A Esperança Equilibrista Despencou no Abismo na Noite do Brasil || In Memoriam: Aldir Blanc (1946 – 2020)

“Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos

A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco… louco!

O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil

Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete

Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar.”

João Bosco e Aldir Blanc
“O Bêbado e a Equilibrista”

HENFIL

Perdendo o equilíbrio ao tentar atravessar a corda bamba sobre o abismo, “a esperança equilibrista” de Aldir Blanc se precipitou, em queda livre, para “morrer na contramão atrapalhando o tráfego” (para citar outro célebre cancionista). Eliane Brum, em artigo para o El País, assim lamentou a perda:

“O Brasil abriu a semana com a morte de Aldir Blanc, o poeta que, em uma das canções mais pungentes contra a ditadura militar, escreveu: ‘a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar’. Morto aos 73 anos por covid-19, o show de Aldir Blanc não pôde continuar. A esperança já não consegue se equilibrar no Brasil e deslizou para o abismo. O país de Aldir Blanc e todo o seu imaginário foram mortos pelo perverso Jair Bolsonaro que se embriaga com a própria boçalidade, espirra e aperta com dedos lambuzados as mãos de seus seguidores. E então diz, diante das milhares de vítimas da pandemia e de sua irresponsabilidade: “E daí?”. A morte do poeta oficializa que o Brasil continental perdeu seu continente ― sua carne, sua alma e seus contornos ― e a poesia já não nasce.”

João Bosco, no dia em que perdeu o parceiro de tantos botecos e canções, escreveu o seguinte relato comovido:

 “Peço desculpas aos que têm me procurado hoje. Não tenho condições de falar. Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos despedido na madrugada anterior. Desde então, voltamos a nos falar ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos. Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. Não existe João sem Aldir. Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu cantá-las. Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Meu coração está com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio.”

José Miguel Wisnik, professor da FFLCH / USP e também ele cancionista, aproveitou a ocasião para nos conceder uma bela exploração da canção “De Frente Pro Crime”:

“Olhei o corpo no chão e fechei / minha janela de frente pro crime”. A letra de Aldir Blanc nesse samba com João Bosco tem a cadência de um miniconto. Parece que é simplesmente a narrativa impessoal, a crônica de uma cena de rua em torno de um cadáver estendido que tem “em vez de rosto a foto de um gol”. Populares passam, entre pragas perdidas e silêncio anônimo, o ambiente em volta se agita, o bar se enche (“malandro junto com trabalhador”). Na confusão, algum oportunista bêbado, de cima da mesa, se lança candidato a vereador, um comércio parasita floresce num frenesi de camelô, anel, cordão, perfume barato, baiana, pastel, churrasco de gato. Fim de noite, fim de festa, baixa ainda “um santo na porta-bandeira” enquanto o ajuntamento se dispersa. O morto continua lá, no ponto cego do transbordamento de vida que suscitou, e que se dissipa. Só então ficamos sabendo que tudo isso se passa aos olhos de alguém que vê de fora, de outro lugar, de trás de uma janela que agora se fecha, voyeur da vida e da morte, do crime sem rosto e sem nome, como nós. Assim como “Incompatibilidade de gênios”, da mesma dupla, “De frente pro crime” acontece no ritmo do pulo do gato, e é uma pérola da junção do sublime com o banal, sempre na veia do mundo popular carioca. É bonito vê-los, Aldir e João, malandros trabalhadores da canção, trocando uma ideia na porta do Café Capital. (Me pergunto quem terá feito essa foto linda.) (WISNIK, em sua página no Facebook)

Já o Enzo Banzo, da banda mineira Porcas Borboletas, publicou o seguinte artigo no Diário de Uberlândia:

Para celebrar a trajetória e a obra de Aldir Blanc, após concluir sua jornada pela estrada-só-de-ida da vida (como gosta de dizer o espírito livre Diego Mascate)A Casa de Vidro recupera, a seguir, um pungente texto de Aldir escrito para celebrar a criação da C.N.V. pelo governo da Dilma. Além disso, decidimos exercitar um pouco da boa e velha pirataria construtiva e disponibilizar, para download gratuito, em MP3 de qualidade, vários álbuns que permitem conhecer mais a fundo a obra deste grande poeta e compositor popular que foi Aldir Blanc. Baixe sem dó e aprecie sem moderação!

Texto de Aldir Blanc na época da criação da Comissão Nacional da Verdade no governo Dilma Rousseff.

“Não sou historiador nem sociólogo. Não consultei nenhum livro para escrever o texto abaixo. Minha memória está se movendo como estilhaços do amado caleidoscópio que perdi, menino, em Vila Isabel.

Viva a Comissão da Verdade para que nunca mais coloquem uma grávida nua sobre um tijolo, atingida por jatos d’água, com ameaça: “Se cair vai ser pior”;

Para que senhoras que fazem seu honrado trabalho não sejam despedaçadas por cartas bombas;

Para que um covarde que bote a boca de um homem torturado no escapamento de uma viatura militar não passe por homem de bem onde mora;

Para que orangotangos que se tornaram políticos asquerosos não babem sua raiva na internet: “Nosso erro foi torturar demais e matar de menos”;

Para que presos em pânico não sofram ataques de jacarés açulados por antropóides;

Para que nunca mais teatros e livrarias sejam vandalizados e queimados;

Para que um estudante de psiquiatria não seja obrigado a passar por sentinelas de baioneta calada para ouvir um coronel médico dizer que “histeria é preguiça”;

Para que os brasileiros possam homenagear um autêntico herói nacional, João Cândido, com um monumento, sem que surjam energúmenos prometendo “voltar a explodir tudo se isso apontar para o Colégio Naval”;

Para que a nossa Força Aérea, que nos deu tanto orgulho na Itália, com seus valentes pilotos de caça, não atire pessoas, como se fossem sacos de lixo, no mar;

Para que um pai, ao se recusar a cumprir a ordem de manter o caixão lacrado, não se depare com o corpo destruído do filho, jogado lá dentro feito um animal;

Para que militares honrados não sintam “constrangimento” na busca de Justiça; para que cavalos ( aqueles de quatro patas, montados por outros) não pisoteiem um garoto com a camisa pegando fogo por estilhaço de bomba, na Lapa;

Para que torturadores não recebam como “prêmio” cargos em embaixada no exterior;

Para que uma estudante não desmaie num consultório médico ao falar sobre as queimaduras do pai, feitas com tocha de acetileno;

Para que esquartejadores não substituam Tiradentes por Silvério dos Reis;

Para que inúmeros Pilatos ainda trambicando naquela casa de tolerância do Planalto vejam que suas mãos continuam cheias de sangue e excremento;

Para que nunca mais na vida de uma jovem idealista – o queixo firme, olhos faiscantes de revolta, com a expressão da minha Suburbana no 3X4 que guardo na carteira – seja ceifada por encapuzados. Uma delas, quem sabe?, pode chegar a Presidência da Republica e enquadrar a récua de canalhas.”

Não podemos nos calar!”

Aldir Blanc

DISCOS PRA BAIXAR:

 

SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA: Como a “jovialidade trágica”de Assis Valente marcou pra sempre a MPB

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

 «Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradiçõesNIETZSCHE, “Crepúsculo dos Ídolos”

PRÓLOGO: Fui convidado pela equipe do Enredo Cultural da TV UFG a tecer alguns comentários sobre a vida e a obra de Assis Valente, um de meus compositores populares prediletos, para o quadro Artefilia do programa que foi ao ar em 29/01/2020. Em uma participação anterior, em que eu fui instigado a compartilhar impressões sobre Parte de Nós, de Diego & o Sindicato, um dos meus álbuns prediletos da música brasileira no séc. 21, a entrevista concedida à jornalista Janaína de Oliveira enveredou a certo ponto sobre a influência e a repercussão, na música da atualidade, de Assis Valente, e isto acabou sendo o tema de outra conversa que tive, desta vez com o jornalista Gustavo Soares. No processo, pude notar que, muito além d’Os Novos Baianos e sua clássica releitura de “Brasil Pandeiro” nos anos 1970, Assis Valente vive e ecoa, nos anos 2000s, na trilha do Mascate.

Este artigo – Sambando Com o Humor e Amargura – é fruto das pesquisas em que mergulhei no processo de colaborar com esta produção midiática da Universidade Federal de Goiás e de dialogar mais a fundo com o Diego Mascate – que tornou-se hoje um querido amigo, além de um dos artistas que mais admiro. O artigo também tem uma dívida imensa ao livro de Gonçalo Júnior, aqui esmiuçado: Quem Samba Tem Alegria é uma uma biografia irretocável, extremamente informativa, que descortina para o leitor horizontes ampliados sobre a música popular do Brasil através da vida e obra de um de seus ícones mais memoráveis, Assis Valente, o trágico jovial.


SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA

Quem observa a fotografia de Assis Valente, posando diante dos Arcos da Lapa em 1951, não tem razão para duvidar de que está diante de um homem feliz e realizado. Com seu sorriso radiante, com dentes perfeitos e dignos de quem exerceu o ofício de fabricar elogiadas próteses dentárias, Assis Valente traz no rosto a expressão de um boêmio experiente. Passa a impressão de estar rodeado pela aura de malandro hedonista, sábio apreciador dos prazeres do viver. Quem imaginaria que, por detrás da aparência, a depressão o corroía, as dificuldades financeiras o acossavam e as tentativas de suicídio se multiplicavam?

O mulato baiano, nascido em 1911, depois emigrado para a metrópole carioca e capital federal, parece estar nesta imagem lendária no auge de sua força. Parece um neo-epicurista nas festanças de Momo, alguém que vive com base na ética que o mesmo celebrou em seu refrão “salve o prazer, salve o prazer!”. Ali estava o retrato do bem-humorado sátiro que fez a engraçadíssima “E O Mundo Não Se Acabou”, canção que Carmen Miranda celebrizou:


“Acreditei nessa conversa mole
Pensei que o mundo ia se acabar
E fui tratando de me despedir
E sem demora fui tratando de aproveitar
Beijei na boca de quem não devia
Peguei na mão de quem não conhecia
Dancei um samba em traje de maiô
E o tal do mundo não se acabou…”

A pose da foto não capta a tristeza em seu âmago. Mas dá o que pensar sobre o trajeto que levou este compositor de sambas imortais como “Alegria”, originalmente gravada por Orlando Silva, a acabar com a própria vida em 1958 ingerindo guaraná com formicida.


“Minha gente era triste e amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer
Salve o prazer, salve o prazer…”

A obra artística de Assis Valente revelou-se imorredoura: muitos hoje cantarolam suas melodias e versos, às vezes sem saber que Valente é o compositor delas – como é o caso de “Cai Cai Balão” e “Boas Festas”, sempre lembradas nas festividades de São João e de Natal.

Imorredouro, o compositor popular Assis Valente consegue expressar, como todo grande artista, a mescla entre o positivo e o negativo, o bem e o mal, a delícia e desgraça, de que a vida humana é feita. Afinal, a vida é o território do “matrimônio entre Céu e Inferno” de que se nutriu William Blake para realizar suas obras.

Assis Valente soube tecer os cantos inesquecíveis que nos contam sobre esta vida de alegrias e tristezas entrelaçadas. E ele próprio era capaz de ir da euforia à fossa de maneira tal que psiquiatria de hoje poderia caracterizá-lo como afligido por transtorno bipolar.

O método escolhido por Assis Valente para aniquilar-se, depois de umas seis ou sete tentativas frustradas de suicídio, conta-nos algo sobre a mescla de humor e amargura que marcou sua vida e obra. Quer coisa mais jovial e fútil, mais alegre e descompromissada, do que tomar um Guaraná na praia, olhando o mar ao pôr-do-Sol? Quer coisa mais trágica e grave, mais terrível e sinistra, do que despejar formicida ou veneno-de-rato no que deveria ser apenas um refrescante Guaraná Antarctica?

Naquele 6 de março de 1958 em que Assis Valente abandonou o mundo dos vivos, o Brasil – o país do guarani e do guaraná, pra lembrar o álbum que Sidney Miller gravaria 10 anos depois – ganhou um emblema tragicômico que não cessaria de nos provocar e fascinar. Assis Valente, considerado pelo crítico musical Tárik de Souza como um dos principais artistas “pré-tropicalistas”, legava à posteridade um emblema, e um enigma.

“Baiano dos arredores de Salvador, José de Assis Valente começou em plena era do rádio, nos anos 1930. Além de seu ‘alter ego’ Carmen Miranda, emplacou composições nas vozes de Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Araci Cortes e os vocais do Bando da Lua e Anjos do Inferno. Disputava espaço com os gigantes do chamado período aurífero da MPB, João de Barro, Lamartine Babo, Ary Barroso, Noel Rosa e o iniciante Dorival Caymmi.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)

Através de canções bem-humoradas, de fina sátira, que grudavam na memória, Assis Valente se tornaria um dos maiores exemplos do homo ludens (um conceito muito utilizado por Johan Huizinga como chave-de-leitura das culturas). Inspirou gerações de compositores que viriam depois: a veia lúdica que pulsa em Chico Buarque, Sidney Miller, Tom Zé, Os Mutantes, Novos Baianos, dentre muitos outros talentos satíricos da nossa música popular, tem dívida de gratidão com Valente.


“Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!
No dia 21 de Abril…
Dois meses depois do Carnaval…”
(Sidney Miller)

As canções de Assis Valente falam muito de sorrir em meio à dor. Falam de um povo que inventa as batucadas para remediar o seu cotidiano padecer. Em algumas canções, o eu-lírico faz a crônica dos fingimentos de alegria que mascaram as tristezas no âmago. Alimenta os mitos sobre os palhaços tristes, sobre bufões que por fora são a imagem da jovialidade encarnada, mas que choram sozinhos em seus quartos ao amargarem todos os horrores do abandono, da segregação, do vício. Na mesma “Alegria”, ele arremata com os versos: “Vou cantando, fingindo alegria / Para a humanidade não me ver chorar…”

O senso comum tende a pensar que “quem samba tem alegria”, nome aliás da excelente biografia que Gonçalo Junior realizou sobre “a vida e o tempo de Assis Valente”. Porém, alegria não basta para que nasça um samba que realmente se conecte com a alma das massas e que ecoe na posteridade. Pra se fazer um bom samba é preciso “um bocado de tristeza”, como já ensinaram Vinícius de Moraes, Baden Powell e Toquinho no “Samba da Benção”, agindo como discípulos de Assis Valente:


“É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza!
Senão não se faz um samba não…”

Há lições de sabedoria a extrair da obra deste poeta, Assis Valente, dotado de um senso intenso da ambivalência intrínseca à vida. Para esclarecer o que quis dizer por trás do palavreado filosófico um tanto hermético da última fase, evoco o mesmo ethos presente em outra genial canção da nossa MPB: “Preciso Me Encontrar”, composição de Candeia imortalizada por Cartola.

Nela, o sambista anuncia seu plano de cigano bucólico, faminto pelas experiências de “assistir ao Sol nascer / ver as águas dos rios correr / ouvir os pássaros cantar / eu quero nascer, quero viver”.

Ele na sequência menciona que este ímpeto cigano, esta vontade de ser trotamundos, tem uma fonte, uma razão, um motivo: ele “precisa andar” devido à sua busca de “sorrir pra não chorar”. Assis Valente está em sintonia com esse sentimento.

Ironista de nossos desmazelos tropicais, Assis fala na genial “Recenseamento” de um Brasil que tem “um conjunto de harmonia que não tem rival”. Ele estava quase que com certeza sendo irônico, pois falar de “harmonia social” neste país de fraturas expostas e violências extremas parece piada. E é.

Nas crônicas-canções de Assis Valente, a “harmonia sem rival” é descrita em seus elementos constituintes: “Comecei a descrever tudo de valor / Que o meu Brasil me deu / Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo / Um pano verde e amarelo / Tudo isso é meu! / Tem feriado que pra mim vale fortuna, / A Retirada da Laguna vale um cabedal! / Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia, / um conjunto de harmonia que não tem rival.”

O cáustico cinismo do compositor se derrama sobre os agentes públicos que, em 1940, faziam recenseamento no morro. Assis Valente, como faria décadas depois Chico Buarque, adere a um eu-lírico feminino, e esta mulher-do-morro reclama de ter sua vida esmiuçada e devassada, pelo invasor que é o “agente recenseador”, em um processo que “foi um horror”.

Retrato da Era Vargas (1930 – 1945), a música fala sobre a hegemonia de uma ideologia trabalhista que tratava a boemia como vício a combater, que mandava a polícia reprimir quem não fosse do batente e sim da folia. A mulher da música, diante do “agente recenseador”, narra um encontro difícil – nele, ela tem que explicar à autoridade os modos de vida do seu “moreno”, que corre o risco de ser criminalizado não só pelo tom de sua pele, mas por supostamente não trabalhar com coisa séria. Vale lembrar que a apologia da boemia, que estava na letra original do samba “Bonde de Januário” de Ataufo Alves, era censurada à época (1937) pelo D.I.P. (Departamento de Imprensa e Propaganda).



“Quando viu a minha mão sem aliança
encarou para a criança
que no chão dormia
E perguntou se meu moreno era decente
se era do batente ou se era da folia…
Obediente como a tudo que é da lei
fiquei logo sossegada e falei então:
O meu moreno é brasileiro, é fuzileiro,
é o que sai com a bandeira do seu batalhão!
A nossa casa não tem nada de grandeza,
nós vivemos na fartura sem dever tostão.
Tem um pandeiro, um cavaquinho, um tamborim
um reco-reco, uma cuíca e um violão…”

As cerca de 153 canções de Assis Valente que foram gravadas são cifra suficiente para provar que sua vida foi fecunda em criatividade. Isso só foi possível, em menos de 50 anos de vida, pois Assis Valente era rico em contradições, o que evoca um pensamento de Nietzsche citado na epígrafe: “Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradições.” Assis Valente, milionário em contradições ainda que tenha vivido com dificuldade para pagar os aluguéis e saldar as dívidas, soube lidar criativamente com a profusão de contradições que o habitavam e soube expressá-las musicalmente. 

Em “Minha Embaixada Chegou”, outra de suas músicas geniais, retoma o emblema da batucada que “aquela gente triste e amargurada inventou pra deixar de padecer”. Essa mesma batucada, inventada como remédio coletivo para nosso  sofrer, é também aquilo que o povo usa em seu próprio processo de libertação e de celebração da existência, por mais sofrida que seja. É na batucada que o povo vai “pedindo licença pra desacatar”, e em meio aos batuques o amor se faz, em meio à folia e à vadiagem, num cordão onde a tristeza da existência favelada é transcendida:


“Vem vadiar no meu cordão!
Cai na folia meu amor!
Vem esquecer tua tristeza,
Mentindo a natureza,
Sorrindo a tua dor.

Minha embaixada chegou…

Usei o nome da favela,
Na luxuosa academia,
Mas a favela pro doutô
É morada de malandro
E não tem nenhum valor.

Não tem doutores na favela,
Mas na favela tem doutores!
O professor se chama bamba,
Medicina é na macumba,
Cirurgia lá é samba.

Minha embaixada chegou…”

Tempos depois, Clara Nunes, em sintonia com a jovialidade trágica de Assis, cantaria num belo samba do LP Brasil Mestiço: “Quando eu morrer, quero uma batucada pra me levar à minha última morada.”

Resta ainda por compreender melhor, decifrando um pouco ao menos alguns de seus mistérios, o que levou este hedonista batuqueiro, este boêmio carnavalesco, a atravessar o inferno da depressão, a jogar-se do Corcovado numa sensacional tentativa de suicídio em 1941, para em 1958 findar seus dias com uma dose letal de guaraná com formicida.

Em sua espiral de descida à inexistência, Assis Valente nos deixou um ponto final que leva a sentir, de maneira trágica, a verdade intragável: rezamos em vão pra Papai Noel ou pra Papai do Céu, porém a “felicidade é brinquedo que não tem”.


“Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem!
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem…”

Como escreveu Diego de Moraes (o Mascate):

“Boas Festas” expressava bem a contradição de Assis Valente, entre a piada e a depressão: homossexual em uma sociedade machista, negro em um país racista, ia ‘cantando, fingindo alegria’. Gravada em 1933, por Carlos Galhardo, com o acompanhamento dos Diabos do Céu – conjunto de Pixinguinha –, além de se tornar um grande sucesso popular, também revelava aquele talento, que depois diria: “Papai Noel não tinha vindo, mas eu havia ganho um presente: a melhor de minhas composições”.

(…) Ele sabia que nem todos são filhos de Papai Noel. A lenda do bispo São Nicolau (o bom velhinho que deixava um saquinho com moedas para os pobres) tinha sido, em 1931 (um ano antes de “Boas Festas”), usada em uma campanha publicitária, que também marcou o imaginário popular. Era a campanha natalina da Coca-Cola, que se utilizava da imagem do velhinho caridoso (criada por um cartunista alemão do século XIX) para espalhar pelo mundo o vermelho da empresa e um modo de vida. Este Papai Noel (bem definido pela banda punk Garotos Podres como “porco capitalista que presenteia os ricos e cospe nos pobres”) não podia trazer a felicidade para Assis Valente.

Desiludido com o Papai Noel (que “com certeza já morreu”), a partir de 1940, Assis assistia a queda do sucesso e a depressão se agravar. Em uma de suas tentativas de suicídio, se jogou do Corcovado; mas foi salvo pelos bombeiros, que tiraram-lhe de uma árvore. Nos anos 50, torna-se uma figura praticamente esquecida. Angustiado e solitário, protagonizava uma vida repleta de ironias e ambigüidades. Valente, aquele que cuidava de sorrisos em um laboratório de prótese dentária; que foi comediante de circo na infância; que fez tanta gente rir com seus sambas engraçados; que compôs a nossa trilha sonora da ceia de 25 de dezembro… decidia dar o fim em sua própria vida. O ano era 1958, o “ano da bossa nova” (ritmo que embalava a esperança dos tempos JK). Assis Valente se matava, ingerindo formicida com guaraná, no fim da tarde de 10 de março daquele ano. O Papai Noel da Coca-Cola não trouxe a felicidade. (MORAES, Diego.)

As contradições e ambivalências que tornam o cancioneiro de Assis Valente algo de tal potência imorredoura são também expressão do Brasil e suas fraturas. Por exemplo, a fratura ou o abismo que separa o sonho do que poderíamos ser (nossa utopia) e a catastrófica realidade do que de fato somos (nossa distopia real). Em seu livro Tem Mais Samba, Tárik de Souza destaca:

“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”, cantou o mulato baiano segregado por sua homossexualidade dissimulada, numa época em que era pecado sambar diferente. Assis, que levava vida dupla para escapar do preconceito, fez a maioria de suas músicas no feminino exteriorizando uma anima alegre, proibida na vida real, através de vozes requebradas como a de sua principal cantora, Carmen Miranda.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)

Tárik põe aí o dedo na ferida: a sociedade brasileira, mesmo diante de um compositor genial como Valente, praticaria a segregação que o isolou devido a um entrelaçamento de opressões: sua “mulatice” era vista como defeito aos olhos dos racistas fanáticos pelo “embranquecimento da raça”; suas origens humildes na Bahia, enquanto filho bastardo de um casamento inter-racial, não lhe granjeavam o gozo de privilégios de classe; e sua bissexualidade, em contexto social homofóbico, era obrigada a se dissimular e se resguardar no famoso armário.

Some-se a isto o vício que ele desenvolveu em relação à cocaína, que usava para combater sua depressão pegando uma carona rápida para a euforia quimicamente induzida, e seu caráter mão-aberta, de quem gastava dinheiro de maneira impensada com luxos e confortos, mas também com o auxílio a amigos necessitados, e temos uma receita para o desastre. Só agravada pela pecha de suicida fracassado, silenciado por uma sociedade que costuma relegar os que tentam se matar a uma posição de silenciamento, ou mesmo a um cárcere psiquiátrico enquanto “loucos” que não dizem nada que faça sentido.

Nos anos 1970, mais de uma década depois de seu suicídio, Assis Valente foi “em boa hora resgatado do esquecimento”, como contam Severiano e Homem de Melo em A Canção no Tempo, Vol. 2. Outra marca impressionante que Assis Valente deixou na cultura brasileira é o fenômeno chamado Acabou Chorare, a obra-prima que os Novos Baianos lançaram em 1972. Considerado um dos LPs mais importantes da história da MPB, ele nasce muito das confluências entre João Gilberto, o pai da bossa nova, com os Novos Baianos. Conta a lenda que foi João quem apresentou a obra de Assis Valente aos Novos Baianos, convencendo-os a regravar “Brasil Pandeiro”, faixa de abertura de um álbum também imorredouro.

O próprio título Acabou Chorore faz referência a um episódio cômico envolvendo Bebel Gilberto; ainda criança, Bebel teria inventado a expressão “acabou chorare” ao misturar português e castelhano “em razão do período em que viveram no México”: “um dia, ao levar um tombo e ver seu pai João Gilberto aproximar-se aflito para socorrê-la, a menina exclamou, engolindo o choro: ‘Acabou chorare, papai!'” (SEVERIANO, J; HOMEM DE MELO, Z. P. 193)

O álbum abriria com a célebre composição de Assis Valente que conclama: “está na hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor!”. O compositor usava o adjetivo “bronzeada” (e não “negra” ou “mulata”) pra se referir positivamente aos milhões de mestiços da terra brasilis, nação intensamente miscigenada, cheia de uma “gente bronzeada” que é boa no batuque. Lançada originalmente em 1941, em gravação da banda Anjos do Inferno, a música evoca pandeiros quentes batucando céleres em terreiros iluminados onde a gente gente bela e bronzeada se acaba sambar.

A canção brinca com a cultura brasileira sendo capaz de encantar o mundo: até o Tio Sam começa a inspirar-se conosco, transmutando sua própria cultura em contato com o samba afrobrasileiro. “Há quem sambe noutras terras, outras gentes, num batuque de matar”, menciona o compositor, referindo-se à diversidade rítmica e fazendo etnomusicologia em canção. Os versos podem também ser uma menção cifrada à Mama África, a seus batuques, seus lundus, seus sembas, que foram reavivados na América pelos africanos escravizados e seus descendentes libertos.

“Brasil Pandeiro”, obra prima do cancioneiro popular, não só aponta para uma ancestralidade e para um passado vivo – ou seja, para uma cultura do enraizamento. A música também aponta para o futuro e postula alternativas, em que a Casa Branca “dança com a batucada de iôiô iáiá”. Os EUA se prostram diante de nossos dons rítmicos. O samba torna-se cosmopolita e patrimônio da humanidade. A cultura brasileira ensaia aí planos de conquista planetária. E o baiano Assis promete que, um dia num futuro cujo advento ele busca acelerar, a cultura híbrida nascida das transas da Bahia com o Rio, metrópoles mescladas e confluentes, vai transfigurar o mundo em frutos de grande irresistibilidade rítmica e verbal.


“Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar
O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada
Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato
Vai entrar no cuzcuz, acarajé e abará
Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô, iaiá
Brasil, esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar!”

Em várias ocasiões, relatadas na biografia de Gonçalo Jr, Assis Valente denuncia ter sido vítima de racismo. Em suas canções, busca valorizar a “gente bronzeada” falando do “bronze que tem alma”, como faz em “Elogia da Raça”, gravada por Carmen Miranda. Nesta canção, dotada de ironias cáusticas, satiriza o viés dos racistas através de versos que lidam de maneira humorística com a genealogia da pele escura: “O Sol queimava tanto / E roupa não havia / Por isso é que o nêgo / Tem a pele tão queimada.”

Na determinação múltipla que o impeliu à auto-aniquilação, também entra na conta o fim de seu primeiro e único casamento. Assis Valente sentiu-se vítima de racismo por parte da família de sua esposa, com quem teve a filha Nara e de quem desquitou num processo triste e traumático. Desgostoso com os rumos que tomava a indústria cultural nos anos 1950, Valente não se afinava bem aos esquemas e maracutais vinculados ao jabaculelê – ou seja, o pagamento de propinas (jabá) para que os radialistas tocassem certas músicas.

Afundado em dívidas que o seu trampo com próteses não seria capaz de saldar, subindo e descendo nas gangorras do vício em cocaína, indo da euforia à fossa, preso nos armários aos quais uma sociedade homofóbica condena aqueles que estigmatiza como de “sexualidade desviante”, Assis Valente de fato cometeu o pecado de sambar diferente. “Depressivo”, “bipolar”, “ciclotímico”, de “tendências suicidas” – acumulam-se qualificações sobre sua psiquê atormentada. A mídia sensacionalista e a boataria maliciosa espalham, com suas más línguas, que o famoso compositor tinha relações homoeróticas com os aprendizes de seus cursos de próteses.

Empobrecido e no abandono, na sétima tentativa de suicídio ele pôde enfim deixar para trás um mundo imundo e cruel. Este cancionista de sensacional fertilidade e brilhantismo não conquistou a felicidade tão sonhada que costuma-se pedir ao Papai Noel ou ao Papai do Céu – estas duas fantasias análogas com que se embebedam crianças e adultos. Sempre pairará um véu de mistério sobre as íntimas engrenagens que levam um ser humano à auto-aniquilação. Mas não há dúvida, ainda mais depois da obra de Durkheim, de que o social impacta o íntimo e que, como dizem as feministas, “o pessoal é político”.

Seria reducionismo realçar somente as dificuldades financeiras como causa mortis de Assis Valente, ainda que ele, ao ingerir o guaraná com formicida na Praça Roussell, estivesse de fato num fundo-de-poço no que diz respeito à grana, com os credores pulando em sua carótida, ameaçado de perder seu laboratório e seu sustento. O próprio estigma do suicida fracassado, muito explorado pela mídia, impele a tentar um suicídio bem-sucedido. Na verdade, nossa sociedade não respeita o direito de morrer, trata o suicídio e a eutanásia como temas tabu, quando não lança os estigmas sobre quem decide se livrar de uma vida que se tornou demasiado angustiante para valer a pena.

Silenciados na morte assim como foram em vida, muitos suicidas que sobrevivem à tentativa de auto-supressão encontram, na realidade instituída, muitos concidadãos que trazem ouvidos moucos, que são surdos voluntários. As pessoas normais, por medo das verdades que podem ser anunciadas por aqueles que estiveram “nos cumes do desespero” (para evocar uma expressão de Cioran), botam cera nos ouvidos para, como novos Ulisses, não ouvirem o perigoso cântico sedutor da sereia Tânatos. Mas há os suicidas que ressoam mais fortemente na posteridade justamente pelo ato expressivo extremo envolvido na escolha da auto-aniquilação.

Este “baiano pré-tropicalista” que foi Assis Valente era dotado de uma “jovialidade trágica” – como diz o título da biografia escrita por Francisco Duarte e Dulcinéia Nunes Gomes. Dez anos após sua morte, Valente voltava a estar no epicentro de um furacão, tendo sua trágica jovialidade reativada pelos tropicalistas.

Era Dezembro de 1968 e o Brasil estava convulsionado: durante todo o ano, em sintonia com as conturbações na França, no México, na Tchecoeslováquia e alhures, as ruas do país tinham sido tomadas por manifestações contrárias à ditadura militar. A principal delas, a “Marcha dos Cem Mil”, havia tomado as ruas após o assassinato, pelas forças militares, do estudante secundarista Edson Luís no Calabouço. No segundo semestre, o Congresso da UNE em Ibiúna havia sido duramente reprimido e centenas de estudantes haviam sido presos. Nas ruas de São Paulo, em especial a Maria Antônia, universitários da USP e da Mackenzie transformavam a cidade em praça de guerra.

Na noite de 23 de Dezembro, os tropicalistas gravaram o programa Divino, Maravilhoso na TV Tupi em clima de muita tensão. Como lembra Carlos Calado, Caetano Veloso cantou a marchinha “Boas Festas”, “uma das preciosidades musicais do baiano Assis Valente, apontando um revólver engatilhado para a própria cabeça”:

“Aproveitando a atmosfera fraterna das festas de fim de ano, os tropicalistas resolveram afrontar mais uma vez a caretice da tradicional família brasileira em seu happening semanal pela TV Tupi. (…) Apesar da evidente brutalidade da cena, inspirada em Terra em Transe de Glauber Rocha, Caetano tinha uma explicação bem consistente. A imagem dramática de um suicida, cantando uma canção que ironizava o suposto espírito natalino, revelava também a essência da poesia de Assis Valente…

Por causa de provocações desse tipo, não era à toa que, logo nas primeiras semanas, já se comentava que Divino, Maravilhoso tinha seus dias contados. Além do ibope não ser dos maiores, o auditório da TV Tupo era frequentado por policiais à paisana, o que aumentava ainda mais o mal-estar dos tropicalistas. Principalmente após a decretação do AI-5, o medo aumento muito entre o elenco e a produção do programa. De algum modo, todos tinham consciência de que, a qualquer momento, poderiam ter problemas com a polícia ou mesmo sofrer um atentado. Afinal, Divino, Maravilhoso já nascera como uma mina, pronta para explodir… Em 28 de Dezembro, Caetano e Gil já estavam trancafiados em duas minúsculas celas de um quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. A aventura tropicalista custou caro aos dois parceiros.” (CALADO, pg. 251 – 253)

O episódio revela o quanto a Tropicália se sentia inspirada pela jovialidade trágica de Assis Valente. E também mostra que nenhuma tirania suporta bem a ironia tragicômica de artistas desajustados que ousam expressar sua diferença em relação ao instituído. Os anos de chumbo da ditadura militarizada tentariam quebrar a espinha dos artistas brasileiros que tinham a coragem de romper com o cerco da censura e do silenciamento – e alguns, como Torquato Neto, também sucumbiram à tentação do suicídio.

Mesmo morto, o espírito tragicômico de Assis Valente seguiu ecoando pelo Brasil, como um balão que sobe em toda festa de São João e que canta em toda época natalina, como a nos lembrar da sabedoria necessária que diz: nesta vida, é impossível viver só a delícia sem a desgraça, só a euforia sem a fossa. Nós, no Brasil, deveríamos saber melhor do que ninguém que estamos todos condenados à mescla. Tudo indica que a Terra será sempre o entrelaçamento, por vezes insuportável e outra vezes maravilhoso, de céu e inferno, inextricáveis em seu abraço.

Carli, Goiânia, Dez 2019

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALADO, CarlosTropicália – A História de Uma Revolução Musical.  São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2010.

JUNIOR, GonçaloQuem Samba Tem Alegria: a Vida e o Tempo de Assis Valente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

MORAES, Diego. O suicídio de Assis Valente e o Papai Noel da Coca-Cola. On-line: A Casa de Vidro, Dez. 2017.

SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem deA Canção no Tempo, vol. 2: 1958 – 1985. São Paulo: Ed. 34, 6ª ed., 2015.

SOUZA, Tárik deTem Mais Samba – Das Raízes à Eletrônica. São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2008.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS

 

ESCUTE AÍ:

ASSIS VALENTE NÃO FEZ BOBAGEM – 100 ANOS DE ALEGRIA
(Coletânea – CD Duplo)

DOWNLOAD CD 1 – DOWNLOAD CD 2
(VIA MEDIAFIRE ACASADEVIDRO)


Tárik de Souza em Carta Capital / 21 dez 2011.

O compositor Assis Valente (1911-1958) teve uma vida trágica, mas perpetuou a alegria em sua obra. Alguns de seus melhores sambas e marchas estão no CD duplo Assis Valente não fez bobagem – 100 anos de alegria (EMI), entre releituras (CD 1) e gravações originais (CD 2).  No primeiro, Novos BaianosMaria BethâniaMaria Alcina, Martinho da Vila, Wanderlea, Marília Pêra, Isaurinha Garcia, Aracy de Almeida e outros mestres dão aula de ritmo e irreverência. Destaque para raridades como Um jarro d’água, na voz de MarleneRecenseamento, na de Ademilde Fonseca e o clássico Boas festas, com Doris Monteiro. Já no segundo, seus intérpretes mais constantes, Carmen Miranda e o Bando da Lua, se alternam com Dircinha Batista, 4 Ases e 1 Coringa, Orlando Silva, Carlos Galhardo e Moreira da Silva, na maioria em registros dos anos 30, auge da carreira do compositor. Vale ainda mencionar a qualidade técnica dessas gravações, apesar de tão antigas, e o fato de a maioria ser inédita no formato digital. O álbum acompanha uma mini-biografia escrita por mim, todas as letras e os anos originais de lançamento. Uma delícia! – Rodrigo Faour

 

VÍDEOS INTERESSANTES:

Show inédito de Ana Flor de Carvalho em Goiânia anima A Casa de Vidro (Sexta, 31/01/2020)

A Casa de Vidro Ponto de Cultura promoveu o show, inédito em Goiânia, de Ana Flor de Carvalho (página do evento no Facebook / reportagem no O Que Rola). Acompanhada por uma banda cheia de suingue e unida por laços sanguíneos, Flor dividiu o palco com seus irmãos Noel Carvalho (bateria), Daniel Pregnolatto (guitarra), Emanuel Pregnolatto (baixo) e amigo Marcos Galvel Morais (teclado) e propiciou uma noite envolvente com muita dança n’A Casa de Vidro.

FOTOS DO EVENTO – Por Fernandinha (@Maria Tatuaria)

RELEASE

Todo jardim precisa de terra boa, luz e muita água. Ana Flor de Carvalho, ou só FLOR, brota de um jardim fértil, nasce forte e tem tudo isso na sua música. A terra, o chão vem da sua ancestralidade, da sua relação com a cultura popular. É filha do mestre Tião Carvalho (Wikipedia – Cravo Albin) e, desde criança, conviveu com a música dentro de casa.


Flor vivenciou diversas expressões e matrizes da cultura popular brasileira em grupos como Cupuaçu (SP) e Flor de Pequi (GO). Mas, Flor também desbravou e continua a desbravar outros terrenos, como a banda Zafenate e o Forró do Assaré, e agora com este projeto solo e autoral.

A luz emana dela mesma – de dentro, do seu percurso da vida, do seu ser feminino. De temperamento intempestivo, FLOR está sempre de prontidão; não para o conflito, necessariamente, mas para os afetos – seja o amor ou não, mas sempre intensa. Sua música traz essa energia, fluindo de momentos rock n’roll e urbanos a outros, caipiras e idílicos.

A água vem da saliva, do verbo, gastado nos versos das canções. São canções que se alternam num movimento pendular, hora viscerais – explosivas e cheias de verdades pessoais -, hora debochadas – balançadas, auto irônicas, mas não menos verdadeiras. Entoadas por sua voz árida e potente, trazem a sensação que fazem qualquer sertão virar mar (ou um belo e estranho jardim).”

OUÇA FLOR:

“Salomé” (Single)

“Delito” (Ao Vivo)

“Carroça” (Ao Vivo)

“Meu Xuxu” (Ao Vivo)

“Treta” (Ao Vivo)

Saiba mais

Na gangorra de emoções e obcecada com a mortalidade, Phoebe Bridgers destaca-se no cenário indie-folk

A arte, por vezes, é capaz de proezas espantosas como enfiar a condição humana inteira dentro de uma canção de 3 minutos. É o que faz a artista californiana Phoebe Bridgers – que também integra, na companhia de Conor Oberst, a banda Better Oblivion Community Center – em “Killer”, faixa de seu álbum de estréia “Stranger in the Alps” (lançado em 2017, baixe o disco em Mp3 de alta fidelidade: https://bit.ly/30JgSQK.)

A estilística da canção não difere muito das baladas conduzidas ao piano que fizeram a fama de duas das mais importantes artistas da música norte-americana contemporânea – Tori Amos e Fiona Apple. Porém Phoebe Bridgers traz uma marca própria, uma ousadia lírica toda sua, como prova esta canção que tematiza, com coragem e abertura, o amor diante da morte – e o direito à eutanásia.

Depois de assistir este esplendoroso videoclipe algumas vezes, fiquei impressionado pela capacidade extraordinária de união de vertentes expressivas que se manifestam nestes 3 minutinhos de audiovisualidade em eflorescência: o video-clipe é puro cinema e a letra é pura poesia. E não faltam provocações filosóficas.

“Às vezes penso que sou uma assassina”, começa a canção, evocando um clima de filme de horror, o que a segunda estrofe só sublinha: “Não consigo dormir perto de um cadáver, mesmo que esteja indefeso na morte / E tenho certeza que sentirei tua falta / E de fingir-me adormecida para contar tua respiração…”. A letra inclui uma referência a um notório serial killer (Dahmer) e revela uma artista arriscando-se na expressão de suas obsessões mais sombrias.

“I feel like a lot of my friends, especially artists, are consumed with this idea of the inevitability of death.” Phoebe Bridgers, Interview @ The Line of Best Fit

A canção tem um endereçamento: o eu lírico canta como quem escreve uma carta. Algo do espírito de “When I’m 64” – de Lennon/McCartney, a memorável canção dos Beatles – aparece aqui, pois o eu lírico imagina-se mais velho, questionando-se de modo bem imaginativo sobre seu porvir. Nada evoca, menciona ou fede a morte na canção pop alegrete de McCartney, em que envelhecer ao lado da amada é descrito como a maior das felicidades.

Só que onde Paul McCartney foi jovial, lúdico e solar, Phoebe Bridgers foi dark, melancólica e saturnina. Ela fala assim ao destinatário de sua carta-canção: “Quando eu estiver doente e cansada, e minha mente praticamente não estiver mais lá / Quando uma máquina me mantiver viva e estiver perdendo toda minha cabeleira / Eu espero que você beije minha cabeça apodrecida e tire a máquina da tomada / Sabendo que queimei todas as playlists e dei todo meu amor.” Coube até o amor fati nestes três minutos de esplendorosa canção.

KILLER

Sometimes I think I’m a killer
Scared you in your house
I even scared myself by talking
About Dahmer on your couch

But I can’t sleep next to a body
Even harmless in death
Plus I’m pretty sure I’d miss you
And faking sleep to count your breath.

Can the killer in me
Tame the fire in you?
Is there nothing left to do for us?

I am sick of the chase
But I’m hungry for blood
And there’s nothing I can do
But when I’m sick and tired
And when my mind is barely there
When a machine keeps me alive
And I’m losing all my hair
I hope you kiss my rotten head
And pull the plug
Know that I’ve burned every playlist
And I’ve given all my love.

Can the killer in me
Tame the fire in you?
I know there’s something waiting for us
I am sick of the chase
But I’m stupid in love
And there’s nothing I can do.

Esta obsessão com a inevitabilidade da morte, enfatizada pela artista nesta pela entrevista, também se manifesta em “Funeral”. A poetisa, distanciando-se da eutanásia que se coloca como bifurcação ética no fim de muitas existências humanas, exigindo a escolha pelo suicídio assistido ou pelo morrer-de-morte-morrida, dedica-se em “Funeral” à morte precoce, começando a canção anunciando: “Vou cantar num funeral amanhã de uma criança um ano mais velha que eu.”

O brilhantismo deste início está no fato de que a narrativa cria de imediato um suspense sobre esta misteriosa morte de criança que será cantada por uma criança ainda mais jovem. A música evoca a falência da razão ao tentar compreender este horror, o sentimento de asfixia diante da tragédia: when I think too much about it I can’t breathe.

Phoebe Bridgers, com sua voz afinadíssima, com seu charme sussurrante, fez em “Funeral” um dos canções mais tristes dos últimos anos, culminando num refrão onde o sentimento que impera é o de estar sempre blue. Emblema musical do que alguns psicanalistas chamariam de uma síndrome maníaco-depressiva é a confissão do eu-lírico de que este sentir-se blue all the time é algo que “sempre foi assim e sempre será”. Não é verdade que isto captura à perfeição o mood depressivo, que consiste num presente triste em que tanto passado quanto futuro aparecem dominados por uma tristeza que se espraia para todos os lados?

O quadro fica ainda mais forte quando a poetisa evoca, de maneira impressionante, uma imagem onírica: “tenho um sonho em que estou gritando debaixo da água / enquanto meus amigos estão me acenando da margem”. O sarcasmo de Phoebe ergue-se mesmo em meio à desolação deprê deste funeral sônico e ela pede, como Rebecca Solnit: “não preciso que você me explique o que isso quer dizer…”

É evidente que há hipérbole e exagero nesta expressão da tristeza, estar blue todo o tempo, sempre foi assim e sempre será – mas é através deste recurso expressivo que ela atinge algo muito significativo sobre a experiência humana. Às vezes levamos muito a sério nossos próprios sofrimentos, sem nos lembrar que eles são ninharia diante de pais e mães que neste momento estão chorando a morte precoce de seus filhos.

Phoebe deixa no mistério a causa mortis e seu vínculo com o falecido, mas tudo indica que, já que foi convidada a cantar no funeral, trata-se de um conhecido, alguém quase de sua idade, que nunca estará mais aqui, situação que a afunda temporariamente nesta asfixia emocional onde os moods deprês parecem destinados a ficar para sempre. A boa notícia é que na vida tudo acaba, até a nossa dor de viver, sempre temporária.

Outro destaque deste disco de estréia da Phoebe é “Motion Sickness”, que também ganhou um belo videoclipe que já ultrapassou 2 milhões de visualizações. O teor “confessional” que se mostra nas composições dela é repleta de uma auto-ironia mordaz. Ela confessa que sofre de “emotional motion sickness“, que já tentou curá-la com grana emprestada em um “hypnotherapist”.

Difícil de traduzir – ela mesma fala da escassez de termos na língua inglesa para “afogar” o problema -, este “mal-estar do movimento emocional” evoca uma condição que talvez se caracterize por algo parecido com “ficar doente com a gangorra de afetos”. Os primeiros versos já evocam uma mistura de raiva e de saudade, de autenticidade e de fingimento, em que Phoebe entrega-se como um belo buquê de contradições ambulante. Indo de patinete até o karaokê, a moça do clipe estabelece uma jornada da frieza à catarse, mas sempre solitária. O crescendo catártico do clipe nos conduz à revelação da terapia que ela vem tentando para sua auto-cura: surrender to the sound. 

O tom afetivo da música de Phoebe Bridgers evoca o folk-triste de figuras lendárias do sadcore como Eliott Smith, Cat Power, Nick Drake etc. No encerramento de seu disco de estréia, Phoebe homenageia um desses luminares da melancolia musicada no alt-folk norte-americano: Mark Kozelek (que além de prolífica carreira-solo, foi o líder das bandas Sun Kil Moon e Red House Painters), realizando sua interpretação de “You Missed My Heart”.

Phoebe Bridgers também vem se destacando em projetos colaborativos – caso do trio de mulheres Boygenius  e da dupla de folk-rock alternativo que integra junto com Conor Oberst (o Bright Eyes), o Better Oblivion Community Center. A colaboração Oberst e Bridgers começou no álbum de estréia da cantora, em que Mr. Bright Eyes cantou na faixa “Would You Rather”.

A banda – cujo nome se traduz como algo semelhante a “Centro Comunitário Melhor o Esquecimento” – é uma das novidades mais interessantes do cenário musical indie recente, tendo lançado seu álbum de estréia em 2019 pela gravadora Dead Oceans (a mesma que publicou Stranger in the Alps). Em sua resenha para a AMG All Music Guide, Fred Thomas destacou o quanto Phoebe e Conor são espíritos em sintonia:

“It’s evident that indie songwriters Phoebe Bridgers and Conor Oberst are kindred spirits from a brief sampling of any cross-section of their catalogs. Both deal in folk-inflected storytelling that tends to slowly curdle from introspection to darkness and both have deftly balanced approaches to their songcraft that keep their hooks from being swallowed by that darkness. (…) Along with her unhurried vocals, Bridgers’ signature styles gel nicely with Oberst’s trademark shaky croon and stark lyrical perspectives. While both performers are too iconic for Better Oblivion Community Center to truly feel separate from their respective bodies of work, there’s still a strange magic that comes from the combination.

O disco foi eleito um dos melhores do ano em publicações como Exclaim! e Stereogum. Confira já o belo clipe da canção magistral “Dylan Thomas”, que inclui uma homenagem ao poeta galês:

It was quite early one morning
Hit me without warning
I went to hear the general speak
I was standing for the anthem
Banners all around him
Confetti made it hard to see
Put my footsteps on the pavement
Starved for entertainment
Four seasons of revolving doors
So sick of being honest
I’ll die like Dylan Thomas
A seizure on the barroom floor
I’m getting greedy with this private hell
I’ll go it alone, but that’s just as well
These cats are scared and feral
The flag pins on their lapels
The truth is anybody’s guess
These talking heads are saying
“The king is only playing a game of four dimensional chess”
There’s flowers in the rubble
The weeds are gonna tumble
I’m lucid but I still can’t think
I’m strapped into a corset
Climbed into your corvette
I’m thirsty for another drink
If it’s advertised, we’ll try it
And buy some peace and quiet
And shut up at the silent retreat
They say you’ve gotta fake it
At least until you make it
That ghost is just a kid in a sheet
I’m getting used to these dizzy spells
I’m taking a shower at the Bates Motel
I’m getting greedy with this private hell
I’ll go it alone, but that’s just as well.

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Por Eduardo Carli de Moraes. Acesse a página com todos os artigos sobre música.

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PLAYING THE PAIN AWAY – Sobre a arte prodigiosa de Tash Sultana e sua prática da catarse musicoterápica

Fico impressionado, de queixo caído, com os múltiplos dons musicais da Tash Sultana. Esta multi-instrumentista australiana, nascida em 1995 lá em Melbourne, vem se destacando no cenário cultural global como uma “banda-duma-mina-só” que esbanja inovação e feeling através dum som viajado, complexo, irrotulável. Sobretudo inspirador.

Virtuose da sinergia, Tash revigora como poucas artistas atuais os domínios do Rock Alternativo e da “cultura neo-hippie”. No processo, semeia fascínio em relação aos poderes da juventude humana quando pode deixar florescer sua criatividade e curiosidade. Com seu controle ímpar de instrumentos múltiplos e pedais de loop, ela chegou pra provar que é possível o surgimento de novos “guitar heroes” que não sejam apenas os que repisam nas pegadas de Clapton, Hendrix, Jeff Beck ou Eddie Van Halen.

Esta guitar heroine despontou com a viralização de seu vídeo caseiro da música “Jungle”, há 3 anos atrás (hoje ele possui cerca de 30.000.000 de visualizações no YouTube – assista abaixo). Com uma câmera estática filmando seu processo de “maga” dos sons, ela mostrou ao mundo que o cenário do indie-rock da Austrália ia muito além do Tame Impala. A performance de Tash, adicionando camadas e mais camadas de sons ao seu caldo de bruxa, voodoo child da novíssima generation, estarreceu muita gente com uma espécie de orquestra rock de uma mulher só:

Natasha (vulgo Tash) empilha sons em camadas superpostas sem precisar para isto do recurso de estúdio do overdub. Ela é capaz de criar, ao vivo, as “paredes de som” Phil Spectorianas que muitos pensavam só serem produzíveis em um contexto de estúdio e overdubbing. Ela é mestra na produção de um fluxo sônico onde os primeiros sons que ela produz na canção entram em estado de loop (repetição cíclica), repetindo-se como um eco do passado que segue presente, e os próximos sons adicionam-se a estes sons tocados no passado que seguem ressoando por proeza da tecnologia digital.

Conforme a canção progride, o que temos é uma espécie de câmara de ecos que poderia chafurdar na confusão mais caótica se não houvesse, no controle do processo, uma “regente” genial de si mesma como esta moça é. A revista Rolling Stone publicou uma crítica onde demonstrou toda sua admiração por um disco de estréia descrito como “deeply impressive”, onde sobressai a “guitar wizardry” da moça que é uma faz-tudo (cantora, compositora, multi-instrumentista, produtora, e por aí vai):

This Melbourne-based busker-gone-legit raises the “do it yourself” stakes with her debut, which is a top-to-bottom showcase of her varied virtuosity; she’s the lone musician credited on the album, as well as its producer and songwriter. Given Sultana’s playing-for-tips roots, it’s probably appropriate that Flow State whirls through styles — “Cigarettes” starts as loose-limbed R&B then speeds things up to a near-frantic pace, “Salvation” recalls the marriage of big beats and gossamer voices that dominated indie discos in the late Nineties, and the simmering “Seven” showcases Sultana’s violin skills over plush synth-pop and agitated chase-scene scores. Sultana can play 20 instruments, but her guitar wizardry is the clear star here; the yearning solo on “Pink Moon” yawps and shudders, while the gathering-storm riffage of “Blackbird” stretches out over nearly ten minutes, all thrilling. After years of being a festival and YouTube sensation, Sultana’s thrown down the gauntlet forcefully. (ROLLING STONE)

Parece-me que este é um procedimento estético que, além de dialogar com aquilo que o Radiohead fez de mais vanguardístico em sua carreira (a exploração cada vez mais arrojada de patterns rítmicos e ambiências que rompessem todas as caixinhas fechadas dos dogmas e paradigmas), aproxima Tash da “lógica” dos mantras budistas. Além disso, faz com que ela dialogue com a filosofia do Eterno Retorno Nietzschiana, como se seu imperativo categórico enquanto musicista fosse: “toque cada nota e cante cada frase como se você quisesse que aqueles compassos se repetissem eternamente no futuro da canção”.

Mas ninguém precisa intelectualizar demais a sua “stésis” (ou seja, seu aprendizado a partir da experiência sensorial) pra apreciar esta música: ela é capaz de fazer algo de benigno com nosso cérebro se simplesmente nos abrirmos a ela, sem pensamentos inúteis servindo de barreira para o impacto de seus encantos. Seus dois primeiros álbuns, Notion (2016) e Flow State (2018) – que A Casa de Vidro disponibiliza para dowload gratuito – penetram por nossos sentidos como uma avalanche sensorial complexa e inebriante, uma espécie de hippie-prog-rock do século 21.


“Synergy”, canção que abre o EP de estréia de Tash Sultana, Notion 

A habilidade rítmica da moça faz com que ela seja mestra em nos conduzir ao transe místico. Como uma neo-hippie pilotando a tecnologia da atualidade com maestria poucas vezes vista, Tash Sultana abre novos horizontes para uma percepção mais fluida de mundo e para uma redescoberta da música como mística. Ouvir os álbuns é uma vivência que recomendo, mas antes de ir a eles seria interessante uma imersão nos vídeos, pois neles se explicitam melhor os procedimentos técnicos e performáticos que permitem que uma musicalidade de tamanha complexidade possa nascer, ao vivo, de uma única pessoa, extraordinariamente jovem, que toca todos os instrumentos que se ouvem em seus shows e discos – o que alguns ouvintes vão julgar inacreditável. Tash Sultana toca como se quisesse nos conduzir, pela via dos sons, a alguma espécie nova de iluminação búdica.

FAÇA O DOWNLOAD DA DISCOGRAFIA DE TASH SULTANA EM MP3 – Notion EP (2016) e Flow State LP (2018)

Pra se ter uma noção do que são Notion e Flow State, são necessárias repetidas imersões em seus complexos sons. As explorações de territórios novos no indie rock, como Velvet Underground, Talking Heads ou Pixies fizeram no passado, convivem na obra de Sultana com influências culturais orientais, vibes meio rasta, flertes com o dub e o trance, tudo impregnado de uma espiritualidade meio búdica. Uma neo-hippie no perfeito comando da tecnologia a seu dispor, ela é também capaz de explorações existenciais e mergulhos psicológicos que expressam sua subjetividade conturbada. Uma de minhas prediletas fala sobre tudo aquilo que nos oprime por dentro, nos confunde a subjetividade, nos esmaga invisivelmente – tudo que é “assassinato pra mente” (“murder to the mind”):



“I was only screaming out for help
It was murder to the mind
It was blood on my hands
Fire in my soul…”

“Murder to the Mind” é uma das músicas que mais impressionam em Flow State, um dos álbuns de estréia mais ambiciosos do século 21. O videoclipe é primoroso e revela ao espectador toda a densidade da experiência sensorial envolvida em Tash Sultana. Ela, em operação, é um corpo pulsando intensamente com a música, com seu organismo inteiro movimentado pelo estado-de-fluxo que a música propicia quando se é capaz de cometer, com ela e através dela, “abraço místico”, tema de outra das lindas canções do disco, “Mystic”, que evoca Van Morrison e sua música que nos conduz a “velejar into the mystic” em obras-primas da história da música como Moondance e Astral Weeks:


“There’s a natural mystic in the air…”

Na guitarra de Tash, repercutem os ritmos do dub, do ska, do reggae, do R&B, enfim: da diversidade abraçada, celebrada, praticada. Ela vai criando riffs onde também se manifestam toda a maestria Sultânica para a arte do loop. E acima de tudo isso, evidências de sobra de que ela sabe rockear: sua atitude nos palcos e na vida é de alguém que sabe também ser confrontacional. Outro de seus méritos enquanto musicista é que, não importa quão experimental seu som se torne, ela é sempre groovy em seu processo de ir experimentando… Não se trata apenas duma geek privilegiada que está com tempo livre de sobra pra aprender uns gimmicks com pedais-de-guitarra e softwares de sequenciamento de beats. Em Tash Sultana, estes instrumentos estão a serviço da maestria expressiva e interpretativa:


Estamos em uma era, na música, onde se agigantam de novo as teens fenomenais, dando uma nova versão da angústia adolescente através de uma Billie Eilish, mas igualmente através da imensa sabedoria que Tash Sultana já manifestava aos 21 anos de vida. Isso se evidencia na TED Talk em que ela, em clima confessional (similar àquela linda sessão TED com Flaira Ferro), relembra de certos episódios de sua vida pregressa em que lidou com a “psicose”, a confusão mental, a insociabilidade, a incapacidade de funcionar corretamente em meio à sociedade careta. Toda aquela dor, ela diz, foi sendo trabalhada através do tocar música, até que ela tenha alcançado um pouco de “clareza” [clarity] sobre os afetos [passions].

Aí, parece-me, está se exprimindo algo que também marcou a trajetória de Kurt Cobain, aquele irônico e icônico ídolo juvenil suicidado aos 27 e que cravou versos inesquecíveis como aquele que agora acorre à memória: “teenage angst has paid off well” (de “Serve the Servants”, magistral faixa de abertura do “In Utero”). Talvez Sultana possa dizer que conheceu a teenage angst cobainiana, que esteve tentada a auto-destruir-se devido a suas suicidal tendencies, mas que conseguiu, ao contrário do líder do Nirvana, encontrar saúde e clareza através da catarse musicoterápica. O que a aproxima também de Laura Jane Grace, mulher-trans à frente de uma das mais importantes bandas punk do mundo, o Against Me, que também fala no processo de “buscar claridade” em meio ao caos, através de sua arte, em álbuns incríveis como Searching For a Former Clarity e Transgender Disphoria Blues.

Ela não buscou esta catarse através da expressão por vontade de se conformar aos padrões e paradigmas da sociedade careta, mas ao contrário foi “playing the pain away” em sessões de performance-de-rua [streetperforming] que ela foi burilando seu estilo e aprendendo a comandar a impressionante aparelhagem que ela opera. Multi-instrumentista capaz de tocar mais de 10 instrumentos diferentes, ela é prova da vivacidade extasiante da capacidade de aprender humana manifestando-se na flor da juventude. Skateira, pouco conformada aos padrões de gênero que propõe à mulher que seja dócil e comportada, sempre de trejeitos “femininos” (ou seja, delicados…), ela traz na pele tatuada os signos de uma ânsia por sentido, diante da morte, construída com arte.

Aquela TED Talk, neste contexto, ensina uma imensidão: uma mente humana, há 21 anos no mundo, é uma das coisas mais complexas e fascinantes do cosmos – e pobres dos velhos que, prepotentes e arrogantes, ousam desprezar a juventude e supõe que ela é sempre mais tola e estúpida do que a geração que está a mais tempo no mundo. Na verdade, pode ser que o apego às velharias conhecido pelo nome de conservadorismo seja uma esclerose senil e que as forças da renovação da existência encarnam-se na geração juvenil. Isto é tão óbvio e evidente mas precisa ser reafirmado diante de uma faceta que nos esfaqueia no fascismo da atualidade: os fascistas são quase sempre velhos, opressores da juventude, apegados ao dogma de que os mais velhos devem mandar, numa espécie de gerontocracia. 

A música e a pessoa de Tash Sultana é pra dar um pontapé nesses arrogantes gerontocratas. A juventude pode muito e ainda vai poder mais: Rimbaud já tinha marcado para sempre a história da poesia francesa com 17 anos de idade, e eu afirmaria sem medo de errar que a música “pop” nos EUA poucas vezes foi marcada por uma obra prima artística tão primorosa quanto foi pelo lançamento de Tidal, disco de estréia gravado por uma Fiona Apple  que havia criado aquilo após apenas 16 giros de seu corpo ao redor do Sol.

Na esteira dos Beatles e do mantra “Can’t Buy Me Love”, ela realizou “Can’t Buy Happiness” (Não Se Pode Comprar Felicidade), sugerindo que só se é feliz, nesta vida, quando utilizamos a criatividade para lidar com os sofrimentos inevitáveis que a vida comporta.

A salvação não precisa ser privilégio dos crentes, nem ser necessariamente post mortem: pra salvar-se em vida de uma morte travestida de existência, de uma meia-viva apagadinha e meia-boca, é preciso que a arte seja convocada para infundir beleza e sentido ao que de outro modo poderia chafurdar no nonsense e na insignificância confusa. Para além de ser uma wizard dos instrumentos musicais, de ser brilhante no controle dos aparatos tecnológicos, Tash Sultana é também alguém que vivencia a arte como espiritualidade – o que é laico, secular, acessível a qualquer ateu. A beleza é um deus terreno que não exige de nós crença na transcendência sobrenatural, nem sacrifícios ascéticos em louvor a esta. Salvação, aqui e agora, através da criação, pela arte, de um mundo mais belo e mais habitável, de uma vida mais fascinante e envolvente.

É claro que, de um viés crítico, há o que se dizer sobre esta hipérbole do protagonismo que é o método do-it-yourself de Sultana levado ao extremo de um do-it-alone (with no one else). Alguns podem ler excesso de individualismo nesta estratégia artística de alguém que quer fazer tudo, estar no controle de todos os elementos, levando a questão da expressão individual à elefantíase. Avessa à especialização de funções, Tash não quis chamar uns brothers ou sisters para tocarem baixo, batera, trompete com ela. Ela toca consigo. Será isso solipsismo? Mesmo numa artista que, em “Mystic”, nos fala de uma sabedoria que consiste em botar o ego pra dormir?

“I guess I laid my ego to rest.” (“Mystic”)

Ela corre o risco de se embrenhar numa jornada egóica, como muito guitar hero já fez, fazendo a ostentação de seus feats técnicos para platéias embasbacadas. Ela é prodigiosa e sabe disso, mas isto coloca o perigo de um ego que cresça como um balão que se enche de ar e se desprega do chão. De todo modo, como o clipe de “Cigarettes” indica, Tash é um exemplo vivo do que pode acontecer com alguém que tem sua iniciação musical bem cedo, que tem seus dons expressivos incentivados desde o berço, e que ademais consegue trilhar como estudante os caminhos do aprendizado auto-didata (ela se diz self-taught):

Em seu pertinente e provocante documentário The Century of the Self, Adam Curtis sugeriu que vivemos no “século do self” no último centênio. Tash Sultana é expressão isso, de uma self made woman que conseguiu tornar-se “sozinha” um fenômeno transnacional da música. Só que este self é nela questionado pelos tropismos que ela manifesta pelas vertentes da sabedoria oriental que colocam a felicidade justamente na transcendência do ego e numa mística da re-união. Búdica religião do re-ligare, que através da arte faz o eu transbordar de si e encontrar-se com outros na mística profana e maravilhosa da comunicação estética. Através de sua arte, como uma blueswoman tecnizada, ela segue a caminhada da vida playing the blues away, na descoberta de uma catarse musicoterápica.

 

Por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 20/12/2019

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Conheça o videoclipe da canção “Morro Abaixo”, de Luiza Camilo e Iná Avessa, uma produção d’A Casa de Vidro Ponto de Cultura

Presente em Nascência, álbum de estréia da artista goiana Luiza Camilo, a canção “Morro Abaixo” conta com participação especial de Inà Avessa, MC em ascensão no cenário Hip Hop de Goiânia.

O video-clipe é uma produção do ponto de cultura A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com), com filmagem e montagem por Eduardo Carli de Moraes, assistência e making of por Naihara Moraes.

O lançamento oficial aconteceu na Festa da Resistência Latinoamericana com shows de Adriel & Iná, n’A Casa de Vidro, durante a 3ª Jornada Goiana de Direitos Humanos, organizada pelo Comitê Goiano de Direitos Humanos ‘Dom Tomás Balduino’, em 14 de Dezembro de 2019.

O lirismo e a musicalidade ímpares da Camilo já lhe renderam o reconhecimento em festivais como Canta Cerrado, Canto da Primavera e Juriti – Festival de Música e Poesia Encenada. Neste último, por exemplo, Camilo foi a vencedora do 1º lugar, na terceira edição do Juriti no ano de 2013, por sua interpretação da obra de poesia encenada “Amanheçamos” (Fonte: https://bit.ly/2RZrgS6). Ela também integrou a banda Bandita Codá (assista, desta, ao clipe da canção “Destino”, também presente em Nascência). 

Convidamos a todos para que apreciem e disseminem o vídeoclipe oficial de “Morro Abaixo”, uma das mais belas canções do disco “Nascência”. A confluência entre Luiza Camilo e Iná Avessa, nesta canção emblemática do que de melhor tem nascido na cultura goiana, está em sintonia com outros trabalhos de protagonismo feminino que vem despontando e florescendo no cenário: AveEva (da dupla Paula de Paula e Flávia Carolina), Cocada CoralBanda MadáIngrid Lobo, Lorranna Santos, Coró Mulher, Retalha Vento, Luciana Clímaco, Nina Soldera e Banda Mundhumano e Meimundo, M’Bandi, dentre outros.

Este é o terceiro videoclipe produzido e publicado pel’A Casa de Vidro: antes vieram “Marginal Latina”, de Vitor Hugo Lemes (VH, O Escrivão) e Bergkamp Magalhães (acesse: https://www.youtube.com/watch?v=s2svqzGlXew), e “Peles Negras Máscaras Brancas”, de VH e Jordana Luz Negra (https://youtu.be/pwx-qGRtE_M).

“Morro Abaixo” nasceu da colaboração de muita gente que somou forças para atingir este resultado e que estão reconhecidas abaixo:

CRÉDITOS DA PRODUÇÃO MUSICAL:
Arranjo, bateria e guitarra – Ricardo de Pina
Trombone – André Luiz
Percussão – Diego Amaral
Trompete – Wellington Santana
Composição, voz e contra-baixo elétrico – Luiza Camilo
Voz e composição – Iná Avessa

CRÉDITOS DA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL:

Câmera e Montagem – Eduardo Carli de Moraes
Fotografia e Making Of – Naihara de Moraes
Figuração e Assistência – Guilherme Eurípides, Afrodite Flow
“Performers” / Atrizes – Luiza Camilo e Iná Avessa

CRÉDITOS DA COMPOSIÇÃO:
Camilo / Iná

MORRO ABAIXO [Letra]:

É, ‘tá difícil respirar aqui
Tanta gente que não vê
o dia florir, a sorrir.

É, tanta tragédia acontece aqui
Muita gente foi embora.
E na TV ainda tem um tal de besteirol
Enganando a cabeça de quem acha
Que tudo vai bem.
‘Tá na hora de pensarmos mais além.

Os dias passam,
Tudo continua o mesmo.
Pessoas morrem,
Tudo continua o mesmo.
O lixo só aumenta
E continua igual. Continua igual.

(RAP – Iná Avessa MC)

O tempo do plantio é diferente do tempo da colheita. Sobrevoam duvidas suspeitas, espreitam, e vezes ganham atenção que desejam. Então não pense que eu estou parada. Isso não é um simulador, a vida é um tiro, eu ‘tô engatilhada, ando pensando, conhecendo a escola do caminho, algo que agora beira o não espera nada. Nada melhor que o não visto, nada melhor que o não quisto. O horizonte com firmeza é bem maior que o objetivo, a alma calma, o indivíduo o coletivo e o subjetivo. Então não pense que eu estou parada. Poesia marginal contra toda alienação, guerrilha verbal no país da alegria, onde impera a covardia, liberdade é utopia e no momento é ilusão. P’ros parça força nessa caminhada. Não deixe não.

E no jornal uma reportagem sensacional,
Acomoda a cabeça
De quem acha a norma normal,

Basta olhar e ver
Que o mundo vai bem mal.

Os anos passam,
Tudo continua o mesmo
Pessoas matam, mentem,
Tudo continua o mesmo.
O lixo só aumenta e continua igual.
Continua igual.

É hora de atenção, muito mais ação
Porque se não,
Felicidade vai virar ilusão.
Felicidade vai virar ilusão.
Felicidade vai virar ilusão.
Não deixe não.

* * * *

CLIPE DISPONÍVEL EM:
YouTube – https://youtu.be/VeLJb8die4E
Facebookhttps://www.facebook.com/blogacasadevidro/videos/759319991215726
Vimeo – https://vimeo.com/332085237
IGTV / Instagramhttps://www.instagram.com/tv/B6LpC9KnwNE/

SAIBA MAIS:

Site oficial: www.acasadevidro.com
Instagram: @acasadevidro_pontodecultura
Facebook: www.facebook.com/blogacasadevidro

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ÁLBUM DE FOTOS – MAKING OF e SCREENSHOTS

Artvismo feminista negro e interseccional cintila no álbum de estréia da Bia Ferreira, “Igreja Lesbiteriana” (2019) [Download e Crítica]

A música é uma arma, ensinava Fela Kuti, e Bia Ferreira foi boa aprendiz: ela funde seu ativismo com sua arte, propulsionando um mix explosivo de produção cultural e engajamento político em seu primeiro disco. Na Noize, Brenda Vidal percebeu bem que “na cena musical independente e contemporânea, Bia parece ser a voz e a mente que mais traduz a filosofia Kutiana em seu trabalho”:

Multi-instrumentista, compositora e cantora, ela faz da sua arte o ponto de fusão com seu ativismo. Ou, como ela mesma conceitua: faz artivismo. Das dores e das alegrias, dos medos e das coragens, Bia faz da sua composição escrevivência – conceito da escritora Conceição Evaristo – e faz do seu disco de estreia Igreja Lesbiteriana: Um Chamado (2019) um manifesto de seu propósito de vida: nunca se calar, principalmente frente à opressão.

A fenomenal Bia Ferreira lança seu álbum de estréia após uma trajetória repleta de repercussões significativas no cenário cultural e político através de seus vídeos-virais. Em contraste com a viralização das fake news e da masculinidade tóxica que hoje hegemoniza o rolê dito mainstream, Bia despontou viralizando uma das grandes canções de protesto brasileiras do século 21 (com mais 8 milhões de visualizações do vídeo da So Far):

“Cota Não É Esmola”, uma das forças propulsionadoras do debut da Bia, já merece estar no cânone do que se produziu de melhor cá na música popular de Pindorama nos últimos anos. Híbrido de folk com rap, este hino feminista-negro é um manifesto completo em defesa da inclusão social através de uma educação autenticamente democrática. É também a denúncia, que Bezerra da Silva já fazia com seus sambas subversivos, do “Preconceito de Cor”– assim cantado por Bia:

Experimenta nascer preto na favela pra você ver!
O que rola com preto e pobre não aparece na TV!
Opressão, humilhação, preconceito.
A gente sabe como termina, quando começa desse jeito.

Na melhor tradição da trova narrativa, Bia evoca uma garotinha, talvez seu alter-ego lírico, que chega atrasada na escola não por preguiça ou negligência, mas por estar “desde pequena fazendo o corre pra ajudar os pais”:

Cuida de criança, limpa casa, outras coisas mais
Deu meio dia, toma banho vai pra escola a pé
Não tem dinheiro pro busão
Sua mãe usou mais cedo pra poder comprar o pão
E já que tá cansada quer carona no busão
Mas como é preta e pobre, o motorista grita: não!
E essa é só a primeira porta que se fecha…

A lírica de Bia, nesta sessão nada nostálgica de relembrança e catarse de traumas passados, está calcada na sensação de portas que se fecham. O apartheid racista é repleto destas portas batendo nos narizes daqueles que insistem em afirmar sua dignidade humana, seu direito ao tratamento como cidadãos e não párias. Diante deste batalhão de portas que se fecham, Bia reabre os portais da igualdade com a força descomunal de seu canto, com o vendaval de seus versos.

Saltando, com sua lábia hábil, do individual para o coletivo, Bia Ferreira solta as mãos da menininha que evocou em sua narrativa e alça sua poesia àquelas alturas habitadas por Bob Marley, Gilberto Gil, Manu Chao: artistas capazes de expressar a “alma” de um povo que protesta contra seu próprio silenciamento e extermínio. Se ela afirma e reafirma que cotas raciais nas universidades não consistem em mimimi dos movimentos negros – “nem venha me dizer que isso é vitimismo! não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo!”, é devido a toda uma ancestralidade sangrenta, toda uma antiquíssima história de injustiça, abuso de poder, espoliação colonial, que projeta as trevas de seu domínio tirânico sobre o nosso presente:

São nações escravizadas
E culturas assassinadas
É a voz que ecoa do tambor
Chega junto, venha cá
Você também pode lutar, ei!
E aprender a respeitar
Porque o povo preto veio para revolucionar…

Tudo eclode com um “não deixe calar a nossa voz não!” que tem tudo pra se tornar um dos lemas propulsores do movimento anti-censura à que já estamos condenados, enquanto agentes culturais “subversivos” e inquietos, no Brazzzil da ditadura BolsoNerus. Aguerrida, combativa, mas essencialmente pacífica, Bia levanta as armas de suas canções com a força de quem nas raízes sabe se nutrir com os cadáveres de heroínas caídas. Não é difícil lembrar de Marielle Franco – e do luto dolorido vivenciado não só por Mônica Benício, mas por milhões de mulheres que engrossaram o caldo do #EleNão, maior movimento cívico a se manifestar em 2018 no Brasil – ao ouvir Bia cantar: “Nascem milhares dos nossos cada vez que um nosso cai.”

Bia Ferreira, assim como Talíria Petrone na política, assim como Mel Duarte na poesia, são sintomas deste Florescer da Voz, força que também vem desta semente replicável em que Marielle Franco se transformou. A História dirá se Marielle desempenhará, por aqui, papel semelhante ao ícone (cooptado ou não pelo consumismo capitalista) Che Guevara, transformado após sua morte num símbolo mobilizador de força inaudita.

O “chamado” de Bia, ecoando o de Marielle, consiste em nos convencer a “levantar a bandeira do amor” – contra todas as igrejas e seitas que enxergam pecado e lançam os anátemas (ou coisa pior) contra os amores considerados ilícitos. A exemplo do amor lésbico que Bia canta, celebratória, esfregando na cara dos homofóbicos a beleza sedutora, quase irresistível, de sua música de mulher livre, voadora, que “não mede amor em conta-gotas” (para lembrar uma linda canção do Adriel Vinícius, “Longe Daqui”).

Quem foi que definiu o certo e o errado?
O careta e o descolado?
A beleza e o horror?
Quem foi que definiu o preto e o branco?
O que é mal e o que é santo?
O ódio e o amor?
Cada um é dono da sua história
Quantos gigas de memória
Você separa pra sua dor, hein?

É assim esta Igreja Lesbiteriana – Um Chamado: um templo erguido para os questionamentos ácidos, para as questões bem colocadas, para a arte de pôr os pontos de interrogação bem no fundo (como recomendava Wittgenstein). Mas, para além do tom interrogativo, cáustico e crítico, Bia Ferreira também é muito exclamativa. Uma mulher-exclamação, cintilando chamados à luta em prol do amor celebrado em todas as suas formas e manifestações, para além das cercas binárias dos caretas e dos autoritarismos abusivos impostos pela masculinidade tóxica e pela heterossexualidade compulsória:

Então ame, e que ninguém se meta no meio!
O belo definiu o feio pra se beneficiar!
Ame e que ninguém se meta no meio!
Por que amar não é feio neguinho, o feio é não amar!
Levante a bandeira do amor, neguinhô-oh-oh!

Exclamativa ao extremo, “Diga Não” – que não entrou no disco, mas foi sucesso no vídeos que pavimentaram o caminho de Bia – nos convoca para todas as potências dos nãos: não ao “racismo, ao preconceito, ao genocídio do povo negro”:

Diga não à polícia racista
Diga não à essa militarização fascista
Diga não
Não fique só assistindo
Muita gente chora irmão enquanto você tá rindo
Diga não! Diga não!

O álbum de Bia, evitando o caminho da explicitação política logo de cara, inicia-se com a cantora a capella fazendo uma espécie de evocação dos orixás, convocando ancestralidades que a guiem: “Brilha Minha Guia”, música que abre o disco, tem sintonia e sinergia com o álbum póstumo de Serena Assumpção, Ascensão.

Convocados os orixás, Bia embarca no reggae pesadão de “Não Precisa Ser Amélia”. Eis uma obra-prima da canção de protesto em que a trovadora decide tomar as dores de suas irmãs, num espírito de sororidade, ofertando sua canção a várias mulheres sofridas que em nossa sociedade estão oprimidas por variadas explorações, espoliações e abusos:

Canto pela tia que é silenciada
Dizem que só a pia é seu lugar
Pela mina que é de quebrada
Que é violentada e não pode estudar
Canto pela preta objetificada
Gostosa, sarada, que tem que sambar
Dona de casa que limpa, lava e passa
Mas fora do lar não pode trabalhar.

Uma multidão de mulheres é evocada na canção que termina filosofando, com Simone de Beauvoir, sobre a diversidade intrínseca ao feminino e o processo de trânsito que faz com que alguém não nasça mas se torne mulher: “Seja preta, indígena, trans, nordestina / Não se nasce feminina, torna-se mulher.”

Nesta peça, Bia está em diálogo com o clássico samba “Ai, Que Saudade da Amélia!”, de Ataufo Alves e Mário Lago. “Lançada pela primeira vez em 1942 e considerada uma obra-prima pelo historiador da música brasileira Jairo Severiano“.

Esta música (ouça na voz de Ataufo)  foi inspirada na figura da empregada de Aracy de Almeida e consagrou na sociedade um conceito de “amélia” como sendo a mulher submissa e companheira do homem em todas as dificuldades, a tal ponto que foi integrada ao vocabulário no Dicionário Aurélio com o seguinte conceito: “Mulher que aceita toda sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem”. (Wiki)

“Her first place”, de G. D. Leslie

Em “De Dentro do Ap”, o clima de sororidade e de sisterhood que despontara em “Não Precisa Ser Amélia” é preterido em prol de algo muito mais treta. Bia Ferreira, fazendo-se porta-voz do feminismo negro, lança os dardos de seus argumentos contra o feminismo branco, liberal, privilegiado. Seu discurso torna-se cáustico, corrosivo, de alta provocatividade, atacando a hipocrisia das mulheres privilegiadas envolvidas em certas vertentes do movimento feminista:

De dentro do apê,
Com ar condicionado, Macbook, você vai dizer:
Que é de esquerda, feminista, defende as muié.
Posta lá que é vadia, que pode chamar de puta.
Sua fala não condiz com a sua conduta!

Vai pro rolê com o carro que ganhou do pai
Pra você vê, não sabe o que é trabai
E quer ir lá dizer
Que entende sobre a luta de classe
Eu só sugiro que cê se abaixe
Porque meu tiro certo, vai chegar direto
Na sua hipocrisia…

É Bia exercitando através da arte uma espécie de Pedagogia pro Opressor, ou A Oprimida Empoderada Ensina: evocando várias experiências vividas das mulheres negras, ela quer educar a “branquitude” arrogante dos que nunca viveram nenhum dos seguintes cenários:

Quantas vezes você correu atrás de um busão
Pra não perder a entrevista?
Chegou lá e ouviu um “não”?
– Não insista,
A vaga já foi preenchida, viu?
Você não se encaixa no nosso perfil!

Quantas vezes você você saiu do seu apartamento
E chegou no térreo com um prato de alimento
Pra tia que tava trampando no sinal?
Pra sustentar os quatro filhos
que já tá passando mal de fome?
Quantas vezes cê parou pra perguntar o nome
E pra falar sobre seu ativismo?
Quando foi que cê pisou na minha quebrada,
pra falar sobre o seu Fe-mi-nis-mo?

Sempre deixando pra amanhã
Deixando pra amanhã
A miliano que cês tão queimando sutiã…

O clima vai esquentando até que Bia dispara a sua farpa mais afiada: “sua vó não hesitou quando mandou a minha lá pro tronco”. A acusação, à mulher branca privilegiada de hoje, estende-se às gerações passadas: a “vó” da patricinha, feminista de Macbook, esteve ao lado dos escravocratas, enquanto a vó da mina-de-quebrada penou nos troncos sob os açoites dos capatazes após o brutal desenraizamento que os sequestrou do seu lar africano.

Eis, portanto, uma compositora que, apesar de sua juventude, tem realizado uma arte com consciência histórica, buscando conexão com a ancestralidade, exercendo uma crítica social inter-geracional e interseccional, o que também se manifesta em “Mandela” (“Mandela, Mandela: mudou o mundo numa cela / Lutou pela liberdade, terminou sem ela”). Canção que não entrou no álbum, mas é um exemplo icônico da capacidade de Bia em escrever canções políticas, manifestos cantados, que se alçam contra o “maldito apartheid” em composições de densa tessitura histórica.

Na Europa, cuja sanha imperialista ela tanto denuncia, Bia Ferreira ensaiou uma recente Invasão Portuguesa. Em seus shows nas terras de Camões, chamou a atenção do Jornal Público: “Ela vem espalhar a palavra: não é soul, r&b, rap nem reggae. É tudo isso, é MMP – Música de Mulher Preta.” O caderno de cultura Ípsilon, apelidando-a de “missionária da revolução”, forneceu talvez uma das melhores definições desta artivista “para quem cantar é educar”.

Em 2018, Bia Ferreira viu a sua canção Cota Não É Esmola tornar-se viral nas redes sociais. Nela, a cantora, compositora e activista brasileira de 25 anos fala em defesa do sistema de quotas raciais, reforçado pelo governo de Lula da Silva, que permitiu aumentar o acesso à universidade de estudantes negros, pardos e indígenas de classes mais baixas. Por causa dela, Caetano Veloso diz ter ficado “com vontade de pedir a todos os brasileiros para ouvirem Bia Ferreira”. E de certa forma, é isso que ela quer: chegar ao máximo de pessoas possível para “passar informação e educação”.

Cota Não É Esmola” é uma explicação didáctica para pessoas brancas que são contra as quotas e é também uma música em que as pessoas pretas, pobres e indígenas podem ver a sua história contada ali e contá-la a outras pessoas. É isso que faz a informação circular”, diz Bia Ferreira em conversa com o PÚBLICO, um dia depois de o Ministro da Educação do novo governo de Jair Bolsonaro ter declarado que a “ideia de universidade para todos não existe” e que ela “deve ser ocupada por elites intelectuais”, lembra a compositora. “Corre-se o risco de retroceder mais do que conseguimos evoluir, daí a necessidade de falar sobre isso sempre que tivermos oportunidade”, assinala…

Lado a lado com sua companheira Doralyce,unida com outras artistas também fortalecendo-se na atualidade como Silvia Duffrayer ou Nina Oliveira, Bia Ferreira consolida-se como uma das mais potentes expressões da Música Popular Brasileira na atualidade, sempre contestando os estereótipos – como fizeram em “Miss Beleza Universal”.

Cintilam no álbum de Bia canções libertárias, cantadas com alta expressividade, propulsionadas por um lirismo aguerrido, cheias de groove e charme, epidêmicos convites a entrar dançando na luta até que o Patriarcado caia. Depois, a festa começa de fato, tendo a História cessado o pesadelo da opressão para se tornar, oxalá, nossa colaborativa construção coletiva.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Outubro de 2019
Ponto de Cultura A Casa de Vidro


SIGA VIAGEM: ENTREVISTA DA BIA PRA NOIZE

ASSISTA TAMBÉM:

MANOS E MINAS – Completo

CURTA TAMBÉM:

“MULHERES” – SAMBA DE SILVIA DUFFRAYER E DORALYCE

 

“Nós somos Mulheres de todas as cores
De várias idades, de muitos amores
Lembro de Dandara, mulher foda que eu sei
De Elza Soares, mulher fora da lei
Lembro Marielle, valente, guerreira
De Chica da Silva, toda mulher brasileira
Crescendo oprimida pelo patriarcado
Meu corpo, minhas regras
Agora mudou o quadro

Mulheres cabeça e muito equilibradas
Ninguém tá confusa, não te perguntei nada
São elas por elas
Escuta esse samba que eu vou te cantar:

Eu não sei porque tenho que ser a sua felicidade
Não sou sua projeção, você é que se baste
Meu bem, amor assim quero longe de mim
Sou mulher, sou dona do meu corpo
E da minha vontade
Fui eu que descobri Poder e Liberdade
Sou tudo que um dia eu sonhei pra mim…”

Doralyce Gonzaga e Silvia Duffrayer
Rio de Janeiro, 2018

Versão paródica do samba do Martinho da Vila
Reblogado de Samba Que Elas Querem
https://www.youtube.com/watch?v=B5YJqc-rK-A

Elza Soares retorna com suas flamejantes canções de libertação em “Planeta Fome” (2019) – Ouça o álbum íntegra e leia a matéria @ A Casa de Vidro

Deixem Elza cantar até o fim. Nada será para este país mais salutar. Depois de A Mulher do Fim do Mundo (2015) e de Deus é Mulher (2018)a diva afrobrasileira chega com estrondo, sambando na cara da opressão, fula da vida com o blá blá blá do macho tóxico e racista, apresentando ao mundo sua mais nova coleção de canções de libertação.

“Não vamos sucumbir”, garante Elza na aurora de “Libertação”, acompanhada pelo BaianaSystem. Com esta aliança com os autores do sensacional O Futuro Não Demora, Elza também mostra-se interessada em “seguir cantarolando e bolando altos planos pra poder contra-atacar”.


Enquanto nos cinemas Bacurau estremece o chão do conformismo com seu neo-cangaço cineguerrilheiro, desembarca entre nós um disco que vem todo efervescente de insurgência cultural e política, evocando ícones e proliferando links – Marielle Franco, Rosa Parks, Wakanda… – para mandar um forte recado. Toda a resiliência, toda a ancestralidade guerreira, todo o ímpeto dionisíaco-carnavalesco do povo afrobrasileiro pulsa nesta obra-prima recém-parida por uma gênia do Planeta Fome.

É negro, é branco, é nissei
É verde, é índio peladão
É mameluco, é cafuzo
É confusão Oh, Pindorama eu quero o seu porto seguro
Suas palmeiras, suas feiras, seu café
Suas riquezas, praias, cachoeiras

Há muitos Brasis – e Elza quer mesmo é o “Brasil de cabeça em pé” e ciente de sua própria confusão. Dessa mixórdia de etnias e tradições dos Brasis todos nasceu toda a nossa desgraça e maravilha – eis o que Elza parece querer expressar através de um álbum destinado a ecoar pelo mundo e quebrar muitos paradigmas do que os gringos consideram como world music. E lá vem os rótulos espertinhos para catalogá-la como “dirty samba” ou algo que o valha.

Mas restam poucas dúvidas de que na história de nossa arte, Elza Soares expressa como poucos a tragicomédia épica desta pátria fraturada. Ela exige, com seu cantos e batuques, um “País do Sonho” na mais utópica das músicas do disco:

Eu preciso encontrar um país
Onde a saúde não esteja doente
E eficiente, uma educação
Que possa formar cidadãos realmente

Eu preciso encontrar um país
Onde a corrupção não seja um hobby
Que não tenha injustiça, porém a justiça
Não ouse condenar só negros e pobres

Eu preciso encontrar um país
Onde ninguém enriqueça em nome da fé
E o prazer verdadeiro do crack
Seja fazer gols como Garrincha, obrigada Mané!

Eu preciso encontrar um país
Onde tenha respeito com austero pudor
E qualquer pessoa em pleno direito
Diga: “Adeus preconceito de raça e de cor”

Eu preciso encontrar um país
Onde ser solidário seja um ato gentil
Eu prometo que vou encontrar
E esse país vai chamar-se Brasil.

No título de “Planeta Fome” (2019), Elza relembra o episódio lendário de seu passado: com cerca de 13 anos de idade foi participar do programa de rádio do Ary Barroso, que perguntou à jovem aspirante a cantora de onde ela tinha vindo e ela cravou: “Vim do Planeta Fome”.

De fato: a carioca, nascida em 1937, hoje com 82 anos, emergiu do Planeta Fome de sua infância e ascendeu até o destino de alguém que já marcou para sempre a história da Música Popular de seu país. E Elza sempre teve um talento espontâneo pela subversão, por uma cultura comprometida com a libertação, com a superação da opressão. Tudo isso jorra na nova obra da cantora, que traz em sua capa uma cromática odisséia criada pela pena da pessoa pós-binária Laerte (que declarou, sobre o processo criativo:  “Primeiro dei uma ouvida nas canções e achei que era o caso de evocar as turbulências da nossa realidade combinadas com os movimentos siderais. Minha intenção era produzir uma sensação de caos”).

Este álbum já nasce clássico. O primeiro clássico novíssimo em folha dos nossos Brasis em meio a este hospício em chamas que é o desgoverno BolsoNero. Elza recupera duas canções de Gonzaguinha, um dos artistas mais censurados pela Ditadura Militar, para reativar na Nova Ditadura a mordaz dissidência dos que se insurgiram na arte contra a Velha Ditadura. Em “Comportamento Geral” e “Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória”, Gonzaguinha revive na voz de Elza em arranjo classudo e complexo.

Ainda que transpire tanta revolta ardente e indignação justa, a constelação afetiva do novo disco é sobretudo afirmação da vida, sim à resistência que a vivacidade ergue contra as hordas da necrofilia. Mauro Ferreira propôs, em seu artigo para o G1, que:

“A cantora concilia indignação e esperança ao discorrer sobre questões sociais do Brasil no disco produzido por Rafael Ramos. (…) No país dos banguelas, a cantora carioca tem fome de igualdade e justiça social, assuntos recorrentes no repertório do 34º álbum dessa artista cuja dureza na queda é reafirmada nos versos quase clichês da letra da ‘Virei o jogo’ (2019).

Música inédita escrita por Pedro Luís para Elza, Virei o jogo é ouvida em gravação cujos vocais remetem à arquitetura sonora do álbum anterior da cantora, ‘Deus é Mulher’ (2018), cuja composição-título também é da lavra de Pedro. “Se vem de não / Eu vou de sim / Afirmação até o fim”, brada Elza na penúltima faixa do disco ‘Planeta Fome’. [https://glo.bo/2lOIh3i]

Elza é a verdadeira voz que o Brasil, em sua pluralidade de povos, deveria propagar para os outros povos do planeta. A boca-ânus que não cessa de vomitar atrocidades dos Bolsonaristas brazileiros, a começar pelo pseudo-Mito, só nos envergonha diante do mundo e só macula nossa História. A cultura não se cala diante deste crudelíssimo neofascismo, desde bárbaro capitalismo neoliberalizado até as raias da insânia. Elza, ao contrário, é uma vida extraordinária que hoje lembra às novas gerações sobre lutas pretéritas que voltaram a se tornar nossas urgências presentes.

Genialmente, trazendo versos fortíssimos de Gonzaguinha de volta da tumba, des-censurando quem outrora foi ditatorialmente censurado, Elza realimenta todo o potencial subversivo dos Brasis que se recusam a sucumbir ao pesadelo neofascista que por enquanto nos desgoverna. E com poesias cantadas de intensa beleza como as que seguem, ela nos conclama, de novo, “vamos à luta!”:

“Memória de um tempo onde lutar
Por seu direito
É um defeito que mata
São tantas lutas inglórias
São histórias que a história
Qualquer dia contará
De obscuros personagens
As passagens, as coragens
São sementes espalhadas nesse chão
De Juvenais e de Raimundos
Tantos Júlios de Santana
Uma crença num enorme coração
Dos humilhados e ofendidos
Explorados e oprimidos
Que tentaram encontrar a solução
São cruzes sem nomes, sem corpos, sem datas
Memória de um tempo onde lutar por seu direito
É um defeito que mata
E tantos são os homens por debaixo das manchetes
São braços esquecidos que fizeram os heróis
São forças, são suores que levantam as vedetes
Do teatro de revistas, que é o país de todos nós
São vozes que negaram liberdade concedida
Pois ela é bem mais sangue
Ela é bem mais vida
São vidas que alimentam nosso fogo da esperança
O grito da batalha
Quem espera, nunca alcança
Ê ê, quando o Sol nascer
É que eu quero ver quem se lembrará
Ê ê, quando amanhecer
É que eu quero ver quem recordará
Ê ê, não quero esquecer
Essa legião que se entregou por um novo dia
Ê eu quero é cantar essa mão tão calejada
Que nos deu tanta alegria

E vamos à luta.”


Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro.
Setembro de 2019. Faça o download do álbum completo.

Leia também: Pan African MusicTireless advocate of the women’s rights, and loud activist for the Afro-Brazilian culture, legend Elza Soares released her 34th studio album with Planeta Fome via Desk Records. The new album features notable artists from Soares’ native country, such as veteran rapper BNegão and rising artist Rafael Mike. On the single “Libertação” the diva invites Brazilian vocalist Virgínia Rodrigues and afro-futuristic band BaianaSystem.

FESTIVAL BANANADA 2019 EM VÍDEOS: Criolo, Bixiga 70, Luiza Lian, Drik Barbosa || A Casa de Vidro.com

CRIOLO

“Atitudes de amor devemos samplear”, ensina o poeta-griô em “Mariô”. Relembrando as lições sábias de outro poeta cantador, lança ainda esta fita: “Chico avisara: a roda não vai parar / E quem se julga a nata, cuidado prá não quaiar.” Esta subversão que se expressa através da densa teia de metáforas e gírias é um dos elementos que faz Criolo ser uma figura de poderio similar a um xamã a quem deram um microfone e decibéis em profusão pra disseminar suas visões e propagar suas palavras-remédio.

Ele também recomenda misturas ousadas entre o rap e o afrobeat: “Fela Kuti e Mulatu Astake devemos escutar!” Não teme temperar seu som com soul, com samba, com rock, puxando os X quando lhe convêm evocar o já lendário cenário urbano da crônica supimpa “Grajauex”. Era 17 de Agosto de 2019, o Bananada de Sábado efervescia e Criolo estava com a corda toda provando a qualquer cético no futuro da cultura brasileira que não, a gente não se cala. A gente não engole fascista nem queimada. A gente não engole esses facínoras e estes idiotas querendo dar replay nas atrocidades da censura ditatorial.

Enquanto na arena esportiva, sobre 4 rodas velozes, os skatistas saltavam sobre obstáculos, um deles onde se lia “fascistas não passarão”, uma lenda viva da música latinoamericana contemporânea reavivava a potência cívica do maior movimento de massas de 2018, o #EleNão, e convocava as massas, um pouco messiânico, um pouco Guevarinha, a entrar no coro da resistência. Pois o mínimo que precisamos, agora, é a unidade na diversidade que diz nosso repúdio coletivo à catástrofe grotesca do Bolsonarismo insano.

Criolo fez de seu show no Festival Bananada 2019 não apenas uma empolgante festa que pôs no agito os milhares de presentes, mas usou o palco como plataforma para episódios de política xamânica e experimentos estéticos em epifania coletiva.

Quem acha que o movimento Hip Hop não pode alçar-se a tais alturas, sugerimos: repense. Ou melhor: RAPense! Comendo também muita RAPadura xique-xicosa. Pois a vitalidade da criatividade hiphopper brasileira, através de figuras como Criolo, Emicida, Drik Barbosa, Rincon Sapiência, Tássia Reis, Rimas e Melodias, B Negão, Black Alien, Z’Áfrika Brasil, Rashid, dentre tantos outros, é sinal inequívoco lançado na cara da tirania: “A Cultura Não Se Cala!” – nome do futuro documentário de A Casa de Vidro, ora em gestação, e que conterá algumas das cenas compartilhadas neste clipe que encapsula alguns dos melhores momentos do espetáculo doidíssimo do ex-Criolo Doido, hoje só Criolo.

Esse cara é um rapper xamã, um visionário da música-mundo, uma figura que marcou sua trajetória pela ousadia dos hibridismos entre formas estéticas que pratica, traçando pontes invisíveis entre a América Latina e a África, entre o samba e o afrobeat, entre os rappers e os griôs – e sempre com uma poesia afiadíssima.

É de verbos afiados assim que precisamos ainda com urgência nesta época de trevas, de retrocessos civilizacionais brutais, de colapso de nossos direitos duramente conquistados, de florestas incineradas e de nuvens de árvores mortas despencando noites imprevistas sobre metrópoles apodrecidas de hýbris. Aliás, é da maior metrópole latino-americana, mais precisamente de seus muitos guetos e perifas e quebradas e favelas, hoje obscurecida às 3h da tarde devido à hecatombe amazônica, de onde emergiu este grande artista que, entre seus fundos pontos de interrogação, nos concede a angústia infinita e salutar deste questionamento:

“Pátria amada, o que ofereces
A teus filhos sofridos:
Dignidade ou jazigos?”
(Lion Man)

ESTE VÍDEO É UMA EXCLUSIVIDADE… A CASA DE VIDRO – Ponto de Cultura.
Filmagem, montagem e texto: Eduardo Carli de Moraes. 17 de Agosto de 2019.
Também disponível no Youtube:


BIXIGA 70

A CULTURA NÃO SE CALA – A big band brasileira Bixiga 70, em ação no Festival Bananada 2019, demonstrou toda a potência subversiva de seu show incandescente. A música pode até ser instrumental, mas a falta de letras não impediu que o show integrasse um vasto leque de manifestações e protestos políticos em que não faltaram “Ele Não, Ele Nunca nessa porra!”, “Ninguém solta a mão de ninguém!”, “Lula Livre” e “Marielle Presente”.

Inspirados pelo que há de melhor nos grooves da world music, mesclando afrobeat com latinidades, jazz com ska, funk com pós-rock, os caras do Bixiga puseram fogo na arena logo depois de Criolo também incendiar a galera. O Bixiga, aliás, põe em prática o conselho criolino: “Fela Kuti e Mulatu Astatke devemos escutar” e “atitudes de amor devemos samplear”…

No vídeo-síntese aqui compartilhado, exclusividade d’A Casa de Vidro, confiram a poderosa montagem audiovisual projetada no palco e a espetacular sonzeira do grupo paulista. Nos limites de 4 minutos de vídeo, temos aí uma amostra de que a cultura não se cala nesta era de censura e obscurantismo, e que a Resistência está aí sendo propulsionada por um coletivo que não fica em cima do muro, no conforto cúmplice e conovente dos “isentões”.

Filmado no Passeio das Águas Shopping, em Goiânia, na noite de 17 de Agosto de 2019, por Eduardo Carli de Moraes.


LUIZA LIAN

Nascida em 18 de junho de 1991, a artista paulistana Luiza Lian tem duas obras lançadas: “Azul Moderno” (2018) e o álbum visual “Oyá Tempo” (2017). Ambos discos impactaram, com sua novidade e frescor, no cenário da música alternativa brasileira recente. Sua mescla de MPB, psicodelia e eletrônica é lançada a outro nível de apuro estético e instigação sensorial nas performances ao vivo de Lian, repletas de projeções alucinógenos e jogos de iluminação com lasers e outras pirotecnias.

No Bananada 2019, acompanhada por Charles Tixier no comando rítmico e na ambientação sônica, ela apresentou-se no Palco Natura para uma grande público. A multidão ali presente mostrou grande envolvimento com a experiência sensorial única oferecida pelo espetáculo e pôde se deliciar com canções como “Tucum” (que abre este clipe):

“Conte quantas pedras
Que tu joga no Astral
Eu vim, eu vim
Te mostrar seu próprio mal
No momento adequado
Que o destino escolher
Eu vou mostrar
O que tu planta vai colher
Atenção no pensamento
Muito antes de falar
Você vai ver
Vai colher o que plantar
A Justiça é um Deus
Que o Tempo vem mostrar
O nome dela
Não se usa pra vingar…”

Conheça mais sobre a artista: https://luizalian.com.br/


DRIK BARBOSA

O PUNK ROCK AINDA GRITA “LIBERDADE & AUTONOMIA!” – The Interrupters: muito mais que o ska-punk mais chiclete do pedaço

Caí violentamente fissurado numa droga sônica bombando no pedaço: The Interrupters, banda da Califórnia que grava pela Hellcat Records, braço da Epitaph. Justo quando as veias pediam uma dose cavalar de punkadaria política e poesia flamejante, descobri nos Interrupters uma banda que é muito mais que o ska-punk com as canções mais “chiclete” do pedaço. 

Além de mestra em grudar melodias em nossas memórias, Aimee Allen é também querosene. Seus bandmates, vestindo terninhos à la The Hives, são uns carequinhas com TDAH, que em seu hiperativo transe puxam ao extremo o andamento e a pulsação rítmica das canções. Querem ser serelepes como foram um dia Little Richard e Chuck Berry, dois dos Pais da Matéria: rock and roll, um das artforms of the 20th century. Secundada pela trupe, Aimee parece antenadíssima com os músicos que lhe fornecem às mancheias as fagulhas e faíscas que fazem-na explodir como incendiária vocalista:

Para além do bubblegum, da máquina de rhythm’n’blues apunkalhado que o quarteto realiza com seu impetuoso senso rítmico, evocando grandes bandas de outrora como Richard Hell, Television ou Blondie, há conteúdo subversivo explosivo. Desde a denúncia da indústria midiática de celebridades em “Media Sensation” até a conclamação à insurreição e à rebeldia em “Take Back The Power”.

MEDIA SENSATION

“Land of the free, home of the slave
The uniformed are digging their own grave
Pacified with the mainstream media
What’s it gonna take? mass hysteria!
And that’s fine ‘cause i’m not blind
I’m ready for a fight of any kind
And we’re forming, trust me the drones are swarming
Take this as a global warning!
 
Don’t watch their T.V. stations!
It’s all a fabrication!
And don’t march in their formation!
A media sensation…

They’ll keep you suspended in fear
Until your freedoms disappear
I said it once, but you’re not hearing me.
You’re giving up liberty for security
And that’s fine, the sheep are blind
shepherds indoctrinate the minds of the masses,
Poor and middle classes
all parading like a bunch of fascists.
 
Don’t watch their T.V. stations!
It’s all a fabrication!
And don’t march in their formation!
A media sensation…
(I’m not buying, I’m not buying)
a media sensation
(I’m not buying, I’m not buying)
a media sensation
(I’m not buying, I’m not buying)
a media sensation!”

 

A discografia se limita, por hora, a três álbuns estupendos onde convocam, em alta dosagem de decibéis, a “lutar a boa luta”: The Interrupters, de 2014, o álbum de estréia; “Say It Loud”, de 2016; “Fight the Good Fight”, de 2018.

É verdade que, escutando os Interrupters, vocês se arriscam a ser fisgados pela iscas melodias infectious e o contágio será profundo – e a cura, repetidas doses da drug-of-choice. Assim como faziam outrora Green Day, Offspring, Undertones ou Ramones, os Interrupters são propulsionados pela forte melodiosidade das linhas vocais de sua fenomenal cantora-líder, Aimee Allen. Mas por trás de todo, um senso de performatividade de quem acredita que a música mobiliza. Canções são forças mobilizatórias, e o punk é movimento-de-movimentação.

Na primeira das mais de trocentas repetições do álbum Fight the Good Fight que por aqui rolou, o impacto das paredes-de-som do Interrupters serviu de background para que explodisse um vulcão de lirismo em flor. Foi só ouvir aquela voz e todo um panteão de musas se levantou: Brody Dalle no auge dos Distillers, Mia Zapata cantando no The Gits até ser brutalmente silenciada-assassinada, Patti Smith encarnando aqueles orixás brilhantes que ajudaram a parir obras-primas como Horses e Easter.

Os Interrupters são mais uma prova inconteste do poderio feminino no punk rock, um estilo musical que conta entre seus greatest chick-artists um time deste nível: Patti Smith, Blondie, Sleater-Kinney, Elastica, Breeders, X-Ray Spex, Hole, The Gits, Bellrays, Bikini Kill…

Uma canção como “Jenny Drinks” é um exemplo do quão foda o Interrupters consegue ser: sobre uma máquina de groove que evoca o The Clash ou o Gang of Four, a banda descreve a mina vida lôka Jenny, uma junkie a quem se dá voz no refrão da canção para que ela enuncie, em desespero altissonante:

“The world just ain’t ready for a spirit like me!
I never been so frustrated with humanity!
And I suppose that I’m the one who seems crazy!
But the world just ain’t ready for a spirit like me!”

Um certo espírito nietzschiano está aí manifesto: a sensação de ser “extemporâneo”, de ter “nascido póstumo”, como Nietzsche dizia de si mesmo.

A Jenny, eu-lírico da canção, provável alterego de Aimee Allen, sabe que gentileza não é fraqueza. Seu senso apurado de inadequação provêm de seu inconformismo: ela não se conforma em abaixar-se até a mediocridade que reina no tempo contemporânea.

E assim grita à rosa dos ventos para que todos ouçam: “o mundo não está preparado para um espírito como eu / nunca estive tão frustrada com a humana / e eu suponho que sou quem parece louca / mas o mundo não tá pronto pr’um espírito como eu!”

O aspecto político deste desespero inconformista fica mais explícito em “Take Back The Power” e “Babylon”. A primeira reativa afetos insurrecionais presentes no Rage Against the Machine, no System of a Down, e mete no trilho de um delicioso punkpop TheClash-esco. A segunda, adere a um tom imperativo e tenta afetar nas massas a rebelião: “Rebel against the kings of Babylon!”

BABYLON
God made man and man made kings
And the kings rule man and they bring the suffering
When the people rise up they see it as a riot
They wanna have control so you can’t be self-reliant
They make your world and don’t make an alliance
They sell your soul, they will buy it for a dime
They sell it for a dollar, so they can turn a profit
It’s a vicious cycle and the only way to stop it:
Rebel against the kings of babylon!

Yeah: they got the swords and the spears
and the bows and the knives
But we’ll fight it with our brothers
And our sisters for our lives.
Rebel against the kings of babylon!

A extraordinária cantora que encabeça o quarteto, Aimee Allen, tem alguns trampos pré-Interrupters que vale a pena conhecer, a começar por “I’d Start a Revolution If I Could Get Up in the Morning”, canção título do álbum homônimo e que tornou-se famosa na trilha sonora da série Birds of Prey:

Batizando a nossa era como The Age of Outrage, o Interrupters denuncia os poderosos e suas máscaras, trazendo abaixo o engodo e a fraude por trás das media sensations. Realizam assim um trampo de importância social ao tirar um sarro e lançarem um alerta aos que ficam pagando micos ao tratarem imbecis psicopatas e fascistas monstruosos (como Trump ou Bolsonaro) como se fossem Mitos:

Aimee Allen, em toda sua versatilidade, é uma artista imensamente colaborativa. As parcerias são notáveis: com o Sublime, gravou “Safe and Sound”; com Tim Armstrong do Rancid, “Phantom City” e “Got Each Other”; com um tal de Scott, um álbum inteiro (ao vivo e em clipe abaixo:).

Para além dos memoráveis e cantaroláveis refrões, a banda vem para interromper a caretice de um cenário que parece ter esquecido a lição do The Clash, a de que o único sentido de uma banda existir é tentar ser a “única banda que importa”.

A ponte Rancid – Interrupters aparece na atualidade histórica do punk-rock-em-movimento como uma reativação daquele espírito salutar que animava Joe Strummer, Mick Jones e Cia. Os Interrupters sabem-se enraizados em uma história linda e cujo legado tem que ser berrado para as próximas gerações – e é o que acontece no hino-de-empoderamento “11th Hour”, um emblema do poderio do punk como forma estética e ruptura comportamental. Tudo isso cabe em 2 minutos e meio de pura dinamite estética:

Neste esplêndido tributo (dê o play acima) prestado a uma das melhores bandas punk da história, o Rancid, quem homenageia os mestres é o quarteto ska-punk mais quente da atualidade, The Interrupters.

Honrando o legado do Rancid, os Interrupters replicam e reativam todo aquele ímpeto indomável, aquele entusiasmo afetivo, aquela salutar idolatria pela “Única Banda Que Importa” (o The Clash), toda a lírica subversiva e rançosa desses punkrappers do gueto, todo o espírito de equipe-em-plena sintonia que ajudam a consagrar …And Out Come The Wolves (1995, Epitaph Records) como um dos melhores álbuns já paridos na história deste treco ruidoso, rebelde e rude que se chama rock’n’roll.

A poesia questiona onde começa e termina o Poder:

THE 11TH HOUR

“Hey little sister,
Do you know what time it was
When you finally seen
All your broken dreams
Come crashing down your door?

They demand an answer
And they demand it quick
Or the questions fade
And then the wasted days
Come crawling back for more

Do you know where the power lies?
And who pulls the strings?
Do you know where the power lies?
It starts and ends with you!

The face of isolation
Well that’s one you recognize
Well you can’t get straight
It’s a lonely place
And one you do despise

Boredom is for sale now
And helplessness you feel
It’s a wounded dove
And the hawks are above
Blood splattered in a reel to reel

Do you know where the power lies?
And who pulls the strings?
Do you know where the power lies?
It starts and ends with you!

I was almost over
And my world was almost gone
And in a sudden rush
I could almost touch
The things that I’d done wrong

My jungle’s made of concrete
Although the silence I could feel
My aim is true
And I will walk on through
These mountains made of steel

Do you know where the power lies
And who pulls the strings
Do you know where the power lies
It starts and ends with you
Ohh, I say: it starts and ends with you!
I say: it starts and ends with you!”

Nestes tempos tenebrosos em que somos submergidos por uma enxurrada de retrocessos civilizatórios e agressões fascistas, em que estar antenado à mídia é como estar alerta a um constante pesadelo de péssimas notícias, há pelo menos uma boa nova: o punk rock ainda grita “Liberdade & Autonomia!”