NEOLIBERALISMO EM ESTADO DE CHOQUE – LIVE: 1º de Maio, 18h – Uma realização A Casa de Vidro, Jornal Metamorfose e GESF

Neste Primeiro de Maio, às 18h, A Casa de Vidro, Jornal Metamorfose e GESF realizam o webdebate ao vivo “Neoliberalismo Em Estado de Choque”. Debatedores convidados: Carolina Gonçalves, Lays Vieira, Eduardo Carli de MoraesPágina do evento no Facebook. Assista pelo Youtube d’A Casa de Vidro:

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Ouça o PODCAST

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Carolina Lima Gonçalves é Professora e Advogada. Mestre em Direitos Humanos pela UFG. Integrante do Grupo de Estudos Sócio Fiscais – GESF/UFG.

Lays B. Vieira Morais é jornalista, cientista social, com mestrado em Ciência Política e em Sociologia, atualmente professora no IFG -Anápolis. Desenvolve pesquisas nas áreas de sociologia fiscal, teoria e filosofia política, regime democrático. Vem trabalhando nos últimos tempos temas como “neoliberalismo e subjetividades” e “neoliberalismo e moralidade”, especialmente com base na autora norte-americana Jodi Dean.

Eduardo Carli de Moraes é jornalista formado pela UNESP e filósofo formado pela USP; mestre em Ética e Filosofia Política pela UFG, atua como professor do Instituto Federal de Goiás (IFG), câmpus Anápolis. Criador e coordenador d’A Casa de Vidro – Ponto de Cultura e Centro de Mídia Independente (www.acasadevidro.com), em atividade na Internet desde Novembro de 2010.

Jornal Metamorfose: criado em 2017, o coletivo de jornalismo independente se pauta pelo compromisso com a verdade enquanto serviço indispensável para as democracias. O jornalismo não existe para ser omisso ou submisso, ele existe para lutar e zelar pela transparência e liberdade.

GESF (Grupo de Estudos Sócio-Fiscais) se concentra sobre o tema da relação entre sociedade e finanças públicas, buscando, por meio de pesquisas, interpretações e achados relacionados a como o tema influência sobre a política, o direito e a cultura na modernidade.

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A insaciabilidade do neoliberalismo
Por Carolina Gonçalves

Ante a polissemia do termo “neoliberalismo” é preciso estabilizar a noção que será abordada no presente debate. Aqui o neoliberalismo será tratado como categoria analítica. Ou seja, não trataremos da retomada das ideias produzidas expoentes intelectuais do neoliberalismo, como Hayek ou Friedman, tampouco faremos a reconstrução histórica de políticas neoliberais já aplicadas a exemplo do trabalho de David Harvey.

Examinar o neoliberalismo como categoria de análise significa se debruçar sobre a operacionalidade do neoliberalismo. Isso dito, tal empreitada impõe a retomada da descrição elaborada por Foucault em 1978 – 1979, no curso ministrado no Collège de France, denominado “Nascimento da Biopolítica”. Foucault descreveu uma nova razão governamental com consciência de si marcada por elementos, estratégias e cálculos econômicos que resultou na inclusão da lógica econômica em áreas inéditas: saúde pública; questões criminológicas, promovendo alterações no modo de existir humano no “homo economicus”, a exemplo da escolha tanto do par afetivo como quantidade de filhos de acordo com o potencial para gerar e desenvolver filhos mais aptos à concorrência.

A cientista política canadense Wendy Brown na obra “El pueblo sin atributos” analisa e atualiza a perspectiva incipiente do neoliberalismo descrito por Foucault. Acrescentando peculiaridades da contemporaneidade que não foram, nem poderiam ter sido vislumbradas por aquele. Ora, Foucault examinou o neoliberalismo no seu limiar, portanto ainda não hegemônico. Enquanto Foucault reconheceu indícios da inundação da economia no modo de existir humano, Wendy Brown dá ênfase à análise dos efeitos dessa razão governamental nos sujeitos.

De acordo com Wendy Brown o neoliberalismo contemporâneo é marcado pela economização de toda a conduta humana, isto é, a expansão máxima do “homo oeconomicus”, todo ato humano passa a ser monetizado, ainda que indiretamente, um bom exemplo são os likes do Instagram. Além disso, a concorrência constante o que impõe que os sujeitos se reconheçam como “capital humano” em busca de constante aperfeiçoamento, auto investimento a fim de melhorar sua posição no jogo econômico.

Wendy Brown (2016, p. 45) pontua as consequências da redução da existência humana a capitais humanos (homo oeconomicus), são elas: a) os sujeitos são capital humano tanto entre si, como para os Estados e as empresas, isto é, os riscos do auto investimento estão a cargo tão somente dos sujeitos, mitigando a responsabilidade dos Estados e das empresas ante o seu fracasso; b) a igualdade deixa de ser natural – no jogo perpétuo da concorrência a desigualdade é naturalizada, uma vez que a existência de perdedores e vencedores é inerente àquele; c) o enfraquecimento da identidade de classe – a redução da condição humana a capital humano abranda o reconhecimento da força de trabalho como categoria e como unidade de luta; d) esvanecimento do ideário em prol das coisas públicas – a lógica individualista e competitiva que norteia o homo economicus enfraquece a concepção de coletivo; e) legitimidade e finalidade do Estado vinculada tão somente ao crescimento econômico – tanto as prioridades do Estado são organizadas de acordo com os interesses do mercado quanto suas ações só se legitimam caso atendam ao crescimento econômico.

Além da transformação dos sujeitos em capital humano a racionalidade neoliberal promove outra alteração profunda nos cidadãos. Segundo Wendy Brown (2016, p. 293) esta mudança é característica da era da austeridade e é denominada como “sacrifício compartido”. As súplicas pelo sacrifício compartilhado surgem tanto dos líderes dos Estados quanto das empresas. Os sacrifícios, em regra, recaem sobre os direitos sociais ou as rendas dos cidadãos que aceitam os martírios em nome do crescimento econômico.

Para Wendy Brown (2016, p. 296) a ideia do sacrifício compartilhado dos tempos de austeridade e sua aceitação se sustentam em dois pilares principais. O primeiro que transfere o sacrifício pela pátria exigido comumente no âmbito militar, da guerra, para o econômico, a concorrência entre os Estados. O segundo decorre do sentido religioso e secular que o sacrifício ocupa nas coletividades, aqui o auto sacrifício se dá em prol do poder do supremo do mercado.

Esses dois pilares são veiculados incessantemente, pois sem eles o auto sacrifício necessário nos tempos de austeridade não se efetiva já que as políticas de austeridade não apresentam os mecanismos pelos quais se dará o retorno para aqueles que serão sacrificados, tampouco a nação é a beneficiária do sacrifício, mas a economia, embora este seja feito em nome daquela.

Assim, de acordo com a perspectiva apresentada por Foucault e desenvolvida por Wendy Brown, na operacionalidade do neoliberalismo contemporâneo o que há é uma razão estruturada suficientemente para fazer com que os indivíduos aceitem serem autorresponsáveis por todos os riscos a que estão sujeitos, ainda que não possam ser responsabilizados por boa parte dos fatores que definem o lugar que ocupam na economia, a exemplo da situação econômica de sua família e os talentos que possuem, bem como tolerem que até a segurança mínima deixe de ser dada pela coletividade e passe a ser uma questão individual. Ademais, nos tempos de crise se sujeitem ao auto sacrifício mesmo sem qualquer indício de que este reverterá a seu favor.

Isso dito, encarar o fenômeno atual da pandemia de covid-19 como um elemento catalisador apto a enfraquecer ou mitigar a razão governamental neoliberal implica verificar a superação da nossa visão como “capitais humanos”, alteração da ideia de comunidade construída nas últimas décadas, mudança da nossa compreensão ética de coletividade e superação da naturalização da exclusão. Elementos que, ainda, não se apresentam no horizonte de observação, vez que a economia fundada na financeirização é uma economia fundada no privilégio e na naturalização da desigualdade.

CAROLINA LIMA GONÇALVES


 

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NA ERA DOS MASSACRES NEOLIBERAIS

“Nem mesmo os mortos estarão a salvo do inimigo caso ele ganhe, e esse inimigo não cessou de ser vitorioso.”
WALTER BENJAMIN, Teses Sobre o Conceito de História

Ilusões ingênuas sobre o “capitalismo com rosto humano” vão colapsando no continente: o capitalismo desumano se desnuda. O Chile insurgente obriga o que resta do sistema Pinochetista a conceder a Constituinte, e o país passará em breve pelo duro processo de parto da Constituição nova em 2020; a Colômbia realiza as maiores greves gerais das últimas décadas, na esteira da vitória do movimento cívico do Equador, que obrigou Lênin Moreno a recuar de seu pacto com o FMI; na Bolívia, após a derrubada do governo do MAS, proliferam as atrocidades cometidas pela “Direita Gospel” que “pôs a Bíblia de novo no Palácio Quemado”.

A derrota eleitoral de Macri na Argentina é outro sinal de que as políticas neoliberais não encontram mais tanto respaldo nas urnas. No Brasil, assim como se deu no Chile a partir do golpe de 1973, após o Golpe de 2016 vimos o exacerbamento das núpcias sinistras entre neoliberalismo e fascismo (tema explorado no novo livro de Wendy Brown). E assim o neoliberalismo vai se mostrando pelo que é: as convulsões de agonia de um sistema moribundo e massacrante.

Os massacres na Bolívia, que a mídia burguesa tenta encobrir, afundam ainda mais na impossibilidade a manutenção da ilusão de que estaríamos lidando com “capitalistas humanitários” – nós estamos é lidando com a barbárie mesmo. Com a selvageria fascista abraçada ao fundamentalismo dos mercados de capitais. Como diria Rosa Luxemburgo, a alternativa básica, nossa encruzilhada elementar, é mesmo a escolha entre Socialismo e Barbárie. Mas como disse depois Daniel Bensaïd, “na luta secular entre o socialismo e a barbárie, a barbárie ganha de longe.” [1]

A palavra Resistência, hoje, só faz sentido se for aquele “freio de emergência” que Walter Benjamin usava como metáfora da revolução. Resistência à barbárie que começa por não permitirmos, por nada, que os tiranos possam nos massacrar impunemente e abafando a própria notícia de seus crimes. Os mortos nos massacres na Bolívia, tanto quanto os mortos nos massacres de Paraisópolis ou dos morros do Rio de Janeiro, precisam ser salvos do esquecimento, do eclipse, do ocultamento debaixo dos tapetes da tirania. Sobre o Massacre em El Alto, no bairro Senkata, em 19 de Novembro de 2019, relata uma reportagem:

Naquele dia, “em que havia muita fumaça e helicópteros” em El Alto, a autoproclamada presidenta Jeanine Áñez determinou uma megaoperação policial-militar para retomar a unidade da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), ocupada por manifestantes contrários ao golpe. Nacionalizada pelo governo de Evo Morales, a estatal é um dos símbolos maiores do orgulho e da autoestima bolivianas, e tem sido central no aporte ao desenvolvimento soberano e à redistribuição de renda. (Fonte: Carta Maior / Outras Palavras).

(…) [Durante o massacre] havia um ódio dirigido especialmente contra as senhoras de pollera (as saias indígenas), que os soldados faziam com que se ajoelhassem. Um senhor mais velho se ajoelhou e abriu os braços suplicando para que o matassem, mas poupassem os seus filhos, os jovens, que tinham muito ainda para viver. Mas os militares os mataram a sangue frio. E foram muitos”. Pergunto sobre os números de vítimas, completamente destoantes das cifras oficiais. Ao que ela responde: “são tantos os desaparecidos, corpos jogados no monte Ilimany, no vale Achocalla e no monte de Villa Ingenio”. “O fato é que todos têm medo de falar, por nada no mundo querem se arriscar, mas o fato é que há muito mais mortos…” [2]

SAIBA MAIS:

Poucos dias antes, o Massacre de Cochabamba, em 15 de novembro, já havia deixado explícito o caráter dos que se apossaram do poder após o golpe de Estado que “pôs a Bíblia de volta no Palácio Quemado” com a posse de uma presidenta auto-proclamada diante de um congresso sem quórum, ungida pelas forças armadas e pelos latifundiários de Santa Cruz de La Sierra. Foram 9 manifestantes assassinados pela repressão brutal de um estado terrorista já apelidado por alguns de Ditadura Gospel, um “recado” escrito em sangue para os que resistem ao golpe.

O massacre, ainda que moralmente repugnante, é utilizado como meio aceitável por uma elite apegada a seus privilégios e temerosa dos movimentos igualitários; o massacre então funciona como estratégia para apavorar a população resistente e submetê-la assim ao pseudo-consentimento dos apavorados. No Democracy Now, encabeçado pela jornalista Amy Goodman, temos uma janela de acesso às notícias sobre a conjuntura na Bolívia após a deposição do governo de Evo Morales e Garcia Linera. Pachamama sangra enquanto aumenta a criminalização das populações indígenas e dos ativistas do MAS. Signos de que estão de novo sangrando aos borbotões as veias abertas da América Latina.

“In Bolivia, at least 23 people have died amid escalating violence since President Evo Morales, the country’s first indigenous president, resigned at the demand of the military last week. Growing unrest quickly turned to violent chaos on Friday outside Cochabamba when military forces opened fire on indigenous pro-Morales demonstrators, killing at least nine people and injuring more than 100. The violence began soon after thousands of protesters — many indigenous coca leaf growers — gathered for a peaceful march in the town of Sacaba and then attempted to cross a military checkpoint into Cochabamba. Amid this escalating violence and reports of widespread anti-indigenous racism, protesters are demanding self-declared interim President Jeanine Áñez step down. Áñez is a right-wing Bolivian legislator who named herself president at a legislative session without quorum last week. She said that exiled socialist President Morales, who fled to Mexico after he was deposed by the military on November 10, would not be allowed to compete in a new round of elections and would face prosecution if he returned to Bolivia, which has a majority indigenous population.” [3]

No Chile, apesar das diferenças em relação à Bolívia no que tange à conjuntura política, as mega-manifestações contra o governo Piñera também sofreram com uma brutal repressão análoga àquela que se derrubou sobre os defensores do governo deposto de Evo Morales e Garcia Linera. Os mortos, feridos e cegados se multiplicam sem que esta estratégia estatal terrorista logre de fato calar os protestos. Em 16 de Novembro de 2019, dados oficiais divulgados pelo governo estimavam 23 mortos nos protestos, um número de feridos acima de 2000 e de presos acima de 6000. São números que indicam bem o tamanho do amor do neoliberalismo pela democracia: zero.

No caso das mobilizações feministas, houve um efeito de viralização internacional do “hit das ruas” que acusa: “O Estado opressor é um macho violador”. Para além das fronteiras chilenas, mulheres de todo o planeta estão replicando a performance-protesto e dizendo aos violadores: “E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como me vestia”.

Um detalhe cruel do processo repressivo perpetrado pelos carabineros chilenos são as balas de borracha disparadas contra os olhos dos manifestantes: calcula-se em mais de 200 pessoas que perderam a visão nos protestos de 2019. Qualquer justificativa de autoridades deste governo que visasse apontar os olhos explodidos como episódios isolados colapsa diante de um número que prova que tais atrocidades são propositais e recorrentes. Segundo o Correio Brasiliense, pelo menos 285 pessoas “sofreram traumas oculares graves, inclusive com a perda de visão, atingidos pelo disparo de balas de borracha e granadas de gás lacrimogêneo.”

Uma das histórias ocultadas e recalcadas pelos neoliberais hoje empoderados diz respeito ao verdadeiro “laboratório” da economia política neoliberal: o Chile de Pinochet. Em seu artigo mais recente em El País, o filósofo Vladimir Safatle rompe com este ocultamento e diz claramente que o neoliberalismo não começa com Reagan e Tatcher, mas sim sob os escombros ensanguentados do governo Allende, deposto num violento golpe militar que trouxe ao poder os milicos amigados com os Chicago Boys. Naomi Klein já contou esta história em minúcias no indispensável A Doutrina do Choque. Safatle, diante da figura pavorosa de Paulo Guedes, ministro da Economia que é fã do Pinochetismo Neoliberal, recupera o vínculo umbilical entre ditadura militar e instalação do neoliberalismo na América Latina:

“A liberdade do mercado só pode ser implementada calando todos os que não acreditam nela, todos os que contestam seus resultados e sua lógica. Para isto, é necessário um estado forte e sem limites em sua sanha para silenciar a sociedade da forma mais violenta. O que nos explica porque o neoliberalismo é, na verdade, o triunfo do estado, e não sua redução ao mínimo.

Que lembrem disso aqueles que ouviram o sr. Paulo Guedes falar em AI-5 nos últimos dias. Isso não foi uma bravata, mas a consequência inelutável e necessária de sua política econômica. Como se costuma dizer, quem quer as causas, quer as consequências. Quem apoia tal política, apoia também as condições ditatoriais para sua implementação. O neoliberalismo não é uma forma de liberdade, mas a expressão de um regime autoritário disposto a utilizar todos os métodos para não ser contestado. Ele não é o coroamento da liberdade, só uma forma mais cínica de tirania.” SAFATLE (El País, 2019) [4]

A cínica tirania Bolsonarista tem em Moro e Guedes duas de suas lideranças mais brutais, que querem o silenciamento pleno do dissenso e da discórdia: que ninguém ouse protestar se não quiser que se instaure um AI-5 versão 2019, e que ninguém ouse lembrar que o Sr. Ministro da Justiça, que influiu criminosamente no processo eleitoral de 2018 ao prender injustamente aquele que seria eleito presidente, está querendo aprovar os “excludentes de ilicitude” que são carta branca para a PM matar geral nas favelas e nos protestos. O ideal desta gente nefasta é mesmo o Chile de Pinochet.

Na ocasião em que o governo da União Popular, eleito em 1970, foi brutalmente golpeado pelas atrocidades militares que marcaram o 11 de Setembro de 1973, para a instalação da ditadura capitalista encabeçada por Pinochet, com seus últimos alentos o presidente socialista Salvador Allende, ciente de estar entrando no panteão dos mártires, pronunciou frases que os chilenos jamais esqueceriam: “Antes do que se pensa, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor.”

Afundando na morte mas não no esquecimento, Allende tentava incentivar, em seu último ato, os que ficavam entre os vivos a permanecerem na luta por tempos menos sórdidos, encarando todos os horrores de uma Santiago ensanguentada. Um ano depois, as últimas palavras de Allende inspirariam uma das mais belas canções do cantor e compositor cubano Pablo Milanés, “Yo pisaré las calles nuevamente” (letra abaixo). Neste videoclipe, as insurreições populares no Chile, em 2019, contra o governo neoliberal e direitista de Piñera, as imagens de Santiago fervilhante de inquietação cívica são acompanhadas pela música de Milanés, evocatórias de Allende, numa bela obra que mescla as conturbações do presente com a lembrança fecunda do passado:

“Yo pisaré las calles nuevamente
de lo que fue Santiago ensangrentada,
y en una hermosa plaza liberada
me detendré a llorar por los ausentes.

Yo vendré del desierto calcinante
y saldré de los bosques y los lagos,
y evocaré en un cerro de Santiago
a mis hermanos que murieron antes.

Yo unido al que hizo mucho y poco
al que quiere la patria liberada
dispararé las primeras balas
más temprano que tarde, sin reposo.

Retornarán los libros, las canciones
que quemaron las manos asesinas.
Renacerá mi pueblo de su ruina
y pagarán su culpa los traidores.

Un niño jugará en una alameda
y cantará con sus amigos nuevos,
y ese canto será el canto del suelo
a una vida segada en La Moneda.

Yo pisaré las calles nuevamente
de lo que fue Santiago ensangrentada,
y en una hermosa plaza liberada
me detendré a llorar por los ausentes.”
Pablo Milanés

A sangrenta repressão que o autoritarismo estatal vem impondo na Bolívia e no Chile evocam episódios históricos semelhantes e que demonstram a constância da brutalidade reacionária. O exemplo mais emblemático disso segue sendo, talvez, a Comuna de Paris, que em 1871 foi brutalmente massacrada pelas forças reacionárias que tinham se exilado em Versalhes, preparando a carnificina contra os communards parisienses. As elites, destronadas, não costumam ter escrúpulos morais em relação ao emprego da violência assassina para que recuperem um poder de que estão sendo alijadas:

“A Comuna de Paris terminou em massacre. Durante a chamada Semana Sangrenta, 35 mil pessoas foram executadas nas ruas da capital francesa, numa repressão sistemática que se configurou em extermínio de massa. Além disso, 10 mil comunardos foram deportados para a Nova Caledônia…” (TRAVERSO, Enzo, 2019, p. 93) [5]

O sangue das 35.000 vítimas da Comuna de Paris não pode ser esquecido por ninguém que queira manter a lucidez em suas decisões de natureza política: logo após a massacrante repressão de maio de 1871, que encerrou o experimento revolucionário comunista em Paris, Marx escreveria, em A Guerra Civil na França, palavras que não permitiam, diante da derrota, o desânimo:

“A sociedade moderna é o solo onde cresce o socialismo, que não pode ser estancado por nenhum massacre, não importa de que dimensão. […] A Paris operária, com sua Comuna, será eternamente lembrada e celebrada como o arauto de uma nova sociedade. Seus mártires estarão consagrados no coração das classes trabalhadoras. A história de seus exterminadores já foi cravada no pelourinho eterno de onde todas as rezas de seus padres não conseguirão jamais redimi-los.” – KARL MARX [6]

Nas ruas de La Paz, em Novembro de 2019, a barbárie ganhou um novo emblema: os caixões dos manifestantes mortos em El Alto foram envolvidos pelas nuvens de gás lacrimogêneo e pelo corre-corre da multidão em dispersão. Não, o capitalismo neoliberal massacrante não quer nem mesmo permitir que choremos nossos mortos. Se deixarmos, enfiarão de novo um monte de esqueletos nos armários. E nos mandarão, aos chutes, para os shopping centers e hipermercados para que continuemos comprando, bestificados e catatônicos.

Sinal da banalidade do mal que ainda é nossa contemporânea, o ocultamento e a normalização dos massacres neoliberais indica que a desumanidade humana ainda tem muito futuro – e que à Resistência antifascista não faltará trabalho nem mártires a chorar. A mídia burguesa irá seguir ocultando, o quanto puder, os massacres de El Alto e de Cochabamba, ou os crimes contra a humanidade cometidos pelos carabineiros chilenos, ou a grave situação humanitária em Altamira, na Amazônia brasileira, onde em 2019 ocorreu o pior massacre carcerário desde o Carandiru.

Se permitirmos, nem mesmo os que morreram ou perderam os olhos na luta contra o Mammon neoliberal estarão a salvo da boçalidade do mal que se manifesta em Bolsonaros, Trumps e Piñeras. A Necropolítica do burgofascismo não só mata, ela oculta de nossa consciência suas atrocidades. É também nossa tarefa, enquanto cidadãos que podem hoje também agir como mídia independente, sacar seus celulares e blogs, mobilizar seus feeds e redes, para impedir que as carnificinas perpetradas pelas classes dominantes – que hoje mesclam neofascismo e neoliberalismo – possa cair na indiferença e no esquecimento.

Carli, Dez. 2019

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] BENSAÏD, D. apud TRAVERSO, Melancolia de Esquerda: Marxismo, História e Memória, 2019, pg. 27.

[2] SEVERO, Leonardo Wexell. Bolívia: o massacre que os neoliberais tentam encobrir. 2019.

[3] DEMOCRACY NOW! Massacre in Cochabamba: Anti-Indigenous Violence Escalates as Mass Protests Denounce Coup in Bolivia. 15/11/2019.

[4] SAFATLE, VladimirA Ditadura do Sr. Guedes. El País, Dez. 2019.

[5] TRAVERSO, Enzo, Melancolia de Esquerda: Marxismo, História e Memória, 2019, p. 93.

[6] MARX, Karl. A Guerra Civil na França, trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011. Apud #1, p. 93.

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