:: Mesmo Que o Céu Não Exista ::

 

A abolição da religião como a felicidade ilusória do povo é necessária para sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões sobre sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, portanto, em embrião, a crítica do vale das dores, cuja auréola é a religião. A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crítica da religião desaponta o homem com o fito de fazê-lo pensar, agir, criar sua realidade como um homem desapontado que recobrou a razão, a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol.
Karl Marx, Crítica à filosofia do direito de Hegel


Constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua pretensa santidade, esses mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e imutabilidade. As pessoas compreenderiam que são elaborados, não tanto para dominá-las, mas, pelo contrário, para servir a seus interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com eles e, em vez de visarem à sua abolição, visariam unicamente à sua melhoria.

Sigmund Freud
, O futuro de uma ilusão

 

Poucas idéias foram mais impactantes sobre o pensamento do século 20 quanto o diagnóstico nietzscheano da “morte de Deus” e suas consequências. É verdade que Nietzsche não foi o primeiro filósofo explicitamente ateu: a negação da existência de um Deus único, criador do Universo e do homem, “fonte” dos valores que norteiam os atos humanos, e que “gerenciaria” a vida humana a partir de uma dimensão transcendente, atravessa os séculos. Na Grécia antiga já emergem os primeiros filósofos atomistas e materialistas, como Demócrito e Epicuro (este depois retomado por seu discípulo romano Lucrécio), iniciadores de uma longa tradição de pensadores críticos da religião e fiéis ao materialismo, dentre os quais podemos elencar Meslier, Holbach, Spinoza, Feuerbach, Schopenhauer, Marx, Freud, Camus, Dawkins, entre muitos outros.

Não há dúvida, porém, de que o autor de O Anticristo foi um dos pensadores que com mais profundidade e audácia refletiu sobre o ateísmo e aquilo que decorre dele, tanto no campo filosófico quanto na vida prática. Nietzsche, ao constatar que entre seus contemporâneos europeus “a crença no Deus cristão caiu em descrédito”[1], fez-se arauto de uma nova era em que o domínio do cristianismo e da moral judaico-cristã declinante seriam substituídos por um outro sistema de valores e de pensamento. “Parece justamente que algum sol se pôs, que alguma velha, profunda confiança virou dúvida” (op. cit.). O filósofo percebeu ainda que não se podia desvincular este declínio da fé da concomitante crise da moral ligada a ela: “depois de solapada essa crença”, não é somente a religião que se vê posta no banco dos réus, mas “tudo quanto estava edificado sobre ela, apoiado a ela, arraigado nela; por exemplo, toda a nossa moral européia.”[2]

Nietzsche assim resume tudo que se esboroa com a “morte de Deus” e a “vitória do ateísmo científico”:

Considerar a natureza como se ela fosse uma prova da bondade e custódia de Deus; interpretar a história em honra de uma razão divina, como constante testemunho de uma ordenação ética do mundo com intenções finais éticas; interpretar as próprias vivências, como a interpretavam há bastante tempo homens devotos, como se tudo fosse providência, tudo fosse aviso, tudo fosse inventado e ajustado por amor da salvação da alma: isso agora passou… isso, para toda consciência mais refinada, passa por indecoroso, desonesto, por mentira, efeminamento, fraqueza, covardia…[3]

A moral judaico-cristã, baseada em valores como ascetismo, resignação, humildade, castidade, auto-mortificação, dentre outros, é criticada com severidade por Nietzsche por ser “hostil à vida” (“dirige o olhar, verde e maligno, contra o próprio prosperar fisiológico”[4]), sexualmente repressora (“conseguiu fazer de Eros e Afrodite duendes infernais”[5]) e politicamente reacionária (“moral de escravos”, baseada na submissão e na obediência).

Nietzsche diagnostica na doutrina judaico-cristã um “ressentimento” contra os prazeres terrestres, uma aversão a tudo que é “mundano”, dimensões estas que são tidas como “inferiores” em relação a uma suposta “dimensão transcendente”.

“Ódio contra o humano, mais ainda contra o animal, mais ainda contra o material, essa repulsa aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, esse anseio por afastar-se de toda aparência, mudança, vir-a-ser, morte, desejo, anseio mesmo – tudo isso significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma má-vontade contra a vida…” [6].

Ou seja, a moral cristã não passaria de um “doentio moralismo que ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos”[7].

Os “sistemas morais” de outros filósofos com quem Nietzsche dialogou tampouco o satisfaziam. Basta lembrar que a moral do “grande pessimista” Schopenhauer, centrada na “negação da vontade-de-viver”, na busca de um “Nirvana” de inspiração budista, é tida por Nietzsche  como um sintoma de niilismo e decadência. Também contra a moral kantiana voltou-se o ferino “martelo” nietzscheano, que pôs em questão a pretensão de Kant de “tornar plano e sólido o chão para majestáticos edifícios éticos” (Crítica da Razão Pura, II, p. 257). A noção de Deus como um “postulado da razão prática”, exposta por Kant em sua segunda Crítica, é desdenhada por Nietzsche como uma artimanha para fazer Deus reentrar pela porta dos fundos depois da Crítica da Razão Pura tê-Lo expulso pelo portão da frente e O exilado no porão das idéias metafísicas incognoscíveis pela razão humana.

O ateísmo nietzscheano, pois, conduz a uma reviravolta de valores em relação ao cristianismo: “não encontramos nenhum deus, nem na história nem na natureza, nem por trás da natureza – mas sim sentimos aquilo que foi venerado como Deus, não como ‘divino’, mas como digno de lástima, como absurdo, como pernicioso, não somente como erro mas como crime contra a vida…“[8] A isto Nietzsche contrapõe o espírito-livre, criador de valores, afirmador-do-mundo, ao mesmo tempo “anti-cristo e anti-niilista”, cuja nobreza moral consiste “no sentimento da plenitude, da potência que quer transbordar, a felicidade da alta tensão, a consciência de uma riqueza que gostaria de dar e prodigalizar – também o homem nobre ajuda o infeliz, mas não, ou quase não, por compaixão, mas mais por um ímpeto gerado pelo excedente de potência.” [9]

Como Nietzsche destaca ainda, na Genealogia da Moral, “toda moral nobre brota de um triunfante dizer-sim a si próprio”[10].

De modo que, ao enfatizar a necessidade de uma transvaloração de todos os valores, Nietzsche fazia um apelo (que persiste a ressoar) para que os pensadores posteriores a ele se dedicassem à tarefa de fundamentar a ética sobre outras bases que não aquelas fornecidas pelo monoteísmo, mas superando também tanto o kantismo quanto o niilismo schopenhaueriano. Após o trabalho de “demolição” da moral judaico-cristã, era necessário construir em seu lugar um edifício moral habitável por “espíritos livres”, dionisíacos, afirmadores, fiéis à terra, ébrios de vida, cuja  imagem modelar é o sábio Zaratustra, que dança em celebração da inocência do devir.

O ateísmo francês contemporâneo, que possui em André Comte-Sponville, Michel Onfray e Marcel Conche alguns de seus luminares mais expressivos, procura fornecer respostas ao problema da construção de uma “ética não-religiosa”. Estes autores, que no essencial concordam plenamente com a crítica nietzscheana das “ilusões metafísicas” (cristalizadas em conceitos como Deus, alma imortal, Paraíso, redenção, salvação…), procuram dar prosseguimento à “missão” de edificar morais autônomas em relação à religião e que nos auxiliem a agir em meio às situações mais urgentes de nosso tempo.

Se nos referimos a “ecos” de Nietzsche no ateísmo francês contemporâneo foi pela consideração de que estes filósofos não são “seguidores”, “comentadores” ou “continuadores ortodoxos” da filosofia nietzschiana. Um eco implica a ideia de uma certa distância em relação à fonte emissora do som (o que nos pareceu uma boa imagem para indicar as diferenças históricas que existem entre nossos tempos e o de Nietzsche , já este não conheceu, por exemplo, os kamikazes, os homens-bomba e o terrorismo de motivação religiosa). Além disso, um eco, ao invés de ser uma repetição idêntica daquilo que foi originalmente dito, sugere a dispersão, a distorsão, a modificação do som ao embarcar em outros “cenários”. Em suma: Sponville, Onfray e Conche não são “papagaios” de Nietzsche, que fossem repetir o que este já enunciou, mas são indubitavelmente “herdeiros” da devastadora crítica do filósofo alemão à moral judaico-cristã que procuram, cada um a seu modo, mas todos mantendo-se no âmbito do ateísmo materialista, refletir sobre a questão da ética num “mundo desencantado” (Weber). Uma das “tarefas” a que eles se propõem é justamente aquela que Nietzsche  procurou realizar: uma “transvaloração”, ou melhor, a edificação de uma nova ética, livre de sua servidão em relação à religião, digna de espíritos livres e fiel à existência terrestre, com todas as suas dificuldades, iniquidades e tragédias.

Michel Onfray, autor do Tratado de ateologia e da Contra-História da Filosofia (obra em 6 volumes), escreve: “em toda parte constatei quanto os homens fabulam para evitar olhar o real de frente. A criação de além-mundos não seria muito grave se seu preço não fosse tão alto: o esquecimento do real, portanto a condenável negligência do único mundo que existe. Enquanto a crença indispõe com a imanência, portanto com o eu, o ateísmo reconcilia com a terra, outro nome da vida[11].”

Intercalando Nietzsche com conceitos freudianos, sustenta que “a religião provém da pulsão de morte” (p. 52) e que o resultado de seu império sobre os homens é “a vida crucificada e o nada celebrado” (p. 53).

Uma das tarefas da “ateologia”, sugere Onfray, seria “produzir no Ocidente as condições de uma verdadeira moral pós-cristã em que o corpo deixe de ser uma punição, a terra um vale de lágrimas, a vida uma catástrofe, o prazer um pecado, as mulheres uma maldição, a inteligência uma presunção, a volúpia uma danação” (p. 47). Em busca dos fundamentos desta nova moral a edificar, ele irá dialogar com várias “correntes éticas”: o utilitarismo de Bentham e Mill, o “humanismo laico” de Luc Ferry e seu “homem-Deus”, o hedonismo de molde epicurista, e sobretudo a “transvaloração de todos os valores” de Nietzsche — e sempre procurando manter-se “na mais radical imanência” (Op. cit., p. 48).

“Tenho horror ao obscurantismo, ao fanatismo, à superstição”, escreve por sua vez André Comte-Sponville. “Também não gosto do niilismo nem da apatia. A espiritualidade é importante demais para que a abandonemos aos fundamentalistas.” Em seu esforço para mostrar que a ética independe da fé, o autor destaca que as virtudes possuem um valor intrínseco, independente da crença religiosa, não necessitando da religião como fundamento:

“Sinceramente, será que você precisa acreditar em Deus para pensar que a sinceridade é melhor do que a mentira, que a coragem é melhor do que a covardia, que a generosidade é melhorque o  egoísmo, que a doçura e a compaixão são melhores do que a violência ou a crueldade, que a justiça é melhor que a injustiça, que o amor é melhor do que o ódio? Claro que não! (…) Os que não têm fé, por que seriam incapazes de perceber a grandeza humana desses valores, sua importância, sua necessidade, sua fragilidade, sua urgência, e respeitá-los por isso?”[12]

A posição de Marcel Conche também se caracteriza por uma explícita influência nietzschiana, sendo que uma das tarefas a que se propõe sua filosofia é “dar à moral um fundamento completamente independente da religião”[13]. Sensível ao que o diretor geral da UNICEF chamou, em 1980, de uma “urgência silenciosa”, referindo-se às mais de 800 milhões de pessoas no mundo vivendo na “pobreza absoluta” e às 12 milhões de crianças mortas de fome e de doenças evitáveis em 1979, Conche enfatiza “a urgência da ajuda às populações mal nutridas e de remédios eficazes para abrandar o subdesenvolvimento” (op. cit., p. 35). A percepção de uma distribuição de riquezas e alimentos tremendamente desigual pode ser um impulso absolutamente secular e autônomo em relação à religião para que sujeitos realizem atos de caridade, generosidade, ativismo político em prol de transformações sociais etc.

“Com efeito”, escreve Conche, “a moral começa por reconhecer a existência do mal, a existência, por exemplo, de condições, de situações indignas, incompatíveis com o respeito devido ao ser humano. É reação à miséria, à injustiça. Como se viu, ela comporta o reconhecimento de um direito e de um dever de suprimir o mal e a desordem vinculados a situações desumanas, de um direito e de um dever de revolta contra uma ordem humana injusta e de subversão razoável dessa ordem que não é uma ordem.” (op. cit., p. 80)

O “problema central” que nos propomos a investigar, pois, pode ser formulado assim: como construir uma “ética irreligiosa”, autônoma em relação à fé, inimiga tanto dos fanatismos quanto dos niilismos?  Que novo sistema de valores deve ser instituído e como eles operariam dentro de um “cosmos dessacralizado”[14]?

Tal problemática envolve as respostas que estes autores dão à sugestão do personagem de Dostoiévski, em Os Irmãos Karamazovi, que sustenta que “se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Concordam eles com este prognóstico de que um mundo sem fé seria dominado pelo caos do “niilismo moral”? Ou é falso supor que o ateísmo conduziria ao niilismo (à derrocada de todos os valores, ou seja, ao “tudo tanto faz!” de outro personagem dostoiévskiano, o protagonista de Sonho de um Homem Ridículo)?

E ademais: já que a ética de fundamentação religiosa baseia-se na idéia de um Juiz Supremo, vingador e recompensador, que julga os atos humanos e decide se eles são merecedores de castigo ou prêmio no pós-vida, o ateísmo contemporâneo vê-se diante de problemas como: qual o valor de um sistema ético desta estirpe, centrado nos afetos do medo e da esperança? Que consequências concretas para as sociedades traz esta crença em um Paraíso e um Inferno post mortem onde seríamos punidos ou recompensados? Será possível pôr em prática uma moral alternativa, plenamente atéia e radicalmente imanente, que não se baseasse nesta lógica do torrão de açúcar e do chicote? Será possível manter viva a noção de uma existência virtuosa num universo ateu, que fundamente a ética sobre conceitos autônomos em relação à fé, tais como racionalidade, virtude, amor, dignidade humana e sabedoria?


[1] NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Livro V, §343. In: Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 464 p (Os Pensadores).  Texto original de 1886.
[2]
Op. cit., p. 195.
[3]
Op. cit. p. 203.
[4]
A Genealogia da Moral. Terceira Dissertação, §11. p. 358.
[5]
Aurora, §76. P. 149.
[6]
A Genealogia da Moral. §28.
[7]
A Genealogia da Moral. II. §7.
[8]
O Anticristo, §47.
[9]
Para além de bem e mal, Cap. 9, §260.
[10]
Op. cit., §10
[11]
ONFRAY, M. Tratado de ateologia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.XVIII.
[12] COMTE-SPONVILLE, André. O Espírito do Ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[13] CONCHE, M. O fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 13.
[14]
A expressão é de Mircea Eliade, (in: O sagrado e o profano. 2 ed. São Paulo, Martins Fontes, 2008), e nos parece ser análoga às noções de “desencantamento do mundo”, de Max Weber, e “morte de Deus”, em Nietzsche.

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Um dos mais ilusórios e danosos preconceitos que muitas pessoas religiosas nutrem é acreditar que a “bondade” só existe como decorrência da fé. Na vida cotidiana não é raro depararmos com pessoas que sustentam que haveria uma indissociabilidade entre “comportamento ético” e religiosidade. Assim reza seu credo: “É impossível ser bom e não crer em Deus ao mesmo tempo”. A crença seria, nesta visão, aquilo que salva a moral de desmoronar na ineficácia, aquilo sem o quê os atos morais careceriam de motivação. A ausência da fé, prossegue este argumento, conduziria ao “caos moral”, ao niilismo, à perversidade, ao “tudo é permitido” de que fala Karamazov…

As raízes históricas desta noção são muito antigas: como nos lembra Étienne Gilson, a palavra “libertino”, celebrizada no século XVII, referia-se àqueles que, após deixarem de lado a noção de um “Juiz supremo, remunerador e vingador”, tornavam-se “débauchés” (palavra francesa que designa devassos, perversos, “sem-vergonha”)[1]. A tese de que o abandono da religião equivale à “queda” na mais completa perversão moral é uma recorrente “paranóia” dos devotos que os ateus de hoje ainda penam para desfazer. Trata-se de mostrar que nem todo ateu torna-se um Marquês de Sade, do mesmo modo que nem todo crente é um Santo Agostinho.

Onfray: “Persiste a velha idéia do ateu imoral, amoral, sem fé nem lei ética. O lugar-comum segundo o qual ‘se Deus não existe, então tudo é permitido’ continua produzindo efeitos, e de fato a morte, o ódio e a miséria são associados a indivíduos que invocariam a ausência de Deus para cometer seus crimes. Essa tese equivocada merece ser bem e devidamente desmontada. Pois o inverso me parece bem mais verdadeiro: ‘Porque Deus existe, então tudo é permitido…[2]

Contra esta noção que vê a moral como dependente da religião há numerosas críticas, presentes até mesmo em autores como Kant, que afirmava a necessidade de uma moral autônoma e sustentava que qualquer ato realizado por esperança ou temor não tinha valor moral (pois aí o interesse próprio falava mais alto que o respeito ao dever). O filósofo de Königsberg sugere que imaginemos a hipótese de que a existência de Deus seja comprovada, deixando de ser uma questão de fé para tornar-se uma certeza inabalável, uma evidência indubitável para todos os humanos. Quais seriam as consequências disso?

“Deus e a eternidade, com sua majestade temível, estariam sem cessar diante de nossos olhos”, pontua Kant. “A transgressão da lei seria sem dúvida evitada, o que é ordenado seria cumprido; mas (…) a maioria das ações conformes à lei seria produzida pelo temor, somente algumas pela esperança e nenhuma por dever, e o valor moral das ações… não existiria mais.” [3]

É o que André Comte-Sponville pontua, por sua vez, que:

as ideias de recompensa e de castigo, de esperança e de temor, são radicalmente alheias à moral e, se absolutizadas, pervertem-na necessariamente. (…) Agir moralmente é agir de forma desinteressada, mostra Kant, o que supõe que cumpramos com nosso dever ‘sem nada esperar por isso’. Aplaudo enfaticamente.[4]

Outro filósofo com um ideário semelhante, e com quem Nietzsche  estabeleu um intenso diálogo, é Schopenhauer. Este sugere que “vemos a religião em sua agonia de morte agarrar-se à moralidade, querendo fingir que é sua mãe; mas isto não corresponde à verdade! A moral genuína não é dependente de nenhuma religião, apesar de toda religião as sancionar e oferecer-lhes suporte”. Schopenhauer sugere, fiel à crítica de Lucrécio e Spinoza às superstições, que “religiões são a prole da ignorância e não sobrevivem por muito tempo à morte de sua mãe”, sugerindo que a progressiva aquisição de conhecimento e sabedoria iria fazer com que “a humanidade superasse a religião como alguém que cresce e não cabe mais nas roupas da infância” [5].

A presença desta crítica de uma moralidade baseada em ameaças de punição e promessas de recompensa (aliás muito assemelhada às modernas técnicas behavioristas de controle comportamental estudadas por B.F. Skinner), é fortíssima no cenário contemporâneo. A crítica à noção de que os religiosos possuiriam o “monopólio do coração”, para usar uma expressão de Sponville, está presente no discurso de artistas (tais como Woody Allen), líderes políticos (Fidel Castro), intelectuais-ativistas (como Peter Singer) e cientistas (como o filósofo-darwinista Daniel Dennett):


Em entrevista à Eric Lax, comentando sobre seus filmes Crimes e PecadosMatch Point, o cineasta americano comentou: “Para mim, é uma grande vergonha o universo não ter nenhum Deus ou nenhum sentido, e no entanto só quando se admite isso é que se pode levar o que as pessoas chamam de uma vida cristã – isto é, uma vida moral decente. Você só leva uma vida assim se, para começar, admite o que tem diante de si e joga fora toda a casca de conto de fadas que leva a pessoa a fazer escolhas na vida não por razões morais, mas para marcar pontos no pós-vida” (LAX, Eric. Conversas com Woody Allen. Ed. Cosac e Naify).

Em entrevista à Frei Betto, em Fidel e a Religião, o líder da Revolução Cubana de 1959 diz: “a meu ver, não é inteiramente generoso, nem totalmente digno, nem merece elogio, admiração ou estima o que é feito por medo ao castigo ou em busca de um prêmio” . Criticando a educação religiosa que recebeu em sua infância, Castro aponta ainda que “dava-se muito mais ênfase ao castigo”: “Penso que essa é uma forma negativa e um método incorreto de desenvolver qualquer tipo de convicção profunda no ser humano” . (Ed. Brasiliense, 1985, p. 133)

Em sua obra Practical Ethics, Singer escreve: “religion was tought to provide a reason for doing what is right, the reason being that those who are virtuous will be rewarded by an eternity of bliss while the rest roast in hell. (…) Not all religious thinkers have accepted this argument: Kant, a most pious Christian, scorned anything that smacked of a self-interested motive for obeying the moral law. (…) Our everyday observation of our fellow human beings clearly shows that ethical behaviour does not require belief in heaven and hell.” (SINGER. Cambrigde Press, p. 4).

Todos eles concordam, portanto, que a religião não pode ser tida, de modo algum, como condição sine qua non da moralidade, o que se coaduna perfeitamente com a crítica nieztschiana da moral judaico-cristã e da “centralidade”, nesta, da noção de culpa e castigo:

Nietzsche  conclama-nos a “afastar do mundo o conceito de castigo, que se alastrou sufocando o mundo inteiro! Não há pior erva daninha! (…) Despojaram a pura contingência do acontecer de sua inocência com essa infame arte de interpretação do conceito de castigo. Sim, levaram tão longe o desatino, a ponto de mandar sentir a própria existência como castigo – é como se as fantasias de carcereiros e verdugos tivessem guiados, até agora, a educação do gênero humano!” (Aurora, §13).

 

SOLDADOS DE DEUS


Os cadernos jornalísticos de política internacional com frequência trazem como protagonistas grupos como Hamas, Hezbollah, Al-Qaeda, Taleban, IRA, ETA etc. Com preocupante recorrência, somos informados de ocorrências sangrentas envolvendo homens-bomba, kamikazes e “soldados de Deus” em jihads. Noticiam-se guerras civis entre sunitas e xiitas em países islâmicos, protestantes e católicos na Irlanda do Norte ou muçulmanos e judeus em Israel. Nas últimas décadas, inúmeros conflitos estouraram que possuem inegavelmente entre suas causas desentendimentos e sectarismos religiosos (guerra civil no Líbano, guerra Irã-Iraque, sem falar nos inúmeros conflitos na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, no Afeganistão, em Sarajevo ou no Kosovo). E como deixar de citar que, no alvorecer do século 21, aviões sequestrados por terroristas suicidas afegãos causaram catástrofes em Nova York e Washington? E como esquecer as posteriores catástrofes em Madri, na Inglaterra e nos EUA decorrentes da chamada “Guerra ao Terror”?

Lembremos ainda que o direito à liberdade de expressão é muitas vezes atacado por autoridades religiosas, como no caso do romancista indiano Salman Rushdie, que foi condenado à morte pelo aiatolá Khomeini do Irã em 1989 por ter publicado um livro (Os Versículos Satânicos) considerado “herético” pela ortodoxia muçulmana. Ou no caso do cartunista dinamaquês Kurt Westergaard que, após publicar uma série retratando o profeta Maomé, foi vítima de uma série de tentativas de homicídio por parte de extremistas islâmicos.

Os mais variados domínios da atividade humana, desde a sexualidade até a pesquisa científica, são diretamente afetados por fanatismos religiosos, que muitas vezes são fatores impeditivos na conquista de direitos civis democráticos por parte de minorias vítimas de preconceito. É só lembrar a insistência do Vaticano em considerar o uso de preservativos um pecado, manifestar-se contrário às pesquisas com células-tronco ou colocar-se absolutamente contrário à união civil de pessoas do mesmo sexo.

Citemos ainda que cristãos norte-americanos em protesto contra clínicas de aborto, declarando-se militantes do movimento “Pro-Life”, já mostraram-se bastante violentos e mortíferos; um dos mais exaltados, o reverendo Paul Hill (vinculado ao Army Of God), assassinou um médico, sendo depois condenado à morte por injeção letal pela Justiça Americana em 2003. Além disso, uma avalanche de denúncias de pedofilia foram registradas nos últimos anos contra padres católicos num escândalo em escala mundial.

Tudo isto aponta para uma “avalanche religiosa que inunda as sociedades contemporâneas”, como aponta Marilena Chauí, e que demonstra a “força do apelo religioso para, nos dias de hoje, mobilizar política e militarmente milhões de pessoas em todo o planeta”[06]. Neste contexto de “acerbamento” de fundamentalismos e fanatismos, os pensadores do “movimento” ateu contemporâneo (Sponville, Onfray, Conche…) representam uma força crítica que procura tanto denunciar os crimes cometidos em nome de religiões, quanto sugerir uma outra fundamentação para a ética que, nos moldes nieztschianos, não faça apelo ao sobre-natural e ao divino.

Eles “fluem” na mesma direção: na fundamentação filosófica de um ateísmo intensamente preocupado com as questões da ética, da “boa vida” e da organização política racional. Parece-nos que estes autores, apesar das diferenças que possuem, são todos herdeiros de uma “tarefa” que Nietzsche buscou realizar, ao mesmo tempo que a legava aos “espíritos livres” do futuro: a tarefa de, após a “demolição” do edifício do cristianismo e da moral judaico-cristã, edificar em seu lugar um novo sistema de valores que preze pela autonomia em relação à fé e pela “fidelidade” à realidade terrestre.

Na aurora do novo século, se o obscurantismo não deixa de ter seus asseclas, “soldados de deus” armados de metralhadoras, bombas e sonhos, a oposição a isto também está em franca (e necessária!) ascendência, com inúmeros pensadores engajados numa espécie de “militância filosófica” em prol da vitória do ateísmo e de uma ética irreligiosa sobre todo tipo de fundamentalismo, dogmatismo, sectarismo e fanatismo.


[1] GILSON, É. L’Athéisme Difficile. Paris: Presses Universitaires, 1979, p. 19.
[2]
ONFRAY, op. cit., p.29.
[3]
KANT. Crítica da Razão Prática. Dialética, II, 9, pp. 156-7 da edição francesa.
[4]
COMTE-SPONVILLE. O Espírito do Ateísmo. P. 96.
[5] SCHOPENHAUER. Parerga and Paliponema. Capítulo 15. §181. Tradução nossa.
[6] CHAUÍ, Marilena. “O Retorno do Teológico Político”. 2004.

:: e-bookólatras, uni-vos! ::


Povo, tô sumido mas num tô morto. É que o tempo pra deixar povoada esta casinha anda escasso devido a intensos estudos de fim-de-curso e dos processos de seleção pro mestrado. Sem falar que o Depredando tem sugado minhas energias dedicáveis à blogosfera como um filho predileto, deixando este bloguinho aqui como ovelha negra da família, esquecida nas sombras… Mas nas férias prometo que volto a escrever por aqui com mais freqüência e fidelidade. Por ora, queria só estender o convite para que vocês colem na mais nova seção do blog, E-Bookólatras, onde pretendo compartilhar alguns livros que adoro em versões digitais que passaram pelo crivo do controle de qualidade aqui da casa. A seção vai ficar permanentemente acessível pelo menuzinho lá em cima do Mirò de abertura. Aproveito para clamar: não deixem de baixar e devorar o “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”, do tiozão da foto acima, o meeeestre André Comte-Sponville. Não me envergonho de dizer que é o livro que mais amo dentre todos os que já li nestes 26 anos de vida, grande parte deles passados nadando em sopas de letrinhas…

Espero que apreciem – e disseminem!