Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
Em 1968, uma das mais importantes bandas da história do Chile, o Quilapayun (que significa “Os Três Barbudos” em língua mapuche), lançou seu álbum Por Viet Nam. Ele foi publicado pela Dicap (Discoteca Del Cantar Popular), iniciativa ligada ao Partido Comunista do Chile, que teve Víctor Jara como diretor artístico e foi crucial para todo o movimento da Nova Canção Chilena.
Em sinergia com os movimentos cívicos nos EUA que se insurgiam contra a agressão imperialista contra o Vietnã, o Quilapayún denunciava a “águia do imperialismo” na primeira canção do álbum, para logo na sequência abordar a Guerra Civil Espanhola (1936 – 1939), que engendrou a ditadura de Franco, em “Que La Tortilla Se Vuelva”.
Após visitar, através das canções de protesto, as lutas dos povos no Vietnam e na Espanha, realizam uma “canção fúnebre” em homenagem a Ernesto Che Guevara, médico argentino que havia participado da revolução em Cuba (que triunfou em 1959) e havia se mobilizado também em prol da libertação do Congo e na Bolívia, antes de ser brutalmente assassinado em 9 de outubro de 1967, em La Higuera.
Já não surpreenderá a ninguém, dado o teor das canções, que este tenha se tornado um dos LPs que os “milicos” e carabineiros mais se esforçariam por quebrar e incinerar após o Golpe de Estado de 11 de Setembro de 1973.
O disco se tornaria alvo de repressão, de sanha exterminista, por parte da ditadura Pinochetista. Após a destituição violenta do governo da União Popular, encabeçado por Salvador Allende, o Quilapayún passou a ser uma espécie de “inimigo do Estado”. Por ter sido, antes, uma força cultural alinhada às forças da União Popular, vitoriosas nas eleições de 1970, e que só pôde governar até o dia fatídico em que as Forças Armadas do Chile traíram a democracia e se fizeram as serviçais dos EUA naquele coup d’état que, além da democracia e das liberdades civis, também levou a vida de Allende e o direito de um povo seguir cantando.
A carnificina grotesca e brutal que Pinochet dali em diante comandaria também tinha a ver com uma “guerra cultural”, bem ao gosto do que a extrema-direita Bolsonarista e Olavete hoje defende. No Chile Pinochetista, os Quilapayuns e Victor Jaras, os Inti-Illimanis e as Violetas Parras, tinham que ser silenciados; as obras deles tinham que ser destruídas, as mãos deles tinham que ser amputadas pra que nunca mais tocassem violão ou piano; os fuzis dos milicos tinham que encher as bocas e línguas de balas para que estes “esquerdistas” nunca mais ousassem soprar uma zampoña ou cantar uma décima libertária!
A cada vez que um brasileiro, ostentando sua ignorância como se mérito fosse, despreza a produção cultural dos pueblos latinoamericanos, desinteressando-se de qualquer contato com uma obra artística como esta, é de novo a vontade tirânica dos Pinochets que triunfa; mas a cada vez que estas músicas ressurgem, bombam alto nos alto-falantes, aí é que gritam de novo na cara dos opressores os agentes culturais que estiveram devotados às causas da beleza, da verdade e da justiça. Aí podemos celebrar que as mordaças das ditaduras, por mais que tenham tentado, fracassaram em silenciar o que precisava ser dito e o que prossegue querendo ser em coro cantado – como provam as fenomenais apresentações do Inti-Illimani com “El Pueblo Unido Jamás Será Vencido” na Santiago conflagrada de 2019.
Ouvir Quilapayun é um ato de resistência, e tocar um disco desses bem alto, para que toda a vizinhança ouça, é mais que democratização da boa música: é enviar pelos ares, re-ativada, a potência de uma arte que nada tem de “isentona” nem de cúmplice de tiranos e fascistas. Uma arte que atua no campo da história como força colaborativa e “coro fecundo” que se levanta “exigindo liberdade”. Exigir liberdade é o ofício deste canto, garantem em “Himno De Las Juventudes Mundiales”, uma canção emblemática do ano 1968 – este que, para além do eurocentrismo que nos leva sempre a lembrar das Jornadas de Maio em Paris, teve no México e no Brasil episódios históricos igualmente importantes.
As tiranias que, em 1968, massacraram os manifestantes mexicanos às vésperas das Olimpíadas ou que deram o golpe mais brutal nas liberdades civis dos brasileiros com o AI-5 (de Dezembro de 1968), sempre precisaram instaurar um clima de censura cultural exacerbado, exilando artistas ou mesmo praticando assassinatos contra os dissidentes contraculturais. Os exílios de Caetano e Gil, com a Tropicália trucidada em pleno vôo pelo AI-5, são emblemas disso no Brasil.
No belo documentário de Nanni Moretti, “Santiago, Itália”, em uma cena chave, polvilhada de melancolia e indignação, este vinil do Quilapayún queima em uma fogueira acesa por militares armados com fuzis. É uma cena que evoca lembranças das fogueiras em que os nazistas queimaram a literatura “degenerada” dos judeus, comunistas, ciganos e outros “párias” que perseguiram e exterminaram. Evoca também a Inquisição incinerando Brunos e bruxas.
01. Por Viet-Nam 00:00
02. Que La Tortilla Se Vuelva (De La Revolución Española) 02:20
03. Cancion Fúnebre Para El Che Guevara 04:32
04. Mamma Mia Dame Cento Lire (Del Folklore Italiano) 07:35
05. La Zamba Del Riego 09:57
06. Cuecas De Joaquín Murieta 12:45
07. Himno De Las Juventudes Mundiales 14:18
08. El Tururururú (De La Revolución Española) 16:30
09. Que Dirá El Santo Padre 18:55
10. Canto A La Pampa 21:36
11. La Bola 27:23
12. Los Pueblos Americanos 30:34
Jamais teremos uma relação apropriada com o processo histórico se não agirmos simultaneamente como “construtores do futuro e intérpretes do passado”, escreve Nietzsche na Segunda Consideração Extemporânea [1]. E eu adicionaria: jamais conheceremos o passado adequadamente se não atentarmos para a voz dos vencidos. Temos que aprender a ler a sina multiforme dos derrotados. O fato de Rosa Luxemburgo ter sido assassinada não significa que ela não estivesse certa, e errados os seus algozes. Como bem disse Daniel Bensaïd: “a sua derrota não prova que os vencidos não tivessem razão.” [2]
É um pouco por aí que transita também o Darcy Ribeiro naquela sua célebre auto-celebração, em que classifica-se como fracasso em tudo: um ser humano integrante dos vasto rol dos “derrotados”:
Se não ouvirmos a voz dos vencidos, nosso relato histórico terá a falsidade de todas as lorotas contadas pelos vencedores, de todas as falácias espalhadas pelos que triunfaram sobre o cadáver dos assassinados, sobre o silêncio dos amordaçados, sobre os gritos dos torturados.
Sendo os papagaios da História Oficial, ou seja, acreditando que existe apenas o Tempo dos Vencedores, perdemos o essencial: aquilo que no passado é semente ainda não desabrochada. Paulo Freire se referia a si mesmo como “andarilho da utopia”, em permanente busca de partejar “inéditos viáveis”: aquilo que nunca houve, mas pode perfeitamente vir a ser. Aquilo que não é impossível, mas realizável, desde que o ser humano saiba agir coletivamente para construi-lo.
O inédito viável – aquilo que o Fórum Social Mundial chama em seu slogan de “Um Outro Mundo Possível” – não pode prescindir de um estudo interessado da História. Pois a possibilidade de construção deste alter-mundo, desta outra realidade de que nos fala o altermundialismo, tem que estar também no nosso trato com o passado, ou seja, é necessário instituir um pacto com os vencidos, o que não significa nunca que estaremos resignados à derrota. Nosso pacto é com os vencidos por enquanto, e nossa revolta é contra os vencedores desumanizadores, opressos, injustos, fratricidas.
A pista para a construção de uma outra História possível está também nas pegadas daqueles que resistiram “à mecânica nazi e à engrenagem staliniana” (Bensaïd, op cit, p. 210), os que se recusaram a obedecer os ditames de Pinochets, Francos e Médicis… Os que tombaram defendendo a liberdade, os que foram assassinados pregando a paz (que emblema mais forte do que Gandhi, ou John Lennon?), os que perderam a vida sob balas assassinas ou amarguraram cárceres duros impostos por ditaduras, tiranias, governos ilegítimos, golpes de Estado (Mandela, Pepe Mujica, Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva, sendo apenas alguns dos exemplos mais recentes).
Patricio Guzman, Cineasta Chileno, no Centro Cultural Gabriela Mistral. Foto: Reinaldo Ubilla.
E o cinema-do-real: é capaz de ser uma janela para esta audição atenta das vozes pretéritas? Assistir a filmes documentais pode nos elevar a consciência acima de seu nível comum de compreensão histórica? Estou convicto que sim, e uma das obras que é mais intensamente responsável por essa aposta num aprendizado do passado propiciado pelo cinema é aquela do cineasta chileno Patricio Guzmán.
Nostalgia Pela Luz, parece-me, é um dos mais importantes documentários latino-americanos realizados no continente após o colapso das ditaduras militares – e só tem equivalente à altura, na filmografia brasileira, em obras como Memória Para Uso Diário e Orestes. Guzmán é o responsável pelo épico documental A Batalha do Chile, além de tratados fílmicos sobre Salvador Allende e Augusto Pinochet, e é amplamente reconhecido como figura pública de percepção relevante sobre a história de nosso continente,ao pesquisar e questionar a fundo as ocorrências e os resquícios da Ditadura em seu país. No Brasil, o grande Silvio Tendler vem realizando uma magistral obra também deste teor.
O cinema chileno, nestes últimos anos, tem realizado com admirável maestria um resgate histórico pelo viés dos vencidos: em excelentes filmes como Dawson – Ilha 10 (click e leia a resenha em Cinephilia Compulsiva)e Colônia – Amor e Revolução (Florian Gallenberger, 2015),pudemos conhecer em todo seu horror os campos de concentração pinochetistas, desde o enclave germano-fascista que foi a “Colônia Dignidade” ao presídio onde foram enjaulados, após 11 de Setembro de 1973, os principais líderes da União Popular.
Já em No (um filme de Pablo Larraín, 2012),tivemos um pujante retrato, baseado em história de Antonio Skármeta, do plebiscito popular que tentou enterrar a Era Pinochet com um “Não!” em 1988.
Neste contexto é que refulge Nostalgia pela Luz. Guzmán nos leva para uma temporada de reflexão profunda no Deserto do Atacama. O Atacama, no Chile, é o melhor observatório de estrelas da Terra. Telescópios formidáveis estão ali instalados, perscrutando os céus. São janelas abertas para o cosmos. Buracos-de-fechadura por onde os terráqueos espiam os mistérios celestes.
No Atacama têm-se acesso também a um Portal para o Passado. Enquanto os astrônomos tentam responder aos insondáveis enigmas sobre as Origens do Universo – como e quando surgiram as estrelas, os planetas, as galáxias… – os arqueólogos debruçam-se sobre os desenhos sobre as pedras, ali incrustados mais de 1.000 anos atrás pelas tribos nômades pré-colombianas que ousavam atravessar aquela imensidão de secura.
Olhando a Terra do espaço, podemos notar que aquele território na América do Sul se distingue pelo teor amarronzado, contrastante com a vastidão azul dos oceanos: o Atacama, visto lá de cima, é um deserto que impressionaria o OVNI alienígena por sua extensão. Quase sem umidade em sua atmosfera, com firmamento livre de qualquer nuvem, o Atacama fornece aos olhares humanos uma das melhores oportunidades para espiar o carrossel das constelações. A transparência do éter faz com que não haja obstáculos entre as estrelas e as retinas.
Estima-se que cerca de 30.000 chilenos tenham sido torturados durante o truculento governo que tomou conta do país a partir do golpe de estado de 11 de Setembro de 1973, quando o governo de pendores socialistas de Salvador Allende foi derrubado na base da força bruta, com o devido auxílio dos EUA.
Até hoje viúvas enlutadas vagam pelo deserto a procura dos ossos e crânios dos seus parentes, assassinados pelos militares por serem opositores políticos. Mulheres traumatizadas, de olhos molhados, incapazes de esquecer da ausência dos que amaram, querendo vencer o poder do olvido e erguer um monumento em nome da memória.
Nostalgia Pela Luz, o brilhante documentário de Patrício Guzmán, consegue transitar por todas estas áreas do conhecimento humano – a astronomia, a arqueologia e a história – guiado pelo mistério das estrelas e da memória. Estes mistérios estão conectados: sempre que nossos cérebros formam uma imagem mental de uma estrela, sempre que nossos olhos entram em contato com a luz provinda de uma, estamos diante da paradoxal presença do passado.
Os 8 minutos que os raios do Sol demoram em sua jornada até a Terra, mesmo sendo velocípedes feito um Papa-léguas (300.000 mil quilômetros por segundo é uma velô de deixar qualquer Schumacher humilhado!), provam-nos algo fascinante: o que vemos no céu são emanações de distantes rincões do Universo que talvez não existam mais. Emanações não somente das lonjuras, mas das próprias entranhas do passado. Qualquer estrela que produziu aquela luzinha vaga-lumeante nos céus pode estar morta há muito tempo; mas não suas luminosas reverberações.
Está aí a conexão entre estes dois pesquisadores aparentemente tão diferentes, o astrônomo e o arqueólogo: ambos lidam com o passado e tentam interpretá-lo de modo a esclarecer o mistério das origens – seja da raça humana, seja do planeta, da galáxia e do universo que nos abriga.
O Gênese bíblico, para estes audazes perscrutadores do firmamento e da poeira terrestre, já foi descartado como a superstição anti-científica que é; o Big Bang é o verdadeiro mistério a decifrar. Carl Sagan, em um dos episódios mais acachapantes de Cosmos, sugere que não há nada neste planeta que não tenha sido gerado, centenas de milênios atrás, no útero das estrelas.
Um dos entrevistados pelo documentário de Guzmán, seguindo na trilha saganiana, pede ao espectador que medite sobre o seguinte: de onde saiu o cálcio presente em seus ossos? Ora, a resposta talvez seja esta: o cálcio que todos temos em nossos ossos é provindo das estrelas. “We’re made of starstuff!“, exclamava quase em epifania um sorridente Sagan, nos anos 1980. Pesquisas mais recentes parecem dar razão a ele. Cada vez parece mais absurdo conceber uma separação rígida entre nós e o universo – ele lá, nós aqui, e entre ambos algum abismo intransponível.
Não há esse abismo: há sim uma inegável conexão que nos conecta ao cosmos de modo irrecusável. A matéria que nos constitui é matéria cósmica, lançada pelos ares pela Grande Explosão primeva. Aquilo que somos, devemos às estrelas, sem às quais nunca teríamos surgido nem poderíamos sobreviver.
A imagem grandiosa de um Universo exuberante, repleto de energia, em eterno fluxo sem fim, emerge também deste filme. Uma moça chilena, que teve os pais assassinados pela ditadura Pinochet, conta às câmeras como encontrou na astronomia uma anestesia para suas feridas, um bálsamo para seu luto. Ela foi uma filha que, na primeira infância, perdeu os dois pais para a maquinaria assassina da ditadura, e que depois se sentirá sempre como alguém “com um defeito de fábrica”.
Ela nos diz que passou a enxergar esta traumática perda com um senso de seguir-avante, ao invés de render-se à depressão ou buscar o suicídio. E ela o fez contemplando a corrente cósmica em que a matéria é perenemente reciclável e onde não há nada eterno a não ser o moto-perpétuo em que tudo precisa desfazer-se, mesmo as estrelas, para que o novo possa formar-se.
“The cosmos was originally all hydrogen and helium. Heavier elements were made in red giants and supernovas and then blown off to space, where they were available for subsequent generations of stars and planets. Our sun is probably a third generation star. Except for hydrogen and helium, every atom in the sun and the Earth was synthesed in other stars. The silicon in the rocks, the oxygen in the air, the carbon in our DNA, the gold in our banks, the uranium in our arsenals, were all made thousands of light-years away and billions of years ago. Our planet, our society and we ourselves are built of star stuff…” – CARL SAGAN
Ali, nas imensidões desérticas do Chile, pode-se adentrar um Passado de múltiplas faces, ou melhor, podemos experenciar ontens de várias idades. É essa a grande sacada da obra, esta mescla de História humana e História que transcende o curto período em que nós, humanos, neste rincão cósmico existimos.
Enquanto astrônomos buscam decifrar a luz que, para chegar a nossos telescópios, viajou por alguns milhões de anos, à estonteante velocidade de 300.000 quilômetros por segundo, vagam também pelo território as traumatizadas pessoas que buscam os restos mortais de seus entes queridos que foram “desaparecidos” pela Ditadura Militar instaurada pelo golpe militar de Setembro de 1973.
Cineasta Patricio Guzman, diretor de um dos grandes documentários na história do cinema latino-americano: “A Batalha do Chile” (3 partes)
Para nos maravilhar e nos fazer refletir com a vastidão do tempo pretérito, Guzmán explicita, com imagens de arquivo mas também através das sobrevivências do horror no tempo presente, a brutalidade de um regime que torturou pelo menos 30.000 pessoas (ainda que alguns estimem que esse número possa ser de até 60.000 torturados) e que assassinou milhares de ativistas políticos e artistas.
A câmera documental de Guzmán, talvez inspirada por obras-testemunho como a série Shoah de Claude Lanzmann, vai captar imagens dos campos de concentração do regime Pinochetista. Rodeados por arame-farpado, os presos políticos eram encarcerados, no Atacama, em antigas moradias abandonadas pelos mineiros do salitre que ali penaram, no século 19, em um trabalho de condições análogas à da escravidão.
Guzmán consegue conversar com um idoso que esteve encarcerado nos anos de 1973 e 1974, e ele conta que a observação astronômica das estrelas acima de suas cabeças era uma atividade que lhes permitia conservar sua “liberdade interior” em meio às degradantes condições de vida no campo de concentração. A Ditadura proibiu os detentos de olharem para o céu.
Um dos elementos que faz a imensa importância desse filme está no chamado, ou na convocação, que ele nos lança para que tomemos conhecimento sobre o que já passou, sabendo que o processo humano de desvendar todos os outroras envolve um esforço transdisciplinar. O historiador, que investiga o passado humano recente, difere do arqueólogo, que se debruça sobre um passado mais antigo, por exemplo sobre os resquícios de sociedades pré-colombinas que deixaram pinturas nas pedras.
Já o geólogo, ou o pesquisador de fósseis, quanto mais se aprofundam em suas pesquisas e quanto mais adentram o ventre do planeta, mais descobrem na crosta da Terra os resquícios atuais de um passado terrestre que se afasta milhões de anos atrás de nós.
Porém são os astrônomos aqueles que vencem todos os outros profissionais da memória no quesito “velhice” do passado investigado: através dos mega-telescópios, com seus olhos de vidro, atentos às estrelas visíveis através dos límpidos céus do Atacama, os astrônomos investigam uma luz que pode ter sido emitida há bilhões de anos atrás. Com equipamentos hi-tech e equipes integradas por pessoas de várias nacionalidades, sondam as energias cósmicas em busca de pistas para entender a origem do Universo, as ocorrências do Big Bang, as formidáveis explosões primordiais que, como supõe os astrônomos de hoje em dia, ainda hoje ressoam e repercutem.
O Big Bang, nesta perspectiva, não é um evento que ficou no passado, enterrado, separado de nós para sempre, mas sim o início daquele processo de que somos ainda os contemporâneos. A explosão primeva não passou: ainda podemos ouvir seu estrondo a esparramar-se pelo espaço cósmico, com mais decibéis do que milhões de bandas de rock humanas tocando juntas com os amplificadores todos do planeta Terra com o volume no máximo. Um punk rock pode até ser um estrondo, mas estrondoso mesmo é o cosmos.
E, no entanto, uma certa melancolia tinge o filme de Guzmán – que aqui realiza uma práxis documentarística de clima afetivo bem próximo ao desalento lúcido de Werner Herzog. É que Guzmán sente que o Chile não está realizando o trabalho que devia de resgatar devidamente o seu passado. Em especial no aspecto histórico, há a vigência de uma certo ocultamento dos horrores vinculados ao golpe de Estado que derrubou a União Popular, encabeçada entre 1970 e 1973 por Salvador Allende.
Todas as violações dos direitos humanos, todo o terrorismo de Estado, ficou abafado debaixo de uma pilha de negacionismos e de recusas ao conhecimento. Guzmán acusa o Chile de querer virar seu rosto somente na direção do futuro, deixando de prestar atenção ao passado recente e sua procissão terrível de ossadas desaparecidas.
Nesse contexto, as mulheres que vagam pelo Atacama, em busca dos ossos daqueles que desapareceram na era ditatorial, não podem ser simplesmente varridas do quadro sócio-político como se não passassem de casos psicopatológicos, gente ressentida que não sabe enterrar o passado e seguir em frente. Essas mulheres representam uma práxis de resgate da memória que tem seu principal motor nos traumas sofridos e nunca esquecidos.
Pois a sociedade chilena, assim como a brasileira, infelizmente oferece oportunidades demais para uma re-traumatização dos sujeitos outrora traumatizados. Por exemplo: o trauma novo de encontrar, caminhando pelas ruas, livre e solto, completamente impune, um general que, nos tempos de Pinochet, “trabalhava” como torturador e assassino de escritório. O que re-traumatiza é a impunidade daqueles que, para lembrar a apropriadíssima expressão de Hannah Arendt, realizaram e realizam os “massacres administrativos”.
“Diante dos seus juízes, Eichmann confessa-se vencido. É um facto. Mas não culpado: como bom nazi, supõe que o dever de obediência o descarta de qualquer responsabilidade. Não que ele não tivesse consciência, precisa Hannah Arendt, mas porque a ‘sua consciência lhe falava com uma voz respeitável, a voz da sociedade respeitável que o envolvia. Obedecia às ordens como cidadão respeitoso da lei. A questão terrível está mesmo aí: os nazis ter-se-iam sentido culpados se tivessem ganho?’ [4] Ninguém em Jerusalém, sublinha Arendt, teve ocasião de pôr a questão aos dignitários judeus: por que é que haveis colaborado na exterminação do vosso próprio povo? ‘Por que a lição destas histórias é simples, ao alcance de todos: é que a maioria das pessoas inclina-se diante do terror, mas alguns não se inclinam… Humanamente falando, não é preciso mais, e não se pode pedir razoavelmente mais para que eles planeta permaneça habitável.” [5]
Instigado por Guzmán a fazer uma comparação entre o trabalho de astrônomos e das mulheres que buscam seus parentes desaparecidos, um dos cientistas entrevistados em Nostalgia Da Luz diz que os casos são incomparáveis, e isto pela intensidade dos afetos de tormento que dominam os sujeitos traumatizados pela perda. Segundo ele, os astrônomos podem passar os seus dias de trabalho observando o passado, ou seja, a luz das estrelas, e depois podem ir para a cama e dormir tranquilos; já as mulheres que buscam os restos mortais daqueles que perderam estão muito mais na condição trágica de Sísifos, fazendo um trabalho inglório, em que a ânsia de aclaramento do passado não se satisfaz e, após os trabalhos fatigantes e mau-sucedidos, nenhum sono tranquilo e sereno as espera.
O que espera aos sobreviventes de prisioneiros políticos, assassinados e desaparecidos aos milhares nos 17 anos de ditadura, é muito mais o pesadelo continuado de um presente em que, ao redor, forças funestas desejam barrar o acesso ao passado, recusando a entrada de uma luz curativa, um dos temas também do excelente livro Relampejos do Passado, de Amanda Brandão Ribeiro (Ed. Unifesp, 2017).
Guzmán vai atrás das histórias específicas dos parentes de desaparecidos políticos. Entrevista a irmã de Jose Saavedra Gonzalez, assassinado com dois tiros na cabeça. A irmã encontrou apenas fragmentos de ossos, pedaços de crânio, peças esparsas de um quebra-cabeças que nunca será montado em sua inteireza.
Estas mulheres, com lágrimas nos olhos, cabelos bracos na cabeça, que caçam os ossos pelo deserto, talvez sejam um símbolo emblemático da tragédia da América Latina sob suas ditaduras. Uma das entrevistadas por Guzmán, se questionada se vai seguir em sua busca, responde que, apesar da velhice (ela já passa dos 70 anos de idade), vai continuar sim, ainda que suspeite que os ossos nunca serão encontrados pois podem ter sido lançados ao mar. E ela se dirige ao espectador que porventura esteja perplexo e se perguntando: “Por que essa gente quer ossos?”. Ela re-afirma sua vontade de reencontrar os ossos do ente amado, Mário, pois o sumiço dos ossos é o insuportável, o inaceitável, o inesquecível.
Quando lhe informaram que haviam encontrado uma mandíbula de Mário, ela não se deu por satisfeita e disse que desejava o esqueleto inteiro. Com esta frase de quebrar o coração, ela diz: “Eu o quero inteiro! Eles o levaram inteiro e não o quero de volta aos pedaços. Se eu encontrá-lo hoje e eu morrer amanhã, partirei feliz.” (1h 02 min)
O direito ao luto aparece aqui como tendo que ser somado ao códex dos direitos humanos básicos. Os militares, que sumiram com os oponentes políticos, que ocultaram os cadáveres, que espalharam os ossos por desertos e mares, deveriam ser obrigados a abrir todos os arquivos e colaborar para que os familiares pudessem realizar o enterro digno dos entes amados. Mas obviamente que não é assim: os perpetradores dos crimes, os genocidas de farda, jamais iriam contribuir para amainar o sofrimento dos traumatizados. Cabe a nós a responsabilidade de escrever o Passado sendo dignos a bastante para dar voz aos silenciados.
“No mundo em que vivemos, o problema a ser enfrentado não é mais só o declínio da memória coletiva e o conhecimento cada vez menor do próprio passado; é a violação brutal do que a memória ainda conserva, a distorção deliberada dos testemunhos históricos, a invenção de um passado mítico construído para servir ao poder das trevas. Somente o historiador, com sua rigorosa paixão pelos fatos, pelas provas e pelos testemunhos, pode realmente montar a defesa contra os agentes do olvido, contra os que reduzem documentos a farrapos, contra os assassinos da memória e os revisores das enciclopédias, contra os conspiradores do silêncio.” [6]
A importância crucial da arte de Guzmán está em buscar convencer todo um país a exumar os ossos do passado, pô-los na mesa, na tentativa de, ao olhar de frente o terror, inventar um futuro menos sórdido. Para aprender como se faz um futuro melhor não há escapatória: é preciso fazer o aprendizado com os ossos. E os ossos são feitos do mesmo cálcio que pulsa nas estrelas cuja luz os telescópios capturam.
A “impressão digital de uma estrela”, explica-nos o cientista George Preston, registrada nos computadores da estação astronômica do Atacama, dá-se através do cálcio – impressão digital de ossos e estrelas! Como Carl Sagan já ensinava em Cosmos, nós somos feitos de poeira estelar, o que Preston re-afirma: “Uma parte do cálcio dos meus ossos foi formada um pouco depois do Big Bang. Nós vivemos entre árvores, mas também vivemos entre estrelas e galáxias: somos parte do Universo e o cálcio dos meus ossos estava lá desde o início.”
A “sacada” brilhante que faz de Nostalgia Da Luz um marco na história do cinema está nos vínculos que ele estabelece entre o Céu e a Terra: ele é capaz de enxergar o que une as mulheres que vagam pelo deserto em busca de ossos com os astrônomos munidos de telescópicos que sondam os corpos celestes. Nos dois casos, vai-se em busca de um conhecimento sobre o passado, ainda que em um caso seja o passado recente e traumático, e em outro caso o passado distante e cósmico. Ao invés de reduzir os ossos dos mortos durante a ditadura a uma espécie de matéria morta e insignificante, o filme-ensaio de Guzmán nos convida a pensar em um fragmento de osso como algo que está conectado a todo o Cosmos.
Poderíamos dizer que eles podem até ter arrancado as mãos de Victor Jara, para que ele nunca mais tocasse violão, antes de finalmente assassiná-lo, logo após o golpe de 11 de Setembro de 1973; mas esta mão decepada, estes ossos que estiveram presentes no organismo senciente de Jara, conecta-o às estrelas – e ao nosso céu, o dos sobreviventes. E não há nenhum preço que vocês possam pagar para comprar nosso esquecimento (seguiremos cantando as músicas de Jara mesmo depois de vocês terem fechado sua boca para sempre com balas). Pois nos recusamos ao olvido e não está à venda a possibilidade de simplesmente passarmos a borracha nestas páginas de nossa história.
Os que Eles, os vencedores (por enquanto…), não querem que lembremos, eis o que temos o dever se recuperar do olvido e transmitir através das gerações, para que vivam os destinos precocemente abreviados pelas brutalidades dos que triunfaram. Eis justamente com quem deve estar nosso Pacto de Verdade: com os que suaram e sangraram em prol da transformação deste mundo em algo diferente de um hospício esférico. Temos que pesquisar e falar sobre os ontens tendo em mente todos os tombados, todos os anônimos, todos os escravizados, todos os desvalidos, todos os roubados de sua dignidade e de seu direito à boa vida.
Triunfar pela força não é nenhum certificado de superioridade moral, muito pelo contrário: o apelo à força bruta, a convocação da violência para defender o seu interesse particular, é evidência de que a ideologia ou a causa política não possuem a seu lado a força dos argumentos racionais ou da retórica convincente, que dobra pelo verbo persuasivo o entendimento do outro, convencendo-o a aquiescer à razão mais forte.
Quem solta os cachorros furiosos sobre os outros, ou chama o pelotão de fuzilamento ou a fogueira para hereges, manifesta assim não sabe ter a delicadeza de expor uma cadeia de pensamento bem articulada. Prefere lançar o oponente aos dentes das feras. Ou à crueldade impiedosa das chamas.
O cadáver de Che Guevara na Bolívia não é “prova” de que o médico-guerrilheiro argentino estivesse na desrazão e no erro, mas evidencia sim a crueldade impiedosa de seus executores. A mando, é claro, do imperialismo yankee e seu séquito de horrores triunfais – que o povo do Vietnã, e do Afeganistão, e do Brasil (etc.), tão dolorosamente conheceram e conhecem.
Perder nunca é definitivo, toda vitória é precária: os vencidos de outrora podem ser os vencedores, outra hora. De Heráclito a Bob Dylan, alertam filósofos e artistas que tudo flui e os dados ainda estão rolando. The times they are a-changin.
Por isso, defendamos uma História que se conte sem que o sujeito contador se pretenda neutro, objetivo, sem partido. Ninguém aqui está defendendo a miopia do sectarismo, pelo contrário: queremos diálogo amplo com o pluralismo histórico, com tudo que no palco da História está em debate e em conflito, mas não aceitamos que sejam caladas, hoje, as vozes dos que foram obrigados, em tempos idos, a engolir o amargo cálice do sumiço.
Não há respeito possível ao trabalho de um historiador das Ditaduras latino-americanas que nada nos diga sobre os ossos dos desaparecidos políticos ou sobre os gritos de agonia dos torturados. Temos que ser fiéis àqueles sofrimentos que realmente ocorreram, e expor com sinceridade as atrocidades que, caso não as reconheçamos, podem voltar para nos atacar com novas e atrozes ditaduras novas.
Ouçamos a voz dos vencidos, caso contrário nossa compreensão da História será uma farsa, uma miopia calculada, uma escolha inaceitável pela auto-cegueira. Não enxergar o lado dos esmagados é estar ao lado dos esmagadores. A pior abordagem do passado é aquela que tem fé na História escrita pelos vencedores e nem escuta os que foram calados pela forca, pela fogueira, pelos fuzis, pelos campos de extermínio, pela pobreza planificada, pelos estigmas excludentes e assassinos…
Nas obras de Walter Benjamin, de Mary Wollstonecraft, de Flora Tristán, de Marx e Engels, de Olympe de Gouges, de Arendt, de Camus, de Brecht, dentre tantos outros, pulsam ainda as vidas insurgentes, revoltadas, indignadas, que puseram mãos à obra para a transformação do mundo, e que por esta razão padeceram alguns dos piores horrores, legando porém à posteridade um enriquecido horizonte de possíveis. O que de fato aconteceu em nosso passado não era o único evento possível: havia outras possibilidades, e caso saibamos “abrir uma outra perspectiva sob o passado”, tal qual nos convida a realizar Eleni Varikas, podemos aprender uma imensidão com os pretéritos fracassos:
“O que nos ensinam os fracassos: os fatos, as ações, as ideias, os movimentos, as esperanças que não vingaram? Privilegiando a perspectiva do fracasso em vez da do êxito, e os pontos de vista dos vencidos em detrimento daqueles dos vencedores, essa postura não é unicamente de ordem ética. Não que haja por onde se abster de um posicionamento de ordem ética. Como frisava Hannah Arendt em sua esplêndida resposta a Eric Voegelin, não é possível relatar acontecimentos tais como a extrema miséria das classes populares na época da Revolução Industrial como se eles tivessem acontecido na Lua… A análise do político é indissociável de uma atividade de julgamento ancorada na experiência viva do pesquisador.
A perspectiva do fracasso, ou a da derrota, interessa principalmente por seu potencial heurístico, pela contribuição preciosa que pode trazer ao trabalho árduo da anamnese… A ótica do fracasso nos impele – queira ou não – a nos afastarmos dos caminhos batidos da transmissão, a ‘escovar a história a contrapelo’, como diz Benjamin… Estudar as ‘minorias’ e a ‘marginalidade’ (as mulheres, os escravos, os metecos, as crianças, os estrangeiros) para ‘chegar ao centro’ da Cidade é um desses desvios que esclarecem (…) tensões e contradições da Cidade ocultadas pela ótica da vitória e do sucesso.
Pois certamente há na vitória como que uma propensão ao esquecimento; como se os vencedores fossem espontaneamente levados a crer que eles têm os deuses, a Providência ou, o que dá na mesma, a História do lado deles. Esse esquecimento é, antes de qualquer coisa, o esquecimento da injustiça que garantiu a vitória… o esquecimento da injustiça contra a qual a vitória foi obtida… Interrogar o político do ponto de vista daquilo que é marginal e minoritário é um exercício precioso.” [7] (VARIKAS, p. 72 – 72)
Walter Benjamin talvez o disse melhor do que ninguém em suas imprescindíveis Teses Sobre a História:
“Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são os que chamamos de bens culturais. Todos os bens materiais que o materialista histórico vê têm uma origem que ele não pode contemplar sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima de seus contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que também não fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.” [8]
É este o conceito de História que anima Nostalgia Da Luz e que faz deste filme uma espécie de tratado Benjaminiano, a nos lembrar da relevante lição de que “o dom de despertar no passado as centelhas de esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” [9]
Por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 2018
Originalmente publicado em A Casa de Vidro
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] NIETZSCHE. Segunda Consideração Extemporânea, citado por BENSAÏD, Daniel. Quem é o Juiz?. Ed. Piaget: p. 43.
[2] BENSAÏD, Daniel. Quem é o Juiz? – Para Acabar com o Tribunal da História (1999).Ed. Piaget: p. 207.
[3] ATWOOD, Margareth. Vulgo Grace (Alias Grace). Romance (Ed. Rocco) e Mini-série (CBC).
[4] ARENDT, Hannah. Eichmann à Jerusalem. Paris, Gallimard, 1996, p. 445.
[5] BENSAÏD, op cit, p. 50.
[6] YERUSHALMI, 1990, p. 23-24, citado por ROSSI, Paolo. O Passado, A Memória, O Esquecimento. São Paulo: Unesp, 2010, P. 36.
[7] VARIKAS,Eleni. Pensar O Sexo e o Gênero. Campinas/SP: Unicamp, 2016.
[8] BENJAMIN, Walter. Citado por CHAUÍ, Marilena, em Civilização e Barbárie (organizador: Adauto Novaes). São Paulo, Ed. Cia Das Letras.
[9] BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 11-12.
“Gira e gira a roda atroz das desditas”, lamenta-se Neruda no poema “Os Abandonados”, do livro Memorial de Isla Negra. Este poetaço, que tão bem cantou a roda viva da Vida, com toda a sua polifonia e colorido, com todo seu caos e maravilha, com frequência é hoje em dia descoberto por novos leitores em virtude do filme realizado por Michael Radford em 1994, O Carteiro e o Poeta (Il Postino). Indicado a 5 Oscars, esta obra cinematográfica é de fato um excelente cartão-de-visita, um portal-de-entrada sedutor à obra do vate laureado com o Nobel em 1971.
O filme nos entrega um retrato carinhoso, cheio de empatia, de um Neruda encarnado com verve e graça pelo ator francês Philippe Noiret (1930 – 2006). Porém, há uma rasidão na película de Radford que só será remediada se mergulharmos nas profundezas do romance de Antonio Skármeta que o inspirou.
Uma comparação entre filme e livro, neste caso, é uma empreitada frutífera: as obras não se repetem, não caem em redundância, mas propõe caminhos diferentes a nós que embarcamos nelas. Apesar de “livremente baseado no livro de Skármeta”, o filme não tem pudores de propor um desfecho radicalmente diferente daquele escrito por Skármeta (atenção: spoilers!). No filme, o carteiro Mario morre no final, após ser agredido pela truculência policial em um comício socialista, e Neruda o sobrevive para relembrá-lo entre lágrimas e evocações de lembranças do convívio.
Já no romance, é o o carteiro quem testemunha, com profunda dor, a morte de Pablo Neruda, ocorrida naquele trágico Setembro de 1973 onde foi derrubado o regime da União Popular (socialista) que havia sido eleito em 1970. Mês cruel como uma ave de rapina, onde o Chile perdeu Allende, Neruda, a democracia – entre outros milhares de mortos massacrados pela Ditadura Pinochet.
A discrepância entre os desfechos de filme e de livro, neste caso, me parece grave. Algo semelhante ocorreu quando John Ford, mestre do western, adaptou para a telona As Vinhas da Ira, de John Steinbeck. O final do livro de Steinbeck, apesar de ser um dos mais emblemáticos e inesquecíveis desfechos de um livro na história da literatura norte-americana, foi excluído do filme de um modo que sempre me pareceu inexplicável – e pior: mutilador.
John Ford presta um desserviço à obra de Steinbeck ao tesourar da obra um dos ícones que faz de The Grapes of Wrath um magnum opus da literatura universal, tirando de cena os seios da Fraternidade Humana que alimentam a vulnerável e amável Presença do Outro Em Risco. John Ford nos rouba a consolação salutar que Steinbeck nos concedia, deixando aqueles okies, migrados à Califórnia mas afundados no lodaçal de suas frustrações e perrengues, envoltos apenas no pó. Faltou o pólen!
A comparação entre O Carteiro e o Poeta, de Radford, e El Cartero de Neruda, de Skármeta, revela também um caso de traição que o cinema realiza em relação à literatura que o inspirou. O chileno Skármeta localizou sua história integralmente no Chile e os fatos narrados se passam entre 1969 e 1973, justamente a época de ascensão, eleição e posterior derrubada do governo da União Popular.
Já o filme de Radford transplanta a história para uma ilha da Itália, separada da América Latina pela extensão tremenda do Oceano Atlântico, mas também afastada das realidades históricas concretas vividas por Neruda e sua trupe no livro. Neste processo de migrar a história do Chile para a Itália, o filme deixa-se perder, como água entre os dedos, a oportunidade de pôr em debate episódios históricos fundamentais do continente de onde escrevo e onde Skármeta situa seu magistral romance.
No romance, estamos em plena Isla Negra, lá onde Pablo Neruda tinha comprado uma casa em 1939. Já no filme, entra pelas fuças de Neruda uma maresia atlântica, mediterrânea, nada chilena… No romance, o faro fareja os ventos do Pacífico e os ouvidos escutam os estrondos dos balaços e bombas dos militares golpistas que sobem ao poder em 1973 e deixam como cadáveres pelo caminho, naquele ano hediondo, Allendes, Nerudas e Victor Jaras…
Comédia romância agradável, palatável, realizada com delicadezas que costumam merecer os aplausos da Academia que distribui os Oscars, O Carteiro e o Poeta exclui boa parte do contexto sócio-histórico chileno que está bastante presente no livro de Skármeta. Em especial, diminui a estatura do carteiro de Skármeta – que é um sujeito político engajado nas lutas políticas de seu tempo.
Em uma cena que não se verá no filme, o romance relata que, após o golpe de Estado de 1973, o carteiro Mário adentra a agência dos Correios onde trabalha e, diante dos retratos de Allende, Che Guevara e Karl Marx, precisa tomar decisões urgentes sobre o que fazer, estando rodeado pelas escopetas dos militares brutamontes que, com sangue nos olhos, estão loucos para meter bala em subversivos e descer o cacete em comunistas…
Temeroso e prudente, o carteiro tira das paredes os retratos de Che e de Marx, mas permite a permanência de Allende, recém-falecido. “El retrato de Salvador Allende podía permanecer porque mientras no se cambiaran las leyes de Chile seguia siendo el presidente constitucional aunque estuviera muerto, pero la confusa barba de Marx y los ojos ígneos del Che Guevara fueron descolgados y hundidos en la bolsa.” (capítulo 17, pg. 124)
O carteiro, após se livrar das imagens que indicavam os louvores à Che e Marx, agora considerados pelas autoridades golpistas como inimigos públicos de imensa periculosidade, põe seu gorro oficial de carteiro, cobrindo suas melenas bagunçadas à la Beatles, pois “frente al rigor del corte del soldado, le pareció definitivamente clandestina.”
Cito estes trechos de uma cena que está no romance, mas não no filme, para frisar o aspecto político quintessencial à obra e que Radford não soube levar ao cinema – e que ficou restrito ao livro de Skármeta. No filme, o carteiro Mário é descrito como uma figura bastante simplória, apolítica, que não se envolve em quaisquer decisões que transcendam o âmbito das relações pessoais afetivas.
Já o carteiro Mário de Skármeta tem o status de agente histórico, sendo descrito como “partidário de um socialismo utópico” (cap. 15, p. 107). Ele sofre na pele as crises de abastecimento de alimentos geradas, ainda durante o governo Allende (1970-1973), devido às sabotagens e complôs golpistas que, atravancando a economia a golpes de Doutrina do Choque (catástrofe é oportunidade, fome artificialmente produzida gera um excelente novo ambiente de negócios!). Skármeta descreve os meios utilizados pelos golpistas para desestabilizar o governo democraticamente eleito da União Popular.
Buscaremos em vão no filme qualquer menção ao cenário chileno pré-golpe, exposto em minúcias por Skármeta nos meandros daquele restaurante e hospedaria onde trabalham Beatriz e sua mãe – respectivamente, a amada musa inspiradora e a sogra ranzinza de Mário. Ao transplantar a locação das ocorrência do Chile para a Itália, a produção dirigida por Radford torna impossível o retrato, feito magistralmente por Skármeta, de como foi afetado o negócio gerido por Beatriz e sua mãe. Skármeta, no capítulo 13, descreve a crise econômica, a falta de alimentos básicos, destacando que “el desabastecimiento y el mercado negro eran producidos por la reacción conspiradora que pretendía derrocar a Allende.” (p. 98)
O filme exclui completamente a cena-chave em que um político reacionário, populista, saído de terno-e-gravata das tropas da Direita anti-Allende, faz um discurso em que acusa o governo de incapaz:
“Acusó el gobierno de incapaz, de haber detenido la producción y de provocar el desabastecimiento más grande de la historia del mundo: los pobres soviéticos en la conflagración mundial no pasaban tanta hambre como el heroico pueblo chileno, los raquiticos niños de Etiopía eran donceles vigorosos en comparación con nuestros desnutridos hijos; solo había una posibilidad de salvar a Chile de las garras definitivas y sanguinarias del marxismo: protestar con tal estruendo golpeando las cacerolas que ‘el tirano’ – así designó al presidente Allende – ensordeciera, y paradojalmente, prestara oídos a las quejas de la población y renunciara. Entonces volvería Frei, o Alessandri, o el demócrata que ustedes quieran, y en nuestro país habrá libertad, democracia, carne, pollos y televisión en colores.” (p. 100)
Por essas e outras, o livro de Skármeta é muito mais recomendável para quem quer conhecer mais a fundo o contexto sócio-político que envolve a vida – logo, a criação da obra! – de Pablo Neruda. O que não significa que o filme seja desprezível, que deva ser tacado no lixo e recusado. Longe disso: é uma obra que tem seu mérito e seus múltiplos charmes. E que convida de fato muita gente a explorar a fundo a poesia de Neruda, o que é um convite bem-vindo, e que deve ser celebrado sempre que é aceito por um novo leitor, seduzido assim a se embrenhar na selva dos escritos Nerudianos…
No filme, destacam-se as visitas cotidianas do carteiro Mário ao poeta. O carteiro, driblando sua timidez de homem do povo que treme diante de um colosso das letras, tenta convencer o laureado bardo a auxiliá-lo na conquista da belíssima Beatriz. Este enredo singelo é o motor propulsor , no qual Neruda e Mário forjam uma amizade que serve de emblema para o poder – que é pouco, mas não é nulo! – que pode ter a poesia em nossas vidas.
Em uma ilha repleta de analfabetos, o simplório carteiro Mário, como uma laboriosa abelha a sugar o néctar das flores que encontra pelo caminho, conseguirá extrair muito mel de seu convívio breve mas fecundo com Neruda. A ponto de triunfar em seu intento de conquistar Beatrice através do encanto invisível que de seus lábios líricos emana. O filme torna Neruda uma espécie de conselheiro sentimental, um fazedor-de-versos de valor prático-afetivo como propiciador de conquistas, facilitador de transas, mas deixa a outros a tarefa de averiguar quais foram de fatos as relações do poeta chileno com a Itália (tema desta reportagem da TV RAI italiana).
O carteiro Mário é um personagem que parece sintetizar uma visão ingênua, quase infantil, sobre a poesia. Pedalando montanha acima com o correio endereçado ao imenso poeta ali exilado, que aguarda notícias sobre o Prêmio Nobel sueco e sobre o contexto político no Chile, Mário irá aprender, através de breve e frutífero convívio, lições sobre a poesia que irão transformar sua vida para sempre – e que determinarão, sem que ele jamais o suspeite, também a sua morte precoce.
É possível que Mário nunca tenha escrito um poema na vida, talvez jamais tenha lido um livro de poemas. Antes mesmo de qualquer encantamento linguístico com o açúcar das palavras, com o mel nas entrelinhas, ele fica encantado com outra coisa, bem mais palpável que o verbo invisível que a boca dos falantes pronuncia: no filme, o carteiro Mário se encanta é com a glória e suas auréolas, que circundam Neruda, o recém-chegado.
Mário vai ao cinema e assiste a um cine-jornal que revela o quanto o forasteiro Neruda foi acolhido com entusiasmo e efusividade pelos italianos, em especial pelas donnas. A reportagem destaca que os poemas de amor que o poeta comunista escreve e publica às mancheias conquistaram para ele um imenso séquito de admiradoras entre as mulheres. E é aí que Mário interessa-se mais intensamente pelas uvas poéticas que ele nunca soube antes cultivar.
A simplicidade de Mário torna O Carteiro e o Poeta uma obra que emana autenticidade, que deseja comunicar algo sobre a experiência popular em seu trato com o fenômeno da poesia. A princípio, Mário só quer mesmo impressionar as garotas, e tendo isso em mira ele esforça-se para conseguir um autógrafo de Neruda. Caso conquistasse tão ansiada assinatura poderia se gabar, na hora da “cantada”, de ser amigo do grande poeta chileno, cantor do amor e do comunismo…
Mário, com a ingenuidade de seu auto-interesse, movido por seus afetos de homem tímido mas que tem asas fechadas sobre o paletó e que deseja ter mais abertas, para que pudesse alçar vôos para além do ninho confinante de sua timidez, aproxima-se de Neruda como se este fosse uma arca de tesouros e segredos. Tenta destrancar o cofre do poeta para que este lhe ensine o caminho para que a poesia sirva como instrumento eficaz na conquista do amor.
Mário estranha quando escuta o poeta falar palavras estranhas, de sentido desconhecido, como “metáfora”. Mário quer saber que diabos é isso e Neruda, paciente e pedagógico, ensina-lhe através do exemplo: quando dizemos que “o céu está chorando”, ao invés de simplesmente dizer que chove, estamos empregando uma metáfora. Mário adora a descoberta e sai ao mundo à caça destas borboletas esquivas e fugidias que são as metáforas. Mas quer metáforas não para sentir-se bem consigo mesmo enquanto criador de literaturas, mas sim pois metáfora é ótima isca para pescar mulher. Nestas graças o filme de Radford conquista o espectador afeiçoado a uma boa comédia romântica.
Sem intenção precisa, só em virtude do diálogo com Neruda diante das águas do mar, Mário consegue parir sua primeira metáfora: inspirado pelos versos declamados de improviso por Neruda diante do vaivém das ondas, que batem nas pedras do litoral com insistência rítmica e cadenciada, Mário faz nova descoberta. Descobre as relações umbilicais entre o encantamento propiciado pela poesia e a ação do ritmo sobre nossa consciência. Mário diz a Neruda que sentiu-se, ouvindo os versos, como se estivesse sendo balançado como um barco em um mar de palavras... Neruda congratula seu novo amigo pelo parto de sua primeira metáfora.
O carteiro Mário não tem nada de bacharelesco, de acadêmico, de parnasiano – sua visão da poesia é bastante limitada e ele parece enxergá-la, como boa parte do povão faz, como um meio sutil para o conquista dos afetos daqueles cuja afeição desejamos assegurar. Mário vai em busca de tornar-se capaz de falar poesia por interesses afetivos bem explícitos: seu encantamento por Beatriz, re-encarnação da boa e velha musa inspiradora, célebre na história da literatura por ter sido o nome da musa de Dante Alighieri. Vale lembra que a figura histórica que inspirou a personagem-musa de Dante foi Beatriz Portinari (1266 – 1280), representada abaixo em pintura de D. Gabriel Rossetti:
Dante Gabriel Rossetti: Beata Beatrix, ca 1864-70.
Em O Carteiro e o Poeta, estamos bem longe da grandiloquência teológica da Divina Comédia, pois o poetinha Mário – que não é o Quintana, mas decerto amaria os versos daquele que passarinhava na cara dos que estão atravancando o caminho! – quer pôr a poesia a serviço dos anseios de seu singelo coração. Ou melhor, a serviço da conquista da donzela Beatriz.
Mário rouba sem muitos pudores os versos que Neruda havia escrito para Matilde. Depois justifica-se dizendo que a poesia não é posse de quem a escreveu, mas deve ser livre para ser usada. Com ironia, Neruda aprova sentimentos tão “democráticos” e ralha com seu amigo, reclamando com humor que seus versos de amor sejam mobilizados, com seu arsenal de encantatórias metáforas, pelo carteiro Mário em campanha de conquista da mulher adorada.
As relações do carteiro Mário com o poeta Neruda acabam por gerar um curioso e cômico fenômeno de plágio. O carteiro age como pirata diante dos livros de Neruda: saqueia imagens e metáforas das odes para que possa conquistar Beatriz. Não está nem aí para os direitos autorais. Age de modo egoísta e interesseiro, como se a conquista de Beatriz pudesse ser o fim que justifica a utilização de todos os meios. Skármeta descreve lindamente a magistral cena em que Mário enfim junta a coragem para declarar seu amor a Beatriz, ao pôr-do-sol de uma praia em Isla Negra, como uma ocasião onde o carteiro Mário agia quase como um ventríloquo, uma marionete nas mãos de um ausente Neruda:
“Cuando el sol naranja haría las delicias de aprendices de bardos y enamorados, sin darse cuenta que la madre de la muchacha le observaba desde el balcón de su casa, siguió los pasos de Beatriz por la playa y a la altura de los roqueríos, con el corazón en la mandíbula, le habló. Al comienzo con vehemencia, pero luego, como si él fuera una marioneta y Neruda su ventrílocuo, logró una fluidez que permitió a las imágenes tramarse con tal encanto, que la charla, o mejor dicho el recital, duró hasta que la oscuridad fue perfecta.” (SKÁRMETA, p. 51)
Este uso abusivo que o carteiro Mário faz dos versos de Neruda é razão para tensões entre os amigos. Eles não chegam a trocar sopapos, mas tem sim seus desentendimentos, seus debates cheios de antagonismo. O personagem de Neruda irrita-se que um poema que ele escreveu para sua esposa Matilde tenha ido parar nos seios de Beatriz ao terem sido presenteados por Mário como se fossem de próprio punho. Neruda, um pouco enfurecido, diz ao carteiro:
“- No, señor! Una cosa es que yo te haya regalado un par de mis libros, y otra bien distinta es que te haya autorizado a plagiarlos. Además, le regalaste el poema que yo escribí para Matilde.
– Na poesía no es de quien la escribe, sino de quien la usa!
– Me alegra mucho la frase tan democrática, pero no llevemos la democracia al extremo de someter a votación dentro de la familia quién es el padre.” (p. 72)
Neruda, o autor de magistrais poemas, não está isento de um certo sentimento de posse: sente-se dono de certos versos, por tê-los criado, concebido, escrito, publicado. Mário, em seus roubos de versos poéticos que tem autor, fazendo-se passar pelo poeta que não é, estaria incorrendo em falsidade e hipocrisia, portando diante de Beatriz a máscara de bardo genial e poeta inspirado, quando de fato é um pirateador da literatura muito mais do que um escritor.
Seria o destino de Neruda, pai de tantos versos, ver seus rebentos sendo contrabandeados e declamados por incontáveis enamorados pelo mundo. Talvez seja o fado inelutável dos poetas-do-amor: terão sempre os baús-de-tesouros de seus livros saqueados e manejados nas guerrilhas, tantas vezes inglórias, que os humanos realizam para as conquistas do coração alheio.
Pintura de Leonid Afremov
A comparação entre livro e filme também revela que o erotismo caliente das páginas de Skármeta é excluído da película de Radford. O filme não explicita a fisicalidade dos amores de Mário e Beatriz, permanecendo uma obra bastante casta, bem longe do espírito da escrita de Skármeta que com frequência descreve cenas quentes de sexo, com a maestria que evoca outros mestres da pintura literária dos amplexos de Eros – como Henry Miller, D. H. Lawrence, Vargas Llosa. O capítulo 15, onde descrevem-se as festas e farras que celebram o Nobel concedido a Neruda, Skármeta conta que Mário uniu-se carnalmente a Beatriz na alta madrugada e “promulgó un orgasmo tan estruendoso, burbujeante, desaforado, bizarro, bárbaro y apocalíptico, que los gallos creyeron que había amanecido y empezaron a cacarear con las crestas inflamadas, que los perros confundieron el aullido con la sirena del nocturno al sur y le ladraron a la luna como siguiendo un incomprensible convenio…” (p. 155)
Esta culminação orgásmica é descrita por Skármeta após a construção de um crescendo: inicialmente admirador platônico de sua musa inspiradora, Mário consegue – declamando versos roubados de Neruda – que a relação com Beatriz se carnalize. As ereções que ele tinha à distância transformam-se quando sua amada está presente, desnuda, entregue:
“Mario supo en ese mismo instante, que la erección con tanta fidelidad sostenida durante meses era una pequeña colina en comparación con la cordillera que emergía desde su pubis, con el volcán de nada metafórica lava que comenzava a desenfrenar su sangre, a turbarle la mirada, y a transformar hasta su saliva en una especie de esperma. Beatriz le indicó que se arrodillara. Aunque el suelo era de tosca madera, le pareció una principesca alfombra, cuando la chica casi levitó hacia él y se puso a su lado. Un ademán de sus manos le ilustró que tenía que poner las suyas en canastilla. Si alguna vez obedecer le había resultado intragable, ahora sólo anhelaba la esclavitud.” (p. 77)
Esse conhecimento carnal está ausente do filme – que nos mostra o rebento de Mário e Beatriz, o chiquito Pablito, sem explicitar o gozoso processo produtivo deste menino batizado em homenagem ao poeta laureado. Em seu discurso na Suécia ao receber o Nobel, Neruda evoca Rimbaud e a noção de uma “ardente impaciência”. Neruda interpreta a expressão de Rimbaud como se expressasse “el entero porvenir”: “sólo con una ardiente paciencia conquistaremos la espléndida ciudad que dará luz, justicia y dignidad a todos los hombres. Así la poesía no habrá cantado en vano.” (p. 112)
Também foi com ardente paciência que Mário pôs a poesia a serviço da conquista de Beatriz – e são as fusões orgásmicas entre os corpos que podem conduzir o carteiro de Neruda a concluir: com o usufruto de tais frutos carnais, com a fruição de tais amplexos e transas, é que se pode bradar que a poesia não cantou em vão!
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O filme O Carteiro e o Poeta tem uma delicadeza e uma leveza que o afastam de qualquer vertente estética mais politizada ou panfletária, mas nele marcam presença alguns elementos muito interessantes para a nossa apreciação também do valor sócio-político do legado poético de Neruda. A exemplo de Brecht ou Maiakóvsvy, Neruda quis ser o poeta que dá voz aos oprimidos, que amplifica os sentimentos que a multidão gostaria de expressar, mas que com frequência não encontra os termos adequados.
Em uma cena notável do filme, em que enfim Radford se aproxima mais do espírito que anima o livro de Skármeta, Neruda recebe boas notícias do Chile: o Canto Geral foi publicado na clandestinidade e vem fazendo sucesso, apesar das proibições e anátemas que sobre ele pesam. Neruda explica a Mário:
– Quando eu era Senador da República, fui visitar os pampas, uma região onde chove a cada meio século, onde a vida é inimaginavelmente difícil. Eu queria conhecer as pessoas que votaram em mim. Um dia, em Lota, um homem saiu de dentro de uma mina carvão. Ele tinha uma máscara de pó de carvão e suor. O seu rosto contorcido pelo sofrimento, os olhos vermelhos por causa da poeira. Estendeu-me suas mãos cheias de calos e me disse: ‘Aonde você for, fale sobre este tormento. Fale do seu irmão que vive lá embaixo, no inferno.’ Achei que devia escrever algo sobre a luta dos homens, escrever poesias sobre os oprimidos e mal-tratados. Nasceu daí o Canto General… (O CARTEIRO E O POETA, aos 44 minutos de filme aproximadamente)
Certamente discursos deste teor impactaram o ingênuo Mário a ponto de conquistá-lo não só para a poesia, mas também para o comunismo. No filme, é com adesão ingênua, de coração aberto, que ele se faz aspirante a poeta e participante de comícios comunistas. São os ventos da poesia de Neruda que o empurram para aquele episódio trágico em que, movido pelo anseio de declamar um poema diante dos camaradas comunistas reunidos em praça pública, Mário perderá a vida e terá silenciado todos os poemas devido à truculência da repressão.
A morte de Mário, na ficção cinematográfica, evoca a morte de Neruda, na realidade e no livro de Skármeta. O poeta chileno não sobreviveu aos acontecimentos de 1973, quando o governo da União Popular, presidido por Salvador Allende desde 1970, foi brutalmente derrubado pelo golpe de Estado de 11 de Setembro, que instauraria a Ditadura Pinochet e daria início a tempos tenebrosos, onde as baionetas e os campos de concentração quiseram falar mais alto do que flores e poemas.
Ainda hoje são acirrados os debates sobre a responsabilidade do coup d’état de Setembro de 1973 na morte de Neruda, ocorrida poucos dias depois, mas restam poucas dúvidas de que este mês carniceiro fica na história da Humanidade como triste lembrete das catástrofes que o despotismo político pode acarretar. Setembro de 1973 será um mês que para sempre assombrará a América Latina. Ainda ouvimos os ecos das vozes silenciadas então, sepultadas precocemente pela águia impiedosa do império yankee e dos militares chilenos, vozes e vidas contáveis aos milhares, ainda que a maioria delas não seja tão célebre quanto as dos inesquecíveis Allende, Neruda e Jara.
Lendo o Canto Geral de Neruda, descubri alguns trechos profundamente comovedores sobre grandes os heróis de Nuestra América – dentre os quais hoje contamos Neruda, Allende, Jara…“Além de ser o título mais célebre de Neruda, o Canto Geral é uma obra-prima de poesia telúrica que exalta poderosamente toda a vida do Novo Mundo, que denuncia a impostura dos conquistadores e a tristeza dos povos explorados, expressando um grito de fraternidade através de imagens poderosas” (é o que leio na introdução a Memorial de Isla Negra, ed. L&PM Pocket).
Os heróis de Nuetra América, no Canto Geral, são celebrados ali por um autor engajado e ciente de ser agente histórico, similar nisto ao herói cubano José Martí. Neruda é culto o bastante para destacar toda a diversidade da América pré-colombiana, suas populações ameríndias e suas múltiplas paisagens geográficas e ecológicas. Talvez seja preciso ler Canto Geral com quadros de Diego Rivera diante dos olhos para poder mergulhar nas fundas águas destes poemas tão impregnados de uma história cujo desenrolar o poeta vai buscar desde séculos antes da invasão européia.
Diego Rivera
No capítulo IV, Los Libertadores, está um de meus trechos prediletos da obra de Neruda. Após lê-lo, rabisquei estes pobres versos que seguem, compartilhados a seguir por influência também desta presença cinematográfica benigna e amiga que é Mário, il postino, que também ousou dizer poesia sob o entusiasmo e o encantamento da sereia nerudiana.
EL ÁRBOL DEL PUEBLO
O poeta é um pintor na tela de nossas mentes
Que não usa aquarelas, nem sons melodiosos ou estridentes,
Mas palavras. Palavras em estado de transe, de loucura, de festa…
Palavras que pintam passados, presentes, porvires.
Pinta-me Neruda uma esplendorosa Árbol del Pueblo:
Os povos de Nuestra América compõe esse arvoredo maravilhoso
Como jamais houve um parecido em todo o jardim terrestre.
As raízes da Árvore do Povo já comeram muito sangue,
Porém seus frutos ainda sabem propagar luz.
Há flores enterradas aos milhões no chão
Que engoliu e devorou todos os mártires,
Mas a luta de libertação, o júbilo da ação coletiva,
Segue rugindo contra a morte da luz,
Segue em revoltas múltiplas contra
“a lei da desventura,
o trono de ouro ensanguentado,
a liberdade alcoviteira,
a pátria sem abrigo.”
(In: Memorial de Isla Negra, “A Injustiça”)
O correr do trem da História não deixa que se apaguem
As lâmpadas tenaze das resistências de Martís, de Sandinos,
De Guevaras, de Zapatas, de Evos Morales,
De Castros, de Marcos, de Tupacs!
Neruda pinta o quadro da Árvore dos Livres,
Crescida com o adubo salutar
Que foi sangue Heróico, pela Justiça
e pela Fraternidade… Derramado..
Para ter epopéia, Neruda precisou pôr em jogo
Um embate agoniante, um Clash épico
Entre conquistadores e libertadores,
Entre ditadores e guerreiros populares.
Acaba invocando forças telúricas e cósmicas
para as barricadas da revolução:
Neruda, na clandestinidade, faz de seu Canto Geral
Uma ode a todas as lutas libertárias.
Entoa cantos que quer que sejam sementes
Que provem-nos que o chão terrestre não acolhe
Apenas a semente de trigos e de milhos e de quinoas…
Aceita também a semente de Nerudas e Martís,
Mortos no martírio e que…
Germinam ainda… Germinarão além!
Podem cortar todas as flores,
mas não poderiam jamais deter a primavera!
O cadáver de Che na Bolívia em poucos dias foi
Devorado pelos vermes, consumido até a cinza.
Mas o mito em que Che se converteu ainda há
De nos dar muitas colheitas futuras
Em que a Árvore del Pueblo mostrará
Mais uma vez sua resiliência reXistente
Diante das elites cruéis e necrófilas,
diante dos plutocratas tubarões de Wall Street!
“Nadie renasce de su próprio brasero consumido… Nadie arrebata el crescimiento de la primavera…” NERUDA, Canto Geral, IV – Los Libertadores.
Pg. 126, Santiago, 2016, editora Pehuen
ARDER ATÉ AS CINZAS, RENASCER COMO FÊNIX:
A POTÊNCIA DA PALAVRA POVOADA DE VIOLETA PARRA por Eduardo Carli de Moraes
“…toda palavra se não tem brasa se desprende e cai da árvore do tempo.” PABLO NERUDA
citado por Antonio Skármeta em A Insurreição (Cap. XXV, p. 189, ed. Francisco Alves, 1983)
Visitar o Chile ao raiar de 2017, aos 100 anos do nascimento de VIOLETA PARRA (1917-1967), foi ótima ocasião para uma imersão na obra desta magistral multi-artista, uma das mais celebradas cantautoras chilenas do século XX, capaz de incendiar sua palavra com seu brilhantismo e seu ânimo a ponto dela não cair da árvore do tempo. Já se passaram 50 anos desde seu suicídio em 1967, mas Violeta Parra revela, no ano deste seu centenário, a capacidade de resiliência e de renovada atualidade que é o dom das obras rotuladas de clássicas. A travessia por Valparaíso e Santiago revelou-me um país que alimenta a chama da memória da querida presença desta violeta ainda em flor.
Em Santiago, onde há museu consagrado a ela, havia vistosa homenagem: bem maior que um mísero outdoor, um gigante painel fotográfico (foto acima) decorava de alto a baixo o frontispício de um prédio na Avenida Libertador Bernardo O’Higgins, a via que dá acesso ao palácio presidencial La Moneda e onde o estouro de fuegos artificiales reúne a maior muvuca comemorativa do reveillon em Santiago.
Em várias livrarias chilenas, exposto em vitrines e outros locais de destaque, marcava presença o belíssimo livro publicado pela Universidade de Valparaíso, em parceria com a Fundación Violeta Parra:Poesia (capa dura, 472 pgs). Trouxe-o comigo para servir não só como companheiro de viagem, mas como camarada na vida. Comprado na Libreria Crisis, em frente ao Congresso Nacional (Valparaíso), o livro abre janelas para a descoberta de imensos tesouros da arte popular latino-americana tão brilhantemente condensados nas canções e poemas de Parra.
Nascida no Outubro da Revolução Bolchevique de 1917, Violeta Parra terá o ano de 2017 a ela dedicado no Chile, pátria-mãe que mostra-se repleta de gratidão pela vida e pelo legado de uma de suas figuras culturais de maior relevo e importância, algo comunicado com muita potência por Paula Miranda, que destaca a influência da Teologia da Libertação tanto quanto da canção que é catarse em meio à dor e ao desamparo:
Pintura de Claudia Martinez dedicada a Violeta Parra: “Dulce Vecina De La Verde Selva”
“Su gesto más revolucionario es abandonar progresivamente la función otorgada por el capitalismo a la canción y al arte en general, como mero accesorio artístico y de del espetáculo, para convertirlos en lugares de denuncia de las injusticias sociales y de los abusos de los poderosos, que protesta por los pobres y redime los mártires que se han enfrentado al orden imperante: Lumumba, García Lorca, Vicente Peñaloza, Zapata, Rodríguez y Recabarren. Hay algo aquí de la teología de la liberación de la época, pero más de los valores que ha adquirido Violeta Parra de la cultura religiosa campesina: compasión, solidariedad, sacrificio, salvación, imagen de un Dios muy cercano, redentor. Hay algo também de la canción que cumple su función catártica em medio del dolor y del desamparo.” – PAULA MIRANDA (PUC-Chile), In: PARRA, Poesia, V. Valparaíso, 2016, p. 27.
Assim como o cantor e compositor Victor Jara, assassinado após o golpe de Setembro de 1973, prossegue cultuado por velhas e novas gerações (“Victor Jara será eterno”, li pintado na mochila de uma guria no metrô…), Violeta Parra também é homenageada com altos louros pelos chilenos. É descrita como “imortal”, comparada em sua maestria verbal a alguns dos luminares principais doa poesia do Chile, como Gabriela Mistral, Pablo Neruda e Nicanor Parra (irmão mais velho de Violeta). Em artigo publicado em El País, Rocío Montes escreveu:
A chilena Violeta Parra (San Fabián de Alico, 1917; Santiago do Chile, 1967) viveu múltiplas vidas ao longo de seus 49 anos. Foi cantora e compositora, ofício pelo qual foi mais reconhecida, mas também compiladora de música folclórica e artista plástica. No centenário de seu nascimento – celebrado neste ano no Chile com a publicação de livros sobre sua obra, festivais, concertos, exposições e congressos internacionais –, o país a homenageia como uma criadora diversa e promove o reconhecimento de seu legado sob uma perspectiva integral. “Por que Violeta Parra transcende?”, pergunta-se a pesquisadora Paula Miranda, uma das maiores especialistas em sua figura. “Porque tem um trabalho com a palavra muito sofisticado. A dimensão poética está presente em toda sua obra”.
Miranda fala de Violeta Parra como uma das melhores poetas da música e ressalta que a discussão sobre a entrega do Nobel de Literatura a Bob Dylan no ano passado também poderia valer para a cantora e compositora chilena: “Existe muita poesia fora dos livros e a poesia, além do mais, era cantada em sua origem”. Miranda, doutora em Literatura e autora do estudo La Poesía de Violeta Parra, publicado em 2013, cita como exemplo um dos hinos mais conhecidos da criadora: “A poesia em sua máxima expressão é aquela que consegue transformar o mundo, e isso é o que Parra faz em “Gracias a la Vida”. Por um lado agradece e, por outro, tenta retribuir algo que recebeu da vida. Sua arte não é de adorno, nem de entretenimento, mas de reflexão e emoção. Acompanha as dores e os amores humanos”, diz a pesquisadora. [LEIA O ARTIGO COMPLETO]
Em seu texto Arder Hasta Las Cenizas, Rosabetty Muñoz, pesquisadora da obra de V. Parra, sugere que ela viveu “no tempo do asco”, sempre junto ao pueblo e suas luchas, na convicção de que o artista trabalha flamejando nas chamas da coletividade a que pertence. É preciso arder até as cinzas para dar à luz algumas pérolas de imorredoura poesia, renascente como Fênix. Só as palavras em brasa, incendiadas pela vivacidade dos afetos da gente verdadeira, são capazes de seguir dependuradas na árvore do tempo, nutrindo as gerações que se sucedem como um milagroso fruto cujo sumo não se esgota mesmo se sorvido por um milhão de bocas. Escreve Muñoz, rememorando o impacto da obra de Violeta Parra sobre seus contemporâneos:
“Así la conocí: su poesía se abrió con la ferocidad propia de un tiempo que exigía de nosotros una ligazón entre la palabra y la historia, un compromiso com el presente que ella tenía claro. (…) ‘No puede ni el más flamante / pasar en indiferencia / si brilla en nuestra conciencia / amor por los semejantes.’ (…) El el tiempo del asco (como lo llamó Stella Díaz Varin) necesitábamos voces mayores y los versos de Violeta llovieron cargados de integridad. Así como tenía claro el lugar del creador (lejos de los privilegiados, cerca de los suyos) también declara ferviente la dirección que tomarán sus llamas líricas en la lucha por denunciar y marcar los daños: ‘entre más injusticia, señor fiscal / más fuerzas tiene mi alma para cantar.'” – R. MUÑOZ, Violeta Parra: Arder Hasta Las Cenizas. p. 11-12
“Seus trabalhos foram a base para o desenvolvimento do movimento estético-musical-político chamado de Nova Canção Chilena, do qual fizeram parte também Victor Jara, Rolando Alarcón, e Patricio Manns, além dos grupos Inti-Ilimani e Quilapayún.” – Portal Vermelho
O livro traz em sua capa uma das obras realizadas por Violeta no âmbito das artes visuais, outro domínio onde ela também expressou sua fecunda criatividade, em especial em tapeçarias cuja técnica ela aprendeu com sua mãe, tecedora de raízes indígenas e vinculada ao povo Mapuche. Muitas das tapeçarias violetianas foram expostas em Paris, no Museu de Artes Decorativas do Louvre, reaparecendo também no início dos capítulos do livro. Confira abaixo algumas reproduções das obras:
O cinema também reavivou Violeta há alguns anos com a bela biopic Violeta Se Fue A Los Cielos (2011),de Andrés Wood (o mesmo diretor de Machuca), em que Parra foi interpretada por Francisca Gavillan. O filme saiu consagrado no badalado festival de Sundance, colheu farta bilheteria em seu país de origem e tem mérito duradouro não só como competente esforço biográfico e dramatúrgico, mas por oferecer uma convidativa porta de entrada para quem deseja descobrir mais a fundo a vida e a obra de Violeta.
Do filme de Andrés Wood eu destacaria algumas cenas e citações que me parecem memoráveis. Em uma entrevista televisiva, Violeta Parra revela muito de suas convicções políticas e estéticas. Sobre as primeiras, quando o jornalista lhe pergunta se ela é comunista, ela brinca: “Camarada, eu sou tão comunista que, se me derem um tiro, o meu sangue sai vermelho…” Achando graça da resposta, seu interlocutor contesta: “Ora, o meu sangue também sairia vermelho…” Ao que ela retruca, estendendo a mão para cumprimentá-lo: “Que bom, camarada!”
Em outro momento da entrevista re-encenada no filme, o entrevistador pede que ela dê conselhos a jovens artistas. Ela então aconselha: “A criação é um pássaro sem plano de vôo e que nunca voará em linha reta.” Longe dos conservatórios onde a música é ensinada com formalismo e rígida disciplina, Violeta Parra buscou sua pedagogia poético-musical através da imersão junto à gente comum, em meio ao “povão”, indo beber na fonte de campesinos e Mapuches, tendo realizado monumental trabalho como compiladora do folclore del pueblo.
Em um dos momentos mais tocantes de Violeta Fue A Los Cielos, podemos testemunhar longas e árduas caminhadas que Violeta fazia para chegar até as moradias campestres de idosos aos quais solicitava, com doçura e interesse, que compartilhassem com ela canções de tempos idos. Um senhor recusa-se terminantemente a ajudar: havia feito um juramento de nunca mais cantar desde que seu netinho havia morrido.
Empregando toda a sedução sincera de alguém que enxerga valor imenso naquilo que o velhinho trazia enclausurado em seu crânio, Violeta busca convencer-lhe a compartilhar os tesouros musicais e poéticos que, caso não sejam cantados e anotados em um caderninho, podem perder-se para sempre. É esta percepção de que os tesouros da tradição estão ameaçados pelo trator impiedoso da modernização, de que os depositários de cancioneiros de tempos idos estão caindo no túmulo e levando consigo canções e poemas irrecuperáveis, que faz de Violeta uma infatigável pesquisadora da cultura popular. Ela parece pesquisar na certeza de que é frágil e efêmero o depositário carnal das canções cuja chama está sob ameaça de para sempre apagar-se.
Estas cenas são comovedoras por revelarem uma Violeta Parra que é o avesso e o antônimo da popstar que recebe de magnatas da indústria e de fabricadores profissionais de hits as receitas prontas para os sucessos comerciais fáceis. Revelam uma trabalhadora em prol da memória, uma folclorista que foi em andanças pelo Chile afora para pesquisar a fundo a música, a dança e a lírica que o povão havia conservado por gerações, transmitido língua a língua sem ter nunca conseguido fixar-se em partitura e ganhar assim chances maiores de sobrevivência. Sua capacidade de escuta e de interesse evocou em mim a lembrança de um dos melhores filmes brasileiros de cinema verdade já realizados: O Fim e o Princípio, de Eduardo Coutinho.
Quando Andrés Wood filma o velhinho, antes relutante em cantar e teimoso em seu silêncio juramentado, a cantar no velório de um bebê morto, é como se criasse um emblema para o mérito do labor de Violeta Parra: ela resgatou do esquecimento algumas pérolas que, sem ela, estariam mortas para sempre, oferecendo assim inestimável contribuição para a condensação cultural de uma miríade de manifestações culturais de seu povo (no Brasil, trabalhos similares foram empreendidos por um Mário de Andrade, por uma Ecléa Bosi, dentre tantos outros…).
Cena do filme de Andrés Wood
A morte de um filho bebê, como narra o filme, serviu também para que Violeta, em meio aos tormentos do luto, compusesse uma de suas canções mais memoráveis – “Rin del Angelito”, célebre na versão do Inti-Illimani (ouça abaixo). Longe de qualquer pregação gospel, a canção é ainda assim uma reflexão religiosa sobre o después da “morte da carne”, cheia de um conteúdo consolador que vincula-se às ancestrais doutrinas de transmigração da alma.
Da doutrina indiana do karma às crenças da seita do filósofo grego Pitágoras, a transmigração da alma ou metempsicose é um corpo de artigos de fé de uma ancestralidade que não sai de moda. No caso de Violeta, ela explora uma modalidade bastante latino-americana desta fé, afirmando uma espécie de panteísmo panpsiquista em que a alma do angelito falecido pode penetrar num passarinho ou num “peixinho novo”:
Ya se va para los cielos ese querido angelito a rogar por sus abuelos por sus padres y hermanitos. Cuando se muere la carne el alma busca su sitio adentro de una amapola o dentro de un pajarito.
La tierra lo está esperando con su corazón abierto por eso es que el angelito parece que está despierto. Cuando se muere la carne el alma busca su centro en el brillo de una rosa o de un pececito nuevo.
En su cunita de tierra lo arrullará una campana mientras la lluvia le limpia su carita en la mañana. Cuando se muere la carne el alma busca su diana en el misterio del mundo que le ha abierto su ventana.
Las mariposas alegres de ver el bello angelito alrededor de su cuna le caminan despacito. Cuando se muere la carne el alma va derechito a saludar a la luna y de paso al lucerito.
Adónde se fue su gracia y a dónde fue su dulzura porque se cae su cuerpo como la fruta madura. Cuando se muere la carne el alma busca en la altura la explicación de su vida cortada con tal premura, la explicación de su muerte prisionera en una tumba. Cuando se muere la carne el alma se queda oscura.
De sua arte, tão enraizada nas tradições mas tão aberta também às invenções, “brotam luzes” – ainda que não haja escassez de sombras. É nesse jogo de claro e escuro que desenha-se a profundidade e a densidade destas composições que vão muito além e muito mais fundo do que a rasidão e a estreiteza a que estão limitadas as canções comerciais.
Ouçam, por exemplo, a emblemática “Cantores Que Reflecionam”, do álbum Las Últimas Composiones, um dos mais importantes discos na história da música chilena, uma daquelas poesias que não podem ser reduzidas a mera “letra de música”, já que os versos se sustentam perfeitamente em seu próprio mérito:
En la prisión de la ansiedad medita un astro en alta voz.
Gime y se agita como león,
como queriéndose escapar.
¿De dónde viene su corcel
con ese brillo abrumador?
Parece falso el arrebol
que se desprende de su ser.
«Viene del reino de Satán
–toda su sangre respondió–.
Quemas el árbol del amor,
dejas cenizas al pasar».
Va prisionero del placer y siervo de la vanidad. Busca la luz de la verdad, mas la mentira está a sus pies. Gloria le tiende terca red y le aprisiona el corazón en los silencios de su voz que se va ahogando sin querer. La candileja artificial le ha encandilado la razón: ¡dale tu mano, amigo Sol, en su tremenda oscuridad!
¿Qué es lo que canta? –digo yo. No se consigue responder. Vana es la abeja sin su miel, vana la hoz sin segador. ¿Es el dinero alguna luz para los ojos que no ven? «Treinta denarios y una cruz» –responde el eco de Israel. ¿De dónde viene tu mentir y adónde empieza tu verdad? Parece broma tu mirar; llanto parece tu reír.
Y su conciencia dijo al fin: «Cántale al hombre en su dolor, en su miseria y su sudor y en su motivo de existir». Cuando del fondo de su ser entendimiento así le habló, un vino nuevo le endulzó las amarguras de su hiel. Hoy es su canto un azadón que le abre surcos al vivir, a la justicia en su raíz y a los raudales de su voz.
En su divina comprensión luces brotaban del cantor.
(1965-1966. In: Ultimas Composiones)
Não parece ser por mero saudosismo, típico de gente preocupada em tirar o pó dos vinis antigos, que os chilenos celebram Violeta Parra, mas sim pois esta obra tem resiliência e atualidade. Versos que ela escreveu em protesto ao presidente Ibañez (1877 – 1960), figura massacrada pelo escárnio do cineasta Alejandro Jodorowsky em seu ciclo de autobiografias surreais A Dança da Realidade e Poesia Sem Fim – também servem para atacar a ditadura militar capitaneada por Pinochet entre o golpe de 1973 e o plebiscito de 1988. Já a celebração “Me Gustan Los Estudiantes” – regravada muitas vezes na América Latina, com destaque para versões de Mercedes Sosa e dos grupos corais brasileiros MPB4 & Quarteto em Cy – foi considerada apta a ilustrar vídeos no Youtube que revelam os levantes estudantis entre 2011-2014:
Que vivan los estudiantes,
jardín de las alegrías.
Son aves que no se asustan
de animal ni policía,
y no le asustan las balas
ni el ladrar de la jauría.
Caramba y zamba la cosa,
que viva la astronomía.
Que vivan los estudiantes que rugen como los vientos cuando les meten al oído sotanas o regimientos, pajarillos libertarios igual que los elementos. Caramba y zamba la cosa, que vivan los experimentos.
Me gustan los estudiantes porque son la levadura del pan que saldrá del horno con toda su sabrosura para la boca del pobre que come con amargura. Caramba y zamba la cosa, viva la literatura.
Me gustan los estudiantes porque levantan el pecho cuando les dicen harina sabiéndose que es afrecho, y no hacen el sordomudo cuando se presenta el hecho. Caramba y zamba la cosa, el Código del Derecho.
Me gustan los estudiantes que marchan sobre las ruinas; con las banderas en alto va toda la estudiantina. Son químicos y doctores, cirujanos y dentistas. Caramba y zamba la cosa, vivan los especialistas.
Me gustan los estudiantes que van al laboratorio. Descubren lo que se esconde adentro del confesorio. Ya tiene el hombre un carrito que llegó hasta el purgatorio. Caramba y zamba la cosa, los libros explicatorios.
Me gustan los estudiantes que con muy clara elocuencia a la bolsa negra sacra le bajó las indulgencias. Porque, ¿hasta cuándo nos dura, señores, la penitencia? Caramba y zamba la cosa, que viva toda la ciencia.
Outra amostra da aptidão da obra de Parra para servir à apropriações criativas é uma canção como “Maldigo De Alto Cielo”: apesar de escrita muito antes do bombardeio ao palácio de La Moneda e os massacres do Setembro de 1973, foi mixada com fotografias do coup que derrubou o governo socialista, legítimo e eleito em eleições democráticas, de Salvador Allende, em um vídeo com mais de 700.000 visualizações no Youtube (confira em La Pichanga – Música Chilena).
Escutar na sequência “Maldigo de Alto Cielo” e “Gracias a La Vida” é experiência inquietante: as duas canções parecem habitar dois pólos extremos, irreconciliáveis, quase como se não pudessem ter sido escritas pela mesma pessoa. Pode parecer paradoxal e absurdo que a mesma Violeta Parra que escreveu um belo hino de gratidão à vida, repleto de amor fati, espécie de símile latinoamericano de “Je Ne Regrette Rien” da francesa Edith Piaf, tenha podido compor algo o folk-punk de intensa malediciência de “Maldigo de Alto Cielo”, em que amaldiçoa tudo – a primavera e os planetas – numa orgia de pessimismo, niilismo e odium fati. Só se surpreenderá quem desconhece as complexidades afetivas que habitam e se digladiam no peito dos poetas.
Nietzsche chegou a dizer que o espírito fértil e fecundo é aquele rico em contradições, e este pensamento me ocorre ao contrastar estas duas canções: ouvi-las revela uma Violeta Parra capaz de explorar um amplo leque de afetos, de encarnar um vasto espectro de atitudes existenciais, que vai da ação de graças, sábia e serena, de “Gracias a La Vida”, à amarga maldição lançada contra o todo do mundo em “Maldigo Del Alto Cielo” por um eu-lírico sofredor, enlutado, deprimido, que ao fim de cada estrofe retorna ao seu lamento-bumerangue, que evoca uma dor imensurável, inquantificável, beirando o inefável.
“Maldigo” talvez seja a canção que melhor evoca o estado de espírito que pôde conduzir Violeta ao suicídio – que verso pungente é “Maldigo el vocablo amor con toda su porquería!” – pero “Gracias” sintetiza a sabedoria amável e irradiante de uma artista que, para além da morte, tornou-se sol acalentando a vontade de viver dos que hoje segue celebrando seu legado, 100 anos após seu nascimento e 50 anos após sua auto-extinção. O espírito de “Gracias a La Vida” irá inspirar muitas cantoras latinoamericanas – de Mercedes Sosa a Elis Regina – mas Violeta Parra tem muitos espíritos para além da doçura graciosa, incluindo verves mais contestatórias, manifestas em canções de protestos e crítica social de espantosa atualidade.
Evoco alguns exemplos: as promessas demagógicas de políticos sacanas, cheios de falsas promessas e sorrisos hipócritas, são denunciadas em “Miren Cómo Sonrién” (p. 113). São versos que podem ainda hoje ser citados na denúncia de estelionatos eleitorais e que podem inspirar análises sobre os descaminhos da democracia representativa.
Miren cómo sonríen los presidentes cuando le hacen promesas al inocente. Miren cómo le ofrecen al sindicato este mundo y el otro los candidatos. Miren cómo redoblan los juramentos, pero después del voto, doble tormento.
Miren el hervidero de vigilante para rociarle flores al estudiante. Miren cómo relumbran carabineros para ofrecerle premios a los obreros. Miren cómo se viste cabo y sargento para teñir de rojo los pavimentos.
Miren cómo profanan las sacristías con pieles y sombreros de hipocresía. Miren cómo blanquearon mes de María, y al pobre negreguearon la luz del día. Miren cómo le muestran una escopeta para quitarle al pueblo su marraqueta.
Miren cómo se empolvan los funcionarios para contar las hojas del calendario. Miren cómo gestionan los secretarios las páginas amables de cada diario. Miren cómo sonríen, angelicales. Miren cómo se olvidan que son mortales.
Já em “Al Centro de la Injusticia”, uma mordaz crítica social, Violeta Parra faz por merecer sua pertença junto aos maiores nomes da canção de protesto em todos os tempos. Apesar de bem menos conhecida do que os norte-americanos (Woody Guthrie, Bob Dylan, Joan Baez), Violeta é uma cantora folk que soube dirigir afiados petardos contra a injustiça social, as barbáries militaristas, os desgovernos autoritários; até mesmo a especulação imobiliária e o turismo alienado são alvo alvejados pela cantautora, e isso décadas antes de estarem na crista da onda os fenômenos da gentrificação:
“Linda se ve la patria, señor turista, pero no le han mostrado las callampitas. Mientras gastan millones en un momento, de hambre se muere gente que es un portento…” (p. 115)
O que torna a obra de Parra tão resiliente, tão capaz de sobreviver aos 50 anos de sua ausência física entre os vivos, talvez seja aquilo que chamo de a potência da palavra povoada. Com isso quero dizer que Violeta Parra não é simplesmente uma poetisa que expressa afetos e impressões individuais, não é apenas um eu isolado que fala sobre si, mas sim alguém que põe o seu verbo e sua voz, sua verve e sua arte, em contato íntimo e cotidiano com todo um povo.
Sua poesia busca amplificar a potência e disseminar a sabedoria de uma coletividade que atravessa as gerações, ainda que o precioso trabalho de resgate dos tesouros acumulados pela tradição não impeça que Violeta seja também inventiva e recriadora. Como Maiakóvski, que em célebre poema fazia-se caixa de ressonância para 150 milhões de russos, Parra besunta-se com os chilenos para tecer seus cantos. Por isso, ouvi-la é mais que ouvir uma mulher de extraordinário talento, é entrar em contato com a pulsação viva de todo um pueblo em seu esforço de criar beleza imorredoura e palavras que não vão cair da árvore do tempo.
Gracias a la vida que me ha dado tanto Me ha dado la marcha de mis pies cansados; Con ellos anduve ciudades y charcos, Playas y desiertos, montanas y llanos, Y la casa tuya, tu calle y tu patio Gracias a la vida que me ha dado tanto Me dio el corazon que agita su marco Cuando miro el fruto del cerebro humano, Cuando miro al bueno tan lejos del malo, Cuando miro al fondo de tus ojos claros Gracias a la vida que me ha dado tanto Me ha dado la risa y me ha dado el llanto Asi yo distingo dicha de quebranto, Los dos materiales que forman mi canto, Y el canto de ustedes que es mi mismo canto, Y el canto de todos que es mi propio canto…
Carli – Janeiro de 2017
OUÇA: DOWNLOAD GRATUITO Antología: Grabaciones originales en EMI Odeon 1954-1966
De modo a contribuir para disseminar a obra de Violeta Parra na blogosfera do Brasil, A Casa de Vidro realiza um pequeno ato de cyberdelinquência e oferta a todos a versão pirata deste BOX de 4 CDs, uma das melhores coletâneas já lançadas como panorâmica da criação Parriana entre 1954 e 1966. São quase 5 horas de música e o download é inteiramente gratuito. Boa audição!
CD 1: CLICK AQUI PARA BAIXAR EM MP3 DE 320kps.Canções: 1. La petaquita; 2. Son tus ojos; 3. El sacristán; 4. El bergantín; 5. A dónde vas, jilguerillo; 6. Si lo que amo tiene dueño; 7. Casamiento de negros; 8. Tonada del medio; 9. Atención, mozos solteros; 10. Bella joven; 11. El joven para casarse; 12. Cuando salí de mi casa; 13. El palomo; 14. Hay un estero de vino (por ponderación); 15. Blanca, Flor y Filomena; 16. Adiós, corazón amante; 17. Qué pena siente el alma; 18. Ya me voy a separar; 19. Ausencia; 20. Cuando deja de llover; 21. Es aquí o no es aquí; 22. La inhumana; 23. Parabienes al revés; 24. Un reo siendo variable; 25. No habiendo como la maire.
CD 2: CLICK AQUI PARA BAIXAR EM MP3 DE 320kps. Canções: 1. Una naranja me dieron; 2. Verso por la sagrada escritura; 3. Verso por las doce palabras; 4. Viva Dios, viva la Virgen; 5. Las naranjas; 6. Viva la luz de Don Creador; 7. La jardinera; 8. Adiós que se va segundo; 9. Tonada por ponderación; 10. Cuándo habrá cómo casarse; 11. El jardinario; 12. Cueca valseada; 13. La cueca larga (Las Hermanas Parra); 14. La Juana Rosa; 15. La muerte con anteojos; 16. Amada prenda; 17. Las tres pollas negras; 18. Paloma ingrata; 19. Si te hallas arrepentido; 20. Niña hechicera; 21. Allá en la pampa argentina; 22. Verso por desengaño; 23. Verso por despedida a Gabriela; 24. Verso por el Rey Asuero.
CD 3: CLICK AQUI PARA BAIXAR EM MP3 DE 320kps. Canções: 1. Verso por la niña muerta; 2. Verso por padecimiento; 3. Verso por saludo; 4. Violeta ausente; 5. Viva el chapecao; 6. Yo tenía en mi jardín; 7. Cueca larga de Los Meneses; 8. En el norte corrió vino; 9. Entre San Juan y San Peiro; 10. Hay una ciudad muy lejos; 11. Tan demudado te he visto; 12. He recibido carta; 13. Imposible que la luna; 14. La Monona; 15. Los paires saben sentir; 16. Por el fin del mundo; 17. Por padecimiento; 18. Qué t’estai pensando, ingrato; 19. Huyendo voy de tus rabias; 20. Qué te trae por aquí; 21. Amigos tengo por cientos; 22. Por la mañanita; 23. El chuico y la damajuana; 24. Por pasármelo toman…; 25. El día de tu cumpleaños.
CD 4: CLICK AQUI PARA BAIXAR EM MP3 DE 320kps. Canções: 1. Las flores; 2. 21 son los dolores; 3. Los mandamientos; 4. El hijo arrepentido; 5. El pueblo; 6. Galambo temucano; 7. Maldigo del alto cielo; 8. Yo canto a la diferencia; 9. Miren cómo se ríen; 10. Arauco tiene una pena; 11. Y arriba quemando el sol; 12. A la una; 13. Escúchame, pequeño; 14. La pericona se ha muerto; 15. Los pueblos americanos; 16. Mañana me voy pa’l norte; 17. Paloma ausente; 18. Por ésta y otras razones; 19. Qué dirá el Santo Padre; 20. Se juntan dos palomitas; 21. Pedro Urdemales; 22. Según el favor del viento; 23. Una chilena en París; 24. Qué he sacado con quererte; 25. Tocata y fuga; 26. El moscardón.
Um dos “heróis” mais celebrados por aqueles que defendem o capitalismo neoliberal, ou seja, uma economia de “free market” sem nenhuma regulação social ou estatal, é o economista Milton Friedman, figura que teve tenebrosas conexões com a ditadura militar de Augusto Pinochet no Chile.
Após o golpe violento de 11 de Setembro de 1973, que derrubou o governo democraticamente eleito de Salvador Allende, o conluio entre as elites financeiras dos EUA e o novo regime ditatorial de Pinochet pôs em ação aquilo que Naomi Klein chamou de “A Doutrina do Choque”. Os “Chicago Boys”, gangue liderada por Friedman e seus comparsas, só pôde impor a “liberalização dos mercados” utilizando-se simultaneamente da proliferação de atrocidades contra todos os cidadãos chilenos que se opunham ao novo regime de ultra-capitalismo que foi imposto de modo autoritário após o assassinato de Allende. A tal da “liberdade dos mercados” andou pari passu com a tortura de 100.000 a 150.000 pessoas, além do assassinato sistemático de opositores do regime (entre eles, o cantor folk Victor Jara e o genial poeta Pablo Neruda).
Em outros cantos da América Latina, ditaduras militares semelhantes também impuseram a abertura dos mercados aos capitais estrangeiros e as portas escancaradas para a chegada das mega-corporações trans-nacionais. Sob a mão férrea dos tiranos de fardas, o Brasil e a Argentina também vivenciaram a truculência da aliança entre a barbárie militarizada e a doutrina econômica neoliberal de Friedman e seus comparsas.
Em um dos livros políticos mais importantes deste século, Naomi Klein expôs claramente esta ainda reprimida verdade histórica sobre o nosso continente: por aqui, o capitalismo neoliberal não chegou após ser escolhido nas urnas pela vontade soberana do povo, mas foi imposto pelos tanques e soldados de ditaduras militares entreguistas, apoiadas ideológica e financeiramente pelos tubarões de Washington e Wall Street. É que a famosa “mão invisível” de Adam Smith jamais pode funcionar sem o truculento punho, muito visível e ameaçador, de um complexo militar-policial-carcerário que foi tão brilhantemente criticado por Foucault e Angela Davis. A “liberdade econômica” pregada pelos neoliberais não passa, assim, de uma farsa sangrenta diante da pilha de cadáveres e dos gritos infindáveis dos torturados e exilados que o “free market” pôs como preço para seu triunfo.
LEIA TAMBÉM: NAOMI KLEIN, “MILTON FRIEDMAN NÃO SALVOU O CHILE”: “Depois do golpe e da morte de Allende, Pinochet e os Chicago Boys fizeram de tudo para desmantelar a esfera pública do Chile , leiloando empresas estatais e cortando as regulações financeiras e comerciais. Foram criadas enormes fortunas neste período de tempo a um custo terrível…”
Cito um trecho crucial de “The Shock Doctrine“:
“Milton Friedman first learned how to exploit a large-scale shock or crisis in the midseventies, when he acted as adviser to the Chilean dictator, General Augusto Pinochet. Not only were Chileans in a state of shock following Pinochet’s violent coup, but the country was also traumatized by severe hyperinflation. Friedman advised Pinochet to impose a rapid-fire transformation of the economy—tax cuts, free trade, privatized services, cuts to social spending and deregulation. Eventually, Chileans even saw their public schools replaced with voucher-funded private ones.
It was the most extreme capitalist make over ever attempted anywhere, and it became known as a “Chicago School” revolution, since so many of Pinochet’s economists had studied under Friedman at the University of Chicago. Friedman predicted that the speed, suddenness and scope of the economic shifts would provoke psychological reactions in the public that “facilitate the adjustment.” He coined a phrase for this painful tactic: economic “shock treatment.”
In the decades since, whenever governments have imposed sweeping free-market programs, the shock treatment, or “shock therapy,” has been the method of choice. Pinochet also facilitated the adjustment with his own shock treatments; these were performed in the regime’s many torture cells, inflicted on the writhing bodies of those deemed most likely to stand in the way of the capitalist transformation. Many in Latin America saw a direct connection between the economic shocks that impoverished millions and the epidemic of torture that punished hundreds of thousands of people who believed in a different kind of society.
As the Uruguayan writer Eduardo Galeano asked, “How can this inequality be maintained if not through jolts of electric shock?” Exactly thirty years after these three distinct forms of shock descended on Chile, the formula reemerged, with far greater violence, in Iraq…
Since the fall of Communism, free markets and free people have been packaged as a single ideology that claims to be humanity’s best and only defense against repeating a history filled with mass graves, killing fields and torture chambers. Yet in the Southern Cone, the first place where the contemporary religion of unfettered free markets escaped from the basement workshops of the University of Chicago and was applied in the real world, it did not bring democracy; it was predicated on the overthrow of democracy in country after country. And it did not bring peace but required the systematic murder of tens of thousands and the torture of between 100,000 and 150,000 people.
Salvador Allende, as he watched the tanks roll in to lay siege to the presidential palace, had made one final radio address suffused with this same defiance: “I am certain that the seed we planted in the worthy consciousness of thousands and thousands of Chileans cannot be definitively uprooted,” he said, his last public words. “They have the strength; they can subjugate us, but they cannot halt social processes by either crime or force. History is ours, and the people make it.”
The seed that Allende referred to wasn’t a single idea or even a group of political parties and trade unions. By the sixties and early seventies in Latin America, the left was the dominant mass culture — it was the poetry of Pablo Neruda, the folk music of Victor Jara and Mercedes Sosa, the liberation theology of the Third World Priests, the emancipatory theater of Augusto Boal, the radical pedagogy of Paulo Freire, the revolutionary journalism of Eduardo Galeano and RodolfoWalsh. It was legendary heroes and martyrs of past and recent history from José Gervasio Artigas to Simon Bolivar to Che Guevara.
Mural em homenagem ao cantor chileno Victor Jara, assassinato pela ditadura Pinochet
In Santiago, the legendary left-wing folk singer Victor Jara was among those taken to the Chile Stadium. His treatment was the embodiment of the furious determination to silence a culture. First the soldiers broke both his hands so he could not play the guitar, then they shot him forty-four times, according to Chile’s truth and reconciliation commission. To make sure he could not inspire from beyond the grave, the regime ordered his master recordings destroyed. Mercedes Sosa, a fellow musician, was forced into exile from Argentina, the revolutionary dramatist Augusto Boal was tortured and exiled from Brazil, Eduardo Galeano was driven from Uruguay and Walsh was murdered in the streets of Buenos Aires. A culture was being deliberately exterminated.
In Chile, Pinochet was determined to break his people’s habit of taking to the streets. The tiniest gatherings were dispersed with water cannons, Pinochet’s favorite crowd-control weapon. The junta had hundreds of them, small enough to drive onto sidewalks and douse cliques of school children handing out leaflets; even funeral processions, when the mourning got too rowdy, were brutally repressed.
In Brazil, the junta did not begin mass repression until the late sixties, but there was one exception: as soon as the coup was launched, soldiers rounded up the leadership of trade unions active in the factories and on the large ranches. According to “Brasil: Nunca Mais (Never Again)”, they were sent to jail, where many faced torture, “for the simple reason that they were inspired by a political philosophy opposed by the authorities.” This truth commission report, based on the military’s own court records, notes that the General Workers Command (CGT), the main coalition of trade unions, appears in the junta’s court proceedings “as an omnipresent demon to be exorcised.” The report bluntly concludes that the reason “the authorities who took over in 1964 were especially careful to ‘clean out’ this sector” is that they “feared the spread of. . . resistance from the labor unions to their economic programs, which were based on tightening salaries and denationalizing the economy.”
Some of the most infamous human rights violations of this era, which have tended to be viewed as sadistic acts carried out by antidemocratic regimes, were in fact either committed with the deliberate intent of terrorizing the public or actively harnessed to prepare the ground for the introduction of radical free-market “reforms.” In Argentina in the seventies, the junta’s “disappearance” of thirty thousand people, most of them leftist activists, was integral to the imposition of the country’s Chicago School policies, just as terror had been a partner for the same kind of economic metamorphosis in Chile.”
– NAOMI KLEIN. The Shock Doctrine: The Rise Of Disaster Capitalism.
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