O pavor das vilanias viralizáveis na recepção do filme “Coringa” (Joker), de Todd Phillips, vencedor do Leão de Ouro em Veneza

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

1. OS FILMES VOLTARAM A SER PERIGOSOS?

Durante a insurreição parisiense de Maio de 1968, muitos muros pixados gritavam: “O que queremos de fato é que as idéias voltem a ser perigosas.” Esta frase-tijolada, de autoria atribuída a Guy Debord mas viralizada por anônimos, poderia ser adaptada pra falar sobre certos filmes contemporâneos e sobre os enfants terribles que ousam realizá-los, de Lars Von Trier a Gaspar Noé: são figuras que querem que o cinema volte a ser perigoso.

Um filme pode pôr um sistema em perigo, ou isto é só fantasia de grandeza dos artistas cinematográficos que exageram seu próprio poder de subverter o status quo? Uma obra fílmica subversiva pode se transformar em blockbuster e fazer sucesso popular a ponto de preocupar as elites plutocratas? É possível que um filme represente um perigo que leve as elites a perderem o sono e fundirem a cuca de preocupação diante das provocadoras perturbações da ordem que tomam de assalto as salas de exibição?

Como fã de filmes perigosos, provocativos e anti-conformistas, afirmo que precisamos sim de uma arte cinematográfica que jamais se renda a considerar uma sala de cinema como mero templo de consumo, repleta de poltronas confortáveis onde a passividade dos alienados vai pastar seu conformismo após encher de grana o cu das corporações dos Kinoplexes dentro de shopping centers. Aliás, o preço-facada deste ingresso, e este combo pipoca-com-Coca-Cola a 30 reais, não têm nenhuma graça.

 Queremos um cinema que mobilize afetos anti-sistêmicos, anti-capitalistas, sabotando o insustentável business as usual que atua na atual Máquina do Apocalipse conhecida como capitalismo neoliberal globalizado.

 O mínimo que se pode dizer sobre o ano de 2019 é que esta vontade está sendo muito bem atendida: Bacurau, Marighella e Espero Tua (Re)Volta fizeram isto lindamente pelo cinema brasileiro, com força descomunal e grande beleza expressiva; e no cenário do cinema-pop internacional é Joker, de Todd Phillips, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, quem cumpre com esmero a função de re-lançar a arte do cinema ao campo do risco, do perigo, da confrontação aberta, sem medo da polêmica. Exemplo disso é o “pânico moral” que tem se tornado um dos grandes temas de debate sobre as repercussões do mais novo filme do Coringa.

Na Jacobin Brasil, o artigo de Eileen Jones pontua:

“O pânico moral sobre filmes provocantes como “Coringa” é tão antigo quanto o próprio cinema. Filmes de Spike Lee, Oliver Stone, Luís Buñuel e Jean Renoir já sofreram a mesma acusação pela direita liberal. Na maioria das vezes são apenas mais uma prova do mérito de um filme – e de uma classe com medo de se reconhecer nas telas. (…) O número de vezes na história em que filmes criaram um alvoroço que levou à violência é surpreendentemente pequeno, tornando as recentes previsões sombrias de que Coringa provavelmente inspirará caos em massa uma aposta ruim.”

Um filme seria capaz de “inspirar caos em massa”? A pergunta não é absurda e já está em discussão há muito tempo na sociologia da arte – pelo menos desde que Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, inspirou muitos suicídios entre jovens alemães que mimetizavam Werther. O medo dos críticos, noiados com a força do personagem Coringa, é que vejamos uma epidemia de mímesis das atitudes psicopatas e sangrentas do Joker da telona. Questiona-se na imprensa liberal-burguesa sobre todos aqueles que poderiam se ver tentados a imitar o exemplo do Coringa e que se lançassem a explodir cabeças de âncoras televisivos ou confrontar diretamente tubarões corporativos como o Sr. Wayne.

Eis um temor razoavelmente justificado quando se considera que o grau de identificação com o protagonista é grande o bastante para que seja um ótimo negócio para Warner e D.C. Comics lançarem este filme para colherem centenas de milhões de dólares em lucro de bilheteria. Tem gente pra cacete querendo ver Coringa, e dentre esta multidão decerto não vão faltar aqueles que se identificam com ele e enxergam no personagem muito mais um herói, um soulbrother, do que apenas um psicopata doidão que mereceria ser trancado num hospício com as chaves de sua cela jogadas no fundo do oceano.

Um fenômeno semelhante é a identificação positiva com o Tyler Durden de Clube da Luta (Fight Club), o filme de David Fincher baseado no livro de Palahniuk. Temeu-se que pudessem surgir, no mundo real, “movimentos sociais” assemelhados aos Space Monkeys que Tyler Durden (Brad Pitt / Edward Norton) encabeça em um enredo que termina com um atentado terrorista contra empresas de cartão de crédito. Temeu-se que se viralizasse a atitude de revolta contra este sistema nojento em que trabalhamos em trampos que odiamos para poder comprar lixo que não precisamos, em que “as coisas que você possui acabam por ter possuir”.

O curioso no caso Coringa é a excelente recepção que o filme tem recebido em festivais internacionais e em boa parte da crítica especializada – a começar pela consagração em Veneza. O filme, propulsionado pela interpretação magistral de Joaquin Phoenix (magistral em sua performance do personagem já vivido em filmes anteriores por Jack Nicholson, Heath Ledger e Jared Leto). O filme tem sido debatido por seus supostos “perigos” em despertar o “caos em massa”, mas seus méritos artísticos não estão sendo negados nem pelo mais paranóico dos críticos liberais fanáticos por law & order.

Joker rapta o Leão de Ouro em Veneza: filme de Todd Phillips, protagonizado por Joaquin Phoenix, vence o prêmio máximo da 76ª edição do festival – Público

O furor em torno do novo filme Coringa começou não de uma sessão desastrosa, mas de uma estreia extremamente bem sucedida: foi ovacionado durante oito minutos no Festival de Veneza, e em sequência ganhou o prestigiado prêmio Leão de Ouro. Apenas para contextualizar, o Leão de Ouro vai para filmes como “Rashomon”, “O Ano Passado em Marienbad”, “A Infância de Ivan”, “A Batalha de Argel”, “Os Renegados”, “Adeus Meninos”, “The Story of Qiu Ju”, “O Segredo de Vera Drake”, “Brokeback Mountain” e “Roma”. Apenas esperando que alguém esteja se divertindo em algum lugar, gosto de pensar que os europeus que votaram no Festival de Cannes estavam apenas nos trolando, antecipando o surto moral e estético entre os guardiões da cultura estadunidense na elevação de Coringa a padrões significativos de filmes de arte. Eu os imagino bebendo tanto até que o vinho saia pelo nariz.

No entanto, na verdade eles provavelmente foram sinceros, e sua reverência ao filme foi, para dizer o mínimo, inesperada para mais um filme com o Coringa, o gargalhante e amado vilão psicopata da DC Comics, um personagem que já foi interpretado três vezes em filmes de super-heróis, por Jack Nickolson (Batman,1989), Heath Ledger (Batman: O Cavaleiro das Trevas, 2008), e Jared Leto (Esquadrão Suicida, 2016). Mas com o altamente respeitado ator Joaquin Phoenix reconcebendo o papel como um raivoso e isolado incel branco da classe trabalhadora levado ao limite, esse aplauso chocou e irritou críticos de cinema e jornalistas de entretenimento. Houve uma enxurrada de comentários alarmistas desde então, incluindo especulações nervosas sobre a possibilidade de violência imediata como uma aparente resposta ao filme, como na crítica de Sarah Hagi na Jezebel: ‘A pergunta na mente de todos quando assistirem Coringa é e será: o quão perigoso é isso? O público alvo de jovens homens brancos será inspirado por Coringa?’ – JACOBIN

2. A VIRALIZAÇÃO DA VILANIA: PARANÓIA JUSTIFICADA?

Esta histeria paranóica dos liberais tem suas razões: de fato, Joker é um filme fascinado pelo tema da viralização. O filme descreve a cidade de Gotham tomada por riots em que os clowns protestam violentamente nas ruas, botando fogo em carros, confrontando ousadamente a polícia feito Black Blocs e destravando processos anárquicos que um dia, no futuro não muito distante, irão justificar as ações extralegais de um playboy metido a vigilante que limpará a escória das ruas fantasiado de morcego.

Por isto o filme dialoga fortemente com V de Vingançaoutra obra fortemente marcada pelo fascínio com a viralização. A máscara de Guy Fawkes se torna viral no enredo forjado por Alan Moore em V de Vingança, e depois transbordou para o mundo real e histórico, tendo sido utilizada por manifestantes em protestos. As máscaras, saindo da arte para a vida, inspirando também movimentos hackers digitais como o Anonymous, é um fenômeno que certamente interessa à sociologia fílmica de Joker.

Este contexto social repercute na viralização dos palhaços revoltados que constitui um Exército de Coringas, emblemático na cena em que o metrô de Gotham está lotado por figuras à la Coringa, levanto os policiais ao completo desnorteio. É isso que tem colocado tantas pulgas nas cuecas das elites liberais.

Estas, acostumadas à paranóia pois costumam viver em ilhas de privilégios que mais se parecem bunkers militares do novo apartheid, tem o temor de que aquela Gotham caótica e em chamas seja algo muito diferente de apenas uma fantasia distópica. O medo é o de que seja a imagem-espelho de nosso futuro próximo.

O medo se aprofunda nestas elites quando pensam que filmes assim podem acelerar este processo de convulsão social que o filme expressa em seu momento mais emblemático: sobre a viatura destruída por um crash, acordando de seu desmaio, Arthur Fleck, dentro da sua persona de Joker, tem seus “15 minutos de fama” diante da horda de clowns que o considera alguma espécie de inspirador do movimento. Após os 15 minutos de fama, o “famosinho” estará imobilizado numa camisa de força e sendo moído vivo no Cemitério dos Vivos (como dizia Lima Barreto) que é o sistema prisional-manicomial.

Arthur Fleck começou o movimento, a despeito de quaisquer intenções suas: ele garante que não é um sujeito politizado e nunca pretendeu começar um movimento. Mas o assassinato triplo que comete no metrô contra três funcionários da Corporação Wayne mudam seu destino pessoal para sempre, e no processo destravam processos que mudam também os destinos coletivos.

Arthur era um zé-ninguém, um invisível, uma destas pessoas anônimas que, se morrem e caem na calçada, os transeuntes seguem andando como se nada tivesse acontecido, desviando-se do corpo como se fosse um pacote de arroz caído no chão. O assassinato triplo, por ser também efeito de uma cultura de hegemonia do armamentismo e da masculinidade tóxica, faz emergir, como um monstro do pântano que se ergue causando rebuliço na superfície da lagoa, o Coringa que não é mais zé-ninguém nem invisível: agora, Arthur Fleck sente o sabor da fama através de seu alter-ego: o Coringa é famoso, é o cara na capa dos jornais. Este gostinho de sucesso, ainda que seja através da notoriedade de um crime, é essencial para a compreensão do filme.

Em muitos aspectos, Joker lembra Réquiem Para um Sonho de Darren Aronofsky. Neste, a senhora interpretada por Ellen Burstyn é viciada em TV e anfetaminas, entrando em vários delírios alucinados diante de seus programas de TV prediletos. O filme de Todd Phillips se apropria de uma estrutura muito semelhante ao descrever as fantasias de Arthur Fleck diante da TV: ele sonha em ser uma estrela de TV, não se recusa a participar do programa de entrevistas que bomba no Ibope, mas tudo dá errado em seus planos de se transformar num pop star pois sua esquisitice, seu fracasso em sua tentativa de tornar-se um bem-sucedido stand-up comedian, o conduzem a ser ridicularizado na televisão onde ele desejou ser entronado.

Deste modo, tanto Joker quanto Réquiem exploram as neuroses decorrentes de um star system em que viralizam-se os sonhos de fama televisada, mas onde há um verdadeiro apartheid operando: os estranhos, os feios, os loucos, os maltrapilhos, tudo que é queer e inadaptado aos padrões normóticos vigentes, ficará apartado da fama, por mais que sonhe e delire com ela. Arthur Fleck faz parte do exército dos que deliram em um dia serem famosos na TV, mas que nunca o será – e que fica muito puto da vida quando o descobre. Na catártica cena em que ele finalmente está ao vivo na TV, diante do entrevistador encarnado por Robert De Niro, ele dirá algumas verdades inconvenientes que também evocam o clássico Network – Rede de Intrigas, de Sidney Lumet.

3. GOTHAM: LIXO, RATOS, PLAYBOYS, RIOTS E INCELS

Logo em suas primeiras cenas, o filme Joker lança o espectador a uma Gotham afundada no caos com uma grave greve dos lixeiros. As ratazanas infestam uma Gotham que está há semanas sem o devido recolhimento de lixo. O todo-poderoso playboy Wayne – pai daquele Bruce Wayne que um dia se transmutará no Homem-Marcego, O Cavaleiro das Trevas – está se candidatando a prefeito.

O filme deixa no escuro as causas da greve e as demandas dos grevistas, mas em outra cena joga mais luz sobre as causas subjacentes do caos em que Gotham está mergulhada: diante de uma assistente social, Arthur Fleck, sedado com mais 7 medicamentos psicotrópicos, ouve uma má notícia. O Estado resolveu cortar investimentos para aquele serviço de assistência social para os mentalmente instáveis das classes subprivilegiadas.

Tanto a social worker quanto o altamente medicalizado Artur Fleck são tratados como lixo pelos governantes de Gotham. Estes aplicam políticas de austeridade que fazem colapsar os serviços públicos mais importantes – da coleta de lixo à assistência social concedida às multidões de adoecidos psíquicos.

É um filme na tradição de thrillers como O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs), de Jonathan Demme, e O Iluminado (The Shining), de Stanley Kubrick. Tanto Hannibal Lecter, interpretado por Anthony Hopkins, quanto Jack Torrance, encarnado por Jack Nicholson, eram personagens afligidos pela doença mental (mental illness) e seus atos eram manifestações sintomáticas de suas condições “clínicas”. São obras onde o mal tenta ser compreendido a partir de princípios psicológicos (como a psicose) e não teológicos (como o pecado).

É por aí que Joker segue: na trilha da exploração psicológica da gênese de um psicopata. Velhas figuras, que bordejam o clichê, levantam suas cabeças no roteiro: o abandono do pai, a infância cheia de traumas, uma relação pouco sadia de dependência mútua em relação à mãe, uma fobia do contato social decorrente da condição de risada compulsiva etc. Esta infância problemática, com o pai ausente, a mãe delirante, o padrasto abusador, frisa aquela velha tese: todo adulto com psicose foi um dia uma criança traumatizada por circunstâncias que não escolheu.

Somam-se aos “males da infância” de Arthur sua situação presente de homem solteiro, celibatário, que mora com a mãe, incapaz de estabelecer vínculos afetivos significativos, sexualmente inativo, capaz apenas de fantasiar o amor com sua vizinha, mas nunca de viver na carne as conjunções carnais e os arrebatamentos orgásticos. Inúmeras críticas e artigos sobre Joker apontam a proximidade entre o caráter do protagonista e os homens “incel” (celibatários involuntários), recentemente celebrizados após o atentado de Toronto:

BBC – Quando o canadense Alek Minassian atropelou um grupo de pedestres com uma van, matando dez pessoas em Toronto, no Canadá, a notícia correu rapidamente em um grupo muito específico na internet: fóruns de discussão dos autodenominados “incels” – homens que não conseguem ter relações sexuais e amorosas e culpam as mulheres e os homens sexualmente ativos por isso. O termo “incel” é um diminutivo da expressão “involuntary celibates”, ou celibatários involuntários. A notícia de que Minassian se autodeclarava “incel” virou o assunto principal dos fóruns de conversa desses homens na internet.

Se pode haver uma certa graça na própria expressão “celibatários involuntários”, decerto que não tem graça nenhuma as ondas de spree killings praticados por estes auto-denominados incels. Podemos descrevê-los como os caras que são virgens revoltados contra as mulheres – não transaram nunca, não é por não desejarem, mas por não conseguirem, e a culpa é toda das malditas mulheres. Incapazes de criticarem doenças sociais do Patriarcado, como a masculinidade tóxica que lhes impede qualquer manifestação de afeto mais delicada, qualquer enlevo carinhoso, qualquer “derretimento” afetivo que aproxime do “sexo oposto”, eles projetam sua libido insatisfeita, represada e mau sublimada em uma agressividade destrutiva e misógina que muitas vezes explode em serial killing. 

Tanto que o incel de Toronto, assassino de 10 concidadãos, antes de pisar no acelerador e atropelar dez vidas, escreveu, segundo a reportagem da BBC: “A rebelião ‘incel’ já começou! Vamos derrotar todos os Chads (homens atraentes e sexualmente ativos) e Stacys (mulheres sexualmente ativas). Todos saúdem o cavalheiro supremo Elliot Rodger!”

“Em 2014, Elliot Rodger matou seis pessoas a tiros e facadas, na Califórnia, se matando em seguida. Ele tinha várias publicações em redes sociais falando sobre sua frustração por ser rejeitado e pregando ódio às mulheres. Num vídeo que postou no YouTube, Rodger reclamou de ainda ser virgem aos 22 anos e revelou nunca ter ao menos beijado uma menina. Ele disse ainda que era o “ideal e magnífico cavalheiro” e que não compreendia porque as mulheres não queriam ter relações sexuais com ele.” (BBC)

O personagem vivido por Phoenix, Leto, Ledger e Nicholson de fato assemelha-se a um celibatário involuntário: nunca é descrito amando uma mulher que consente com ele nas delícias do amor físico. Wilhelm Reich talvez o diagnosticaria como alguém tristemente enjaulado na couraça de um caráter que impede a manifestação vital da potência orgástica. Aquele risinho nervoso, que ao invés de disseminar alegria causa uma epidemia de mal-estar, é sintoma neurótico mais do que espontânea explosão de hilariedade. O Coringa ri sozinho, nunca em coro com os outros. E quando ele ri, sem ser acompanhado, sua solidão é sublinhada.

A todo momento, ele se refere à sua mãe que teria em sua infância lhe ensinado a sempre usar uma cara sorridente. Este “vestir um sorriso”, ainda que artificial e forçado, erguido a imperativo ético, trafegando entre as gerações, de mãe para filho, parece ter gerado uma neurose que fica muito emblematicamente representada pelo gesto de forças os músculos da cara e da boca para cima, com a força mecânica impositiva dos dedos da mão.

Por detrás da maquiagem ou da máscara do Coringa, não há jovialidade, mas sofrimento que beira o intolerável. Quando ele ri, não é de alegria, é muito mais como um soluço afetivo que lhe prende ao trauma ainda não superável. Riso triste, nada zaratustriano, o avesso daquele riso dionisíaco que Nietzsche propôs em sua obra magistral e que o próprio Fritz, em carne-e-osso, talvez nunca alcançou. Não tenho notícia de nenhuma foto em que os longos bigodes de Fritz Nietzsche estivessem iluminados por um sorriso que lhes brilhasse por debaixo.

Se há um fascínio em figuras como Arthur Fleck / O Coringa, isto talvez se deva à expressividade excêntrica com que manifestam suas contradições íntimas mais profundas e dilacerantes, em ruptura com a normose, com o politicamente correto e com padrões aceitáveis de conduta segundo o Ser Humano Careta e Medíocre. Interessante notar, neste contexto, que o diretor Todd Phillips, em início de carreira, em um filme estudantil que causou muito rebuliço, manifestou interesse por uma das figuras mais extremas e controversas do movimento punk, G. G. Allin:

Até aqui ninguém parece intrigado pelo início da carreira de Phillips, que inclui alguns anos estudando na Tysch School of the Arts da Universidade de Nova York, onde ele fez o documentário “Hated: GG Allin and the Murder Junkies” (algo como “Odiados: GG Allin e os Drogados Assassinos”), um retrato de um escabroso roqueiro punk que teve lançamento nos cinemas e em DVD – algo quase inédito para filmes estudantis. Abandonando a faculdade para terminar “Hated”, ele trabalhou na lendária, decadente e abrangente “Kim’s Video and Music”, uma locadora especializada em filmes raros e voltados a iniciados, que “graduou” seu próprio grupo ilustre de notáveis ex-funcionários, que se tornaram cineastas, músicos e artistas.

Ele co-dirigiu seu segundo documentário, “Frat House“, que trouxe uma sombria visão crítica da vida em uma fraternidade na faculdade e que ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Sundance, mas que afundou logo na estreia por causa de alegações de que membros da fraternidade teriam sido pagos para reencenar eventos. Seu terceiro filme, o “rockumentário” “Bittersweet Motel” (algo como “Hotel Agridoce”), levou Phillips em uma turné com a banda Phish, onde ele conheceu o diretor Ivan Reitman, e o resto, como se costuma dizer, é história. – Jacobin

G. G. Allin seria o equivalente musical do Coringa fílmico. O simplismo dos lemas do cantor punk, morto numa overdose de heroína em 1993, como “kill the police, smash the system” tem eco nas frases que os clowns levam aos riots de Gotham, demandando “kill the rich” ou coisa assim. De fato, um dos clowns performa o dito literalmente e assassina num beco o todo-poderoso Wayne, em um assassinato testemunhado pelo jovem Bruce Wayne, criança traumatizada que logo se tornará o riquinho que se transmuta em vigilante noturno, The Batman.

4. O ÚNICO ANIMAL QUE RI – E A MULTIPLICIDADE DOS RISOS POSSÍVEIS

Joker, um filme complexo, multifacetado, abordável por múltiplas perspectivas, é também um tratado sobre o riso, a comicidade, o lúdico. Sobre como a sociedade estadunidense lida com o entretenimento de comédia, sobre como este instiga sonhos e fantasias naqueles que gostariam de ser os novos Chaplins.

Pode até ser verdade que o homo sapiens é o único animal terráqueo que ri, mas há risos de uma imensa variedade de tipos. O riso neurótico do Coringa, descrito neste filme em seu próprio processo de devir-personagem (similar ao Batman Begins que dá início à Trilogia Cavaleiro das Trevas de Nolan), é bem diferente do riso cheio de escárnio e desdém que manifesta o personagem de Robert De Niro. Este último manifesta um humor arrogante, que rebaixa o outro, é o humor daquele privilegiado, cheio da grana, que pisa em alguém para ridicularizá-lo. Este humor repleto de desdém e crueldade, que menospreza os alvos de seu riso-machucante, recebe no filme uma sangrante “desforra” na cena em que o Coringa enfim adquire sua fama suprema e comete um homicídio live on TV.

O Coringa mata aquele cujo serviço é rir, na TV, seu riso elitista e escarninho. Revolta-se, assim, contra os abusos sem-graça que muitas figuras do star system cometem ao colocar sua comicidade a serviço do racismo, da misoginia, do elitismo. Jair Bolsonaro é um desses palhaços sem graça, que pensa estar sendo um gênio da stand-up comedy quando sobe num palanque para dizer que vai limpar a Pátria do Cocô (um “cô” de comunista, um “cô” de corrupto). Quem podia imaginar que o Brasil teria um chefe de Estado que um dia usaria seu Twitter para divulgação de fake news, goldenshower e demagogia anti-cocô? Apesar da horda Bolsominion urrar nas caixas de comentários seus kkks diante do “Mito”, fica óbvio que ele não passa de um macho tóxico da supremacia branca que, além de péssimo comediante, é um cara escroto, mucho escroto.

Recentemente, tivemos outro exemplo deste riso que fere o outro, e que é uma espécie de adaga pontiaguda manejada pela crueldade, na figura do Sr. Abraham Weintraub. Em seu Twitter, colhendo os “kkk”s da horda bolsonarista, o Ministro da Educação, depois que encontraram 39kg de cocaína em um avião da FAB que ia na comitiva de Jair Bolsonaro, disse: “Avião já transportou drogas em maior quantidade. Qual o peso de Lula e Dilma?” Não vi graça, mas não duvido que houve uma horda de hienas que tenha se regozijado com a tiradinha “esperta” de Weintraub, que ao invés de cuidar das atribuições de seu cargo resolveu comparar ex-presidentes petistas a “drogas bem piores” que “39 kg de cocaína”. Segundo Veja, o Ministro será alvo de processo movido pela Comissão de Ética Pública por sua piada infeliz.

Não posso terminar sem antes falar um pouco sobre as reflexões de Slavoj Zizek sobre o riso enlatado, que voltaram à minha cabeça durante e depois da projeção do filme. A tragicomédia do único animal que ri ganhou um novo capítulo com a invenção das sitcoms com riso enlatado (canned laughter): o espectador de Seinfeld ou Friends não precisa nem se dar ao trabalho de acompanhar com atenção os diálogos destas comédias-de-situação.

Você não precisa gastar neurônio tentando “pescar” a comicidade das falas para rir na hora oportuna. O estouro de risos gravados faz o serviço por você – é como se a TV desse risada por você. Ou então, caso você não queira a passividade extrema de ficar “pastando” diante da teletela enquanto seus ouvidos são inundados por torrentes de risos artificiais, você pode rir junto, sentindo-se parte daquele jovial auditório que se diverte junto. Basta que você siga a manada e ria junto – caso não esteja com preguiça. Caso esteja cansado demais após uma jornada fatigante de trabalho, simplesmente permita que os risos enlatados, inseridos na banda sonora da série, façam por você uma espécie de hahaha por procuração.

Este fenômeno da jovialidade artificial, ou seja, a comercialização de mercadorias cômicas que a indústria cultural “recheia” com risadas pré-fabricadas, é comparado por Zizek com outro fenômeno presente em sociedades tradicionais (ditas “primitivas”): o das mulheres especializadas em chorar nos funerais:

“A rich man can hire them to cry and mourn on his behalf while he attends to a more lucrative business (like negotiating for the fortune of the deceased). This role can be played not only by another human being, but by a machine, as in the case of Tibetan prayer wheels: I put a written prayer into a wheel and mechanically turn it (or, even better, link the wheel to a mill that turns it). It prays for me—or, more precisely, I “objectively” pray through it, while my mind can be occupied with the dirtiest of sexual thoughts.” ZIZEK, In These Times

Ora, o filme Joker também manifesta um desconforto Zizekiano com estes fenômenos das risadas falsas, dos risos enlatados, da ideologia don’t worry be happy. O “perigo” tão temido por muitos críticos talvez esteja na atitude de Arthur Fleck / Coringa de recusa do status quo que nos pede um risonho conformismo diante do estado das coisas. Na Gotham onde se acumula o lixo, onde grassam as ratazanas, onde playboys querem ser prefeitos, onde mega-corporações mandam e desmandam, onde na TV reinam riquinhos escrotos especialistas no riso escarninho, onde as redes de proteção colapsam diante das políticas neoliberais de austeridade, ergue-se o riso dissonante e perturbador do Coringa.

A perturbação ocasionada pelo lançamento deste filme se deve a seu potencial viralizatório, pela sua capacidade de conexão com um amplo “exército” de insatisfeitos que já está se cansando de usar a máscara dos sorrisos falsos. Tem muita gente que, como Arthur Fleck, não está achando graça em perder seu emprego, ser lançado ao precariado ou ao lumpenproletariado, numa sociedade de selvageria competitiva normalizada como se fosse o fim e o suprasumo da História. Assim como Tyler Durden, após dar um tiro na cabeça, assiste de camarote à demolição dos prédios das empresas de credit card ao som de “Where’s My Mind” dos Pixies ao fim de Fight Club, o personagem do Coringa amedronta o sistema pois ele cada vez parece mais pervasivo em nossa cultura.

O Coringa serve hoje como símbolo de uma “horda de bárbaros” que ameaça a pseudo-civilização capitalista-liberal de seu próprio interior. Presente em todo jogo de baralho, o Coringa é aquele que se recusa a ser um mero peão, just a pawn in their game, e que decide fazer a performance pública de sua própria loucura socialmente determinada. Ele é o espelho sombrio de uma sociedade doente e carcomida. É o Black Mirror encarnado em emblema de uma sociedade adoecida de armamentismo, encarceramento em massa, masculinidade tóxica, incels misóginos, spree killings.

O Coringa é um personagem que está entre as possibilidades de cada um de nós neste enlouquecedor mundo de predomínio do capital desumanizador, perigoso pelo convite que faz ao destravamento das anarquias incendiárias com as quais muitos crêem que podem fabricar um outro mundo a partir das cinzas do velho. O verdadeiro perigo, no entanto, consiste em acreditar na transformação social pela via individual, pela performance midiática de um, pelo efeito viral de alguém que devêm-famoso, quando toda transformação coletiva será sempre obra coletiva.

Não está descartada, porém, em nossa realidade profundamente marcada pela cultura pop, onde o cinema é uma indústria poderosa, que existam irrupções coletivas de um devir-Coringa de pessoas irritadas com uma opressão que, de tão comprida, já não tem nenhuma graça. É o temor das elites diante das vilanias viralizáveis dos oprimidos, cansados de tomarem porrada e dispostos a dar o troco (“dá neles, Damião!”, como no samba de Douglas Germano), o que explica este senso de perigo que envolve a recepção deste filmaço, provocativo e performativo, que é Joker. 

 

SIGA VIAGEM:

JESSÉ SOUZA

CHRISTIAN DUNKER

SLAVOJ ZIZEK

* * * *

P.S. MUSICAL

“THAT’S LIFE” – Frank Sinatra

That’s life (that’s life) that’s what people say
You’re riding high in April
Shot down in May
But I know I’m gonna change that tune
When I’m back on top, back on top in June
I said, that’s life (that’s life) and as funny as it may seem
Some people get their kicks
Stompin’ on a dream
But I don’t let it, let it get me down
‘Cause this fine old world it keeps spinnin’ around
I’ve been a puppet, a pauper, a pirate
A poet, a pawn and a king
I’ve been up and down and over and out
And I know one thing
Each time I find myself flat on my face
I pick myself up and get back in the race
That’s life (that’s life) I tell ya, I can’t deny it
I thought of quitting, baby
But my heart just ain’t gonna buy it
And if I didn’t think it was worth one single try
I’d jump right on a big bird and then I’d fly
I’ve been a puppet, a pauper, a pirate
A poet, a pawn and a king
I’ve been up and down and over and out
And I know one thing
Each time I find myself layin’ flat on my face
I just pick myself up and get back in the race
That’s life (that’s life) that’s life
And I can’t deny it
Many times I thought of cuttin’ out but my heart won’t buy it
But if there’s nothing shakin’ come here this July
I’m gonna roll myself up in a big ball and die
My, my

Dá neles, Damião!
Dá sem dó nem piedade
E agradece a bondade e o cuidado
De quem te matou

Dá neles, Damião!
E devolve o hematoma.
Bate mesmo, até o coma
Que essa raiva, passa nunca, não

Sangue e suor pelo vão.
Sentir mais a dor, vingar
Ver respingar o pavor
Quem bateu, levar

Dá neles, Damião!
Mesmo que peçam clemência
Faz que é tua essa demência
Faz pesar a consciência do plantão

Dá neles, Damião!
Mira no meio da cara
Dá com pé, com pau, com vara
Bate até virar a cara da nação

Sangue e suor pelo vão
Sentir mais a dor, vingar
Ver respingar o pavor
Quem bateu, levar

Dá neles, Damião!
Bate até cansar, e quando cansar…
Me chama.

(Douglas Germano)

A CORAGEM DA VERDADE EM NOVA TEMPORADA: Sobre Greenwald & David Miranda, #VazaJato & #LulaLivreUrgente

Orwell ensina que “quanto mais uma sociedade se afasta da verdade, mais ela vai odiar aqueles que a falam”. Ensina também que “em tempos de enganação universal, falar a verdade torna-se um ato revolucionário.” A distopia de 1984 envolve explicitamente um Partido (encabeçado pelo Grande Irmão) que deseja ser a única entidade a possuir controle total sobre toda a sociedade, e sua inspiração histórica são os partidos Nazista e a perversão do bolchevismo na URSS sob Stálin. Crítica do totalitarismo em forma de romance sci-fi, o livro mostrava a constante falsificação da História de acordo com os interesses da tirania reinante – e, é sempre bom que se lembre, 1984 não era um manual de instruções! Era um manifesto de denúncia.

Aquele contexto orwelliano tem ressonâncias em obras-de-arte posteriores que marcaram época, a exemplo da graphic novel de Alan Moore V For Vendetta, onde as viralização das vertentes anarquistas, através dos sujeitos escondidos por detrás das máscaras de Guy Fawkes, traz à baila um tema crucial: até que ponto é legítimo e direito a insurreição violenta dos oprimidos quando esta se levanta contra a violência estrutural-sistêmica dos opressores? Na HQ de Moore, depois transformada em filme com direção de James McTeigue, um dos ensinamentos principais é este: o governo é que tem que ter medo do povo, e não o povo quem deve temer seu governo.

Ousar sair do rebanho dos conformados e dos obedientes, levantar a voz para dizer uma verdade intragável aos ouvidos dos poderosos, é sempre arriscado. É práxis que tem um preço, é uma ação que suscita reações às vezes intensas, até mesmo psicopáticas e homicidas. É por isso, como Foucault ensina através do exemplo histórico de Diógenes de Sínope, que a coragem da verdade (que os gregos chamavam de parresía) sempre comporta um certo risco.

O que é bastante óbvio: a virtude da coragem exige que o sujeito encare o obstáculo do risco, que vença a ressonância interna deste risco que se manifesta nos afetos do medo. Só é corajoso quem ousa ser verídico pois ele, ao manifestar-se, corre o risco de ter sua língua, ou mesmo seu pescoço, ou até mesmo sua cabeça, cortados. Olympe de Gouges foi guilhotinada por falar contra os jacobinos revolucionários, ousando defender direitos iguais para as mulheres e para as populações dos colonizados africanos sob a opressão do Império Francês…

Hoje, é de praxe que o discurso liberal politicamente correto, conexo à defesa da “democracia capitalista” modelo-ocidental, reclame pela liberdade de expressão como direito inalienável. Desde que fique dentro de certos limites, que não viole os direitos alheios – como, por exemplo, o direito do outro de não ser humilhado em sua dignidade por discursos ofensivos por seu teor racista, misógino ou elitista. De acordo, mas esta mesma atitude liberal “moderada” enche-se de melindres quando uma insurreição popular deixa vidraças de empresas estilhaçadas e caixas eletrônicos em chamas. Aí, aqueles que outrora falavam na sacralidade da liberdade de expressão, pedem pela criminalização e aprisionamento dos “vândalos” – que em seu protesto contra um sistema estruturalmente injusto teriam atentado contra os direitos sagrados das vidraças e dos prédios de bancos.

Em 2018, “o ano em que o Brasil flertou com o Apocalipse”, para emprestar a expressão de Mário Magalhães, tivemos duas tragédias conexas ao tema que estamos discutindo: o assassinato de Marielle Franco e o encarceramento de Luiz Inácio Lula da Silva. Até mesmo os adversários de Marielle e Lula, os que se situam à direita do espectro político, hão de convir que ambos marcam época por sua lábia ousada, ou seja, pelo que ousaram expressar. 

Marielle, criada na favela da Maré, mulher negra e lésbica, teria tudo, caso tivesse respeitado o estereótipo, para não ter “lugar de fala” em nenhum espaço de poder. Ascendeu como um meteoro como agente política, elegeu-se vereadora, envolveu-se por anos nas causas do PSOL, colaborou com Marcelo Freixo, escreveu uma tese de mestrado sobre as UPPs, deliciou-se com a literatura de Chimamanda, fez planos de casar-se com Mônica, e tudo isso fez com voz altissonante, cabeça altiva, postura rebelde, ethos de quem sabe a razão que tem e a relevância do que diz. E ousa dizer, doa a quem doer.

Luiz Inácio também representa o raro caso de uma vida ascensional, que estabelece no universo uma espécie de arco de empoderamento: ele poderia ter sido só mais um zé-ninguém, um anônimo retirante nordestino que, escapando das dificuldades conexas à seca e à miséria em Pernambuco, muda-se para o centrão industrial paulista para se tornar proletário, uma das carnes mais baratas do mercado. Lula poderia ter sido um dentre muitos operários que já perderam dedos, mãos, pés e outros membros por amputação nas linhas-de-montagem.

Lula poderia ter permanecido nas sombras e longe dos holofotes, mas ousou ir além, fez-se líder sindical e estrategista da greve que confrontou a Ditadura Militar no fim dos anos 1970. Ao invés de apegar-se aos comezinhos interesses pessoais, a um restrito projeto-de-vida conservador que tivesse a família e a religião como centros absolutos (atitude sempre potencialmente idiotizante), lançou-se na aventura da transformação social coletiva. Ajudou a fundar um partido político, candidatou-se a cargos públicos, consagrou-se presidente da república eleito e re-eleito, e fica difícil negar que tudo isso tem a ver com a parresía lulista. 

Não há coragem da verdade senão no exercício de tornar público aquilo que é fato, mas muitos recusam a tomar consciência: por exemplo, a farsa da “democracia racial” brasileira, que Marielle soube tão bem denunciar, de modo recorrente, frisando que há uma cor predominante para a pessoa que é violentada, que morre prematuramente nas mãos do aparato repressor do estado, que está preso em nosso superlotado sistema carcerário. O quanto há de racismo em nossa violência sistêmica que banaliza o genocídio da juventude periférica negra fica velado, semi-mascarado, por reações excessivamente sensacionalistas diante de violências específicas perpetradas por indivíduos.

Por isso é tão importante a distinção operada por Žižek entre a violência sistêmica e a violência individual. Quem oprime mais, o capitalismo neoliberal que abandona a população de Nova Orleans após o rompimento dos diques no pós-Furacão Katrina, ou as famílias que desesperadas e famintas cometeram naquela ocasião saques contra mercados e farmácias? Quem oprime mais, o sistema policial-carcerário que fez do Brasil um dos 3 líderes globais do encarceramento em massa, e com explícitas colorações racistas, ou o revoltado mascarado que vai às ruas com vontade de incendiar carros e quebrar vitrines de bancos?

“As pessoas dormem tranquilamente à noite porque existem homens brutos dispostos a praticar violência em seu nome”, dizia Orwell. E outro grande escritor, Mark Twain, segundo Slavoj Žižek em sua obra Violência, “contesta a afirmação de que a resposta violenta das multidões é pior do que a opressão que a instiga”:

“Havia dois Reinos de Terror, se quisermos lembrar e levar em conta: um forjado na paixão quente; o outro, no insensível sangue frio… Nossos arrepios são todos em função dos horrores do Terror menor, o Terror momentâneo, por assim dizer, ao passo que podemos nos perguntar o que é o horror da morte rápida por um machado em comparação à morte contínua, que nos acompanha durante toda a vida de fome, frio, ofensas, crueldades e corações partidos?

Um cemitério poderia conter os caixões preenchidos pelo breve Terror diante do qual todos fomos tão diligentemente ensinados a tremer e lamentar, mas a França inteira dificilmente poderia conter os caixões preenchidos pelo Terror real e mais antigo, aquele indizivelmente terrível e amargo, que nenhum de nós foi ensinado a reconhecer em sua vastidão e lamentar da forma que merece.” (TWAIN, M. “Um ianque na corte do rei Artur”, São Paulo: Rideel, 2011.)

* * * *

PARTE 2 – VAZA JATO E LULA LIVRE

Nos últimos anos, esta saga épica da Coragem da Verdade ganhou novos capítulos e celebridades – como é o caso de Edward Snowden e Julian Assante. Agora, tudo indica que a Operação #VazaJato está destinada a entrar para a História da comunicação social contemporânea, a ser estudada pelos midiólogos em conjunto com os fenômenos Wikileaks e Snowden. Através de sua bem-sucedida operação de vazamento das conversas secretas entre Sergio Moro e os procuradores do Ministério Público Federal, o The Intercept Brasil fez aquilo que espera-se do bom jornalismo: que ilumine a opinião pública com informação bem contextualizada e de interesse de todos, ousando dizer o que Bolsonaro e seus cupinchas não desejam que seja revelado.

Glenn Greenwald, jornalista estadunidense do The Intercept, casado com David Miranda (deputado federal pelo PSOL, que assumiu após o exílio de Jean Wyllys), tornou-se uma espécie de símbolo da Resistência ao ilegítimo e violento desgoverno Bolsonarista. Rapidamente, Glenn e David viraram alvos das milícias digitais e dos assassinos-de-reputação on line, com direito a ofensas homofóbicas e ameaças de morte.

Assim emergiu no “xadrez do Golpe”, para emprestar a metáfora do tabuleiro tão utilizada por Luis Nassif em suas análises, um elemento novo: Glenn Greenwald e sua equipe, como intermediários midiáticos entre a sociedade civil e as antes secretas “tenebrosas transações” que conduziram à condenação e à prisão, em ano eleitoral, de Lula. Não é pouco significativo, neste contexto, que Glenn tenha sido um dos primeiros jornalistas a entrevistar Lula na prisão, em um vídeo com mais de 900.000 acessos:

Sinais de que a cultura popular já acordou para a importância histórica das revelações estão surgindo. Hackeando o samba de Chico Buarque “Quem Te Viu, Quem Te Vê”, o Roni Valk mandou uma pedrada poético-satírica bem na cara do Moro: “Glenn Te Viu, Glenn Te Vê”. Ao parir a paródia, no processo acabou por explicitar uma fenômeno que despontou neste Junho de 2019, a farsa jurídica que costuma ser descrita como um caso típico de lawfare. Confiram a música na interpretação de Leo Almeida Filho:

“Você era a mais bonita das galhofas dessa farsa
Você era o queridinho e ele era seu comparsa
Hoje a gente toda fala da verdade que está nua
Suas noites são em claro porque tem mais falcatrua
Hoje a casa caiu – laiá laiá – já vazaram você
Glenn te viu, Glenn te vê
Quem te enaltece só pode crer na TV
Glenn é do Intercept e a culpa é do PT
Quando o Telegram rolava, você era o mais brilhante
O showzinho da defesa e que in Fux we trust
Pra Deltan deu tanta dica. Juiz Investigador
Pelo que vi tudo indica que mentira é o senhor
Hoje a casa caiu – pra Dallagnol – já vazaram você
Glenn te viu, Glenn te vê
Quem te enaltece só pode crer na TV
Glenn é do Intercept e a culpa é do PT
Hoje é só esperar mais lista com sua demagogia
Quero mais que você vaze com sua conje e companhia
E pra quem tá arrependido, por favor não dê na vista
Bate palmas com vontade, faz de conta que é esquerdista
Hoje a casa caiu – desmoronou – já vazaram você
Glenn te viu, Glenn te vê
Quem te enaltece só pode crer na TV
Glenn é do Intercept e a culpa é do PT…”
(Roni Valk)

Não estava nos planos dos golpistas que fosse nascer, logo no primeiro semestre do “novo” governo, vazamentos de tal monta que explicitam as vergonhas das entranhas da Lava Jato, transformada em instrumento de luta política, pontiaguda lança de lawfare que apunhalou a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva e, por tabela, feriu de morte a legitimidade das eleições presidenciais de 2018.

Vencedor do prêmio Pulitzer de jornalismo, Glenn Greenwald participou ativamente do “Caso Snowden” – o gigantesco leak de documentos secretos da NSA (National Security Agency) que explicitou o grau e a magnitude da espionagem global dos cidadãos comuns praticada à margem da lei pela “inteligência” de Tio Sam. E por aquela mesma CIA e aquele mesmo Pentágono tão especialistas em golpes de Estado e guerras imperiais de agressão fora das suas fronteiras.

Torna-se um pouco ridículo, e extremamente desleal, o ataque bolsonarista contra Glenn, que não é apenas um jornalista de comprovada competência, um premiado agente das mídias digitais, como também já marcou até mesmo o cinema contemporâneo. No filme de Oliver Stone, baseado em fatos reais, sobre Snowden, Glenn é um dos personagens principais, auxiliando o dissidente Eddie Snowden a publicar o material que tinha em mãos em órgãos como o The Guardian, de modo a fazer com que o apito deste whistleblower não pudesse ficar ignorado. Glenn também já esteve com um Oscar nas mãos, de Melhor documentário, por sua parceria na realização de Citizenfour (2014), de Laura Poitras.


Greenwald torna-se agora uma das vozes globais com maior responsabilidade de iluminar as consciências, lá fora, sobre o que se passa aqui dentro – o que pode inclusive ser determinante para a plausível premiação de Lula com o Nobel da Paz. A cada dia que passa, Lula aparece a uma quantidade maior de consciências bem-informadas em nossa Aldeia Global como a vítima de um mecanismo de lawfare que equivale a um crime político infligido contra sua cidadania.

Nos últimos dois meses, tivemos um significativo e massivo #TsunamiDaEducação, uma greve geral em 14 de Junho e agora o maremoto da Lava Jato: sinal de que a “Bolsonada” suscita ampla resistência e rebeldia. Com a #VazaJato bombando em Junho de 2019, o xadrez ganha novos elementos e a saga épica de nossa infindável luta de classes, em acelerado processo de uma polarização que se encaminha para a tragédia (afinal, a tragédia provem do entrechoque de forças irreconciliáveis, que possuem entre elas uma contradição ou conflito que não há remédio que sane).

Aqui n’A Casa de Vidro, onde não acreditemos no mito do jornalismo imparcial, não acreditamos tampouco num jornalismo que minta por interesse. Na medida do nosso possível, estamos na blogosfera e nas mídias sociais para tomar posição na trincheira ao lado daqueles que julgamos como os mais justos e os verídicos. E isto significa, hoje, imbuídos do ethos do “ninguém segura a mão de ninguém”, estar de mãos dadas com Marielle Franco, Jean Wyllys, Débora Diniz, Glenn Greenwald, David Miranda, Luiz Inácio Lula da Silva. Os que têm a ousadia da verdade e assim não permitem que o fluxo da História fique esclerosada na estagnação em que os conservadores desejam imobilizá-la.

TRANSMISSÃO – THE INTERCEPT INTERNACIONAL

RAFINHA BASTOS ENTREVISTA GLENN GREENWALD

DEMOCRACY NOW ENTREVISTA GREENWALD

CONHEÇA ALGUNS ESCRITOS DE GLENN GREENWALD:

GLENN: POR QUE MINHA AMIGA ERA UM POÇO DE ESPERANÇA E A VOZ DOS BRASILEIROS QUE NÃO TINHAM VOZ17 DE MARÇO DE 2018 

Enquanto milhares tomam as ruas do Brasil para protestar contra esse brutal assassinato, Glenn Greenwald lembra a vida e a amizade desta formidável e destemida defensora dos mais pobres.

Original, em inglês, em Independent.

Uma das mais promissoras, carismáticas e amadas figuras políticas brasileiras foi brutalmente assassinada na noite de quarta-feira no centro do Rio de Janeiro, em um crime que as autoridades concluem que foi uma execução política. A vereadora Marielle Franco, de 38 anos, foi assassinada quando seu carro foi atingido por atiradores com nove balas, quatro nas quais em seu crânio. Seu motorista, Anderson Pedro Gomes, de 39 anos, também foi morto.

Franco foi assassinada por volta das 9h30, depois de deixar um evento intitulado “Jovens Negras movendo estruturas”. A polícia acredita que ela foi monitorada por seus assassinos desde que ela deixou o prédio, afinal, apenas assim eles saberiam onde, exatamente, ela estaria sentada no carro, que possuía vidros escuros.

O assassinato de Marielle sacode o Brasil no momento em que o país atravessa um massivo escândalo político, um crise política sem fim visível, anos de recessão econômica e ainda uma espiral de violência epidêmica.

O ousado assassinado ocorreu nas ruas do Rio de Janeiro justamente um mês depois que o presidente brasileiro, Michel Temer, ordenou uma intervenção militar na cidade com o objetivo de estabilizar a segurança. Foi a primeira ação como essa depois dos 21 anos de ditadura, que se encerraram em 1985.

Marielle denunciava veementemente a intervenção militar e recentemente foi nomeada relatora de uma comissão que iria fiscalizar possíveis abusos desta medida.

No entanto, o que é mais notável – e mais devastador – sobre o assassinato de Marielle é como sua trajetória pública é única e improvável: uma mulher negra LGBT, em um país notoriamente dominado por racismo, machismo e conservadorismo religioso, que cresceu em uma das maiores, mais pobres e mais violentas favelas do Rio, o Complexo da Maré.

Ela se tornou uma mãe solteira aos 19 anos, mas, ainda assim, cursou a faculdade de sociologia e se tornou uma das mais efetivas ativistas pelos direitos humanos do Rio de Janeiro, liderando frequentemente perigosas campanhas contra a violência policial, corrupção e execuções extra-judiciais, que atingem os cariocas pobres, negros, moradores de lugares como aquele que ela cresceu.

Assim que ela aumentou sua incidência política, Marielle aderiu ao novo partido da esquerda brasileira, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e, rapidamente, tornou-se uma de suas estrelas.

Em 2016, ela concorreu para um cargo público pela primeira vez como candidata a vereadora e foi eleita como uma votação expressiva. O resultado atordoou a classe política da cidade: pela primeira vez, uma mulher negra da Maré tornou-se a quinta candidata mais votada (eram mais de 1.500 candidatos, dos quais 51 foram eleitos).

O sucesso solidificou o status de Marielle não apenas como uma nova força política a ser reconhecida, mas também com um sopro de esperança para os brasileiros de grupos excluídos que, historicamente, não tiveram voz: os moradores de favelas, os pobres e as mulheres.

Assim que assumiu o cargo, Marielle, imediatamente, usou a sua estrutura para focar naquilo em que sempre foi seu trabalho: investigar, denunciar e organizar campanhas contra a violência policial que incide sobre os moradores negros e pobres.

Dias antes do seu assassinato, ela esteve em Acari, uma favela plana do Rio, para protestar contra os recentes assassinatos de um dos mais conhecidos, violentos e sem-lei batalhões de polícia. O que torna difícil determinar exatamente quem matou Marielle é, precisamente, sua bravura. Ela era uma ameaça para muitas facções violentas, corruptas e poderosas. Assim, a lista de suspeitos e de motivos da morte é longa.

O assassinato de Marielle é uma terrível perda para o Brasil e para o Rio, mas também devastou a minha família. Meu marido, David Miranda (conhecido por ter sido detido, abusivamente, pelas autoridades britânicas no Aeroporto de Heathrow em 2013) foi eleito como vereador do Rio no mesmo momento que Marielle foi, como parte do mesmo partido. As histórias dos dois eram extremamente similares: como Marielle, David cresceu em uma das mais violentas favelas da cidade e, apesar de se tornar órfão, foi o primeiro homem, assumidamente gay, a ser eleito como vereador.

Eles falavam frequentemente em agregar mais candidatos como eles para o PSOL, que, assim como muitos partidos no Ocidente, tem tido dificuldades de atravessar ricos e intelectuais enclaves da esquerda e chegar até às pessoas pobres, aos trabalhadores, às minorias que reclamam para falarem e serem ouvidas. Isso se deve, em parte, porque muito poucos representantes vêm destes lugares pobres.

Os assentos de Marielle e David no plenário da Câmara eram um do lado do outro, e eles se tornaram não apenas camaradas, trabalhando nos mesmo projetos, mas melhores amigos. Assim como ela fez por muitas pessoas de todo o Rio, Marielle tornou-se uma inspiração essencial para nossos filhos, recém adotados. Ela foi uma poderosa professora para mostrar que, mesmo em um país com racismo, desigualdade econômica, preconceitos de todo o tipo que persistem como uma força tóxica, todos os muros injustos podem ser quebrados.

Qualquer um que conhecia Marielle sabia, logo na primeira vez, que falava com alguém realmente especial, uma certeza que se reforçava a cada vez que você passasse algum tempo ao seu lado.

Nesta semana, não apenas o Rio de Janeiro, mas, praticamente, cada cidade do Brasil, centenas de milhares de pessoas se reuniram no luto da perda de um símbolo de esperança tão virtuoso. Mas essas pessoas ainda registraram seu desgosto e raiva pelos reais culpados de sua morte: a elite, política e econômica, do Brasil que engoliu a si mesmo em corrupção, frutos apodrecidos da desigualdade maciça. Enquanto isso, o resto da população é obrigada a se defender em um clima de violência, ilegalidade desenfreada, abuso policial e pobreza destruidora da alma.

Mais trágico do que tudo é que Marielle era exatamente o que o Brasil, repleto de carências, mais precisa: pessoas que entendam a tragédia da maioria dos brasileiros e que estejam empenhados em melhorá-la, não explorá-la. Marielle vive em sua parceira Mônica; em sua filha Luyara Santos, de 19 anos, que escreveu ontem: “Eles mataram não apenas minha mãe, mas também seus 46 mil votos; Marielle vive em sua mãe e também em seus familiares.

Marielle vive em um país e em uma cidade que a amavam, que agora lutam para entender como isso pôde acontecer. Além do mais, o país é desafiado a encontrar uma maneira de garantir que essa morte não se torne outro episódio que reforça uma antiga realidade onde facções violentas matam qualquer um em impunidade. O desafio é para garantir, finalmente, que a morte de Marielle não foi em vão e que ela servirá para forçar milhares e dezenas de milhares de novas Marielles, inspiradas em seu potente exemplo pessoal.

Glenn Greenwald

SAIBA MAIS:

AS REVOLUÇÕES SÃO INFINITAS – As lições da obra prima da ficção científica distópica, “Nós” de Zamiátin (URSS, 1920s)

Escrito na Rússia pós-Revolução Bolchevique, no início dos anos 1920, quando a nação estava em plena Guerra Civil, o livro Nós de Zamiátin (Ed. Aleph, 2017, 344pgs.) já teria entrado para a história da literatura distópica do século XX somente por esta façanha: inspirar a criação de duas das obras mais significativas da literatura no séc. XX: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984 de George Orwell.

No entanto, o livro vai muito além de ser somente o inspirador de obras primas subsequentes, sendo uma obra-prima por seu próprio mérito. E que segue pulsando relevância no contexto atual, quase 100 anos após sua publicação.

George Orwell foi uma das mentes brilhantes do século XX que melhor viu a fulgurância artística e política do magnum opus futurista-distópico de Zamiátin. Em uma resenha publicada em Londres, em 1946, o autor de A Revolução dos Bichos, que nunca escondeu o impacto que a leitura de Zamiátin teve sobre seu fazer artístico e sua atividade política, resumiu os porquês da forte ressonância de Nós na posteridade:

No século 26, na visão de Zamiátin, os habitantes de Utopia perderam a individualidade tão completamente que somente são conhecidos por números. Vivem em casas de vidro (isso foi escrito antes da invenção da televisão), o que permite que a polícia política, conhecida como Os Guardiões, possa supervisioná-los mais facilmente. Todos vestem uniformes idênticos, e costuma-se fazer referência a um ser humano tanto como “um número” quanto “um unif” (de “uniforme”). Se alimentam de comida sintética, e a recreação habitual é marchar em filas de 4 pessoas enquanto o hino do Estado Único toca em alto-falantes. A intervalos estabelecidos, é permitido, durante uma hora (conhecida como “Hora Pessoal”), baixar as cortinas em torno dos apartamentos de vidro… – GEORGE ORWELL (p. 318)

É impressionante a habilidade que Zamiátin, com fina ironia, tem ao delinear os contornos do Estado Único, gerido por um monarca-imperador chamado O Benfeitor –  que tem óbvias ressonâncias nas figuras de autoridade do Big Brother (O Grande Irmão) orwelliano e do Chefe-de-Estado em V de Vendetta (graphic novel de Alan Moore e David Lloyd, adaptada para o cinema por James McTeigue em 2005).

Lá pelo século 26, na fantasia inventada por Zamiátin, todo o globo terrestre foi submetido ao poderio do Estado Único, que agora inicia a colonização de outros planetas. “Nós” tematiza, pois, uma espécie de imperialismo intergalático, subsequente ao período em que se exauriu completamente a possibilidade do bom e velho imperialismo internacional. A abordagem ousada desta temática prenuncia também a obra magistral de outro dos maiores gênios da ficção científica, Ray Bradbury, autor das Crônicas Marcianas e de Farenheit 451 (adaptado ao cinema duas vezes, por Truffaut e Bahrani).

Não tendo mais continentes a pilhar, nações a invadir, riquezas naturais a roubar, massacres e pogroms a perpetrar, o imperialismo capitalista deseja agora lançar seus foguetes para a empreitada de buscar colônias em outros planetas – e é esta a finalidade principal da nave Integral, super-foguete em que trabalha o protagonista e narrador de Nós. Trata-se um livro constituído inteiramente por anotações no diário realizadas pelo narrador em primeira pessoa, um matemático, engenheiro e astrofísico conhecido apenas pela sigla D-503.

D-503 é uma figura que, assim como Winston Smith, o protagonista do 1984 de Orwell, vai se descobrindo como ovelha negra no rebanho, como mosca na sopa das autoridades. Ele descreve-se, a certo ponto, como “um dedo cortado da mão”, saltitando por aí (p. 145).

Ele vai desviando da norma, saindo dos eixos da uniformidade compulsória, adquirindo uma doença perigosa: desenvolve uma alma. E neste mundo as autoridades querem que sejamos todos mecanismos. Que funcionemos como relógios e que todas nossas ações sejam cronometradas e coordenadas pela central estatal, o Estado Único.

Há uma Tábua das Horas destinada a sincronizar as milhões de pessoas que constituem as massas adestradas: todos acordam e dormem, almoçam e jantam, trabalham e se divertem, sempre nos mesmos horários. Tudo se pratica sob a Ditadura do Despertador e do Cronômetro.

Tudo isso se passa numa espécie de território-bunker, todo cercado por um gigantesco Muro – que segrega aquela nação, que está sob rédeas curtas e governada por control freaks,  da natureza selvagem e exuberante que a rodeia.

O protagonista nos conta ainda que esta civilização é herdeira da “Guerra dos 200 Anos”, conflito que atravessou dois séculos e no qual as mortandades em massas foram tão gigantescas que apenas 0,2% da Humanidade sobreviveu (p. 41).

Na fachada, esta civilização é uma Utopia; quando penetramos em suas entranhas, ela se expressa como Distopia. Ela faz propaganda de si mesma como civilização que gera a Felicidade para todos os seus cidadãos – e os inimigos do Estado Único são, por isso, chamados de “inimigos da felicidade”.

Como Orwell bem viu, “o princípio condutor do Estado é que felicidade e liberdade são incompatíveis. No Jardim do Éden, o homem era feliz, mas em sua loucura exigiu liberdade e foi expulso para o ermo. Agora o Estado Único restaurou sua felicidade ao retirar-lhe a liberdade.” (ORWELL, p. 319)

Distopia que denuncia e satiriza o Totalitarismo, “1984” de George Orwell não era um manual de instruções

Em Nós, de Zamiátin, também há um movimento clandestino de libertação que está em pleno levante contra o Estado Único e planeja sequestrar a espaçonave Integral.

O protagonista, D-503, acaba se enredando nas teias de aranha desta conspiração anti-estatal, deste grupo revolucionário em insurreição, cuja natureza e ideologia não se delineiam com clareza.

Sabemos apenas que os revolucionários agem concretamente através do projeto de sequestrar a Integral, numa espécie de apropriação/expropriação de um artefato tecnológico de primeira ordem para o Estado Único. Sabemos também que tomam a iniciativa de dinamitação do Muro Verde – uma entidade que eu imagino parecida com o Muro entre EUA e México, a famigerada La Migra.

O conflito lancinante e alucinatório que atravessa o psiquismo do protagonista do romance, o atormentado D-503, tem a ver também com sua posição desconfortável no meio de um cabo-de-guerra entre Estado e Revolução.

Pois D-503 é um tecnocrata importantíssimo para o Estado Único e tem sob sua responsabilidade o projeto aeroespacial Integral, mas acaba se apaixonando por uma moça, número I-330, que integra o movimento de resistência clandestino. É um tema que depois Bradbury replicará em Farenheit 451 através do romance entre Montag e Clarice.

Por força dos magnetos poderosos do amor, D-503 é arrastado, por parte da travessia que registra em seus diários, à rota da rebelião. Ou pelo menos a atos de insubmissão aos ditames do Estado. D-503 descobre então que “só se pode amar o insubmisso” (p. 105).

Em tempos em que o amor é proibido, amar se torna um ato revolucionário.

Porém D-503 não é um revolucionário, mas um funcionário do Estado, e nem mesmo a força magnética do amor é capaz de vencer o cabo-de-guerra em prol da revolução: o Benfeitor acaba sendo mais poderoso. D-503, que flerta com a revolução, termina no peleguismo. Prefere a cumplicidade com o establishment à insurreição transformadora. Orwell foi ao ponto nevrálgico:

Quando a rebelião irrompe, parece que os inimigos do Benfeitor são, de fato, muito numerosos, e que, além de tramar a derrubada do Estado, eles se entregam, no momento que as cortinas estão abaixadas, a vícios tais como fumar cigarros e beber. D-503 acaba por fim se salvando das consequências de sua própria loucura. As autoridades anunciam a descoberta da causa das recentes desordens: alguns seres humanos sofrem de uma doença chamada imaginação. Agora, o centro nervoso responsável pela imaginação foi localizado, e a doença pode ser curada por meio de um tratamento de raio-X. D-503 é operado e então se torna fácil fazer o que sabia ser sua obrigação desde o início – a saber, denunciar seus cúmplices à polícia. Com total equanimidade, ele observa I-330 ser torturada com gás comprimido sob uma redoma… (ORWELL, p. 320)

O narrador D-503 revela-se um anti-herói. A “terapia” pela qual ele passa para limpar sua psiquê evoca procedimentos da barbárie psiquiátrica, como a lobotomia e o eletrochoque. É como se, na sociedade que Nós descreve, todos os súditos do Estado Único tivessem que ser lobotomizados. Um processo de normalização autoritária, de imposição de uma norma única. À fórceps, enfia-se o conformismo nos comportamentos por meio de um procedimento de dano cerebral patrocinado pelo Estado Único.

Já os rebeldes, os insubmissos, os revolucionários, esses são considerados como matáveis, extermináveis, liquidáveis, como se fossem a escória do mundo – eis o título, aliás, do excelente livro de Eleni Varikas, publicado pela Ed. Unesp, que analisa a figura do pária através da história.

Impossível não lembrar do triste fim dos desviantes, dos transviados das normas sociais vigentes, em obras também distópicas como Laranja Mecânica (livro de A. Burgess, filmado por Stanley Kubrick) e Um Estranho no Ninho (livro de Ken Kesey, filmado por Milos Forman).

Na sociedade retratada em Nós, reina suprema a rítmica do trabalho de Taylor e tudo se justifica com apelo à sacrossanta Razão. Os bem ajustados ao sistema consideram-se ultra-racionais e desejam estar isolados da selvageria que há do outro lado do Muro Verde, onde reina aquele “insensato e repugnante mundo das árvores, pássaros, animais” (p. 132).

O ser humano segregado de sua matriz natural é aquilo que esta civilização consagra. Tanto que o protagonista D-503 julga que os sonhos noturnos representam uma patologia, devido à irrupção do irracional (p. 141-142), e ele desejaria que sua consciência fosse blindada contra o mundo onírico.

O tipo de personalidade que é considerada normal e louvável nos faz lembrar dos ensinamentos do psicólogo social Wilhelm Reich, formulador do conceito de Couraça do Caráter. O Estado Único deseja súditos encouraçados, duros como diamantes, que não devem nunca se deixar derreter por emoções malsãs como o amor e a piedade.

Em uma cena memorável, o foguete Integral está sendo testado e, no processo, um acidente acarreta a morte de 10 pessoas. Porém, “ninguém se abalou”, já que 10 mortos não são nada diante dos 100 milhões que constituem a massa do Estado Único: “só os antigos conheciam a compaixão iletrada: pra nós ela é cômica.” (p. 150)

A ideologia corrente reza que “o amor mais difícil e elevado é a crueldade” (p. 169). E o Grande Benfeitor não tarda a dar amostras deste amor cruel: no Dia da Unanimidade – aquilo que conhecemos por Eleições – o chefe de Estado massacra os que não se juntam ao coro uníssono que o celebra.

A tal Unanimidade é manufaturada a golpes de chacinas contra os que são dissidentes. As eleições só são unânimes pois não fica vivo ninguém daqueles votam contra. O massacre institucionalizado é praticado contra os que denunciam no Grande Benfeitor um crápula e um malfeitor, expondo o reverso de sua máscara de Cidadão de Bem.

A ideologia dominante no Estado Único pede que se imagine a Justiça assim: há dois pratos na balança, o prato do EU e o prato do NÓS. Ora, não é difícil de ver, mesmo que você não seja um gênio da matemática, que o EU não pesa quase nada, é equivalente a 1 grama, enquanto o NÓS pesa mais de 1000 toneladas.

Esta moral simplista quer que nenhum eu tenha direito à sua singularidade e que o nós seja um organismo único, homogêneo, descrito de maneira biologicista como um corpo dotado de milhões de cabeças. Cada súdito é uma célula deste Grande Corpo.

Nos anos 1920, Zamiátin já previa, em contornos gerais, muitos dos elementos da doutrina eugenista-racista do III Reich hitlerista, onde o anti-semitismo genocida estava conexo a uma noção do Povo Alemão, do Volk, como um corpo que precisava ser “purificado” de uma infecção: os inimigos da saúde do corpo coletivo eram judeus, ciganos, comunistas, doentes incuráveis etc.

Em Nós, quem fala pela segunda pessoa do plural? Quem é este sujeito coletivo que se expressa em uníssono? Quem seria senão a voz altissonante da ideologia da classe dominante? “Somos um organismo único com milhões de células”, mas estas células não podem ter autonomia alguma: devem se submeter ao projeto do Estado, que deseja uma massa homogênea, unânime, sem diversidade.

Por isso o “processo eleitoral” descrito em Nós é a negação mais crassa da Democracia. É o consentimento aterrorizado de Todos ao reinado inconteste do Um. É a farsa pública sempre repetida de ritos ensaiados onde a Unanimidade deve sempre ser re-afirmada. Aqueles que destoam, ou seja, que impedem a unanimidade de se constituir, devem ser tratados com máxima severidade pois são doentes: “anormalidade e doença são as mesma coisa”, lê-se na página 179.

A Democracia é uma polifonia, o totalitarismo é uma monofonia. Só se chega à monofonia – negação da música, reinado atordoante da monotonia! – através do silenciamento e do assassinato das vozes dissonantes. Isto fica claro quando o protagonista de Nós descreve a monofonia eleitoral, seu “grandioso uníssono”:

Amanhã assistirei ao mesmo espetáculo que se repete ano após ano e cada vez emociona de uma maneira diferente: o poderoso Cálice do Consentimento, as mãos erguidas em reverência. Amanhã é o dia anual do Benfeitor. Amanhã voltaremos a confiar ao Benfeitor as chaves da inabalável fortaleza da nossa felicidade.

Sem dúvida, isso não é parecido com as eleições confusas e desorganizadas dos antigos, quando – é engraçado dizer – o resultado das eleições sequer era conhecido de antemão. Construir um governo sobre causalidades inteiramente incalculáveis, às cegas – o que pode ser mais sem sentido? E ainda assim, foram necessários séculos para entender isso.

Seria importante dizer que, tanto nisso como em tudo o mais, não temos lugar para quaisquer casualidades, o inesperado não é possível. As próprias eleições têm um significado mais simbólico: recordar que somos um organismo único, poderoso, de milhões de células, que somos, nas palavras do ‘Evangelho’ dos antigos, uma única Igreja. Isso porque a História do Estado Único não conhece um incidente em que, nesse dia solene, uma única voz tenha ousado perturbar o grandioso uníssono. (ZAMIÁTIN, p. 188)

Ora, pouco tempo depois de nosso protagonista dizer ao leitor que a unanimidade está garantida, que sempre foi e sempre será assim, irrompe na cena o imprevisto. O uníssono manifesta-se como farsa quando a resistência insurrecional manifesta sua dissonância.

A ideologia dominante segue justificando que assassinar friamente os que se recusam a juntar-se a Nós é uma medida de higiene, uma política sanitária, destinada a limpar o organismo coletivo de um “pequeno distúrbio provocado pelos inimigos da felicidade” (p. 202), como as autoridades fazem publicar no jornal oficial, a Gazeta do Estado Único.

Autoritário com seus súditos, de quem espera submissão total e consenso unânime (as votações, nesta civilização, são uma farsa completa), o Estado Único, diante de seus opositores e contestadores, mostra a sua face totalitária e genocida.

Isso se explicita quando o Estado Único pratica a tortura e faz uso frequente de uma guilhotina hi-tech. O instrumento para execução da pena capital chama-se “A Máquina do Benfeitor” e há momentos do romance em que Zamiátin rivaliza com Kafka em sua capacidade de pintar um pesadelo judicial que evoca a absurdidade de O Processo ou A Colônia Penal. Orwell impressionou-se:

Há muitas execuções na utopia de Zamiátin. Elas ocorrem publicamente, na presença do Benfeitor, e são acompanhadas pelas odes triunfais recitadas pelos poetas oficiais. A guilhotina, evidentemente, não é aquele antigo e grosseiro instrumento, mas um modelo muito aprimorado, que literalmente liquida a vítima, reduzindo-a a fumaça e uma poça de água límpida em um instante. Com efeito, a execução é um sacrifício humano, e a cena que a descreve recebe deliberadamente a cor das sinistras civilizações escravocratas do mundo antigo. É esta apropriação intuitiva do lado irracional do totalitarismo – sacrifício humano, crueldade como um fim em si, idolatria de um Líder a quem se atribui características divinas – que faz do livro de Zamiátin superior ao de Huxley (Brave New World). – ORWELL (p. 321)

Denúncia de um totalitarismo que depois Hannah Arendt se devotaria a explicar e elucidar em seus clássicos estudos como Eichmann em Jerusalém As Origens do Totalitarismo, a obra de Zamiátin permanece atualíssima, infelizmente.

Pois ainda pende sob nossas cabeças a espada de Dâmocles da guilhotina totalitária, desta vez sob a forma de uma espécie de fundamentalismo de mercado, anarco-capitalista e neoliberal, globalizado e sem controle, que encontrou em Naomi Klein uma de suas críticas mais penetrantes e perspicazes. A Doutrina do Choque é um manual essencial para a compreensão de nossos tempos. Tempos estes em que podíamos dizer a recém-chegados de outro planeta: Bem-Vindos à Distopia do Real! (Zizek)

Muito antes de Naomi Klein, Arundhati Roy ou de Zygmunt Bauman nos fornecerem muitas das chaves para a decifração da sociedade capitalista atual, Zamiátin denunciou a intentona totalitária de inventar um mundo onde o único está em guerra contra o múltiplo, o homogêneo em guerra contra o diverso, e o autoritarismo dos lucros em guerra contra as liberdades civis… Tudo disfarçado por trás de uma fachada alegre como Mickey Mouse ou Ronald McDonald: a máscara da Sociedade da Felicidade.

Vale ressaltar, para terminar, que nada tenho contra a noção de Felicidade Pública como conceito político – a Bolívia sob Evo Morales é um exemplo da possibilidade de um socialismo focado na felicidade pública e na sabedoria Pachamâmica. Mas o sistema atualmente hegemônico, nosso status quo, fala de uma felicidade como possibilidade apenas para indivíduos isolados e em competição por este recurso escasso. Prega que o acesso à felicidade se dá pelas escadarias estreitas e acessos limitados da Meritocracia, a Sociedade das Áreas VIP.

Hoje vivemos sob a ditadura “branda” de um fundamentalismo capitalista neoliberal que, anti-democrático e excludente, concentrador de capital de maneira exorbitante, prefere dizer que a Felicidade é para poucos, para escolhidos, exclusivo para empreendedores capitalistas.

Apenas algumas migalhas caem da mesa para os microempreendendores do neocapitalismo, com seu trabalho Uberizado, em que ter uma máquina de cartão de débito permite que você “seja seu próprio chefe” e onde somos convidados a engolir o capim de uma ideologia que diz: “conquiste para si sua felicidade, e pague em 12 prestações no cartão de crédito com pequeno juro mensal!”…

Aquela felicidade que hoje em dia nos pregam os apóstolos do Livre Mercado e do Estado Mínimo está historicamente vinculada a um modelo de regime social que não costuma gostar do processo democrático, visto que adora subir ao poder depois de perversos golpes de Estado. Foi assim na instalação do Laboratório Neoliberal em 1973, no Chile, com a derrubada violenta da União Popular de Salvador Allende; e todas as ditaduras militares instauradas antes disso na América do Sul (Guatemala, 1954; Brasil, 1964; Argentina, 1976) tiveram a ideologia dos Chicago Boys – os neoliberais ao estilo Milton Friedman e Gary Becker – como motor do empreendimento golpista.

Hoje em dia, é difícil não cair na gargalhada, ou não se indignar com a má fé, daqueles que dizem que o neoliberalismo respeita a democracia…

Hoje, Zamiátin ensina-nos a desconfiar de toda sociedade que busque decretar o fim da História e procure tornar o mundo homogêneo. Querem hoje que sejamos todos consumidores, e não mais cidadãos; espectadores, e não mais agentes.

Pode-se dizer que Zamiátin criou uma obra irrotulável, um livro difícil de domar: não é nada fácil colar uma etiqueta classificatória neste livro, até mesmo porque ele reúne uma mescla de ideários que, de maneira um pouco simplista, poderíamos dizer que se enquadram no antagonismo que opõe Liberalismo e Comunismo através da história.

O Liberalismo clássico, aquele de figuras como Locke, Stuart Mill e Tocqueville, era um movimento burguês contra a tirania e o despotismo do Antigo Regime. Reivindicava os direitos civis individuais, entre eles o direito à privacidade, compreendido como o direito de não ser incomodado pelo monstro do Estado – o Leviatã conceituado por Thomas Hobbes – em excesso.

De certo modo, Nós denuncia uma sociedade em que os direitos reivindicados pela tradição liberal não existem, como provam as casas de vidro e as tábuas das horas, sinal de uma gestão estatal invasiva e altamente despótica. Uma leitura liberal de Nós pode apontar as similaridades entre o Estado Único e o Estado Bolchevique, então em sua constituição primordial. O argumento seguiria sendas trilhadas, muitas décadas depois de Zamiátin, por Paulo Leminski, que falará de uma “unanimidade compulsória” que teria marcado o bolchevismo.

Mas Nós não é um panfleto pró-liberal, como são os livros de Ayn Rand. Nós quer também debater a tese comunista, em atuação na época histórica onde Zamiátin escreveu, na plena vigência e efervescência do regime que decretou “todo poder aos sovietes!”

A ideologia dominante, em que o Grande Benfeitor parece-se muito com a figura do velho Czar, diz que qualquer levante revolucionário é inútil: “é uma loucura como tapar a boca do cano de uma arma com a mão e achar que é possível deter o tiro.” (p. 221)

Por séculos, o czarismo disse aos seus súditos que ele era inderrubável, que jamais seria vencido, até que em 1917 tudo colapsou e um mundo novo começou a ser forjado, com os bolcheviques liderando as massas proletárias russas a partir dos escombros do velho mundo.

Escrevendo ainda nos tempos em que Lênin encabeçava o empreendimento revolucionário bolchevique, o livro de Zamiátin é também célebre por veicular a tese bastante Trotskysta da revolução permanente. É óbvio que, tendo sido escrito antes da contra-revolução Stalinista tomar conta dos processos revolucionários desencadeados em 1917, o livro de Zamiátin não poderia ter como intenção a denúncia da URSS pós-1929.

Se este livro pode ser dito visionário, é pois foi capaz de criticar o Stalinismo sem nem saber que o estava fazendo, foi anti-stalinista avant la lettre: Zamiátin lançou em 1920 palavras que, nos anos 1930, atingiam em cheio o coração do pesadelo burocrático e genocida que transformou Stalin em um “Benfeitor” que, na real, enterrou a revolução real – internacionalista e permanente – com a mesma brutalidade com que lidou com Trotsky, liquidando-o fisicamente e buscando depois apagá-lo da História…

No fim das contas, o romance de Zamiátin comunica fortemente a noção de que as revoluções não vão parar. Não há o pretenso “fim da História” pregado por Fukuyamas e congêneres – a História segue, e no futuro talvez ninguém mais vá se lembrar de que houve alguém chamado Fukuyama. Enquanto houver tirania, opressão, espoliação, injustiça, as revoluções serão infinitas.

D-503: Isso é inconcebível! Um absurdo! Por acaso não está claro que o que você está começando é uma revolução?

I-303: Sim, uma revolução! Por que isso é absurdo?

D-503: É um absurdo porque uma revolução não é possível. Porque a nossa revolução foi a última. E não é possível haver outras revoluções. Todo mundo sabe disso.

I-303: Meu querido: você é um matemático. Inclusive mais do que isso: um filósofo da matemática. Então: fale-me sobre o último número… O último, o mais elevado, o maior.

D-503: Mas, I, isso é um completo absurdo. Os números são infinitos, que último número é esse que você quer?

I-303: E que última revolução é essa que você quer? Não há última, as revoluções são infinitas. Último é para as crianças: o infinito as assusta, e é imprescindível que as crianças durmam tranquilamente à noite… (ZAMIÁTIN, p. 236)

Nós, que não somos mais tão crianças, já acordamos para o fato de que as tiranias nunca se instalam sem resistência, que as opressões nunca reinam sem insurreições, que as ditaduras nunca deixam de suscitar guerrilhas: nós sabemos que nenhuma das configurações societárias é imutável, pois tudo é dialético e dinâmico, pois tudo está em disputa e os dados ainda estão rolando. De modo que vivemos na certeza e no entusiasmo de que, como diz a rebelde de Zamiátin, ecoando Trótsky e prenunciando Che Guevara, as revoluções são de fato infinitas.

Eduardo Carli de Moraes
http://www.acasadevidro.com

 

P.S. Soube pelo site A Escotilha que Existe um filme de 1982, inspirado no romance, criado pela rede de televisão alemã ZDF, chamado Wir e disponível na íntegra no Youtube com legendas em inglês: