Obcecado por Dom Quixote e Jesus Cristo, Dostoiévski teceu seu intrincado romance “O Idiota”, marcado pela vivência de sobreviver ao patíbulo

O IDIOTA || Dostoiévski (1821 – 1881)
Trad. Paulo Bezerra || Ed. 34 || 681 pgs.

“Sem dúvida alguma, ao criar o príncipe Míchkin, Dostoiévski estava obcecado pelas figuras de Cristo e Dom Quixote“, escreve Boris Schnaiderman. O protagonista de O Idiota seria, pois, uma tentativa de síntese entre estas figuras que “obcecavam” o autor de Crime e Castigo? Mas o que haveria de Cristo em Míchkin, figura que não prega nem reza? E que semelhança haveria com o cavaleiro da triste figura que vagamundeia alucinado lutando pseudo-monstros que enxerga nos moinhos de vento?

Desde os primeiros contatos que o leitor tem com Míchkin, fica-se com a certeza: apesar de rotulado como “idiota” com frequência, Míchkin nada tem de retardamento mental, mongolismo, dano cerebral. Nem mesmo se pode dizer que sua inteligência esteja abaixo da média. A etiqueta depreciativa é fruto muito mais de julgamento dos outros sobre ele –  e que nada garante que seja um juízo justo e merecido. Talvez seja mais um preconceito do que um diagnóstico psiquiátrico lúcido. Na verdade, Míchkin representa não só uma projeção literária de seu criador Dostoévski, suas obsessões com arquétipos (como Cristo ou Quixote), mas também manifesta um pouco da frutificação literária conexa à vivência de sobreviver ao patíbulo.

Mítchkin está alerta aos “pontos de comum” que nos unem numa mesma condição humana, apesar de tantas diferenças aparentes: “Com muita frequência apenas parece que não há pontos em comum [entre pessoas muito diferentes na aparência], no entanto eles existem muito… é por causa da indolência humana que as pessoas se classificam umas às outras a olho e não conseguem chegar a nada…” (p. 48)

É verdade que Míchkin esteve doente de fato. Ele mesmo confessa sem grandes pudores que teve seus ataques de nervos, que esteve internado por anos num sanatório suíço, que teme sofrer recaídas. Aqueles ao seu redor logo notam que há nele uma certa estranheza, um comportamento destoante da regra, algo que, visto de fora e com olhar apressado, pode parecer um “abobalhamento”.

Mas isso não passa de um desnorteio vivenciado por um frágil homem que sabe ser propenso a nervous breakdowns. Dostoiévski parece ter projetado tantas de suas traumáticas experiências com a epilepsia em Mítchkin, personagem que é tão hiper-sensível que qualquer situação mais tensa carrega-lhe às beiras do desfalecimento e dos incontroláveis tremores. No entanto é justamente esta sensibilidade extremada que o torna capaz de transes místicos, de agir com gentileza rara e de às vezes aparecer aos olhos do leitor como a poesia encarnada.

Aquilo que transforma Míchkin em um “idiota” (aos olhos dos que assim o rotulam) é também a ausência nele de malícia, cinismo, dissimulação, traquejo mundano. Ele não possui o que no Brasil se conhece por malandragem e “jogo-de-cintura”. Não tem o rebolado maroto que dribla a ética para deixar o adversário humilhado no chão. É um cordeiro isolado num mundo repleto de lobos.

É um estranho manancial de pureza e doçura numa sociedade em que todos parecem estar saltando sobre as carótidas uns dos outros. “Tem-se aí o tema do indivíduo puro, superior, que acaba sendo para os demais, numa sociedade corrompida, um idiota, um inadaptado”, como diz Schnaiderma. Em nenhum momento Míchkin se coloca numa posição de superioridade arrogante em relação aos outros: ele parece desconhecer estes vícios tão difundidos em seu círculo social, a arrogância e o orgulho.

Michkin é um “crédulo”, mas não de um deus qualquer: ele crê no coração humano. Ingênuo, deposita sua confiança até mesmo naqueles que obviamente não a merecem. Tem a fala franca e não sabe se esconder detrás de hipocrisias fabricadas. É simples, mas não simplório. Não ostenta qualidades que não possui, mas possui muitas qualidades que jamais ostenta. É como que inconsciente de suas próprias virtudes, mas muito capaz de perdoar nos outros seus vícios. Órfão desde a infância, parece carregar a herança de um certo abandono afetivo em sua fragilidade emocional tão patente. É um homem que parece fácil de quebrar como uma taça de cristal.

O Idiota foi um livro escrito “com deleite e inquietação”, nas palavras do próprio autor. Minha impressão é que Míchkin é uma das criaturas por quem seu criador nutria um enorme afeto, e por esta razão o leitor também se afeiçoa facilmente a ele. Raskolnikóv – em Crime e Castigo – é um sujeito bem mais difícil de se apreciar (apesar de ser, ele também, um personagens dos mais memoráveis da literatura universal). É como se Dostoiévski mudamente proclamasse que idiota mesmo não é Míchkin, mas todos que assim o rotulam e desprezam, nem notando o quanto Míchkin é admirável e o quanto conviver com ele pode ser uma experiência rica.

“A falta de originalidade existe em toda parte, em todo o mundo, desde que o mundo é mundo sempre foi considerada a primeira qualidade e a melhor recomendação do homem de ação… Os inventores e gênios, no início de sua trajetória (e muito amiúde também no final), não eram vistos quase sempre pela sociedade senão como imbecis…” (p. 366)

A “idiotia” que atribuem a Mítchkin também nada tem de futilidade: desde os primeiros capítulos ele mostra-se capaz de versar sobre graves assuntos com apontamentos não raro sensíveis e profundos. É o que ocorre quando ele debate a pena de morte, tema também de outra novela célebre do século XIX: O último dia de um condenado, de Victor Hugo (1829). Dostoiévski decerto projetou em Míchkin muito de sua própria experiência de vida, seu insuperável trauma por ter sido condenado à morte, ainda em plena juventude (antes dos 30 anos de idade). A pena foi comutada poucos minutos antes da execução de Dostoiévski. Àqueles que sustentam ser a guilhotina um modo muito humano de se matar um sujeito, já que “a cabeça pula fora de um jeito que não dá tempo de piscar um olho” (42), Míchkin argumenta:

“…a dor principal, a mais forte, pode não estar nos ferimentos e sim, veja, em você saber, com certeza, que dentro de 1 hora, depois dentro de 10 minutos, depois dentro de meio minuto, depois agora, neste instante – a alma irá voar do corpo… Esse quarto de segundo é o mais terrível de tudo… Matar por matar é um castigo desproporcionalmente maior que o próprio crime. A morte por sentença é desproporcionalmente mais terrível que a morte cometida por bandidos. Aquele que os bandidos matam, que é esfaqueado à noite, em um bosque, ou de um jeito qualquer, ainda espera sem falta que se salvará, até o último instante…

Mas, no caso de que estou falando, essa última esperança, com a qual é 10 vezes mais fácil morrer, é abolida com certeza; aqui existe a sentença, e no fato de que, com certeza, não se vai fugir a ela, reside todo o terrível suplício, e mais forte do que esse suplício não existe nada no mundo. (…) Quem disse que a natureza humana é capaz de suportar isso sem enlouquecer? Para quê esse ultraje hediondo, desnecessário, inútil?” (43)

Em outra ocasião, Míchkin não somente demonstra ser um ótimo narrador, muitíssimo capaz de concatenar idéias e comover aqueles que o ouvem, como mostra ter colhido sabedoria junto de homens que passaram pelos mais horríficos sofrimentos. Na adaptação para o cinema de Akira Kurosawa, o próprio Míchkin é transformado num sobrevivente do patíbulo, que teria aprendido ao pé da forca sobre o valor inestimável da gentileza (“the milk of human kindness”, diria Shakespeare) e sobre a urgência de viver que apenas um contato íntimo com a morte desperta. É o que Dostoiévski faz seu personagem expressar no “contículo” que segue:

“…um homem foi condenado com outros ao patíbulo e foi lida para ele a sentença de morte por fuzilamento por crime político. Uns 20 minutos depois foi lido também o indulto e designado outro grau de punição; mas, não obstante, no intervalo entre as duas sentenças, ele passou na indiscutível convicção de que alguns minutos depois ele morreria de repente. Eu tinha uma vontade terrível de ouvi-lo quando vez por outra ele recordava as suas impressões daquele momento… ele se lembrava de tudo com uma nitidez incomum e dizia que nunca iria esquecer nada daqueles instantes.

A uns 20 passos da forca, haviam sido fincados 3 postes, uma vez que eram vários os criminosos. Os 3 primeiros foram levados aos postes, amarrados, vestidos com vestes mortuárias e fizeram cair-lhes sobre os olhos os barretes brancos para que eles não vissem os fuzis; em seguida puseram diante de cada poste um pelotão de alguns soldados. Meu conhecido era o oitavo da fila, logo, teria de marchar para os postes na 3a fileira… Restavam não mais que 5 minutos de vida. Ele dizia que esses 5 minutos lhe pareceram uma eternidade, uma imensa riqueza; parecia-lhe que nesses 5 minutos ele estava vivendo várias vidas… Estava morrendo aos 27 anos, sadio e forte… no momento ele comia e vivia, mas dentro de 3 minutos já seria um nada…

Por perto havia uma igreja e sua cúpula dourada brilhava sob o sol claro. Ele se lembrava de que havia olhado com uma terrível persistência para essa cúpula e para os raios que ela irradiava; não conseguia despregar-se dos raios: parecia-lhe que esses raios eram a sua nova natureza, que dentro de 3 minutos ele se fundiria a eles de alguma maneira… O desconhecido e a repulsa causada por esse novo, que estava prestes a acontecer, eram terríveis; mas ele dizia que naquele momento não havia nada mais difícil para ele do quem pensamento contínuo: ‘E se eu não morrer! E se eu fizer a vida retornar – que eternidade! E tudo isso seria meu! E então eu transformaria cada minuto em todo um século, nada perderia, calcularia cada minuto para que nada perdesse gratuitamente!’ Ele dizia que esse pensamento acabou se transformando em tamanha raiva dentro dele que teve vontade de que o fuzilassem o mais rápido possível.” (p. 83-84)

Os atores Iúri Iakóvlev, como Príncipe Michkin, e Iúlia Borísova, como Nastassia Filíppovna

Nastácia Fillipóvna, uma das mais marcantes mulheres da literatura russa, de “olhar incandescente” e espírito febril, de uma “beleza estonteante” (p. 106) e uma quase completa falta de apreço por si mesma, capaz das mais histéricas gargalhadas e das mais abissas melancolias, é outra criatura marcada pelo sofrimento crônico. “Aquela mulher infeliz está profundamente convencida de que é o ser mais decaído, o ser mais depravado de todos na face da terra…” (p. 486)

Sem esta magnética, misteriosa e exuberante figura feminina, que “fascina a ponto de fazer homens esquecerem a razão”, a trama de O Idiota careceria da matéria-prima para as “crises, fraturas e catástrofes” que, segundo Bakhtin, Dostoiévski tanto gosta de retratar. E não são poucos os transtornos que Nastácia semeia nos homens do romance, endoidecendo-os como uma fogueira faz com as mariposas. O “combate” entre Rogójin, Gánia e o próprio príncipe Míchkin pela “posse” da deslumbrante donzela é como que um fio condutor que conduz a narrativa, em que não faltam tentativas de homicídio, fortunas lançadas ao fogo, doenças cruéis geradoras de discursos niilistas (quanto fel vomita o tísico Hippolit!), dentre outras desgraceiras em série.

O príncipe é quem sofre com o rótulo, mas idiotas são quase todos os homens do romance, em especial em suas maneiras pouco escrupulosas de lidar com propostas de casamento. Rogójin, por exemplo, tenta subornar o amor de Nastácia com 100 mil rublos, o que só faz com que ela se revolte por ser “mercadejada” desta maneira. Alguns dos “delírios” que acometem Nastácia Fillipóvna tem muito de uma indignação ardente contra os homens crassos que encontra ao redor, abusivos e escrotos, que babam por ela e não concebem outro meio de seduzi-la a não ser lançar-lhe como isca a maior quantia possível de dinheiro.

Ela se recusa a se vender. “De pura fanfarronice pisoteou um milhão e um principiado e está indo para a favela” (p. 202). Muito simbólica disto é a cena, das mais marcantes do livro, em que ela lança na lareira os 100 mil rublos destinados a comprá-la e ordena a Gánia que os resgate das chamas, alfinetando-o com pontudo ferrão. Provocativa, diabólica, incandescente, Nastácia revoltada proclama: “Me deliciarei vendo como tu te metes no fogo atrás do meu dinheiro!” (p. 204) É o príncipe Míchkin, como Kurosawa fez questão de enfatizar em sua melodramatização desta cena, que demonstra ser o homem sonhado, honesto e bom, aquele que diz a Nastácia: amo-te com ou sem sua fortuna; se você estivesse em farrapos, quase mendiga, eu cuidaria de você.

Mas Dostoiévski nada tem de um romancista cheio de lições edificantes, que louvaria o triunfo final da virtude e da “ordem moral” em um mundo harmonioso. O caótico mundo de seus romances é sempre assombrado por crimes, vícios, podridões, loucuras, dilaceramentos, erros fatais, tragédias irremediáveis. O Idiota não é tão diferente, como sabem todos aqueles que atingiram o “final alucinado do romance” onde “tem-se um paroxismo difícil de aceitar, uma situação-limite extrema”, como diz Schnaiderman.

O desfecho “desconcertante e abissal, verdadeiro desafio à nossa capacidade de aceitar as ações de uma personagem literária”, faz-nos fechar o livro e logo sentir que ele nos cravou uma adaga no coração. Será o mundo um grande hospício a céu aberto, onde os santos são taxados de loucos e os  autênticos idiotas possuem as coroas reais e promulgam as bulas papais? Será com desnorteio, angústia e indignação que nos lembraremos desta trama que reduziu Rogójin, Nastácia e Mítchkin a uma situação tão desoladora e aflitiva. Carregaremos essa ferida por muito tempo depois da última frase. Pois há livros que deixam cicatrizes inapagáveis.

 E.C.M.
A Casa de Vidro

O Idiota

:: um olhar digno de se cultivar ::

“O que mais chamava a atenção em seu rosto eram os olhos incrivelmente despertos, deslumbrantes às vezes pela devoção e fixidez com que podiam fitar, como se o que estivessem vendo em cada momento fosse de extrema importância, digno não apenas de ser ver mas de se estudar detidamente, de se observar de maneira excludente, de se apreender para guardar na memória cada imagem captada, como uma câmara que não pudesse confiar em seu mero processo mecânico para registrar o percebido e tivesse de se esforçar muito, dar muito de si. Esses olhos lisonjeavam o que contemplavam.” (JAVIER MARÍAS. Coração Tão Branco. || Ed. Cia das Letras  || Trad. Eduardo Brandão || p. 82)