times de Chaplin (1936). São as linhas de montagem invisíveis do Ubercapitalismo, que cada vez pretende estender seu império a ponto de tornar-se ubíquo. Os prazos a cumprir no delivery de mercadorias são as novas cadências de velocidade brutal, linhas de montagem lançadas para fora das fábricas e adentrando cada vez mais o trânsito caótico dos grandes centros urbanos.

O “novo” patronato vai agindo contra o proletariado com a velha mentalidade escravista que as elites do atraso recusam-se a abandonarno mundo afora e não só no Brasil radiografado por Jessé Souza. O escravismo dá lucro, e por isso tanta adesão a ele por parte de patrões que, em termos éticos, estacionaram na História e desejam sobretudo a continuidade obscena de seu gozo de privilégios excludentes. Elites que agem com a sádica alegria com a desgraça alheia e o senso de superioridade de quem, na relação entre a bota e a face que ela pisa, está do lado de quem é o dono do pé pisoteante.

A rotina massacrante quebra a espinha do trabalhador uberizado e ifoodido. O protagonista de Sorry We Missed You é um emblema do pai de família que não consegue mais sentar direito a bunda na mesa-de-jantar de casa, tamanha a correria de seu trampo. Um trabalhador que atinge no filme um tal grau de exaustão que ele flerta com a auto-destruição. O cara chega a tal fundo de poço que está às beiras de enfiar sua van num muro e morrer no crash, deixando uma viúva e dois órfãos. O protagonista vai sendo lançado, por este sistema insano, a uma situação de nervous breakdown. 

Eis uma sociedade governada por elites econômicas que querem ensinar ao trabalhador que ele não deve crer na sua dignidade intrínseca – e ele muitas vezes interioriza este desrespeito alheio e torna-se auto-depreciativo. Como no diálogo em que o pai elogia a filha dizendo que ela é inteligente e esperta demais, e lhe diz: “com certeza você não herdou meu cérebro”.

Esta auto-derrisão também se manifesta quando ele exorta o filho a ser disciplinado na escola ao invés de pintar grafites pela cidade (ultimamente, inclusive com spray roubado): “não quero que você termine como eu”. O filho, que tem agido com uma atitude punky, num espírito à la Banksy, atua como a consciência crítica da família e despreza a perspectiva de entrar na universidade. Não que ele esteja dominado por um desprezo pelo conhecimento, mas sim sente nojo por toda a condição do universitário pobretão que só consegue estudar afogando-se em dívidas e aniquilando qualquer chance de ter tempo para lazer, cultura, contemplação e descanso.

Pois a realidade educacional anglo-saxã, onde o liberalismo impôs o avanço da escola-empresa e do conhecimento-mercadoria, na esteira das teoria do “capital humano” de Gary Becker, o universitário pobre é obrigado a trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Mesmo depois de formado é obrigado a trabalhar anos para pagar as dívidas contraídas, e durante seu curso é coagido a um sobretrabalho estafante que prejudica a qualidade de seu trabalho intelectual e de sua aprendizagem. Um contexto que lança seu mundo emocional no turbilhão da angústia e da ansiedade constantes, pois sabe que pende sobre sua cabeça a espada de Dâmacles dos credores papa-juros que ameaçam cortar sua cabeça nas guilhotinas do Mercado.

O filme de Loach é também brilhante no retrato contemporâneo do fenômeno da dívida – cuja história nos últimos 5.000 anos foi realizada pelo antropólogo anarquista David Graeber em Debt: The First 5,000 Years. O filho da família sabe que entrar para a universidade, para alguém de sua classe, consiste em botar o pescoço na guilhotina das tuition fees. O garoto sabe que a ascensão social via estudo, para alguém da riff raff, só é algo plausível sob o domínio de um cruel endividamento que iria tornar ainda pior a situação financeira familiar.

Escultura de Cain Motter

O filme de Loach, ultra-realista, faz o retrato de uma classe down’n’out na Grã-Bretanha do Brexit. Uma gente que os banqueiros tratam como arraia-miúda e que interessou a George Orwell – autor do crucial livro de ensaios  Como Morrem Os Pobres (Cia das Letras), que aqui Loach parece querer atualizar para nossos tempos.

O teor trágico de Sorry We Missed You vem da ausência de perspectivas revolucionárias. Nem mesmo algum tímido sindicalismo reformista dá o ar de sua graça no filme (nada do “espírito Norma Rae“, do entusiasmo Martin Rittiano pela mobilização proletária, aparece por aqui). O pai-de-família que protagoniza a obra desce ao inferno-na-terra ao ser alvo de múltiplas opressões cruzadas, apesar de ser um homem, branco e hétero (suposta epítome do estereótipo do opressor).

Cúmulo de seu destino enquanto oprimido desta sociedade de opressões que se interseccionam é aquela série de cenas em que ele é literalmente roubado após ser esmurrado, chutado e encharcado com o próprio mijo. Depois é cobrado pelo patrão pelo prejuízo acarretado ao equipamento da firma pelos assaltantes. Todo quebrado e fodido, no hospital, esperando o resultado do raio-X, ele passa por esta humilhação suplementar. A esposa não aguenta e explode em indignação contra o patrão do esposo pelo telefone.

Em uma cena-chave, o patrão havia se gabado dos índices de produtividade de sua empresa, supostamente “de elite” em toda a Great Britain. As atitudes senhoriais são justificadas com um apelo à ideia de que os clientes só se importam em receber os produtos que encomendam na hora certa – e estão pouco se fodendo em relação ao bem-estar dos que trampam nas vans, motos e bikes deste enxame crescente de “entregadores de aplicativo”.

– Alguém genuinamente já te perguntou como você está, quando você aparece na soleira da porta após tocar a campainha com um pacote em mãos? Acha que os clientes se importariam se você batesse as botas ao chocar a van contra um muro?

Quando um patrão trata seu “sócio” desta maneira podemos ter certeza de que não se trata de uma relação simétrica entre dois “patrões de si mesmos” que estão em negociação. É uma relação assimétrica e injusta onde burguês e proletário seguem existindo, apesar de mascarados pelas novas noções de CEO e “empreendedor”. Um abismo de desigualdade social imensa separa estas duas posições.

Neste mundo de colapso generalizado da empatia, da pandemia duma frieza de coração, empedernida e violenta, a ideologia tóxica do neoliberalismo empreendedorista surge para tentar nos convencer de que o egoísmo é parte da natureza humana. Mas não é, como argumenta o filósofo australiano Roman Krznaric em O Poder da Empatia: o egoísmo não pode ser descrito como intrínseco e inato à natureza humana, como querem muitos liberais, pois sua manifestação atual, enquanto individualismo empreendedor, é produto de uma ideologia inculcada e de um imenso aparato de doutrinação. Nurture, not nature.

O sistema de remuneração por produtividade prejudica a classe trabalhadora pois os detentores do poder sempre podem, na ausência de regulações estatais que coloquem freios no laissez faire do Mercado, puxar as metas para cima, exigindo ritmos e durações laborais incompatíveis com a dignidade humana.

Inculca-se a ilusão, na cabeça do precário-proletário, de que ele seria proprietário de um meio de produção, quando na verdade ele é unicamente o dono de um carro, uma moto ou uma bike. O sujeito quer tratar a si mesmo como empreendedor, um “patrão de si mesmo”, mas na real isso mascara a brutal desproporção entre os donos dos meios de produção e concentradores de capital – o Patronato! – e o enxame dos que não tem nada senão o poder de se deixar explorar por 12 horas ao dia por um salário de miséria ganho com o suor do próprio rosto, enquanto os CEOs de empresas como Uber e Ifoods ficam no bem-bom, vagabundeando em suas jacuzis nas suas mansões de 500 milhões de dólares no Vale do Silício.

Na real, o trabalhador ifoodido não possui direitos trabalhistas, não tem direito a adoecer e se tratar, obviamente não tem direito ao lazer e à cultura – nem mesmo, muitas vezes, tem o direito de mijar no banheiro (o protagonista do filme de Loach é obrigado a fazer xixi numa garrafa). Enquanto  os donos da Uber, da Ifoods ou da Rappi ficam bilionários apenas gerindo sistemas informacionais e logísticos, os empreendedores labutam como condenados, muitas vezes sem direito a fim de semana e férias, para girarem na roda da miséria como nas torturas gregas impostas a Íxion, Sísifo ou Tântalo. Eles são a nova-versão do “homem-boi” de Taylor, satirizado em versão equina, com verve sarcástica, no provocativo filme Sorry To Bother You, de Boots Riley.

Marilena Chauí, em entrevista recente, aponta que a ilusão de independência do moderno precariado acaba sendo bastante difícil de desconstruir. Sempre em trânsito, essa força de trabalho perde o tempo que poderia ser dedicado às conversas com seus iguais. Eles lhe aparecem como competidores, apenas. Sobra-lhes um espaço público degradado por obstáculos que sacrificam o pensamento independente pois exigem constante atenção ora a um buraco na rua, um cachorro a persegui-los ou um guarda indisposto.

Uma rotina que lembra a dos “negros de ganho” do Brasil colonial (que “eram aqueles que trabalhavam e que repassavam todos os seus ganhos a seus donos”). Ao precariado, a posse de um veículo automotivo e a possibilidade de mudar de senhor já são um engodo poderoso o suficiente para estabelecer um líquido sistema de servidão voluntária. Nele, como diz a filósofa Marilena, as pessoas já não se definem pela sua ocupação ou pelo seu contrato de trabalho. Em um mundo liquefeito como lama, ora sou entregador, ora sou garçom, ora sou manobrista, ora trabalho das 7h às 22h, ora das 22h às 7h: isto seria liberdade, ou somente a nova encarnação da servidão voluntária?

Quando possível, os precários caem no desemprego e tentam recuperar-se dessas jornadas exaustivas gastando irrisórios seguros-desemprego (quando a eles tem direito). Quando seguem na informalidade, pulando de trampo precário em trampo precário, como breve bálsamo para suas torturas cotidianas gozam no consumismo com suas parcas economias. Um consumismo frequentemente movido a crédito e financiamento – ou seja, propulsionado a dívida.

Através de seus filmes recentes, Ken Loach faz a crítica de um sistema que quer convencer “as pessoas mais vulneráveis da terra” de que “a pobreza é sua própria culpa”. Ou seja, a ideologia meritocrática, ancorada no racismo estrutural (como argumenta Silvio de Almeida), quer persuadir que os ricos são ricos por seu próprio mérito (e não pelo roubo, exploração e desumanidade que praticam em sua crudelíssima ação de classe).

Despontam muitas perguntas, ainda sem respostas, incitadas pelos filmes deste mestre britânico da 7ª arte: será que o cinema recente praticado de Ken Loach, com sua vibe meio bleak, seria um fator desmotivador das lutas anticapitalistas? Em outras palavras, seus filmes comunicariam um sentimento de desolação que poderia conduzir a uma certa apatia? 

Em certa medida, parece-me que sim: Sorry We Missed You Eu Daniel Blake parecem-me filmes um tanto desanimadores, que parecem se desenrolar sob o signo da derrota de uma certa esquerda. É como se John Lennon, aos 29 anos, quando dizia que “o sonho acabou”, estivesse de fato com a razão – e o octagenário Ken Loach estivesse fazendo o cinema para prová-lo. Um certo clima de there’s no alternative espraia uma energia deprê por estas narrativas.

O sonho utópico não dá o ar de sua graça nestes filmes de Loach – pelo menos não de maneira explícita. No máximo, podemos falar de algum utopismo subliminar, envergonhado de si mesmo, que ousa se manifestar apenas de viés, através do elogio ético da empatia e da solidariedade, mas sem ousar encarnar esta aspiração em algum movimento cidadão ou partido revolucionário.

Sob o signo da derrota, Ken Loach sempre desenvolveu seu poderoso cinema. Os últimos filmes parecem mergulhados na atmosfera da derrota do Partido Trabalhista de Jeremy Corbin diante do triunfo dos Brexit-ers à la Boris Johnson. Sob o signo também da derrota dos movimentos sociais que defendem serviços públicos de qualidade e inclusão social, ainda que no horizonte limitado do welfare state. Derrotas às mancheias. Mas será que Ken Loach está nos propondo a resignação? Está nos contaminando com a atmosfera da desistência? Está nos conduzindo à admissão de que perdemos, e à decisão de abandonar a arena de luta?

Não necessariamente, e neste aspecto é preciso colocar sua obra recente no contexto de sua filmografia. O italiano Enzo Traverso, um dos maiores pensadores políticos contemporâneos, que leciona em Cornell (Ithaca, Nova York), dedicou algumas das páginas mais lindas de seu livro Melancolia de Esquerda a este “derrotismo” de Loach. Ali, analisa principalmente o modo como Loach retrata derrotas em seus melhores filmes – como fez em seu retrato da Guerra Civil na Espanha (1936 – 1939) em uma de suas obras-primas, Terra e Liberdade (Land and Freedom, 1995), premiado com a Palma de Ouro em Cannes:

“Em Terra e Liberdadeé a revolução em si que se transforma em domínio da memória, evocada e ‘vivida’ com empatia e uma nostalgia dilacerante, ainda que o olhar melancólico de Loach seja o oposto da resignação. Muito além de uma homenagem à revolução espanhola, seu filme queria mexer com o zeitgeist conformista dos anos 1990, além de contestar  a representação convencional da Guerra Civil Espanhola como uma catástrofe humanitária.

Sob esse ponto de vista, Terra e Liberdade surge quase como um antípoda de Soldados de Salamina (2001), o aclamado romance de Javier Cercas em que uma trágica dimensão da guerra não deixa lugar para esperança nem motivo para o engajamento político. (…) Terra e Liberdade descreve uma experiência histórica encerrada que, epítome da derrota das revoluções socialistas do século XX, claramente transcende as fronteiras espanholas.

O protagonista do filme é um jovem proletário de Liverpool, David Carr (interpretado pelo ator Ian Hurt), que vai para a Espanha não para participar de uma conferência internacional em defesa da cultura, mas com o intuito de lutar nas Brigadas Internacionais. Lá David completa sua educação política e sentimental, desenvolvendo valores e convicções que não abandonará pelo resto da vida.

(…) A última cena retrata o enterro do protagonista: a neta lê um poema de William Morris, ‘O dia está próximo’, que reafirma a visão socialista da memória: ‘Vem, junta-te à única batalha onde ninguém pode perder / onde aquele que morre ou desaparece / em seus feitos, porém, prevalece.’ Em seguida, a neta desata o nó do lenço e joga a terra da Espanha no túmulo. Eles foram derrotados, mas outros seguirão lutando e ganharão. Essa conclusão convencional encerra um filme que é um monumento às revoluções do século XX.” (TRAVERSO, Melancolia de Esquerda, Ed. Âyiné, 2018, p. 232)

O cinema de Loach, ao retratar derrotar, não quer nos resignar ao derrotismo, mas nos conduzir àquela lucidez que Gramsci consolidou numa frase lapidar: temos o direito ao pessimismo da inteligência, mas precisamos do otimismo da vontade. Ao pintar a via-crúcis de Daniel Blake ou da família de Sorry We Missed You, este cineasta magistral está querendo nos comover para os destinos que um sistema desumano massacra cotidianamente – não para que nos resignemos a assistir a isso de braços cruzados, mas para que possamos ir à luta em prol da construção difícil e infindável de algo melhor.

 

Por Eduardo Carli de Moraes e Gisele Toassa,
Goiânia – Março de 2020
http://www.acasadevidro.com

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Direção: Tancrède Ramonet (click e leia entrevista [em francês])

EPISÓDIO 1 – 1840-1906 – A paixão por destruição

EPISÓDIO 2 – 1907-1921 – Terra e Liberdade

EPISÓDIO 3 – 1922-1945 – Em memória do derrotado

Também disponível no Tamanduá e no Canal Curta. 
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“PAIS E FILHOS”, de Ivan Turguêniev [1818-1883] (Ed. Cosac & Naify, 2ª Edição, 2011, 361 pgs)

 

“O lugarzinho estreito que ocupo é tão minúsculo em comparação com o espaço onde eu não estou e onde as coisas não me dizem respeito; e a parcela de tempo que me foi dada para viver é tão ínfima ao lado da eternidade, onde não estive e nunca estarei… Mas neste átomo, neste ponto matemático, o sangue circula, o cérebro trabalha, também ele quer alguma coisa… Mas que vergonha! Que disparate!” – BAZÁROV (pg. 195)

pais e filhos

Pais e Filhos vem ao mundo numa época em que “uma Rússia morria e outra Rússia nascia” – como diz a matéria da revista Bravo!. O fim da servidão, em 1861, foi um histórico divisor de águas; no mesmo ano, é criado o movimento Terra e Liberdade, “a primeira de uma série de organizações políticas secretas empenhadas em ações violentas contra autoridades e instituições oficiais” (como relata Figueiredo no prefácio da obra). Iniciava-se uma era turbulenta, repleta de atentados violentos contra o ancien régime, que culminaria, em 1881, com o assassinato do tsar Alexandre II. 

“A polêmica que se seguiu à publicação de Pais e Filhos foi a maior de que se tem notícia na literatura russa”, relata o tradutor Rubens Figueiredo, que verteu o livro para o português direto do russo. “O termo ‘niilista’, usado por Turguêniev para definir seu herói Bazárov, popularizou-se instantaneamente e, como que de propósito, uma sucessão de incêndios criminosos de cunho sabidamente político agitou São Petersburgo. Quando Turguêniev, vindo da Europa, onde sempre passava a maior parte do ano, chegou à capital, ouviu na rua a acusação de um homem indignado: ‘Olhe só o que os seus niilistas estão fazendo: estão pondo São Petersburgo em chamas!’ Turguêniev, homem de índole pacífica e cordial, fora apanhado no meio de um turbilhão…”.

A leitura do romance torna evidente que seu autor não está elogiando, endossando ou recomendando as atitudes niilizadoras de seu protagonista; em outras palavras, Turguêniev está longe de ser ele mesmo um niilista e nada seria mais equívoco do que imputar ao autor uma visão-de-mundo idêntica a de seu personagem. Neste livro, dedicado à memória de Biélinski, elogiado por Herzen e Dostoiévski, Turguêniev  “manifesta contínuo esforço de imparcialidade” (pg. 8) e sua postura fica “longe de qualquer pendor panfletário ou mesmo polêmico” (pg. 14), afirma com propriedade o Rubens Figueiredo. Se Pais e Filhos gerou um bafáfá danado, parece-me que foi a despeito das intenções do artista, que jamais quis inspirar radicais violentos a pôr a Rússia “em chamas” – de modo similar a Goethe, que tampouco desejou, com seu Werther, desencadear na Alemanha uma série de suicídios.

Como Figueiredo destaca com acerto, “a singularidade e a audácia do livro consistiram em investigar, em termos literários, um quadro social novo e potencialmente explosivo no exato instante em que nascia… Turguêniev tinha de caminhar enquanto o solo se deslocava rapidamente sob seus pés.” (pg. 8) A matéria da Bravo! também enfatiza que “o efeito do romance foi o de uma cortina que se abre e deita luz sobre uma cena a desenvolver-se na penumbra.” Esta realidade penumbrosa, ainda inexplorada na literatura até então, este monstro nascente, não é outro senão diagnosticado também por Nietzsche, que foi contemporâneo da eclosão de incendiárias manifestações da niilina russa. 

Segundo Nietzsche, a Europa do século XIX foi invadida por um “hóspede sinistro”: o niilismo. No âmbito da filosofia nietzschiana, este termo se refere àqueles que negam todo valor à existência (a própria, a dos outros e a do mundo), que são incapazes de afirmar a realidade terrena e amar o destino. Para Nietzsche, são niilistas tanto os crentes em um Deus único e transcendente, que concluem de sua fé que devem negar o pecaminoso e corrupto mundo da carne e dos sentidos, quanto aqueles que, como Schopenhauer e os budistas, convidam à negação da vontade ou à extirpação do desejo, baseados na ideia de que o querer é a fonte de todo o sofrer. Contra a disseminação epidêmica destas doutrinas impregnadas de niilina, Nietzsche pôs em ação todo seu ardor intelectual e poder criativo, tendo se tornado talvez o maior dos mestres para aqueles que desejam superar o niilismo, vê-lo abaixo de si…

O livro de Turguêniev celebrizou-se como a primeira obra literária a protagonizar um auto-declarado “niilista”, o médico e estudioso das ciência naturais Bazárov. Na primeira ocorrência do termo no romance, o “niilista” é descrito por Arkádi, o camarada e companheiro de peripécias de Bazárov, como alguém que “considera tudo de um ponto de vista crítico” (pg. 48). Mas nem todo cri-cri é um niilista, claro: muitos críticos são afirmadores de mundivisões, valores e mitos distintos daqueles que se empenham em criticar (o próprio Nietzsche é um excelente exemplo!). Na sequência, Arkádi adiciona outros traços ao retrato de seu amigo: “O niilista é uma pessoa que não se curva diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio aceito sem provas, com base na fé, por mais que esse princípio esteja cercado de respeito.” (pg. 48)

Definição interessante, mas que também caberia a um anarquista ou um punk. E, ao contrário do que julga o senso-comum, estes não são necessariamente niilistas: anarquistas como Kropotkin ou Emma Goldman podem negar com veemência a autoridade do Estado, criticar com insolência o sistema capitalista, criticar severamente a apropriação privada dos frutos do trabalho das massas, mas por outro lado afirmam com ardor valores de solidariedade, fraternidade e igualitarismo, engajam-se na construção de um mundo liberto de autoridades espúrias, exploradoras e parasitas.  “Niilista” e “anarquista”, pois, não são termos sinônimos. Além do mais, a definição de Arkádi, citada no parágrafo anterior, também conviria perfeitamente à figura do cético ou do cínico, aqueles que recusam qualquer tipo de sacralidade dos dogmas e doutrinas, que rejeitam todos os argumentos de autoridade… A essência do “niilismo bazároviano” deve ser buscado mais fundo, pois.

Em uma das cenas mais notáveis do romance, Bazárov dialoga com Ana e lhe confessa ser completamente desprovido de “sentido artístico” (“de fato não existe em mim tal coisa…”). Diante de fotografias de paisagens suíças, ele permanece afetivamente indiferente, incapaz de enxergar qualquer beleza. “Essas paisagens poderiam me interessar do ponto de vista geológico, por exemplo, do ponto de vista da formação das montanhas…” (pg. 133). Esta frieza é uma marca do caráter de Bazárov, que não tem um pingo de gosto pela poesia, pela música ou pela contemplação da Natureza: tudo isso não parece encontrar eco em sua sensibilidade, como se esta estivesse congelada por uma nevasca. O próprio Turguêniev dirá, em suas Reminiscências, que partilha muitas das ideias de seu personagem, que admira em sua criatura o fato de Bazárov ser “soberanamente alheio a tudo que é trivial, vulgar e falso”, mas que não compartilha com ele este vigoroso desdém pela arte e pela beleza.

 Isto se manifesta de modo explícito nas relações humanas de Bazárov, que age quase sempre com rudeza, insolência, falta de gentileza. Ele é  arredio a todo tipo de sentimentalismo e sempre deseja de se livrar do “registro afetivo” sempre que este se manifesta. Ao contrário de um anarquista ou de um punk, por exemplo, Bazárov é um sujeito que não se vincula, que não se une, que permanece ilhado numa solidão anti-social obstinada. O leitor o acompanha em sua marcha niilizadora em que ele aniquila, uma após outras, todas as oportunidades de consumar amores e de amizades.

O romance de Turguêniev, pois, tem acentos trágicos: não descreve um homem afetuoso, bem-sucedido, triunfante, mas alguém que tem a vida desgraçada por seu comportamento sempre niilizador das opiniões e comportamentos do meio social que o rodeia. Ele não suporta nem os mujiques nem os “senhores feudais”; não tem respeito algum seja pelo tsar, seja pelo povo, seja por si mesmo. É bem verdade que esta disposição de espírito misantrópica acaba gerando, vez ou outra, comentários irônicos mordazes que lembram a língua ferina e impiedosa de autores como Heine, Chamfort ou Sade. Mas se vez ou outra Bazárov aparece aos olhos do leitor como espirituoso e inteligente, esta simpatia dificilmente se mantêm nos momentos em que ele que se torna mais bélico – como na cena do duelo de pistolas contra seu desafeto Pável… – ou quando ele se mostra incapaz de tratar uma mulher linda e interessante (como Ana) com o devido carinho e amorosidade.

Vejam, por exemplo, o que ele diz à Ana em um dos primeiros diálogos dos dois:

“- Garanto à senhora que estudar as personalidades individualmente não vale a pena. Todas as pessoas se parecem no corpo e também na alma; todos temos cérebro, baço, coração, pulmões, tudo igualmente constituído; assim também as chamadas qualidades morais são exatamente iguais em todos: pequenas alterações nada significam. Basta um exemplar humano para julgar todos os demais. Pessoas são como árvores na floresta; botânico algum se daria ao trabalho de estudar cada bétula isoladamente…” (pg. 134)

Terrível equívoco, diante de uma mulher com quem o amor é possível, promulgar orgulhosamente, do alto de um púlpito, este discurso niilizador da diferença, que reduz o outro a ser igual a qualquer um! Não surpreenderá a nenhum leitor, pois, que a vida amorosa de Bazárov seja tão insatisfatória: ele explicitamente não valoriza o amor (ele não chega ,es,p a xingar o “romantismo” por não ser nada além de “espalhar açúcar sobre as coisas”?). De modo que fecha as portas a todas as possibilidades de vínculos jubilativos e alegradores da existência. “Bazárov era um grande apreciador das mulheres e da beleza feminina”, escreve Turguêniev, “mas considerava o amor, no sentido ideal ou, conforme ele dizia, romântico, um disparate, uma insensatez imperdoável… ‘Se uma mulher lhe agrada’, dizia ele, ‘tente tirar algum proveito; se não for possível, bem, não importa, dê as costas para ela e pé na estrada: o mundo é grande’…” (pg. 146).

Como se surpreender com o desenlace infeliz da relação entre Bazárov e Ana? Nosso niilista, ao negar qualquer valor a si mesmo, ao tripudiar sobre a auto-estima como se fosse seu dever tratar a si mesmo como um trapo, parece acarretar em sua vida o afastamento dos outros, que descobrem logo que serão pouco ou nada valorizados por alguém que não se valoriza. “Não vale a pena sentir saudades das pessoas, de um modo geral, e de mim, menos ainda…” (pg. 150) – declara Bazárov a Ana.

Os momentos mais comoventes do romance, segundo o meu gosto, são estes em que Turguêniev narra o modo como este vínculo amoroso fracassa. Ana não consegue evitar a sensação de que Bazaróv “a conhece pouco, apesar de crer que todas as pessoas se parecem e que não vale a pena estudá-las individualmente” (pg. 152). Aliás, não seria um sintoma da falta de conhecimento real dos outros esta crença bazaróviana que desdenha das particularidades e que não enxerga ninguém como único? Destaco um diálogo magistral de Ana e Bazárov onde ela força uma conversação sobre o tema da felicidade, sobre a qual nosso niilista conhece tão pouco:

“- Falávamos sobre a felicidade…. Diga-me por que, mesmo quando experimentamos um prazer, por exemplo, com uma música, com uma noite agradável, com uma conversa entre pessoas simpáticas, por que tudo isso parece antes uma alusão a alguma felicidade ilimitada, que existe não se sabe onde, do que uma felicidade real, ou seja, aquela que nós mesmos desfrutamos? Por que é assim? Ou, quem sabe, o senhor não sente nada de parecido?

– A senhora – respondeu-lhe Bazárov – conhece o provérbio: ‘Lugar bom é onde não estamos’…” (pg. 160)

Como seu próprio título já anuncia, Pais e Filhos é também um livro em que Turguêniev explora o tema do conflito entre as gerações. Escrito numa época (entre 1860 e 1862) em que a Rússia começava a se sublevar contra a tirania ancestral do tsarismo, em que a servidão dos camponeses começava a ser questionada e novas formações sociais emergiam, nota-se uma diferença radical entre pais e filhos – explorada no romance através da relação entre o filho Bazárov e seus ímpetos niilistas, de um lado, e seus velhos pais, devotos e tradicionalistas, de outro.

Apesar de dedicar-se ao estudo das ciências naturais e ser praticante da medicina, Bazárov é um sujeito baudelaireano que sofre terrivelmente com o spleen, tédio de viver, a sensaboria de estar-no-mundo e sentir-se insignificante no espaço e no tempo. Sua fala citada na epígrafe é um dos exemplo deste estado de espírito. A certo momento, confessa a seu amigo Arkádi: “Meus pais vivem atarefados e não se incomodam com a própria nulidade, não sentem esse mau cheiro… enquanto eu… sinto apenas enfado e raiva.” (pg. 196)

Bazárov visita raramente seus pais, e quando vai vê-los não permanece por muito tempo; além do mais, quando visita-os, exige que seja respeitada sua “reserva afetiva”: que não lhe incomodem com mimos e carinhos excessivos, que tenha o direito de permanecer só!  Seu pai assim descreve seu rebento: “É inimigo de qualquer expansão de afeto; muitos até o condenam por essa dureza do seu caráter e veem nisso um sinal de orgulho ou de insensibilidade; mas não se pode medir pessoas como ele com o metro comum, não é verdade? Outro, em seu lugar, não deixaria de tirar dos pais todo o dinheiro que pudesse; mas, de nós, acredite-me, ele nunca tomou um copeque além do necessário…” (p. 192).

De fato, Bazárov também é um homem de vida frugal, que não aprecia o luxo, inimigo de uma sociedade hierarquizada e rachada em castas. Uma frase me parece sintetizar bem a personalidade de Bazárov: “ele não gostava dessa pontualidade cadenciada e um pouco solene na vida diária; ‘como rodar sobre trilhos’, sentenciava ele; lacaios de libré e mordomos cerimoniosos insultavam o seu sentimento democrático…” (pg. 144). Ele não pode suportar a vida bem-regrada dos pais, que lhe enche de tédio, mas ao mesmo tempo não consegue se desvincular de fato de seu meio social de origem: uma estranha atração faz com que ele retorne ao seio familiar como um bumerangue. 

Incapaz de apreciar uma vida bem-regrada, com um cotidiano fixo de ações previamente mapeadas, ele deseja lançar-se “para fora dos trilhos” da comodidade e do conforto… “O lado elegante da vida me é inacessível”, confessa à Ana. Mas o curioso é que também este desejo permanece irrealizado e, longe de aventurar-se em peripécias quixotescas ou embarcar em viagens cheias de perigo, Bazárov aferra-se a estes meios sociais que considera tediosos e banais: grande parte do romance narra o modo pouquíssimo aventureiro com que Bazárov, acompanhado por seu escudeiro Arcádin, fica pulando de casa em casa, em visitas aos parentes (os seus e os de seu amigo).

Além do mais, não consegue se libertar de um ideário viril em que crê que “o homem deve ser feroz”, de modo que considera a companhia feminina como um rebaixamento ou uma fraqueza. Além disso, não há nenhum tipo de engajamento político do personagem no romance: Bazárov é um niilista isolacionista, que não luta por nenhum mundo melhor, nem mesmo através das bombas e atentados destinados a “limpar o terreno”. O que torna surpreende os efeitos imputados ao livro de ter influenciado os incendiários terroristas de São Peterbursgo!

Bazárov é de fato um personagem memorável: fechamos o livro com a sensação de que conhecemos uma pessoa que não iremos esquecer mais, apesar de seus equívocos, fraquezas, desventuras. Ele não é um modelo de conduta, um paradigma de virtude, nada se assemelha a um herói ou a um santo; é humano, demasiado humano, e sua vida é narrada por Turguêniev sem idealizações, com a inclusão de seus infortúnios e tragédias.

 Ademais, para os estudiosos de Nietzsche, esta não deixa de ser uma experiência estética altamente válida, não só por oferecer um exemplo literário de niilista encarnado, mas também para mostrar que o niilismo não é uno: há vários modos de ser niilista, sendo Bazárov um tipo particular de existência niilizadora. O que Bazárov nega, sobretudo, além de uma sociedade revoltante e de autoridades indignas de respeito, é a possibilidade humana de vínculo e de transformação. A impressão indelével que me fica é a de que Bazárov só é um niilista consumado pois é um descrente no amor.

A leitura do romance de Turguêniev foi iluminadora, pois, para refletir mais a fundo sobre este tema tão importante para a filosofia dos últimos séculos, em especial no âmbito do nietzschianismo, do niilismo. Decerto que, em Nietzsche, há um vínculo entre niilismo e metafísica – o que Turguêniev não explora. Compreendo o niilismo, segundo Nietzsche, como uma orgia de negação que acomete os espíritos que se desiludem das miragens metafísicas: quando se perde a crença em Deus, ou na bondade da Natureza, ou no final feliz da História, e ainda não se encontrou nenhum substituto para estes ídolos caídos, o sujeito tende a mergulhar numa náusea existencial de completa negatividade.

Os valores metafísicos, as verdades absolutas, os finais-felizes redentores, tudo isso, quando se esboroa no universo interior, quando deixa de ser crível, gera este estado afetivo niilizador em que o sujeito, nostálgico do absoluto, não consegue suportar a relatividade do real, a efemeridade da vida, os antagonismos que povoam a Terra. Para Nietzsche, ademais, o próprio pensamento religioso ou metafísico possui um elemento profundamente niilista na medida em que postula uma dimensão transcendente, morada do Bem e da Verdade, o que acarreta a depreciação da imanência. Em termos mais simples: niilista é aquele que não dá valor nenhum ao aqui-agora (a imanência…) pois só consegue valorizar o alhures (a transcendência).

Depois de aniquilada a crença numa transcendência redentora (Paraíso, Reino de Deus, Imortalidade da Alma, Utopia Realizada…), resta ao homem um novo desafio: o de aprender a amar o real. O niilista é aquele que se mostra incapaz deste amor fati; é o homem que insiste em recusar valor ao que existe; aquele que, diante de tudo, diz “tanto faz” e “tudo dá no mesmo…”. Descrente de tudo, cultuador da indiferença, com fixação mórbida por Tânatos, incapaz de ação criadora, transformadora e colaborativa, congela seus afetos e sua criatividade, sua capacidade de vínculo e sua aptidão para o êxtase, prostrando-se em devoção preguiçosa no altar do Nada.

Como antídotos à esse sinistro hóspede, a obra de Nietzsche fornece muitas sugestões: remeto brevemente à figura de Zaratustra, o anti-niilista por excelência, discípulo de Dionísio, dançarino ornado com sua coroa de flores, santificador do riso, mais sátiro que santo, que está nas antípodas do niilismo. Ou seja, Zaratustra é alguém em quem o poder afirmativo atingiu tal ardor que a existência é jubilosamente celebrada, com tudo o que ela inclui de problemático e terrível, com um “sim!” veemente e incondicional.

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