“…em quase toda parte, é a loucura que abre alas para a nova ideia, que quebra o encanto de um uso e uma superstição venerados…” (Nietzsche)

Ilustração de Eduardo Marinho

#IDEIAS PERIGOSAS

Em uma das reflexões mais interessantes de “Aurora”, em que se propõe a pensar sobre a “gênese da moral”, Nietzsche investiga os “imensos períodos” em que a humanidade viveu sob o jugo da “moralidade do costume”. Ele considera os milênios “que precederam a história mundial (que, no fundo, é apenas ruído acerca das últimas novidades)” como a “verdadeira e decisiva história que determinou o caráter da humanidade” .

Na remota história das primeiras civilizações, Nietzsche aponta que “a moralidade não é outra coisa do que obediência a costumes”, uma obediência “à maneira tradicional de agir e avaliar” . É julgado como moral ou “bom” aquela pessoa que adere aos comportamentos prescritos pelas autoridades da comunidade, “aquele que observa mais frequentemente a lei: que, tal como o brâmane, a toda parte e em cada instante carrega a consciência da lei, de modo que é sempre inventivo em oportunidades de observá-la… o mais moral é aquele que mais sacrifica ao costume.” Ademais, o costume é frequentemente tido como indiscutível e santo, ordenado pelos deuses, inscrito de uma vez para sempre na natureza das coisas.

Em contraste, será considerada imoral toda ação que “não foi realizada em obediência à tradição”, todo comportamento que destoe da regra exigida e sugira uma mudança ou revolução nos costumes, toda pessoa que se destaque da mediania do rebanho e se afaste da comunidade. Os bons são os conformistas; os maus, as ovelhas negras. Nietzsche alega, portanto, que a comunidade julga ser mais “moral” aquele que mais se conforma às regras sociais costumeiras e tradicionais, aquele que mais se prontifica a sacrificar-se por elas; já o indivíduo rotulado de “imoral” ou “mau” é aquele cujas ações ou pensamentos portam a marca do individual, do singular, do inusitado, do imprevisível. Encontramos um exemplo interessante deste procedimento de rotulação do indivíduo destoante como imoral na peça de Ibsen, “O Inimigo do Povo”. Os inovadores e renovadores, portanto, não teriam necessariamente que parecer “imorais” àqueles que julgam a moralidade como conformidade ao rebanho?

BOSCH, "A Nau dos Loucos"NIETZSCHE: “Cada ação individual, cada modo de pensar individual provoca horror; é impossível calcular o que justamente os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais da história devem ter sofrido pelo fato de serem percebidos como maus e perigosos, por perceberem a si próprios assim. Sob o domínio da moralidade do costume, toda espécie de originalidade adquiriu má consciência; até hoje, o horizonte dos melhores tornou-se ainda mais sombrio do que deveria ser.” (NIETZSCHE. Aurora. Livro I, #9)

Algumas páginas à frente, Nietzsche explicita ainda mais o que têm em mente quando fala do “horizonte sombrio” daqueles que, “apesar da terrível pressão da moralidade do costume”, ousaram enveredar por caminhos próprios e solitários. O aforismo #14, “significação da loucura na história da humanidade”, diz que “sempre irromperam ideias, valorações, instintos novos e divergentes”, mas que “isso ocorreu em horripilante companhia: em quase toda parte, é a loucura que abre alas para a nova ideia, que quebra o encanto de um uso e uma superstição venerados. (…) Todos os homens superiores, que eram irresistivelmente levados a romper o jugo de uma moralidade e instaurar novas leis, não tiveram alternativa, caso não fossem realmente loucos, senão tornar-se ou fazer-se de loucos – e isto vale para os inovadores em todos os campos…” (Pg. 22). De maneira semelhante, no aforismo #20, Nietzsche, refletindo sobre os que são chamados de criminosos, diz: “Todo aquele que subverteu a lei do costume existente foi tido inicialmente como homem mau.”

Nietzsche enfatiza que o processo de “moralização” de uma criança recém-chegada ao mundo, sua inserção numa cultura específica, o processo pelo qual lhe são impingidas condutas e valores, se dá através de instituições como a Família, o Estado, o Clero. Por exemplo: “Os pais fazem dos filhos, involuntariamente, algo semelhante a eles – a isso denominam ‘educação’ – nenhuma mãe duvida, no fundo do coração, que ao ter seu filho pariu uma propriedade; nenhum pai discute o direito de submeter o filho aos seus conceitos e valorações. (…) E assim como o pai, também a classe, o padre, o professor e o príncipe continuam vendo, em toda nova criatura, a cômoda oportunidade de uma nova posse.” (Além de Bem e Mal, #192)

Não há valores inatos, pois, mas somente valores culturalmente transmitidos. Somente através da educação, com a indispensável dose de coerção nela inclusa, que puderam ser transmitidos às sucessivas gerações que foram nascendo as regras de conduta que as autoridades instituídas julgaram que deviam ser obedecidas. Nietzsche aponta que a tendência gregária do ser humano é acompanhada quase universalmente por uma cisão entre os que mandam e os que obedecem: “sempre, desde que existem homens, houve também rebanhos de homens (clãs, comunidades, tribos, Estados, Igrejas), e sempre muitos que obedeceram, em relação ao pequeno número dos que mandaram… obediência foi até agora a coisa mais longamente exercitada e cultivada entre os homens.” (ABM, #199)

A “moralização” do homem, portanto, só se torna inteligível se levarmos em conta esta tendência do “homem de rebanho” a “aceitar de modo pouco seletivo o que qualquer mandante – pais, mestres, leis, preconceitos de classe, opiniões públicas – lhe grita no ouvido.”

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SIGA VIAGEM…

Se Nietzsche, rotulado por alguns de “o Louco”, não tivesse ousado abrir para o pensamento tão novos caminhos, teria existido o caminho percorrido depois por Foucault em sua “História da Loucura”?

FOUCAULT, “HISTÓRIA DA LOUCURA” na Livraria Cultura (R$50,0):
http://migre.me/dn74p

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Outras leituras interessantes:

ERASMO DE ROTERDÃ, “Elogio da Loucura” (R$13,00):
http://migre.me/dn7cW


PIERRE KLOSSOWSKI [1905-2001], “Nietzsche e o Círculo Vicioso”

Klossowski

Download do e-book completo:
EM INGLÊS: http://migre.me/d9V4M (PDF)
EM ESPANHOL: http://migre.me/d9V6k (PDF)

Pierre Klossowski (August 9, 1905, Paris – August 12, 2001, Paris) was a French writer, translator and artist. Michel Foucault noted in a letter that Klossowski’s book “La Monnaie vivante” is the most sublime book of our era. Pierre Klossowski wrote full length volumes on the Marquis de Sade and Friedrich Nietzsche, a number of essays on literary and philosophical figures, and five novels. “Roberte Ce Soir” (Roberte in the Evening) provoked controversy due to its graphic depiction of sexuality. He translated several important texts (by Virgil, Ludwig Wittgenstein, Martin Heidegger, Friedrich Hölderlin, Franz Kafka, Nietzsche, and Walter Benjamin) into French, worked on films and was also an artist, illustrating many of the scenes from his novels. Klossowski participated in most issues of George Bataille’s review, Acéphale, in the late 1930s. His 1969 book, “Nietzsche and the Vicious Circle”, greatly influenced French philosophers such as Michel Foucault, Gilles Deleuze, and Jean-François Lyotard. Klossowski also appeared in Robert Bresson’s film “Au hasard Balthazar”…” [Wikipédia]

“If the doors of perception were cleansed…” [William Blake]

cranio
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Terence McKenna

Alguns vídeos do cara, legendados em português:
“A Situação Humana”:
“Imaginação”
“Evolução Psicodélica”
“A Evolução da Consciência” [pt. 01]

“…um escritor que não escreve é, na verdade, um monstro que corteja a insanidade.” (Kafka)

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KAFKA de CRUMB
R$44,90 @ Livraria Cultura:
Em português: http://migre.me/cWU0I
Em inglês: http://migre.me/cWU7U

“Escrever – segundo Kafka acreditava – era sua única razão de viver e seu único meio de manter-se vivo. Escrevo, logo existo. Sendo filho não de Deus, mas sim de Herrmann Kafka e da Idade da Razão, Kafka torturou a si próprio e aos que lhe eram íntimos com a tentativa constante de tentar justificar e racionalizar aquilo que não admite explicações. O momento em que mais se acercou da fonte de suas necessidades e de sua arte talvez tenha sido em uma carta a Milena Jesenská: “Tento constantemente comunicar algo incomunicável, explicar algo inexplicável, falar de algo que sinto apenas em meus ossos e que só pode ser experimentado nestes ossos…” Kafka não era um homem que escrevia, mas alguém para quem escrever era a única forma de ser, o único meio de desafiar a morte em vida.

Ele permaneceu relativamente desconhecido durante sua vida, mas sua fama póstuma chegou quase a eclipsar a de todo o meio literário de Praga; os luminares de sua época estão mortos e, quer tenham sido queimados ou enterrados, já não têm o poder de assombrar-nos. Se Kafka o faz, isso se deve, em larga escala, à paixão obsessiva que levou para o escrever como um ofício sagrado. Isso não equivale a imputar-lhe a pretensão furtiva de alguma missão divina, humildemente não confessada. A compulsão irresistível de escrever parecia-lhe parte de um destino obscuro e profundamente pessoal, e não há dúvida de que, em boa parte do tempo, sentiu-se mais compelido do que escolhido. “O escrever me sustenta”, escreve Kafka a Max Brod em 1922, “Quando não escrevo, é bem pior, inteiramente insuportável, e termina, inevitavelmente, na loucura. Isso, é claro, apenas partindo do pressuposto de que eu seja um escritor mesmo quando não escrevo – o que, aliás, é um fato; e um escritor que não escreve é, na verdade, um monstro que corteja a insanidade.”

Por mais singulares que fossem os sentimentos de Kafka sobre a vocação que escolheu, eles refletem também o espírito de uma era em que a literatura havia tomado o lugar da fé, dos ritos e da tradição, convertendo-se, ela própria, numa espécie de religião. Esse fenômeno não se restringiu aos judeus: Flaubert fala na literatura como “la mystique de qui ne croit à rien” (a mística de quem não crê em nada).”

ERNST PAWEL
“O Pesadelo da Razão”
Pg. 95-96. Ed. Imago.

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