“O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos.” – Hannah Arendt em A Condição Humana [acasadevidro.com]

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“O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós. Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. (…) Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar.”

HANNAH ARENDT em “A Condição Humana”
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COMO COMEÇAR UMA EPIDEMIA POÉTICA – por Joseph Brodsky (1940-1996)

Reblogado do / Reblogged from Awestruck Wanderer

Cheers, fellow cosmic wanderers! For all of you who thirst for beauty and crave for poetry, I’ve selected some precious words from Joseph Brodsky’s essay “An Immodest Proposal” which might just nourish and enchant ya’. It’s filled with funny and imaginative ideas on how to kickstart an Epidemic of Poetry in our often grayish urban landscapes, pumping up our expressive skills, creative faculties and overall rate of epiphanies. Brodsky jokes around with the plan of widespread production and consumption of condensed human creativity as a means to plant the seeds of collective evolution and linguistic metamorphosis. These excerpts were extracted from On Grief and Reason (NewYork, 1995, Farrar Straus Giroux), which is truly a pet-book in my personal library and one of the most cherished treasures I brought with me as souvenirs from Toronto’s BMV Books, a place which deserves a ton of heartfelt “bravos!”. Voilá:

Brodsky

 “Poetry must be available to the public in far greater volume than it is. It should be as ubiquitous as the nature that surrounds us, and from which poetry derives many of its similes; oras ubiquitous as gas stations, if not as cars themselves. Bookstores should be located not only on campuses or main drags but at the assembly plant’s gates also. Paperbacks of those we deem classics should be cheap and sold at supermarkets. This is, after all, a country of mass production, and I don’t see why what’s done for cars can’t be done for books of poetry, which take you quite a bit further…”

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“Moreover, if the government would recognize that the construction of your library is as essential to your inner vocation as business lunches are to the outer, tax breaks could be made available to those who read, write or publish poetry. The main loser, of course, would be the Brazilian rain forest. But I believe that a tree facing the choice between becoming a book of poems or a bunch of memos may well opt for the former.”

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“In my view, books shoud be brought to the doorstep like electricity, or like milk in England: they should be considered utilities, and their cost should be appropriately minimal. Barring that, poetry could be sold in drugstores (not least because it might reduce the bill from your shrink). At the very least, an anthology of American poetry should be found in every room in every motal in the land, next to the Bible, which will surely not object to this proximity, since it does not object to the proximity of the phone book.”

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“Poetry is the supreme form of human locution in any culture. By failing to read or listen to poets, a society dooms itself to inferior modes of articulation – of the politician, or the salesman, or the charlatan – in short, to its own. It forfeits, in other worlds, its own evolutionary potential, for what distinguishes us from the rest of the animal kingdom is precisely the gift of speech. The charge frequently leveled against poetry – that it is difficult, obscure, hermetic, and whatnot – indicates not the state of poetry but, frankly, the rung of the evolutionary ladder on which society is stuck.”

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“If nothing else, reading poetry is a process of terrific linguistic osmosis. It is also a highly economical form of mental acceleration. Within a very short space a good poem covers enormous mental ground, and often, toward its finale, provides one with an epiphany or a revelation. That happens because in the process of composition a poet employs – by and large unwittingly – the two main modes of cognition available to our species: Occidental and Oriental.  (…) In other words, a poem offers you a sample of complete, not slanted, human intelligence at work.”

JOSEPH BRODSKY
(1940-1996)
Winner of the Nobel Prize in Literature

Read also some of his poems:
Song of Welcome and Verses in April

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Da Escravidão à Emancipação: a Jornada Libertária de Frederick Douglass (1818-1895)

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Frederick Douglass (1818-1895)

12 YearsSeria razão para comemoração se a escravidão tivesse ficado para a História, confinada ao passado, mero item de museu, a ser eventualmente revivida e relembrada em obras de historiadores ou em épicos cinematográficos (como o clássico de Stanley Kubrick Spartacus).

Execravelmente, no entanto, a escravidão prossegue fortemente presente no mundo atual: segundo dados da ONU, citados pelo cineasta Steve McQueen ao receber o Oscar de Melhor Filme por 12 Years a Slave (premiada adaptação do livro de Solomon Northup), existem cerca de 21 milhões de pessoas que hoje vivem em regime de escravidão (leia a reportagem da BBC). China, Nigéria, Paquistão e Índia são os 4 países com maior número de pessoas oprimidas sob regimes de trabalho forçado.

Engana-se quem pensa que no Brasil este problema não existe. Basta assistir ao perturbador documentário Nas Terras do Bem-Virá (2007, 110 min), de Alexandre Rampazzo, para descobrir a chocante realidade da escravidão na Amazônia: ali, “anualmente são destruídos centenas de milhares de hectares de floresta. Para realizar este desmatamento, são utilizados milhares de trabalhadores em regime de escravidão, aliciados principalmente nas cidades pobres do nordeste.”

Uma das mais memoráveis teses de Walter Benjamin afirma que “todo monumento da civilização é um monumento da barbárie”. Para compreender o que Benjamin queria dizer com esta provocativa e profunda formulação, é só pensar, por exemplo, na conexão umbilical entre o florescimento artístico e intelectual do mundo greco-romano e o sistema econômico calcado no escravismo. Todas as elevadíssimas e grandiosas construções culturais – como estátuas lindamente esculpidas, edifícios belamente arquitetados, obras de filosofia e poesia compostas com todo o esmero… – vinham à luz em uma sociedade escravocrata e elitista, cujo status quo era defendido desavergonhadamente até por filósofos, poetas e literatos que hoje carregam auras de reputação gloriosa. O próprio Platão, por exemplo, era dono de escravos; e Aristóteles, preceptor de Alexandre o Grande, já inicia seu livro dedicado à Política em um tom escravocrata, machista e patriarcal:

“Alguns seres, ao nascer, se veem destinados a obedecer; outros, a mandar. (…) O macho é mais perfeito e governa; a fêmea o é menos, e obedece. (…) Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem; são os homens no qual o emprego da força física é o melhor que deles se obtém. Partindo dos nossos princípios, tais indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão; porque, para eles, nada é mais fácil do que obedecer. (…) A utilidade dos escravos é mais ou menos a mesma dos animais domésticos: ajudam-nos com sua força física em nossas necessidades cotidianas. (…) O escravo é completamente privado da faculdade de querer; a mulher a tem, mas fraca; a do filho é incompleta…”

ARISTÓTELES. Política.
Trad. Nestor Silveira Chaves.
Ed. Saraiva de Bolso, Livro I, Capítulo 2 e 4, pgs. 26, 27 e 42.

9781598533514Como antídoto contra argumentos tão vis, em defesa do escravagismo, quanto estes que Aristóteles sustenta em sua Política, é crucial ler a obra e conhecer a vida desta figura histórica tão significativa que foi Frederick Douglass (1818-1895). Para um retrato autêntico da experiência-de-vida concreta de escravos e senhores, de escravizados e escravizadores, o discurso frequentemente abstrato, generalista e descarnado dos filósofos faz bem em deixar-se informar e iluminar por obras que carregam e comunicam a vida em carne-e-osso: caso de Os Danados Da Terra (The Wretched of The Earth), de Franz Fanon, Os Jacobinos Negros – Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos, de C. L. R. James, ou os escritos de Frederick Douglass.

Publicado em 1845, a clássica autobiografia Narrative of the Life of Frederick Douglass, An American Slave retrata de modo vívido e memorável a situação dos escravos nos EUA na época que precedeu à Guerra Civil (1861-1865). O livro exala a autenticidade que só é capaz de atingir alguém que narra algo que vivenciou em sua carne torturada pelo labor, pelo cansaço, pela fome, pelo desconforto, pela constante opressão. Douglass conta-nos sobre experiências que carrega marcadas indelevelmente em sua memória pois são indissociáveis das cicatrizes deixadas em seu corpo pelo chicote de seus senhores. Sua prosa derrama-se na página como que inflamada pelo fervor da indignação. A eloquência de Douglass empresta boa parte de sua chama de uma revolta contra esta instituição abominável da escravidão, que reduz uma parcela da humanidade ao status de bestas-de-carga. Os comerciantes de carne humana são descritos em toda a diversidade de suas ações desumanas, cruéis e sádicas pela pena libertária de Frederick Douglass, cujo discurso tem um teor e um sabor bem assemelhado àquele que posteriormente teriam figuras como Malcolm X, Martin Luther King e Angela Davis.

Douglass nasceu escravo no estado sulista de Maryland, filho de uma escrava negra e um senhor branco. Logo no primeiro capítulo, descreve uma das desumanizações impostas à criança nascida em regime de escravidão: o recém-nascido é logo separado de sua mãe e Douglass relata que a convivência afetuosa entre a mãe e sua cria não era permitida aos escravos. Ele só encontrou-se com a mãe 4 ou 5 vezes durante a vida; ao tornar-se órfão aos sete anos de idade, Douglass relembra com impressionante sinceridade seus sentimentos diante do falecimento desta mulher que os senhores haviam-no impedido de conhecer e amar como seria natural: “I was not allowed to be present during her illness, at her death, or burial. She was gone long before I knew any thing about it. Never having enjoyed, to any considerable extent, her soothing presence, her tender and watchful care, I received the tidings of her death with much the same emotions I should have probably felt at the death of a stranger.” (CHAPTER I, p. 19)

Descrevendo o trabalho nas plantações, Douglass relembra da abundância de frutas nos pomares, constantes tentações para aqueles obrigados a trabalhar esfomeados e subnutridos na colheita. Com frequência, não podendo resistir à tentação, os escravos devoravam uma maçã aqui, uma laranja acolá, crime pelo qual eram severamente punidos pelos senhores-chicoteadores: “Scarcely a day passed, during the summer, but that some slave had to take the lash for stealing fruit.” (III, p. 29)

WAR AND CONFLICT BOOK ERA:  CIVIL WAR/BACKGROUND: SLAVERY & ABOLITIONISM

Um dos maiores líderes do movimento Abolicionista dos EUA no séc. XIX, o escravo libertado e militante dos direitos humanos Frederick Douglass

Em um episódio perturbador do livro, Douglass descreve os tormentos sofridos em comum pelos escravos sob o jugo de um certo Mr. Gore (que nome apropriado!). Este branquelo sangue-nos-olhos trabalha na função de overseer, ou seja, é o responsável pela vigilância e pela imposição da disciplinada à “negada” que labuta nos campos. Na hierarquia social, Mr. Gore não é nem elite, nem base – é classe média. Mas é aquele tipo de classe média que quer subir na pirâmide social, galgar degraus na escada do poder, e por isto é servil aos interesses da elite – no caso, os latifundiários escravocratas e lords do agrobusiness. Enfim, Mr. Gore é aquele tipo de fascista torturador que justifica seus crimes dizendo: “eu estava somente seguindo ordens”. O III Reich alemão estava repleto destas figuras: funcionários e burocratas que participam de atrocidades e defendem-se depois com o argumento da servilidade, como o Eichmann tão bem descrito pelo livro-reportagem Hannah Arendt sobre o julgamento do nazista em Jerusalém (Eichmann em Jerusalém).

Mr. Gore aparece aos olhos dos negros que foram sequestrados e roubados de seus lares da África, para serem escravizados nos Estados Unidos da América, como um demônio tão abominável quanto eram para os judeus, vítimas do Holocausto hitlerista, figuras como Himmler ou Goebbels ou Hitler. Douglass, quando descreve Mr. Gore, atinge tal gênio literário que lembrei-me de experiências estéticas semelhantes vivenciadas com Shakespeare e seu Macbeth, Conrad e o Coronel Kurtz de Coração das Trevas, Milton e seu Satã (anjo caído e rebelde) em Paraíso Perdido. Frederick Douglass escreveu páginas clássicas nos anais da descrição verbal da Vilania (aqui representada pelos vícios da gravidade, do autoritarismo, da crueldade, do sadismo), incluindo uma descrição de homicídio que está entre as mais impressionantes de toda a literatura norte-americana:

Fotografia de 1863 revela as cicatrizes de flagelação portadas por homens escravizados na Louisiana. Imagens assim foram eram distribuídas nas campanhas de militância do movimento Abolicionista que Frederick Douglass integrou e iluminou com suas ações e obras..

Fotografia de 1863 revela as cicatrizes de flagelação portadas por homens escravizados na Louisiana. Imagens assim foram eram distribuídas nas campanhas de militância do movimento Abolicionista que Frederick Douglass integrou e iluminou com suas ações e obras. Fonte da fotografia: Wikipédia.

“Mr. Gore was proud enough to demand the most debasing homage of the slave, and quite servile enough to crouch, himself, at the feet of the master. (…) He was cruel enough to inflict the severest punishment, artful enough to descend to the lowest trickery, and obdurate enough to be insensible to the voice of a reproving conscience. (…) Mr. Gore was a grave man… he indulged in no jokes, said no funny words, and his looks were in perfect keeping with his words. He spoke but to command, and commanded to be obeyed; he dealt sparingly with his words, and bountifully with his whip, never using the former where the latter would answer as well. When he whipped, he seemed to do so from a sense of duty, and feared no consequences… He was, in a word, a man of the most inflexible firmness and stone-like coldness. His savage barbarity was equalled only by the consummate coolness with which he committed the grossest and most savage dees upon the slaves under his charge. Mr. Gore once undertook to whip one of Colonel Lloyd’s slaves, by the name of Demby. He had given Demby but few stripes, when, to get rid of the scourging, he ran and plunged himself into a creek, and stood there at the depth of his shoulders, refusing to come out. Mr. Gore told him that he would give him 3 calls, and that, if he did not come out at the third call, he would shoot him… The first call was given. Demby made no response, but stood his ground. The second and third calls were given with the same result. Mr. Gore […] raised his musket to his face, taking deadly aim at his standing victim, and in an instant poor Demby was no more. His mangled body sank out of sight, and blood and brains marked the water where he had stood.” – FREDERICK DOUGLASS, Chapter IV, pg. 36

Nas páginas dos filósofos raramente encontramos algo de tão intensa concretude, uma cena tão vívida que parece escrita por uma poeta trágico grego: quase como um Ésquilo mulato, Douglass pinta-nos uma cena destinada a encher-nos de piedade pelo infortúnio de “pobre Demby”, assassinado à queima-roupa por Mr. Gore. Se Mr. Gore pode cometer este morticínio é pois está prometida à impunidade toda morte perpetrada por um branco sobre um negro. O racismo institucionalizado manifestava-se na brutalidade cotidiana exercida pela elite contra aqueles coagidos por ela a trabalharem por nada e serem espoliados de tudo. Mr. Gore encarna uma mentalidade – que poderíamos até batizar de fascismo-de-branquelo-racista – que prossegue assombrando-nos: vejam o caso Ferguson e o quanto ele trouxe à tona, mais uma vez, a tragédia social ainda não superada do racismo institucionalizado. Por isso a obra de Douglass parece-me ter valor histórico não só como uma espécie de grande-reportagem, ao mesmo tempo denuncista revoltada, mas plena de grandiosas conclamações à fraternidade, à solidariedade, à liberdade – valorizadas tão intensamente por aqueles que disto estão privados, vivendo à sombra de doídas ausências.

Uma ausência que dói em Douglass é a de instrução, de conhecimento, de sabedoria: suas páginas queimam com a chama de uma vida que queria intensamente informar-se, descobrir a verdade, a despeito dos impedimentos exteriores e placas de proibido. Frederick Douglass teve a sorte de ter aprendido o ABC, o bê-á-bá da linguagem, com uma das senhoras – que desrespeitou assim a lei, então instituída, que tornava proibido alfabetizar um escravo. As instituições educativas estavam todas de portas fechadas às “pessoas de cor” e seria tratado no chicote qualquer negão que fosse pego aprendendo a ler-e-escrever. Os senhores – os fascistas branquelos como Mr. Gore – seguem a seguinte doutrina: “A nigger should know nothing but to obey his master – to do as he is told to do. Learning would spoil the best nigger in the world. If you teach a nigger how to read, there’s no keeping him. It would forever unfit him to be a slave. He would at once become unmanageable…” (VI, p. 45)

Vê-se bem que o Iluminismo ainda não raiou na mente destes branquelos escravocratas, delirantes de ganância e doentes de etnocêntrico racismo. Eles não desejam espalhar as Luzes do Saber: é mais lucrativo e mais seguro manter os escravos na ignorância. Deve-se batalhar contra qualquer tendência de busca-de-instrução por parte daqueles que estão destinados ao labor físico brutal imposto pelo chicote e pelas ameaças terroristas constantes. Ouvindo o discurso de seus senhores, Frederick Douglass aprende num insight, momento quase epifânico, que o caminho para sua libertação estava justamente em fazer aquilo que os opressores desaconselhavam. Douglass rebela-se contra os que proíbem-no de aprender e de ensinar: cria escolas clandestinas onde ensina o ABC aos companheiros-de-destino; com o aumento de suas capacidades de expressão e de seu repertório retórico, vai forjando-se um líder de massas capaz de mobilizar com seu Verbo o coração apaixonado das massas; Douglass enfim aparece ao leitor como uma figura de grandeza ética refulgente em sua batalha contra a “depravação” que há em encerrar alguém na “escuridão mental”. Frederick Douglass aparece então como um mulado iluminista afro-americano que ergue-se como potência pedagógica em seu tempo, ensinando seus compatriotas, inclusive a elite de senhores escravocratas, quão infundado e desmiolado era o racismo que presumia uma inferioridade nata dos negros, em relação ao respeito, no que diz respeito a capacidades intelectuais, artísticas, morais etc.

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“The more I read, the more I was led to abhor and detest my enslavers. I could regard them in no other light than a band of successful robbers, who had left their homes, and gone to Africa, and stolen us from our homes, and in a strange land reduced us to slavery. I loathed them as being the meanest as well as the most wicked of men. (…) I would at times feel that learning to read had been a curse rather than a blessing. It had given me a view of my wretched condition, without the remedy. It opened my eyes to the horrible pit, but no ladder upon which to get out. In moments of agony, I envied my fellow-slaves for their stupidity.  (…) It was this everlasting thinking of my condition that tormented me. There was no getting rid of it. It was pressed upon me by every object within sight or hearing, animate or inanimate. The silver trump of freedom had roused my soul to eternal wakefulness.”  DOUGLASS (VII, pg. 50)

Um Verbo assim tão poético, elevado, eloquente, quanto o de Fred Douglass em algumas de suas melhores páginas, é por si um fenômeno muito significativo e de importância histórica: os talentos de Douglass com a linguagem serviram para derrubar alguns dos preconceitos e apartheids daquela época em que você seria um fora-de-lei se ensinasse um escravo a ler-e-escrever. O professor de Harvard Kwame Anthony Appaiah aponta que esta lei tornou-se forte após algumas tentativas de insurreição das populações escravizadas, como o levante liderado por Gabriel Prosser em 1800, de modo que a obra de Frederick Douglass brota como um fruto proibido na árvore da América – republicana e independente desde a Guerra de Independência contra o Império Britânico culminada com a proclamação da república dos EUA em 1776, mas ainda escravocrata e dividida. Um escravo, na época em que Douglass ousou escrever, não tinha direito algum a expressar-se, tanto que seus senhores faziam tudo para impedi-los de alfabetizarem-se; poderia ir pro chicote qualquer nigger pego no flagra cometendo o crime terrível de ler os jornais. Eis porque são tão relevantes as obras escritas de próprio punho pelos escravos, descrevendo suas vivências, experiências, sonhos, planos, medos, traumas, raivas – enfim, toda a amplitude de sua humanidade:

“For much of the 18th century, and even during the height of the Enlightenment in Europe and America, it was widely agreed – among both opponents and defenders of slavery – that Africans, people of the Negro race, were constitutionally incapable of making contributions to arts and letters. (…) This alleged inferiority in matters intellectual was on the main weapons in the armory of those who defended slavery. How could white people treat Negroes as equals, if black people were simply incapable of comprehending the highest gifts of the human spirit?

Against this background, the slave narrative was more than a testimony to the evils of slavery; it was also evidence of the full humanity of black people. (…) The authors had experienced the horrors recounted at first hand; it also demonstrated that black people could write real literature. To achieve the first goal, it had only to be truthful, but to achieve this second goal, it had to display rhetorical brilliance. And no slave narrative achieved this double aim more successfully thatn Frederick Douglass’s Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American Slave, Written By Himself, published in 1845.

By 1845, he was already widely known in the North as a powerful orator in the antislavery cause, a speaker whose evident rhetorical gifts were buttressed by his status as a fugitive slave. (…) He was not only a famous orator, but also a crusading journalist… He was an activist in the cause of women’s suffrage, an important voice urging the recruitment of African-Americans in the Union army, and a campaigner against lynching. He was also among the first African-Americans to hold significant Federal appointments, serving as the United States diplomat in Haiti and the Dominican Republic.

The slave narrative is the first African-American literary genre: it is, like so much of African-American culture, a powerful creative response to America’s racial tragedy. Not only did these narratives contribute to the struggle for abolition, they demonstrated the power of the black imagination, the ability to rise above the level of plain narration and speak to the mind and heart of a society scarred by slavery.”

Kwame Anthony Appaiah (1954 – )

Se o livro de Frederick Douglass é tão importante historicamente com certeza isto se deve ao poder de persuasão espantoso que emanam destas palavras, repletas de vida e humanidade, e com a força de um leão que põe-se por inteiro na tarefa de quebrar as correntes de ferro e as grades da jaula que mantêm-no cativo no inferno terrestre da escravidão. O livro não é só uma auto-biografia que quer fornecer a crônica de ocorrências passadas, é também um brado orgulhoso, prenunciador do Black Power, com uma voz que imagino de blueseiro, celebrando um triunfo. Douglass descreve uma jornada da escravidão à emancipação; não recomenda a servilidade, mas a insurreição; não prega a aceitação fatalista da opressão, mas a construção coletiva de resistências e alternativas. Por tudo isso, Frederick Douglass prossegue tendo muito a nos dizer, já que apesar da escassez de diplomas, doutorou-se na Escola da Vida, através do sofrimento, a denunciar e tentar derrubar a fraudulenta, torturadora e genocida instituição histórica (infelizmente ainda longe de estar extinta) da escravatura.

A conquista da liberdade é gradativa, difícil, entravada por mil obstáculos e perigos. Mas Douglass é empurrado pelo destino à sina de jamais conformar-se com a condição desumanizada a que outros o condenaram. Sabe que, tentando fugir, arrisca-se a ser pego e barbaramente torturado. “On the one hand, there stood slavery, a stern reality, glaring frightfully upon us, its robes already crimsoned with the blood of millions, and even now feasting itself greedily upon our own flesh. On the other hand, away back in the dim distance, under the flickering light of the north star, behind some craggy hill or snow-covered mountain, stood a doubtful freedom – half frozen – beckoning us to come and share its hospitality.” (X, p. 87)

Frederick Douglass conhece muito bem a tendência dos escravos ao fatalismo e à resignação, estados de espírito tão úteis aos senhores desejosos de permanecer impunes por seus crimes de escravização, espoliação, expropriação; citando o Hamlet de Shakespeare, Douglass descreve seus irmãos de infortúnio como frequentemente mais propensos a “aguentar os males que temos mais do que voar ao encontro de males que não conhecemos”. Douglass exorta os escravos a jamais acostumarem-se com os males de que são vítimas a ponto de desistirem de demandar justiça. Afinal de contas, aquilo que mais anima estas páginas é justamente a presença forte de um afeto: solidariedade com outros que vivenciam um destino comum – em uma palavra, fraternidade. 

Daria pano para manga uma longa investigação sobre esta idéia de Família Humana, tal como ela aparece nas páginas de Frederick Douglass. Limito-me a apontar uma impressão forte que me ficou da leitura: o ideal de Fraternidade que Douglass nutre foi forjado principalmente em oposição ao crime ou pecado de fratricídio que era cometido com frequência e abundância ao seu redor; assim como seu ideal de Liberdade é construído por um homem acorrentado, privado dos direitos mais básicos; Mr. Gore tem licença para torturar e matar impunemente, mas Frederick Douglass pode ser pisoteado, espancado, chicoteado, esfolado e destroçado em carne-viva se comer uma maçã no pomar. Tão obscena é a discrepância entre o ideal da Fraternidade – aquilo que John Lennon chamará em “Imagine” de the brotherhood of man – e a realidade brutal das relações violentas e sádicas,  que Douglass sente-se compelido à revolta – e não por destrutividade niilista, mas como defensor do que acredita ser uma ordem ética superior. Neste sentido, Douglass tem algo de Gandhi ou de Thoreau.

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Detail of the masthead from William Lloyd Garrison’s abolitionist newspaper, The Liberator. Its motto was “No Union With Slaveholders.”

Depois de escapar da escravidão, rumando para a região de Nova York, Douglass tornou-se um ativista abolicionista, leitor entusiástico dos jornais e panfletos do movimento, cada vez mais borbulhante, que pedia a extinção da escravidão nos EUA. O preço a pagar pelo impasse entre Norte e Sul foi, como sabemos, uma das guerras mais fratricidas do século XIX, um dos episódios mais sanguinolentos da história universal naquela década de 1860. Douglass estava muito clara e convictamente posicionado neste debate, como é revelado por suas reações à leitura do jornal abolicionista Liberator: “Its sympathy for my brethren in bonds, its scathing denunciations of slaveholders, its faithful exposures of slavery – and its powerful attacks upon the upholders of the institution, sent a thrill of joy through my soul, such as I had never felt before! I had long been a reader of the Liberator before I got a pretty correct idea of principles, measures and spirit of the anti-slavery reform. I took right hold of the cause. I could do but little; but what I could, I did with a joyful heart, and never felt happier than when in an anti-slavery meeting. (…) From that time until now, I have been engaged in pleading the cause of my brethren.” (XI, p. 112)

É quase impossível, quando chegamos ao último ponto final, não sentir que acabou de falar um espírito livre. Que mostra-nos que livre não se nasce; livre a gente se torna. Frederick Douglass, professor de liberdade pois libertou-se, profundo conhecedor da fraternidade por ter sentido em sua carne, tantas vezes, este valor ser tripudiado e ofendido, é um destes autores cujas palavras têm o dom de influir sobre as vidas dos leitores a ponto de fazer valer o lema: os livros não fazem história, os livros fazem os homens, e estes fazem história. Sem este livro, talvez houvesse demorado ainda mais a chegar o dia da libertação coletiva (ainda que relativa),“the glad day of deliverance to the millions of my brethren in bonds” (Apêndice, pg. 119).

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Congress approves DC statue of Frederick Douglass in Capitol complex

“If there is no struggle, there is no progress. Those who profess to favor freedom, and yet depreciate agitation, are men who want crops without plowing up the ground. They want rain without thunder and lightning. They want the ocean without the awful roar of its many waters. This struggle may be a moral one; or it may be a physical one; or it may be both moral and physical; but it must be a struggle. Power concedes nothing without a demand. It never did and it never will.” Frederick Douglass, Civil Rights Activist (c. 1818–1895) [READ IT ALL]

Ensaio por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 22 de Janeiro de 2015 d.C.

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SIGA VIAGEM…

BIOGRAPHY.COM: Abolitionist leader Frederick Douglass was born into slavery in Talbot County, Maryland. He became one of the most famous intellectuals of his time, advising presidents and lecturing to thousands on a range of causes, including women’s rights and Irish home rule. Among Douglass’ writings are several autobiographies eloquently describing his experiences in slavery and his life after the Civil War.

Douglass wrote and published his first autobiography, Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American Slave, in 1845. The book was a bestseller in the United States and was translated into several European languages. Although the book garnered Douglass many fans, some critics expressed doubt that a former slave with no formal education could have produced such elegant prose. Douglass published three versions of his autobiography during his lifetime, revising and expanding on his work each time. My Bondage and My Freedom appeared in 1855. In 1881, Douglass published Life and Times of Frederick Douglass, which he revised in 1892.

Fame had its drawbacks for a runaway slave. Following the publication of his autobiography, Douglass departed for Ireland to evade recapture. Douglass set sail for Liverpool on August 16, 1845, arriving in Ireland as the Irish Potato Famine was beginning. He remained in Ireland and Britain for two years, speaking to large crowds on the evils of slavery. During this time, Douglass’ British supporters gathered funds to purchase his legal freedom. In 1847, Douglass returned to the United States a free man…” [READ ON]

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A IMPUNIDADE DOS EXTERMINADORES DO PLANETA – Por Eduardo Galeano

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 A IMPUNIDADE DOS EXTERMINADORES DO PLANETA

As empresas de maior êxito no mundo são as que mais assassinam o mundo e os países que lhe decidem o destino são os que mais contribuem para aniquilá-lo

por EDUARDO GALEANO

UM PLANETA DESCARTÁVEL

Inundações, imundações: torrentes de imundícies imundam o mundo e o ar que o mundo respira. Também inundam o mundo cataratas de palavras, informes de peritos, discursos, declarações de governos, solenes acordos internacionais, que ninguém cumpre, e outras expressões da preocupação oficial com a ecologia. A linguagem do poder concede impunidade à sociedade de consumo, àqueles que a impõe como modelo universal em nome do desenvolvimento e também às grandes empresas que, em nome da liberdade, adoecem o planeta e depois lhe vendem remédios e consolos… A saúde do mundo está um bagaço e a linguagem oficial generaliza para absolver: Somos todos responsáveis, mentem os tecnocratas e repetem os políticos, querendo dizer que, se todos somos responsáveis, ninguém o é. A discurseira oficial exorta ao sacrifício de todos e o que ela quer dizer é que se fodam os de sempre.

A humanidade inteira paga as consequências da ruína da terra, da intoxicação do ar, do envenenamento da água, dos distúrbios do clima e da dilapidação dos bens mortais que a natureza outorga. Mas as estatísticas confessam e os numerozinhos não mentem: os dados, ocultos sob a maquiagem das palavras, revelam que 25 por cento da humanidade é responsável por 75 por cento dos crimes contra a natureza. (…) Cada norte-americano lança no ar, em média, 22 vezes mais carbono do que um hindu e 13 vezes mais do que um brasileiro. A adoção massiva desses modelos de consumo, se possível fosse, teria um pequeno inconveniente: seriam necessários 10 planetas como este para que os países pobres pudessem consumir tanto quanto consomem os países ricos. Chama-se suicídio coletivo o assassinato que a cada dia executam os membros mais prósperos do gênero humano, que vivem nos países ricos ou que, nos países pobres, imitam seu estilo de vida: países e classes sociais que definem sua identidade através da ostentação e do esbanjamento.

1eco92 (1)As empresas mais exito$a$ do mundo são as que atuam com maior eficácia contra o mundo. Os gigantes do petróleo, os aprendizes de feiticeiro da energia nuclear e da biotecnologia, as grandes corporações que fabricam armas, aço, alumínio, automóveis, pesticidas, plásticos e mil outros produtos, costumam derramar lágrimas de crocodilo pelo muito que a natureza sofre. Essas empresas, as mais devastadoras do planeta, figuram nos primeiros lugares entre as que mais dinheiro gastam: na publicidade, que milagrosamente transforma a contaminação em filantropia, e nas ajudazinhas que desinteressadamente dão aos políticos que decidem a sorte dos países e do mundo. Explicando porque os EUA se negavam a assinar a Convenção da Biodiversidade, na cúpula mundial do Rio de Janeiro, em 1992, disse o presidente George Bush:

– É importante proteger nossos direitos, os direitos de nossos negócios.

Na verdade, assinando ou não assinando dava no mesmo, porque, de todo o modo, os acordos internacionais valem menos do que os cheques sem fundo. A Eco-92 fora convocada para evitar a agonia do planeta. Mas, com exceção da Alemanha, nenhuma das grandes potências cumpriu os acordos que assinou, por causa do medo das empresas de perder competitividade e o medo dos governos de perder eleições. (…) Os colossos da indústria química, da indústria petroleira e da indústria automobilística, que tanto tinham a ver com o tema da Eco-92, arcaram com boa parte dos gastos da reunião. Poder-se-ia dizer qualquer coisa de Al Capone, mas ele era um cavalheiro: o bom Al sempre enviava flores aos velórios de suas vítimas.

Cinco anos depois da Eco-92 no Rio, as Nações Unidas convocaram outra reunião para avaliar os resultados daquele conclave salvador do mundo. Nos 5 anos transcorridos (1992-1997), o planeta tinha sido esfolado, num  tal ritmo, de sua pele vegetal, que as florestas tropicais destruídas equivaliam a duas Itálias e meia. As terras férteis tornadas estéreis tinham a extensão da Alemanha. Tornaram-se extintas 250 mil espécies de animais e plantas. A atmosfera estava mais intoxicada do que nunca. 1, 3 bilhões de pessoas não tinham casa nem comida. E 25 mil morriam a cada dia ao beber água contaminada por venenos químicos ou dejetos industriais. Pouco antes, 2500 cientistas de diversos países, também convocados pela ONU, tinham coincidido em anunciar, para os próximos tempos, as mudanças de clima mais aceleradas dos últimos dez mil anos.

Quem mais sofre o castigo, como de costume, são os pobres, gente pobre, países pobres, condenados à expiação dos pecados alheios.  (…) O sul já conta com muitos anos de trabalho como lixeiro do norte. No sul vão parar as fábricas que mais envenenam o ambiente, o sul é o cano de esgoto da maior parte da merda industrial e nuclear que o norte gera. (…) Em fins de 1984, na cidade indiana de Bophal, a fábrica de pesticidas da empresa química Union Carbide sofreu uma perda de 40 toneladas de gás mortífero. O gás se espalhou pelos subúrbios, matou 6.660 pessoas e prejudicou a saúde de outras 70 mil, muitas das quais morreram pouco depois ou adoeceram para sempre. A empresa Union Carbide não aplicava na Índia nenhuma das normas de segurança que são obrigatórias nos EUA.

É a difusão internacional do progresso. Já não se fabrica no Japão o alumínio japonês: fabrica-se na Austrália, na Rússia e no Brasil. No Brasil, a energia e a mão de obra são baratas e o meio ambiente sofre em silêncio o feroz impacto dessa indústria suja. Para dar eletricidade ao alumínio, o Brasil inundou gigantescas extensões de mata tropical. Nenhuma estatística registra o custo ecológico desse sacrífico. Afinal, é o costume: outros e muitos sacrifícios cabem à Floresta Amazônica, mutilada dia após dia, ano após ano, a serviço das empresas madeireiras, mineiras e de criação de gado. A devastação organizada vai tornando cada vez mais vulnerável o chamado pulmão do planeta.

GALEANO, Eduardo.
A Escola do Mundo ao Avesso.
Editora L&PM Pocket.
Pg. 220 a 224

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CONFIRA TAMBÉM:

POLÍTICOS DISCUTINDO O AQUECIMENTO GLOBAL, uma obra de Isaac Cordal. Leitura sugerida: Revista Piauí de Janeiro de 2015, “Cirurgia à Peruana”, sobre a Cúpula do Clima de Lima 2014: “A dificuldade de se fechar um acordo internacional contra o aquecimento do planeta já foi comparada ao desafio de dividir uma conta de bar ao cabo de uma noitada. Uns comem e bebem desde o início da festa, alguns recém-chegados se fartam; uns tomam uísque, outros só bebem chope ou água. Quando cada um paga o que manda a consciência, nem sempre a conta fecha. Pois é isso que se tentará fazer no acordo de Paris: o tratado será baseado em compromissos voluntários, anunciados individualmente.”

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ALGUNS VÍDEOS DE GALEANO ALTAMENTE RECOMENDADOS:


DOSSIÊ DA CRISE DA ÁGUA EM SÃO PAULO: uma coletânea do que melhor se publicou na imprensa sobre o tema! (Viomundo, Carta Capital, Brasil Post, Revista Fórum, Ecodebate, Ivan Valente, dentre outros!)

Sao Perdro

PRELÚDIO

Por A Casa de Vidro.com

ONUAté a ONU limpou a barra de São Pedro e afirmou que ele não tinha culpa no cartório.

Mas o eleitorado paulista fez-se de avestruz, enfiou a cabeça debaixo da terra. Não quis dar atenção a papos de culpas tucanas, de más-governanças que arrastam-se por anos, de desprezos e negligências criminosas da parte de gestores públicos eleitos (supostamente) para cuidar do bem público… Não: o Estado de São Paulo foi às urnas ao fim de 2014 e mostrou-se fiel ao elitismo e ao bandeirantismo, ao reacionarismo e ao que-siga-tudo-como-está-por-pior-que-tudo-esteja.

Ainda de joelhos diante da ideologia burguesa pró-imperialista e conivente com o projeto neo-liberal (Naomi Klein prefere chamá-lo… The Shock Doctrine), a maioria dos eleitores de São Paulo – ainda que todos tussam com a atmosfera poluída, e que ninguém possa se dar ao luxo de beber a água-esgoto do Tietê e do Pinheiros, e que ninguém escape do stress num trânsito tão tartaruga e caótico quanto o de Sampa…. – ainda assim triunfou o continuísmo. E São Paulo vive hoje, além da infelicidade de uma crise hídrica sem precedentes, uma desgraça suplementar: elegeu para governá-la justamente quem causou a catástrofe toda. E quem fez tamanha lambança, parece-me, é quem não merece nossa confiança para sanar a tragédia.

Beira o inacreditável: a olhos vistos, de modo escancarado, os reservatórios da Cantareira ia secando; e o governo do PSDB sempre negligente quanto à isto, motivado por sua costumeira cegueira privatista, que leva políticos tucanos a sempre colocarem os lucros privados acima e à frente do cuidado com o bem público. No caso, o PSDB, por anos a fio, demonstrava com provas mil aos paulistas que quisessem prestar atenção o quanto era inapto e incompetente para uma prestação digna dos serviços públicos, universais e gratuitos, instituídos na república brasileiras e garantidos por constituição…

O modelo tucanista – a doutrina do choque neoliberal – já demonstrou mundo afora, desde a época de Pinochet, Reagan e Tatcher até nossos dias atuais, ser um sistema consagrador de apartheids sociais gravíssimos, depredador dos serviços públicos, responsável por péssima distribuição de renda, autoritário a ponto de encarcerar em massa os espoliados pelo sistema, endoidecido pela mentalidade do consumismo predatório de recursos naturais não renováveis… Enfim: um modelo que, de tanto queimar petróleo e carvão, de tanto derrubar florestas biodiversas inteiras, de tanto ignorar os limites da biosfera, de tanto pôr lenha na fogueira do individualismo e da sanha de lucros e confortos, trouxe-nos a esta crise planetária do Aquecimento Global com a qual teremos que nos defrontar pelo século afora, e com grandes potencialidades de hecatombes com perdas incalculáveis para a biosfera.

O caos climático, como é cada dia mais evidente, torna-se dia a dia mais exacerbado, a ponto de já golpear-nos com tsunamis, furacões, estiagens e outras “agressões” de Gaia contra os desequilibrados e desequilibradores que somos. Naomi Klein diz ter visto a cara do futuro: ele tem o rosto de New Orleans depois da passagem devastadora do Katrina.

VejaNas eleições, a maioria dos eleitores de SP manifestaram-se pró-Aécio, pró-Alckmin, pró-Propriedade, Polícia e Possessividade, ídolos aos quais devotam-se as elites econômicas-e-políticas deste autêntico “Tucanistão” que é São Paulo. Sinto que há uma epidemia de coxinite aguda nos paulistas; que, em massa, eles deixam-se embevecer e embrutecer por um antipetismo fanático, que é instilado nas mentes conformistas por sumidades políticas tucanas e vexaminosos panfletos da direita empresarial, travestidos de órgãos de imprensa… refiro-me, é claro, a publicações como a Veja, da Editora Abril. Ela, que foi tão vil às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais que, faltando à verdade que seria seu dever honrar, preferiu vomitar calúnias e difamações contra Dilma e Lula, ao invés de escancarar que os autênticos mentirosos de campanha eleitoral eram Alckmin e Aécio – que negaram-se a admitir que havia um Problema da Água já com seus tentáculos sobre os territórios outrora controlados pelos lordes da República-do-Café-Com-Leite.

Dá vergonha de ter nascido paulista ao descobrir quão reacionários e coxinhas agiram os paulistas nas urnas, quão mau-informados estão sobre a realidade ecológica e ambiental que sustenta toda a biodiversidade da Teia da Vida ao sul do Equador, e quão auto-sabotadores e quase masoquistas foram os paulistas ao re-elegerem para o mandato de 2015 a 2018 este senhor, Geraldo Alckmin, que foi tão incompente e mau gestor que trouxe a mais de 15 milhões de pessoas esta situação de escassez brutal e crônica da água. Geraldo Alckmin é um tipo tão Opus Dei que dá medo de que por detrás da gravata e dos óculos encontre-se um apoiador de Cruzadas e Inquisições… “Lázaro ou alguém, nos ajude a entender!” – canta o rapper Criolo, pedindo que a gente convoque nossos budas, pois parece que ainda não existe amor em SP – pelo menos não dentro dos palácios de governo e escritórios corporativos (nas ruas… ah, lá há amor em ebulição encontrável em profusão!).

Quem nos ajuda a entender como Alckmin pôde ser re-eleito? Foi um governo responsável por repressão policial grotescamente truculenta, como na desocupação forçada da comunidade do Pinheirinho em São José dos Campos, ou na barbárie executada pelas Tropas de Choque responsáveis por reprimir e silenciar Junho de 2013. Mas, pergunto: de que serviu a brutalidade toda, que os tucanos mandavam a PM exercer nas ruas? Ddiantou de algo para tirar força dos movimentos sociais que em 2013 causaram uma ebulição das ruas que não se via desde as Diretas Já ou do Fora Collor? O MPL hoje está maior do que nunca… Boulos e o MTST estão botando pra quebrar… Fora do Eixo e Mídia Ninja nunca estiveram tão na crista-da-Onda… Enquanto éramos bombardeados pelo gás lacrimogêneo, germinavam e multiplicam-se os projetos e as parcerias, as solidariedades e as trocas de informação, os arranjos anarco-democráticos de improviso, as filiações a PSÓIS e outros partidos libertários; enfim, vicejavam experimentos existenciais-políticos que são oficinas de fermentação de uma realidade social nova, e que já está operante e agente nestas “redes de indignação e esperança” de que nos fala o sociólogo espanhol Manuel Castells.

Alckmin e suas tropas armadas de tefesa do Tucanismo Perpétuo desvelaram nos últimos anos o quão intensamente têm por base de sustentação o terror estatal institucionalizado, o complexo militar-policial inchado e com elefantíase; é um Estado autoritário – típico de um pesadelo de Kafka – e que não economiza nas bombas de gás lacrimogêneo e outros meios de repressão do aparato militar. Procura sufocar a democracia popular autêntica através do terrorismo legalizado e a repressão tóxica das bombas de (def)eito moral . O ódio à democracia e os rompantes autoritários, que são restolho e legado da Ditadura que São Paulo esqueceu-se de enterrar, até hoje insistem em perdurar na atitude da dinastia política tucana que as urnas insistem em declarar hegemônicas.

RIO

Foi algo que pensei agora, neste Janeiro de 2015, em meio a uma mega-manifesta do Passe Livre em São Paulo: enquanto nossos ohos ardiam com o gás lacrimogêneo, caminhavámos e cantávamos e batucávamos pela rua da Consolação, talvez muitos de nós com a consciência expandida de nossa interconexão e interdependência, cientes de sermos coparticipantes de um projeto comum, de sermos conviventes no seio de um mundo comum e uma condição humana que a todos irmana. Na maré de gente, junto com cerca de 30 mil humanos, conterrâneos, compatriotas, copartícipes na aventura humana, de que todos e cada um participamos, tomando as ruas com o ímpeto dos entusiasmos cívicos, em meio a esta festa da participação e da solidariedade, fui ensinado através das narinas e dos globos oculares, com um conhecimento que vem das vísceras e que emerge da experiência vivida mesmo, que infelizmente ainda é muito forte, nas elites que governam São Paulo, a mesma mentalidade que, em 1964, instaurou pela violência bruta e pela tortura em massa um regime ilegal, assassino, de 21 anos – e que no Tucanistão até hoje muitos aplaudem.

tucanoUltimamente, pipocaram na internet alguns memes bastante perspicazes no trato com a calamidade em curso na Paulicéia Desvairada, que vivencia uma seca e uma crise hídrica de proporções épicas. Gosto em especial do slogan sarcástico “Em terra de tucano… quem toma banho é rei!” e da campanha “São Pedro é inocente!” A dinastia tucana que em breve completará 24 anos no comando do governo do estado de São Paulo trouxe a maior megalópole da América Latina à esta catástrofe seguindo à risca os ditames do capitalismo neoliberal: a Sabesp, tucanada e semi-privatizada, atingiu durante os governos Alckmin índices estratosféricos de lucro, para alegria de um punhado de felizardos na Bolsa de Valores, que puderam ficar milionários enquanto um serviço público essencial era sucateado e negligenciado. Este conluio entre a elite política do Tucanistão e os mega-empresários cheios-da-nota em Wall Street, com apoio da velha mídia burguesa que sempre esconde debaixo de tapetes gigantes os mega-escândalos de corrupção envolvendo o PSDB, trouxe-nos à beira da eclosão de turbulências sociais extremas.

Em meio às dúvidas e inquietudes que nos assolam em meio à uma crise desta magnitude, pergunto-me: São Paulo vai virar Detroit? A megalópole vai começar a expulsar população? Vem aí um êxodo em massa na Paulicéia Desvairada? Encaminhamo-nos para um cenário semelhante ao da Bolívia, quando a privatização da água em Cochabamba fez explodir algumas das mobilizações de massa mais significativas da história latino-americana recente? As Guerras da Água estão prestes a tomar conta do mainstream assim que não for mais possível às autoridades tucanas tapar o sol com a peneira? Com o exacerbamento do aquecimento global e os fracassos reiterados das Cúpulas do Clima da ONU, São Paulo servirá para o mundo como exemplo da tragédia coletiva imensa gerada por sistemas de exploração predatória de recursos naturais? Ou será que a crise em São Paulo causará uma maré montante de consciência ecológica e um aumento das manifestações de massa em prol da preservação da Amazônia, do Cerrado, dos imprescindíveis rios voadores e das cruciais florestas tropicais? Perguntas que deixo no ar – e convido, na sequência, os leitores desta Casa de Vidro a seguirem a leitura e a reflexão com algumas das matérias mais interessantes e pertinentes publicadas na cyber-imprensa nos últimos tempos. Voilà:

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IVAN VALENTE EXPLICA COMO FUNCIONA O ESQUEMÃO DO TUCANISTÃO
(CLICK PARA VER MAIOR):

FUnciona Assim

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Ecodebate

Para muitos, o racionamento de água em São Paulo já é uma realidade líquida e certa. Resta saber até quando políticos ganharão tempo para escondê-la ou se a população agirá, a ponto de, quem sabe, se repetirem as chamadas ‘guerras da água’, já vistas em locais onde os serviços hídricos e sanitários foram privatizados. De toda forma, o assunto não é passageiro e exige toda uma reflexão a respeito dos atuais modelos de vida e economia.

“Em primeiro lugar, é preciso reeducar a população a reduzir o consumo. As empresas também, pois quando se fala em redução de consumo parece que só a população consome. Mas, no Brasil, 70% da água é consumida pela agricultura, 22%, pela indústria e 8%, pelas residências. E quando se fala em redução de consumo, só se fala dos 8%, mas não dos 92%”, afirmou Marzeni Pereira, tecnólogo em saneamento da Sabesp, em entrevista ao Correio da Cidadania.

Na conversa, Marzeni elenca uma série de razões históricas, desde as locais até as mais abrangentes, que levaram São Paulo à atual crise hídrica, cujas consequências ainda não foram quantificadas. Trata-se de mais um fracasso do modelo de gestão privatista, de mãos dadas com um projeto desenvolvimentista que tem gerado mudanças ambientais em todos os grandes biomas do país.

“A Sabesp é a empresa mais preparada do Brasil para gerir o sistema de saneamento. Tem o melhor corpo técnico, a melhor estrutura etc. O problema principal é justamente a administração voltada ao mercado e ao lucro. Além disso, a empresa, sem dúvida, vem sofrendo sucateamento. Em 2004, tinha 18 mil trabalhadores e sua base de atuação era menor. Hoje, a empresa tem menos de 14 mil. A terceirização é um dos principais problemas, por exemplo, na perda de água”, explicou, em relação ao contexto paulista.

Por outro lado, Marzeni não deixou de fora toda a relação com um modelo já há décadas hegemônico. “No ano passado, em torno somente de soja, carne, milho e café, o Brasil exportou cerca de 200 bilhões de m³ de água. Significa abastecer São Paulo por quase 100 anos. A umidade atmosférica, mantida através dos chamados ‘rios voadores’, que vêm do Norte do Brasil e precisam da continuidade da vegetação, foi reduzida. A atuação do agronegócio, quem mais desmata, teve influência em SP. E teve também o desmatamento de todo o centro-oeste do estado”, resumiu.

A entrevista completa com Marzeni Pereira, realizada nos estúdios da webrádio Central3, pode ser lida aqui.

Via ECODEBATE

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Cmaior

“Desde os alertas ambientais dos anos 90 (a Rio 92, como indica o nome, aconteceu no Brasil há 22 anos) essa é uma probabilidade que deveria estar no monitor estratégico de governantes esclarecidos. Definitivamente não se inclui nessa categoria o tucanato brasileiro: em 2001 ele já havia propiciado ao país um apagão de energia elétrica pela falta de obras e a renúncia deliberada ao planejamento público. Os mercados cuidariam disso com mais eficiência e menor preço – ou não era isso que se falava e se volta a ouvir agora sobre todos os impasses do desenvolvimento brasileiro? Ademais de imprevidente, o PSDB desta vez mostrou-se mefistofelicamente oportunista na mitigação dos seus próprios erros. Ou seja, preferiu comprometer o abastecimento futuro de milhões de pessoas, a adotar um racionamento preventivo que alongaria a vida útil das torneiras, mas poria em risco o seu quinto mandato em São Paulo.

É importante lembrar em nome da tão evocada liberdade de imprensa: a dissimulação tucana não conseguiria concluir a travessia eleitoral sem a cumplicidade da mídia conservadora que, mais uma vez, dispensou a um descalabro do PSDB uma cobertura sóbria o suficiente para fingir isenção, sem colocar em risco o continuísmo no estado. É o roteiro pronto de um filme de Costa Gavras: as interações entre o poder, a mídia, o alarme ambiental e o colapso de um serviço essencial, que deixa uma das maiores metrópoles do mundo no rumo de uma seca épica. O PSDB que hoje simula chiliques com o que acusa de ‘uso político da água’, preferiu ao longo das últimas duas décadas privatizar a Sabesp, vender suas ações nas bolsas dos EUA e priorizar o pagamento de dividendos a investir em novos mananciais. Há nesse episódio referencial um outro subtexto para o filme de Costa Gavras: a captura dos serviços essenciais pela lógica do capital financeiro.

Enquanto coloca em risco o abastecimento de 20 milhões de pessoas, revelando-se uma ameaça à população, a Sabesp foi eleita uma das empresas de maior prestígio entre os acionistas estrangeiros. Mérito justo. Como em um sistema hidráulico, o dinheiro que deveria financiar a expansão do abastecimento, vazou no ralo da captura financeira. Encheu bolsos endinheirados às custas de esvaziar as caixas d’água dos consumidores.” – SAUL LEBLON, editorial de Carta Maior

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Carta Capital
“O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, esforça-se para encontrar um culpado pela crise de abastecimento que assola o estado de São Paulo, em especial a capital. Em um primeiro momento, o alvo foi São Pedro, o santo com preferências partidárias que ordenou que suas nuvens permanecessem longe das terras bandeirantes.  (…) A Sabesp, sob a tutela do governo tucano, escolheu bater recordes na Bolsa de Nova York em vez de educar seus clientes sobre a natureza limitada dos recursos hídricos. O resultado: ao passo que transformava investimentos necessários para a manutenção do abastecimento em “distribuição de dividendos” milionários, a Sabesp deixou de criar novos sistemas de captação e sobrecarregou o Sistema Cantareira a ponto de reduzi-lo a 3% de sua capacidade total. (…) Em 2012 e 2013 não foram tomadas medidas para proteger o Sistema Cantareira da mais severa estiagem registrada em toda a série histórica. Paralelamente, foram os dois anos nos quais se obtiveram os maiores lucros líquidos da história da companhia e de distribuição de dividendos, valendo observar que, nesse período, o Sistema Cantareira foi responsável por 73,2% da receita bruta operacional da empresa, denotando a superexploração daquele sistema produtor, que não mais conseguiu se recuperar diante da gravidade do atual evento climático de escassez”, cravam os promotores.

Aos números: desde 2004, quando recebeu a outorga para utilização do Cantareira, a Sabesp lucrou cerca de 12 bilhões de reais. Desse total, quase 4 bilhões foram direto para o bolso dos acionistas.  Em 2012 e 2013, anos citados na ação civil pública como recorde de lucros da estatal, os repasses aos acionistas somaram 500 milhões e o lucro ficou na casa de 1,9 bilhão de reais. Desse total que foi para as mãos dos acionistas, 73% saiu da destruição do Sistema Cantareira. Além de sobrecarregar o Cantareira para manter os altos lucros, a Sabesp, não por falta de dinheiro, deixou de planejar e executar novas obras de captação. Entretanto, desde 2004, quando da concessão da outorga para uso por dez anos do Cantareira pela Sabesp, a Agência Nacional de Água já alertava sobre a necessidade de investimentos nessas novas fontes. (…) Não foi o que ocorreu. Em uma década a Sabesp não criou nenhum novo sistema produtor.” – FÁBIO SERAPIÃO na CARTA CAPITAL

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Chico

Chico Alencar, no Viomundo, esclarece as razões para demandar o impeachment de Geraldo Alckmin:

“Por mais que devamos nos preocupar com o aquecimento global e adotar políticas ousadas para seu enfrentamento, não é essa – nem meramente a falta de chuvas – a principal razão para a pane no sistema de abastecimento de água. A Relatora das Nações Unidas para a questão da água, Catarina de Albuquerque, é categórica: a crise hídrica em São Paulo é de responsabilidade direta do governo estadual. A avaliação do Ministério Público é semelhante. A promotora Alexandra Facciolio afirma: “Estamos passando por esta situação porque o planejamento falhou. Não foi feito o que era necessário”. Segundo diversos especialistas, os vinte anos de gestão estadual do PSDB não providenciaram os investimentos necessários para garantir o equilíbrio do sistema de abastecimento de água, com capacidade de suportar períodos de estiagem. A privatização da gestão, controle e distribuição da água, transformada em ativo financeiro e objeto de especulação nas bolsas de valores, é uma das maiores razões para isso. Para a Relatora da ONU, “os recursos deveriam estar sendo investidos para garantir a sustentabilidade do sistema e o acesso de todos a esse direito”, ao invés de remunerarem lucros de acionistas da Sabesp, empresa mista responsável pela gestão do sistema, e que tem quase 50% de suas ações distribuídas entre bolsas de SP e de Nova Iorque.

Segundo o economista Bruno Peregrina Puga, “os anos recentes têm sido generosos com os acionistas da Sabesp, sempre pagando um payout elevado, ao passo que o investimento não tem acompanhado a mesma intensidade crescente do lucro”. Além disso, estudo da Fundação SOS Mata Atlântica mostra que o desmatamento intenso de quase 80% da vegetação nativa da bacia hidrográfica da Cantareira é um dos responsáveis diretos pela crise de abastecimento. Com pouca vegetação, a floresta não consegue desempenhar o seu papel, de reabastecer os lençóis freáticos e impedir a erosão do solo e o assoreamento de rios, protegendo as nascentes e todo o fluxo hídrico. Mais uma grave omissão do poder público – inclusive deste Congresso Nacional, que produziu grave retrocesso ambiental nesta Legislatura, ao aprovar, em 2012 (com a nossa oposição), o novo Código Florestal, que criou condições mais favoráveis ao desmatamento e assoreamento de rios.

Além da instrumentalização mercantil e financeira, há evidência de grave e ilegal ingerência política eleitoreira sobre a Sabesp, em prejuízo da transparência da gestão pública. Diante dos áudios em que a diretora-presidente da SABESP, Dilma Pena, declara ter recebido ordens do governo do estado para esconder a grave crise de abastecimento de água em São Paulo, fica claro que o governo do PSDB colocou seus interesses eleitorais acima do interesse público. Com esse fundamento, o Deputado Carlos Giannazi, líder da bancada do PSOL na Assembleia Legislativa do Estado de SP, protocolou pedido de cassação do mandato do governador Geraldo Alckmin…”

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Crise hídrica revela relação sadomasoquista entre PSDB e povo de SP
por Eduardo Guimarães no Blog da Cidadania

“No âmbito da informação inexplicável de que, segundo o instituto Datafolha, 53% dos paulistanos culpam Dilma Rousseff e Fernando Haddad pela falta de água em SP, mas consideram que Geraldo Alckmin não tem culpa alguma, a aceitação dos paulistas a todo sofrimento que o governo tucano lhes impõe revela uma relação espantosa entre o governante e os governados. Daqui a três anos, onze meses e 26 dias, completar-se-ão VINTE E QUATRO ANOS de governos do PSDB em São Paulo. Nesse período, a situação no Estado degradou-se a olhos vistos, sobretudo do ponto de vista econômico. Mas, com o perdão pelo trocadilho, a aceitação bovina pelos paulistas dos problemas advindos da incúria do governo estadual na questão da distribuição de água fez essa relação quase sadomasoquista atingir o fundo do poço.”

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BP

“Quando acabar a água serão interrompidas atividades que não são consideradas essenciais, com cortes para o comércio, para a indústria e o fechamento de locais com muito uso de água, como shoppings, escolas e universidades”, analisou o professor Antonio Carlos Zuffo, especialista na área de recursos hídricos na Unicamp. Parece exagerado, mas não é. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo desta quarta-feira (21), os seis mananciais que abastecem 20 milhões de pessoas na Grande São Paulo têm registrado déficit de 2,5 bilhões de litros por dia em pleno período no qual deveriam encher para suprir os meses de seca.

Já em 2002, a Saneas, revista da Associação dos Engenheiros da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (AESabesp), publicava um texto no qual apontava “uma inegável situação de estresse hídrico”, a qual podia “ter um final trágico, com previsões de escassez crônica em 15 anos”. A Agência Nacional de Águas (ANA) apontava, na outorga de uso do Sistema Cantareira de 2004, que era preciso diminuir a dependência desse sistema. Em plena crise, na tentativa de renovação em 2014, havia uma tentativa de aumentar, e não diminuir, o uso do Cantareira. Ou seja, algo impraticável e ignorando as previsões. Não, a culpa não é de São Pedro…” – BRASIL POST

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Dona Rute

“Ele está mentindo de forma reiterada. Já sabemos, há muito tempo, não é só na zona sul, nas zonas oeste e norte a falta de água é uma realidade constante”, aponta o deputado estadual Luiz Cláudio Marcolino (PT).

O que pode acontecer quando um governador mente para a população que governa? Para o deputado estadual Alencar Santana (PT), a solução pode ser tirá-lo do cargo. “Do ponto de vista político, é passível de impeachment. Do ponto de vista jurídico, precisa ter cautela, pois teríamos que juntar provas e argumentos que nos levem a essa condição.”

Carlos Giannazi (PSOL), também deputado estadual, seguiu a mesma linha de cassação do governador e protocolou, no último dia 24 de outubro, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), um pedido de impeachment de Alckmin.

“Nenhuma ação governamental foi tomada [para conter a falta d’água]. Ao contrário, a crise foi ‘escondida’ para não prejudicar o processo de reeleição do governo estadual – um verdadeiro estelionato eleitoral praticado contra o cidadão paulista”, afirma o psolista, no documento que pede o impeachment do governador.

Giannazi tomou conhecimento da omissão do tucano quando a Fórum revelou áudios de uma reunião da Sabesp que mostram a presidenta da empresa, Dilma Pena, admitindo ter recebido “ordens superiores” para não comunicar à população a crise hídrica enfrentada no estado.” – REVISTA FÓRUM

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"Ensaio Sobre a Cegueira" (Blindness), filme de Fernando Meirelles baseado em romance de José Saramago

“Ensaio Sobre a Cegueira” (Blindness), filme de Fernando Meirelles baseado em romance de José Saramago

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA PAULISTA

“E, de repente, um surto de cegueira acometeu São Paulo. Não se sabe se começou na avenida Higienópolis, na capital, ou se veio do interior. Há quem diga que o primeiro cego perdeu o senso de realidade em Ribeirão Preto. De repente deu de achar que estava na Califórnia. E a epidemia se espalhou silenciosamente pelo Estado, por todas as cidades e vilarejos.

Em 2014, nas eleições para o governo do Estado, a cegueira estava disseminada. Diferentemente do livro de José Saramago, onde uma mancha branca, um “mar de leite”, cegava um a um os habitantes de uma cidade fictícia, em São Paulo os cegos continuavam enxergando. Mas há tempos já se diz que o pior cego é aquele que não quer ver.

E eles não viram, ou apenas fizeram cara de paisagem, junto com editores cegos de jornais e revistas, do rádio e da TV. Tudo parecia normal durante a reeleição do “Geraldo”, alcunha de Geraldus Alckminus, da longeva dinastia tucana. “Não vai faltar água”, disse o governador pausadamente naquela campanha, ressaltando cada sílaba, na maior mentira deslavada da história recente do país.

E assim a maioria dos paulistas “acreditou” no que ele disse. Culparam São Pedro, o PT, e ignoraram solenemente os milhões que escorreram nos túneis do metrô e a violência que voltou a crescer. Se fizeram de Maria Antonieta no desmonte da educação e das universidades do Estado. Aplaudiram a PM esfolando manifestantes e matando jovens negros e pobres nas periferias. E sobretudo se fizeram de surdos quando alertados que a Cantareira estava baixando e que a água, logo logo, iria acabar.

No quarto mês de 2015, no início do quarto reinado alckmino, ano 20 da era tucana, muitos paulistas começaram a se dar conta da realidade. Talvez tenha sido o odor inebriante do CC no busão ou as louças amontoadas na pia. O cabelo ensebado por falta de banho pode ter ajudado. Cientistas suspeitam dos efeitos colaterais da água do volume morto.

Dizem que uma moradora dos Jardins acordou num surto psicótico depois que uma crosta de poeira havia se impregnado em seu carro de luxo. Nem decuplicar a oferta ao lava jato conseguiu driblar a realidade. “Esse atendimento não era gourmet?”, gritava, insana. Mas naquele dia já não havia mais água.

Não demorou a que o caos se instalasse. Todos correram aos supermercados para estocar o líquido precioso. As gôndolas ficaram rapidamente vazias. Em Itu, um caminhão de água foi sequestrado. Por toda a parte, havia registros de brigas, até por garrafinhas de 500 ml de água. E o preço foi às alturas. Em Pinheiros, uma rua cedeu depois que vários moradores cavaram poços clandestinos. A desordem se instalou. No Palácio dos Bandeirantes, longe de tudo e de todos, Alckminus tentava contornar a crise.

Desta vez, estava preocupado. O Maquiavel de Pindamonhangaba enxergava tudo muito bem e, com jeito de bom moço, já havia se tornado mestre em abafar CPIs na Assembleia Legislativa ou em mentir que a Corregedoria da PM funciona. Agora, estava sob grande pressão.

Ainda não havia sinal de nenhuma turba chegando ao longínquo Palácio dos Bandeirantes. O Choque da PM bloqueou o acesso ao Morumbi (com garantia de água à vontade, a fim de evitar um motim policial). O estoque de balas de borracha foi reforçado e um novo lote de gás lacrimogêneo fora usado contra manifestantes do Movimento Água Livre.

Contra o povo, Alckmin tinha a polícia. O que realmente o preocupava eram os 30 PIBs de São Paulo reunidos no Palácio (a quem foi oferecido champagne por razões de “restrição hídrica”, como explicou o cerimonial). Também apavoravam o governador as chantagens dos acionistas da Sabesp. Apesar do preço exorbitante, a falta d’água deixou a companhia deficitária, com as ações a preço de banana na Bolsa de Nova York, onde eram comercializadas desde a privatização parcial da empresa.

E assim os paulistas tentavam deixar a cidade, o Estado. Um grande congestionamento, que já durava uma semana, travou as rodovias. Na capital, moradores fugiam pelas ruas, carregando o que podiam, em uma cena dantesca. Uns deliravam e arrancavam as roupas, andando desorientados. A Força Nacional foi acionada. Já havia gente se jogando no Tietê.

Em meio à tragédia, os jornais traziam notícias otimistas. “Cacique Cobra Coral assegura que vai chover”, dizia a manchete de um deles, com declarações de Alckminus justificando a contração da “consultoria para deficiência hídrica”.

Analistas chegaram a prever um ataque da população ao Bandeirantes, mas pesquisas mostravam que grande parte dos paulistas ainda não tinha certeza sobre quem era o responsável pela crise da água, se Dilma ou Haddad.

Na dúvida, resolveram ir embora o mais rápido possível, com a fé abalada em São Pedro. Ainda mantinham a esperança de que, um dia, a cidade fosse inundar mais uma vez durante as chuvas de verão e que haveria água para todos (ou ao menos nos camarotes). Para muitos, a cegueira era irreversível.”

Via FÓRUM

A DANÇA DA CHUVA – RIOS VOADORES E MANANCIAIS SUBTERRÂNEOS: A escassez de água que alarma o país tem relação íntima com as florestas (Reportagem e Vídeos por Revista da FAPESP)

CAMINHOS

DANÇA DA CHUVA

A escassez de água que alarma o país tem relação íntima com as florestas

por Maria Guimarães, na Revista da FAPESP, Dezembro de 2014

A Amazônia não é apenas a maior floresta tropical que restou no mundo. Esse sem-fim de verde entrecortado por rios serpenteantes de tamanhos e cores variados também não se limita a ser a morada de uma incrível diversidade de animais e plantas. A floresta amazônica é também um motor capaz de alterar o sentido dos ventos e uma bomba que suga água do ar sobre o oceano Atlântico e do solo e a faz circular pela América do Sul, causando em regiões distantes as chuvas pelas quais os paulistas hoje anseiam. Mas o funcionamento dessa bomba depende da manutenção da floresta, cuja porção brasileira, até 2013, perdeu 763 mil quilômetros quadrados (km2) de sua área original, o equivalente a três estados de São Paulo. Antonio Donato Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), não aponta o dedo para culpados. O que importa para ele é reverter esse processo e não apenas zerar o desmatamento, mas recuperar a floresta. No relatório O futuro climático da Amazônia, divulgado no fim de outubro, ele deixa claro que o único motivo para não se tomarem providências imediatas para reduzir o desmatamento é desconhecer o que a ciência sabe. Para ele, o caminho é conscientizar a população. “Agora é um bom momento porque as torneiras estão secando”, afirma.

O FUTURO CLIMÁTICO DA AMAZÔNIA, de Antonio Donato Nobre. Acesse o PDF completo. Leia o artigo de Eliane Brum que comenta o relatório.

No relatório, elaborado a partir da análise de cerca de 200 trabalhos científicos, ele mostra que a cada dia a floresta da bacia amazônica transpira 20 bilhões de toneladas de água (20 trilhões de litros). É mais do que os 17 bilhões de toneladas que o rio Amazonas despeja no Atlântico por dia. Esse rio vertical é que alimenta as nuvens e ajuda a alterar a rota dos ventos. Nobre explica que os mapas de ventos sobre o Atlântico mostram que, no hemisfério Sul e a baixas altitudes, o ar se move para noroeste na direção do equador. “Na Amazônia a floresta desvia essa ordem”, diz. “Em parte do ano, os ventos alísios carregados de umidade vêm do hemisfério Norte e convergem para oeste/sudoeste, adentrando a América do Sul.”

Essa circulação viola um paradigma meteorológico que diz que os ventos deveriam soprar das regiões com superfícies mais frias para aquelas com superfícies mais quentes. “Na Amazônia, o ano todo eles vão do quente, o Atlântico equatorial, para o frio, a floresta”, explica. Uma parceria com os russos Anastasia Makarieva e Victor Gorshkov, do Instituto de Física Nuclear de Petersburgo, tem ajudado a explicar do ponto de vista físico os fenômenos meteorológicos da Amazônia. Em artigo publicado em fevereiro de 2014 no Journal of Hydrometeorology, eles afirmam, com base em análises teóricas confirmadas por observações empíricas, que o desmatamento altera os padrões de pressão e pode causar o declínio dos ventos carregados de umidade que vêm do oceano para o continente. O grupo analisou os dados de 28 estações meteorológicas em duas áreas do Brasil e viu que os ventos que vêm da floresta amazônica carregam mais água e estão associados a maiores índices de chuvas do que ventos que partem de áreas sem floresta e chegam à mesma estação.

Isso acontece, segundo os pesquisadores, por causa da bomba biótica de umidade, uma teoria proposta pela dupla russa em 2007 para explicar a dinâmica de ventos impulsionada por florestas. Essa ideia completa a descrição feita pelo  climatologista José Antonio Marengo, à época pesquisador do Inpe, de como a Amazônia exporta chuvas para regiões mais meridionais da América do Sul. A teoria da bomba biótica aplica uma física não usual à meteorologia e postula que a condensação da água, favorecida pela transpiração da floresta, reduz a pressão atmosférica que suga do mar para a terra as correntes de ar carregadas de água.

Os fundamentos da influência da condensação sobre os ventos foram apresentados em artigo publicado em 2013 por Anastasia e Gorshkov, em parceria com Nobre e outros colaboradores, na Atmospheric Chemistry and Physics, uma das revistas mais importantes da área. Por meio de uma série de equações, eles mostram que o vapor de água lançado à atmosfera pela transpiração da floresta gera, ao condensar, um fluxo capaz de propelir os ventos a grandes distâncias. De acordo com Nobre, a nova física da condensação proposta por eles gerou, ainda durante a revisão do artigo, uma controvérsia com meteorologistas, que debateram o assunto furiosamente em blogs científicos com a intenção de derrubar a principal equação do trabalho. Não conseguiram e o trabalho foi publicado. O pesquisador do Inpe explica a polêmica. “É uma física que atribui à condensação, um fenômeno básico e central do funcionamento atmosférico, um efeito oposto ao que se acreditava”, diz. “Será necessário reescrever os livros didáticos da área.”

Para dar a dimensão da dificuldade de diálogo entre físicos teóricos e meteorologistas, Nobre lembra que a física desenvolve um entendimento dos fenômenos atmosféricos a partir de leis fundamentais da natureza, enquanto a meteorologia o faz, em grande parte, com base na observação de padrões do clima do passado, cuja estatística é absorvida em modelos matemáticos. Tais modelos representam bem as flutuações climáticas observadas, mas apresentam falhas quando há alterações significativas no padrão.

É o caso agora, quando um novo contexto – ocasionado por desmatamento, mudanças globais no clima ou outros fatores – gera fenômenos climáticos inesperados para certas regiões, como chuvas mais torrenciais e secas mais extensas. A teoria física acerta onde extrapolações do passado erram, por isso é preciso, segundo ele, construir novos modelos climatológicos que recoloquem a física no centro dos esforços da meteorologia.

O momento agora é crucial porque o clima amazônico vem mudando. Secas importantes nessa região marcaram os anos de 2005 e 2010. “Antes a Amazônia tinha a estação úmida e a mais úmida, agora há uma estação seca”, diz Nobre. Os danos dessas secas na floresta não foram aniquiladores porque ela consegue se regenerar, mas o acúmulo dos danos aos poucos erode essa capacidade. Um efeito importante que já se observa, previsto há 20 anos por modelos climáticos, é um prolongamento da estação seca, que tem prejudicado a produção agrícola em porções do estado do Mato Grosso. A grande preocupação é que se chegue a um ponto de não retorno, em que a floresta já não consiga produzir chuva suficiente para suprir nem a si própria. Trabalhos de modelagem que levam em conta clima e vegetação indicam que esse ponto será atingido quando 40% da área original de floresta for perdida, um número que não é unânime. Segundo o relatório de Nobre, 20% da floresta já foi cortada e outros 20%, alterados a ponto de terem perdido parte de suas propriedades.

Se a teoria da bomba biótica estiver correta, os efeitos desse ponto de não retorno devem ser mais graves do que a savanização proposta pelo climatologista Carlos Nobre, irmão mais velho de Antonio (ver Pesquisa FAPESPnº 167). “Se a floresta perder a capacidade de trazer a umidade do oceano, a chuva na região pode cessar por completo”, diz o Nobre caçula. Sem água para sustentar uma savana, o resultado poderia ser uma desertificação na Amazônia. Se isso ocorrer, o cenário que ele infere para o Sul e o Sudeste do país poderia ser semelhante ao de outras regiões na mesma latitude: tornar-se um deserto.

Antonio Nobre não se arrisca a falar muito sobre São Paulo. “Meu relatório é sobre a Amazônia.” Mas ele acredita que a seca por aqui não independe do que acontece no Norte. Em sua opinião, foi possível devastar boa parte da mata atlântica sem sentir uma redução nas chuvas porque a Amazônia era capaz de suprir a falta de água na atmosfera local. Mas isso já não parece acontecer mais. Ele aproveita o ensejo para sugerir que não apenas a floresta amazônica, mas também a que acompanhava a costa de quase todo o Brasil precisa ser recuperada imediatamente. Se não for por outro motivo, o esgotamento a que chegaram as represas que alimentam boa parte da população paulista deveria bastar como argumento.

A exportação de água desde a Amazônia para outras regiões do Brasil, sobretudo o Sudeste e o Sul, é uma realidade, por meio do fenômeno conhecido como rios voadores (ver Pesquisa FAPESP nº 158). Um indício dessa linha direta foram as intensas chuvas no sudoeste da Amazônia no início de 2014, praticamente o dobro do volume habitual, ao mesmo tempo que São Paulo passava pelo pior momento de uma seca histórica. “A chuva ficou presa em Rondônia, no Acre e na Bolívia por causa de um bloqueio atmosférico, algo como uma bolha de ar que impedia a passagem da umidade. Isso criou uma estabilidade atmosférica, inibiu a formação de chuvas e elevou as temperaturas”, conta Marengo, agora pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Ele é coautor de um artigo liderado por Jhan Carlo Espinoza, do Instituto Geofísico do Peru, que está em processo de publicação pela Environmental Research Letters e é parte dos resultados do programa Green Ocean (GO) Amazon, que tem apoio da FAPESP.

Não é possível, porém, afirmar o quanto essa relação determina a estiagem paulista. “Ainda não se sabe calcular quanto das chuvas do Sudeste vem da Amazônia nem quanto chega aqui trazido por frentes frias vindas do Sul, pela umidade carregada por brisas marinhas ou pela evaporação local”, diz. Para ele, o desmatamento pode ter um impacto no longo prazo, mas ainda é impossível dizer se ele está relacionado com a seca atual. “O Sudeste pode não virar um deserto”, pondera, “mas os extremos climáticos podem se tornar mais intensos”. Estudos usando modelos climáticos criados pelo grupo de Marengo já previam uma redistribuição do total das chuvas, com um volume muito grande em poucos dias e estiagens mais prolongadas, algo que já tem sido observado no Sudeste e no Sul do país nos últimos 50 anos.

Além desse efeito a distância, em escala nacional, a relação entre vegetação e recursos hídricos também se dá numa escala mais local, de acordo com o engenheiro agrônomo Walter de Paula Lima, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador científico do Programa Cooperativo de Monitoramento Ambiental em Microbacias (Promab) do Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais. Em seus estudos sobre o efeito das florestas (ou sua remoção) em microbacias hidrográficas, ele mostrou que a mata ciliar, que acompanha os cursos de água, ajuda a manter a boa saúde de pequenos rios. “O sistema Cantareira, que abastece São Paulo, é formado por milhares de microbacias”, conta. “As que estão mais degradadas não contribuem para o manancial.” Essa avaliação, porém, carece de dados experimentais concretos. Segundo Lima, para se saber exatamente o efeito das matas ciliares nos mananciais seria necessário estudar uma microbacia experimental em que se possa medir propriedades dos cursos d’água com e sem a proteção de floresta, sem que haja outros fatores envolvidos. Um quadro praticamente inatingível.

Uma experiência prática que reforça a importância de se preservar as matas ciliares para a manutenção dos recursos hídricos é relatada pelo biólogo Ricardo Ribeiro Rodrigues, da Esalq, especialista em recuperação de florestas nativas. Ele conta que há 24 anos a água desapareceu da microbacia de Iracemápolis, município no interior paulista. A prefeitura buscou ajuda na Esalq, e o grupo de Rodrigues implementou um projeto de conservação de solo da microbacia e de recuperação da mata ciliar que deveria estar ali. “Fui lá recentemente e levei um susto”, conta o pesquisador. O nível da represa está um pouco mais baixo, mas tem água suficiente para continuar abastecendo Iracemápolis, que teve sua população triplicada nesse período. “Toda a região está com problemas de falta de água, mas Iracemápolis não.”

As florestas afetam a saúde dos recursos hídricos por meio de sua influência nas chuvas, mas também tem importância a sua relação com as águas subterrâneas. O engenheiro Edson Wendland, professor no Departamento de Hidráulica e Saneamento da USP de São Carlos, estuda justamente o que acontece com a recarga do aquífero Guarani quando o cerrado é substituído por culturas como pastagem, cana-de-açúcar, cítricos ou eucalipto. O trabalho tem sido feito na bacia do Ribeirão da Onça, no município de Brotas, interior paulista, estudada desde os anos 1980.

Por meio de poços de monitoramento e estações climatológicas, a ideia é detalhar, antes que não sobre mais vegetação original de cerrado por ali, como se dá a recarga do aquífero Guarani sob diferentes regimes de uso do solo. “Não é possível gerenciar o que não se conhece”, diz Wendland sobre uma das fontes de água subterrânea mais importantes do Brasil. O aquífero é uma camada porosa de rochas na qual se infiltra a água das chuvas, depois liberada lentamente para os rios. Essa diferença de tempo entre o abastecimento e a descarga, consequência do trajeto lento da água pelo meio subterrâneo, é o que garante perenidade aos rios, que dependem dessa poupança hídrica.

O grupo de Wendland tem mostrado, por exemplo, que a disponibilidade de água diminui quando se substituem as pequenas árvores retorcidas do cerrado, adaptadas a viver sob estresse hídrico, por eucaliptos, que consomem bastante água e em poucos anos atingem o tamanho de corte. Medições feitas entre 2004 e 2007 mostram que as taxas de recarga têm relação íntima com a intensidade da precipitação e o porte das culturas agrícolas nessa região onde o cerrado está praticamente extinto, de acordo com artigo aceito para publicação nos Anais da Academia Brasileira de Ciências.

Isso não significa, porém, que os eucaliptos sejam vilões incondicionais. O impacto de árvores de grande porte depende, em parte, da profundidade do aquífero no ponto em que estão plantadas. Segundo Lima, os mais de 20 anos de monitoramento contínuo feito pelo Promab mostraram que a relação entre espécies florestais e água não é constante. “Onde a disponibilidade é crítica, um elemento novo pode secar as microbacias”, explica. “Mas onde o balanço hídrico e climático é bom, a diminuição de água nem é sentida.” Essas conclusões deixam claro que é necessário fazer um zoneamento de onde se pode plantar e onde a prática seria nociva, um planejamento que não existe no Brasil.

Para Wendland, a importância de entender a relação entre o cerrado e os aquíferos é crucial porque as nascentes da maioria das grandes bacias hidrográficas do país estão no domínio desse bioma. Além da importância como recurso hídrico, algumas dessas bacias – do Paraná, do Tocantins, do Parnaíba e do São Francisco – são as principais fornecedoras de água para geração de energia elétrica no Brasil.

Em pouco mais de meio século, metade da área do cerrado foi desmatada e deu lugar a atividades agrícolas. Para avaliar o efeito dessa alteração no uso do solo sobre a disponibilidade hídrica, o doutorando Paulo Tarso de Oliveira, do grupo de São Carlos, fez um estudo usando dados de sensoriamento remoto em toda a área desse bioma. Com os sensores, é possível avaliar não só a alteração da vegetação, mas também quantificar as precipitações, os índices de evapotranspiração pelas plantas e estimar a variação de armazenamento de água. Segundo artigo publicado em setembro de 2014 na Water Resources Research, os dados indicam uma redução do escoamento por causa de atividades agrícolas mais intensas.

O desmatamento e o uso agrícola do solo têm importância, mas Wendland afirma que o maior problema para a recarga do aquífero hoje é a redução nas chuvas. “O aquífero supre a falta de precipitação por dois ou três anos, depois já não consegue manter o escoamento de base nos rios”, diz. Nos últimos anos as precipitações da estação chuvosa foram abaixo da média, o que diz os resultados observados. Explica também, segundo ele, fenômenos alarmantes como o esgotamento da principal nascente do rio São Francisco, que permaneceu seca por cerca de três meses e só voltou a jorrar água no final de novembro.

O desafio do gerenciamento das águas subterrâneas, que representam 98% da água doce do planeta, tem outras particularidades em zonas urbanas, onde pode ser um recurso crucial. Segundo o geólogo Ricardo Hirata, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, 75% dos municípios paulistas são abastecidos, em parte ou completamente, por essas águas. Isso inclui cidades importantes do estado, com destaque para Ribeirão Preto, onde elas servem a 100% dos mais de 600 mil habitantes. Na escala nacional, outras cidades completamente abastecidas por águas subterrâneas são Juazeiro do Norte, no Ceará, Santarém, no Pará, e Uberaba, em Minas Gerais, de acordo com o livro Águas subterrâneas urbanas no Brasil, em processo de publicação pelo IGc e pelo Centro de Pesquisa em Águas Subterrâneas (Cepas).

Surpreendente nas cidades é que a água perdida pelo abastecimento público vai parar no aquífero. “A impermeabilização do solo diminui a penetração da água da chuva, mas as perdas compensam e superam essa redução e o saldo é uma recarga maior onde há cidades, em comparação com outras áreas”, explica Hirata. “Se analisarmos a água de um poço qualquer em São Paulo, metade será do aquífero e metade da Sabesp.” Ele estima que a capital paulista tenha quase 13 mil poços, todos particulares, muitos ilegais. “Existe uma legislação para gerenciamento desse recurso, mas ela não é seguida”, conta.

Um problema causado pelas cidades é a contaminação dos aquíferos por nitrato, devido a vazamentos no sistema de esgotos. Como a descontaminação é cara, os poços afetados acabam abandonados. Nas cidades em que são usados para abastecimento público, a solução é misturar água poluída à de poços limpos para que a qualidade total seja aceitável. “Em Natal não há mais água suficiente para mesclar”, alerta Hirata. O subterrâneo é fonte de 70% da água na capital potiguar.

Outro tipo de poluição importante vem da indústria, como a causada pelos solventes organoclorados. O geólogo Reginaldo Bertolo, também do IGc e diretor do Cepas, estuda como esse poluente se comporta no aquífero abaixo de Jurubatuba, na zona Sul paulistana, uma região industrial desde os anos 1950. “É um contaminante de difícil comportamento no aquífero”, conta. Nessa rocha dura, onde a água corre em fraturas, o composto mais denso do que a água se aprofunda e só para quando chega a um estrato impermeável. “São produtos tóxicos e carcinogênicos.” A poluição impede o uso da água subterrânea numa região onde a demanda é forte.

Em colaboração com pesquisadores da Universidade de Guelph, no Canadá, o grupo de Bertolo está mapeando esses poluentes para entender como ele se comporta e propor estratégias para eliminá-lo do aquífero. Para isso, o próximo passo é usar um sistema desenvolvido pelos canadenses para retirar amostras da rocha e instalar poços de monitoramento especiais. “O equipamento permite coletar água de mais de 20 fraturas diferentes numa mesma perfuração”, afirma. “Vamos fazer um modelo matemático para reproduzir o que acontece e fazer prognósticos.”

Bertolo alerta que é importante mapear melhor as águas subterrâneas e analisar sua qualidade, porque é um recurso que pode ser complementar nas cidades. “A água subterrânea é um recurso pouco conhecido.” A engenheira Monica Porto, da Escola Politécnica da USP, não acredita que seja possível expandir muito o uso dessas águas na Região Metropolitana de São Paulo. Em sua opinião, para ir além dos cerca de 10 metros cúbicos por segundo (m3/s) extraídos dos milhares de poços existentes, seriam necessários milhares de novas perfurações. “Mas esses 10 m3/s não podem faltar, precisamos cuidar deles.”

Monica, que já foi presidente e ainda integra o conselho consultivo da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, pensa em maneiras de assegurar a segurança hídrica para a população. Faltar água está, de fato, entre as coisas mais graves que podem acontecer numa cidade. “Somos obrigados a trabalhar com uma probabilidade de falha muito baixa.” Segundo ela, em 2009 o governo paulista encomendou a uma empresa de consultoria um estudo sobre o que precisaria ser feito para garantir o suprimento de água. O estudo ficou pronto em outubro de 2013, já em meio à mais importante crise hídrica da história do estado. Monica explica que é impossível considerar a Grande São Paulo de forma isolada, porque não há mais de onde tirar água sem disputar com vizinhos. Por isso, o estudo abrange a megametrópole, que engloba mais de 130 municípios e uma população de 30 milhões de pessoas.

As obras necessárias à melhoria da segurança hídrica já começaram, com um sistema para recolher água do rio Juquiá, no Vale do Ribeira, que deve ficar pronto em 2018. Está em fase de licenciamento ambiental a construção das barragens de Pedreira e Duas Pontes, que devem abastecer a região de Campinas. “Manaus e Campinas são as únicas cidades do Brasil com mais de um milhão de pessoas que não têm reservatório de água”, conta Monica. Não faz falta a Manaus, às margens do rio Amazonas, mas faz a Campinas, que depende do sistema Cantareira. Ela, que em casa “faz das tripas coração” para economizar água, afirma que a crise atual é importante para conscientizar a população sobre a necessidade de se reduzir o consumo. Também ressalta a importância do conjunto de medidas que precisará ser revisto em caráter emergencial. “Temos que aprender pela dor”, diz Monica, que costuma brincar que é melhor que não chova muito para não afastar a instrutiva crise. “Mas, se não chover muito em breve, vou parar de brincar: precisa chover.”

Projetos

1. Entendimento das causas dos vieses que determinam o início da estação chuvosa na Amazônia nos modelos climáticos usando observações do GoAmazon e chuva (13/50538-7); Pesquisador responsável: José Antonio Marengo Orsini (Cemaden); Modalidade: Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa – GoAmazon; Investimento R$ 57.960,00 (FAPESP).

2. Estabelecimento do modelo conceitual hidrogeológico e de transporte e destino de compostos organoclorados no aquífero fraturado da região de Jurubatuba, São Paulo (13/10311-3); Pesquisador responsável: Reginaldo Antonio Bertolo (IGc-USP); Modalidade: Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Investimento: R$ 502.715,27 (FAPESP).

Artigos científicos
MAKARIEVA, A. M. et al. Why does air passage over forest yield more rain? Examining the coupling between rainfall, pressure and atmospheric moisture content. Journal of Hydrometeorology. v. 15, n. 1, p. 411-26. fev. 2014.

MAKARIEVA, A. M. et al. Where do winds come from? A new theory on how water vapor condensation influences atmospheric pressure and dynamics. Atmospheric Chemistry and Physics. v. 13, p. 1039-56. 25 jan. 2013.

ESPINOZA, J. et al. The extreme 2014 flood in South-western Amazon basin: The role of tropical-subtropical South Atlantic SST gradient. Environmental Research Letters. v. 9, n. 12. 8 dez. 2014.

WENDLAND, E. et al. Recharge contribution to the Guarani Aquifer System estimated from the water balance method in a representative watershed. Anais da Academia Brasileira de Ciências. no prelo

OLIVEIRA, P. T. S. et al. Trends in water balance components across the Brazilian Cerrado. Water Resources Research. v. 50, n. 9, p. 7100-14. set. 2014.

“O BODE EXPIATÓRIO” (THE FIXER), um romance de Bernard Malamud, vencedor do Pulitzer Prize

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BERNARD MALAMUD
“O Bode Expiatório ou O Faz Tudo”
(The Fixer)
compre aqui
Ensaio por
 Eduardo Carli de Moraes
apresentado como trabalho de conclusão de disciplina

ao Prof. Homero Santiago (FFLCH-USP)
na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.

Film2The Fixer é considerado o magnum opus de Bernard Malamud (1914-1986), uma obra em que sua alquimia literária alçou-se à genialidade de artistas como Franz Kafka ou Albert Camus. O romance faturou os prestigiosos prêmios Pulitzer e National Book Award em 1967. Gerou também uma adaptação cinematográfica de peso, O Homem de Kiev (1968), filme dirigido por John Frankenheimer e estrelado por Alan Bates (que foi indicado ao Oscar de melhor ator por sua interpretação).

O livro de Malamud foi publicado no Brasil com dois títulos diferentes, dependendo da edição: O Bode Expiatório ou O Faz-Tudo. A pungente narrativa do livro revela como o protagonista, Yakov Bok, vítima de um complô anti-semita, acaba injustamente condenado à prisão, onde aprende, a duras penas (no pain, no gain!) algumas amargas verdades sobre a existência – ao mesmo tempo que, mesmo detrás das grades e na companhia do pensamento de Spinoza, realiza uma jornada em busca do significado genuíno da Liberdade.

Bernard Malamud foi um dos mais significativos autores norte-americanos de raízes judaicas no século 20, com uma importância equivalente à de Saul Bellow, Philip Roth ou Isaac Bashevis Singer. Mas também é possível situá-lo num quadro literário mais vasto: o crítico de literatura Alan Friedman comenta que Malamud é essencialmente um autor da tradição realista (apesar de frequentemente se utilizar de elementos góticos, fantásticos, grotescos e surreais). Em sua obra não se encontra muito pronunciada uma preocupação com inovações linguísticas ou com uma abordagem lúdica da escrita, como é o caso em importantes autores do século como James Joyce, William Faulkner, Virginia Woolf ou Guimarães Rosa. O livro tem muito mais o sabor de uma mistura do ambiente claustrofóbico e absurdista d’O Processo, de Franz Kafka, ou O Estrangeiro de Camus. É uma realização literária brilhante ao retratar um homem esmagado por quantidades cavalares de sofrimento injusto – Yakov Bok tem dimensões trágicas – mas que encontra a força para, mesmo no mais fundo do poço, rebelar-se.

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O Bode Expiatório é um romance se enquadra muito mais numa categoria que poderíamos chamar de “literatura realista de anti-herói”. Críticos enfatizam que ele se aproxima da abordagem naturalista celebrizada, por exemplo, por Émile Zola (Germinal), já que o naturalismo pode ser visto como uma radicalização do realismo, que costuma considerar os personagens como meros efeitos do ambiente e da hereditariedade. Os livros malamudianos “não são somente realistas, mas naturalistas quase ao ponto da miséria parecer pré-determinada”,  afirma Alan Friedman.

Pode-se também encontrar Malamud certos elementos do romance existencialista, principalmente o camusiano, como pode-se depreender do ambiente repleto de “absurdidade” da narrativa.  A crítica literária debruçou-se sobre a obra de Malamud com olhar cuidadoso, sendo que um corpo vasto de comentários e interpretações de seus livros foi se tornando disponível a partir dos anos 60, o que gerou, por exemplo, o livro Malamud and the Critics, organizado por Leslie Field.

Nas descrições que Malamud faz das prisões russas e dos sofrimentos que são impostos ao seu personagem, nota-se também uma grande influência de Dostoiévski, considerando-se que as imagem dos cárceres deve muito a cenários presentes em Crime e Castigo, Irmãos Karamazov e Memórias da Casa dos Mortos. Críticos destacam também que Malamud também é brilhante no sentido de não transformar esse romance num enredo detetivesco, à maneira de Agatha Christie ou Conan Doyle, já que de modo algum se transforma num livro em que a questão “quem é o verdadeiro assassino?” adquire qualquer importância. De modo que, como diz Friedberg, “o enredo whodunit nunca recebe permissão para obscurecer a trágica significação do julgamento”.

“The world” of the book is Kiev of 1911—this is between the 1905 revolution and the overthrow of Russia’s last Tsar—and the precarious political climate has created a culture of paranoia. Latent fears and hatreds have become explicit and aggressive. When a twelve-year-old Russian boy is found stabbed to death and drained of his blood, Yakov—a nonpracticing, unbelieving Jew—is accused of ritual murder. (Such accusations were not uncommon in the Christian milieu of the period.) As the charges against him grow and deform, Yakov becomes a Job-like figure in a Kafkaesque nightmare. And his predicament becomes a symbol—not only of the Jewish epic (which would make for a simple, good book), but of the world itself.

The world is the broken thing.”

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ANTI-SEMITISMOCapa4
O Bode Expiatório, romance de 1968, conta a história de um judeu pobre chamado Iákov Bok, o faz-tudo, o pau-pra-toda-obra. A história acontece logo antes da eclosão da primeira grande guerra mundial (1914-1918), às vésperas da Revolução Bolchevique (1917), numa Rússia ainda sob o jugo do tzarismo Raputinesco, com o zeitgeist infestado pelo anti-semitismo, que manifestava-se em fortes ondas de violência contra a população judia nos chamados Pogroms.

Os Pogroms começaram um pouco antes do assassinato do Csar Alexandre II em 1881 e se disseminaram na Polônia oriental e na Ucrânia numa região denominada Galícia durante todo o governo de Alexandre III, seu sucessor, já com a conivência das autoridades. Cessaram, como tal, somente com a Revolução Bolchevique de 1917. Entretanto, serão retomados pelos nazistas.

O maior alvo destes ataques eram as pequenas aldeias judias chamadas de Shtetl. Estas vilas foram marcadas pela pobreza da maior parte de sua população e por uma quase autarquia sócio-econômica. Se por um lado eram uma forma da população se defender, uns ajudando aos outros, lembrando os futuros Kibbutzim, eram principalmente um meio de manterem suas tradições ao mesmo tempo que se oferecia ao czarismo a útil concentração da população judia em certas fatias do território imperial.

A vida de Yakov Bok, mesmo antes de sua prisão, já é extremamente complicada pelo fator deste anti-semitismo extremo que vigorava na Rússia czarista daquela época. O discurso anti-semita é representado em vários momentos do livro, mas um dos mais virulentos é posto na boca do barqueiro com quem Yakov pega carona para chegar até Kiev. Este personagem expressa sem rodeios suas opiniões sobre os judeus e em seu discurso sintetiza perfeitamente algumas fortes supertições antisemitas, chegando a haver a manifestação explícita de um desejo de Extermínio Absoluto da Raça Judaica:

“Deus nos salve de todos os malditos judeus, esses parasitas narigudos, enganadores, sugadores de sangue e marcados por pústulas. Eles nos roubariam da luz do dia se pudessem. Eles contaminam a terra e o ar com o fedor de seus corpos e seus hálitos de alho, e a Rússica vai ser levada à morte pelas doenças que eles disseminam a menos que nós acabemos com eles. Um judeu é um demônio – é fato bem conhecido – e se você alguma vez arrancar sua bota fedorenta vai ver um casco dividido. (…) Dia após dia eles enchem de lixo nossa Terra Mãe e o único jeito de nos salvarmos é varrendo-os para fora. (…) Eu digo que a gente devia chamar nossos homens, armados com armas, facas, tridentes – qualquer coisa que mataria um judeu – (…) e entrar no gueto deles, o qual pode ser encontrado pelo fedor, expulsando-os de onde quer que eles estejam se escondendo – porões, sótãos, buracos de rato… -, esmagando seus miolos, esfaqueando suas vísceras de arenque, arrancando seus narizes ranhosos, sem nenhuma exceção feita para jovens ou velhos, porque se você poupá-los eles se reproduzem como ratos e então o serviço tem que ser feito tudo de novo…”

Iakov Bok, depois de deixar seu shtelt, indo em busca de um futuro mais radioso em Kiev, tem que se adaptar às dificuldades do tempo: esconde sua identidade judia, assume um nome russo, arranja um emprego, e passa a frequentar um distrito proibido para judeus – não sobreviveria se não o fizesse. Certo dia, morre um menino russo, encontrado esfaqueado numa gruta próxima à olaria onde Iákov trabalha e dorme.

O fato é atribuído à ação de judeus que teriam sangrado o menino até a morte por supostos motivos religiosos, para coletarem seu sangue e confeccionarem matzos, um pão sem fermento, afim de celebrarem a Páscoa judaica. Por mais absurdas que sejam as acusações, Iákov é acusado pelo assassinato e preso. Ele havia levantado algumas suspeitas, não de ter cometido o crime mas de ser judeu, ao ser visto anteriormente com um judeu ortodoxo à quem ele ajudou dando abrigo numa noite gelada. Ele sofre um processo iníquo e é torturado e humilhado na prisão enquanto aguarda a oficialização de sua acusação por mais de dois anos.

A descrição dos maus-tratos sofridos na cadeia, que se prolonga por centenas de páginas, vai comunicando ao leitor o estado de horror prolongado por que passa o personagem: as sopas que lhe servem vêm com ratos mortos boiando no caldo; um excesso de tempo é passado na solitária e sob o ataque constante das tentativas de envenenamento por parte dos carcereiros; os cobertores eram insuficientes para abrigrar contra a friaca de invernos rigoríssimos; entre muitas outras técnicas de tortura empregadas contra o prisioneiro….

Mas os tormentos físicos são pequenos frente aos tormentos psicológicos de Yakov Bok: A solidão completa, a ausência de amigos e de visitantes, o tédio mortal, o medo da tortura e da morte, a indefinição de seu destino, a espera interminável, a indignação cega, a incapacidade de compreender sua situação, levam-no ao seguinte estado de espírito eivado de confusão e absurdismo: “muita coisa tinha acontecido que não fazia o mínimo sentido”. Ele não consegue se perceber como alguém que esteja sendo justamente punido, é claro, mas como uma “vítima acidental”, um tremendo dum azarado. Diz o narrador – “Em uma noite sombria uma grossa rede negra tinha despencado sobre ele somente porque ele estava debaixo dela, e apesar dele correr em todas as direções ele não conseguia se desembaraçar de suas pegajosas amarras.”

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A HISTÓRIA REAL

Kulturgeschichte / Religionsgeschichte / Juden / 19. Jh.

Plundering the Judengasse (Jewish Street) in Frankfurt am Main on 22 August 1614

Plundering the Judengasse (Jewish Street) in Frankfurt am Main on 22 August 1614

Film4A história de Iakov Bok é na verdade a história de Mendel Beilis, judeu que foi perseguido pelo czarismo e julgado em Kiev em 1913 – um caso de grande repercussão na opinião pública e na imprensa do mundo todo na época. Malamud praticamente retoma os fatos da história tal qual aconteceu. Cria inspirado nestes elementos históricos factuais, transpostos para o livro de modo fidedigno. O produto literário final demonstra a “mão firme de um talentoso artesão”, como comenta o crítico Maurice Friedberg. A dificuldade na escrita de uma obra desta está, como comenta o mesmo crítico, em que certos eventos históricos “ofuscam com sua grandiosidade e seu horror qualquer coisa que uma imaginação artística poderia imaginar.”

Conhecemos casos na História de grandes escritores que colocam suas obras na defesa de um personagem público injustiçado – como fez por exemplo Émile Zola no caso Dreyfus. A peculiaridade do caso Beillis, no entanto, é que este “não estava sendo acusado como um indivíduo, e em seu caso não era um simples equívoco judiciário, ainda que trágico, o que estava em jogo” – como comenta Friedberg. Beilis era um mero peão num jogo de xadrez social muito mais vasto, era um destes que Bob Dylan retratou em seu folk “Only a Pawn In Their Game”. Era um homem “pessoalmente tão insignificante e sem cor a ponto de ser de nenhum valor para seus carcereiros e perseguidores exceto como um símbolo da Judeidade Russa – e foi esta que, com efeito, foi colocada sob julgamento como uma comunidade.” (pg 276).

Ou seja, não se trata de um caso da justiça cometendo um erro involuntário, mas sim de uma espécie de conspiração que procura transformar um caso de homicídio comum em um caso de homicídio com motivações religiosas – de modo que, se ficasse provado que Beillis de fato tinha assassinado o garoto cristão com motivos ritualísticos, para preparar os matzos de Páscoa, a culpa podia ser estendida aos judeus em geral.

Como comenta Maurice Friedberg, o caso Mendel Beilis acabou num impasse. “Apesar dele ter sido declarado inocente do crime, o tribunal não expressou nenhuma opinião sobre a possibilidade de que tal crime pudesse ter sido de fato cometido por algum judeu radical”, ou seja, a hipótese do homicídio ritual não foi descartada, mas somente este indivíduo específico foi isento de responsabilidade. “Também nada foi feito para punir aqueles que iniciaram uma histérica campanha contra Beillis antes de seu julgamento formal, e por inevitável extensão, contra os Judeus em geral.”

Ou seja, a calúnia contra os Judeus não foi desfeita e as falsas acusações feitas contra eles permaneceram impunes. Com a chegada da Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e, posteriormente, o Holocausto tomando conta de uma Europa assombrada pelo fantasma do nazi-fascismo, esse caso Beillis caiu no ostracismo. A história só voltou à tona pelo esforço de 2 autores americanos judeus – o próprio Malamud e o historiador e jornalista Maurice Samuel, que escreveu Blood Acusation.

Friedberg diz que “apesar da experiência nazista do passado recente ter inevitavelmente diminuído o impacto da história de Beillis sobre o leitor moderno, não se pode dizer que esta acusação [de uso ritual de sangue cristão] foi irrevogavelmente desacreditada como um boato anti-semita completamente falso. (…) Ela continua a aparecer periodicamente em várias partes do globo, sempre servindo à mesma causa. (…) P. ex., um pouco depois da destruição do império Nazista, um grupo de judeus sobreviventes de campos de concentração foi massacrado pela polícia da Polônia na cidade de Kielce (em 1948).”

Robert Alter comenta que este caso Beillis foi na verdade “um cruel prenúncio das possibilidades do século 20” , uma das primeiras ocasiões em que o governo utilizou a “grande mentira”, através da qual uma poderosa burocracia subverte totalmente o senso moral de seus membros individuais. “O caso Beiliss é uma das primeiras ocasiões públicas notáveis neste século em que a ficção de Kafka de uma acusação arbitrária, de uma realidade governada por uma lógica inescrutavelmente insana e perversa, tornou-se fato histórico.”

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A QUESTÃO DE DEUS

Desde o começo do livro Yakov Bok é insistentemente flagelado, ferido, dilacerado e injustiçado feito um saco-de-pancadas humano. Poucos romances na história da literatura descrevem um martírio comparável a este em grau de sofrimento suportado e de horror injusto sofrido. Talvez por isso ele já nas primeiras páginas já apareça como um homem extremamente amargo e desconsolado. Ele se pergunta o que fez para ser tão amaldiçoado, mas não encontra em si nenhuma culpa que explique porque a vida o “espancou” tanto – sua “maldição” foi um fardo que caiu sobre um completo inocente (“Não quero que as pessoas sintam piedade de mim ou se perguntem o que fiz para ser tão amaldiçoado. Eu não fiz nada. Foi um “presente”. Sou inocente.” )

Iakov Bok, amargo e desiludido depois de tanto sofrimento experimentado, não consegue entender porque há tanto sofrimento e tanta miséria no shtetl (e no mundo em geral) se Deus é bom. Se ele existe, qual sua utilidade? “Ele não nos vê e não se importa conosco” – conclui Iakov, decidido a abandonar sua tradições judaicas e tornar-se um livre-pensador. Por isso, nos curiosos diálogos que ele tem com seu amigo, que tenta mantê-lo no “bom caminho” da religião, Yakov é sempre um poço profundo de azedume e de sarcasmo sagaz. Dizem-lhe: “Pelo menos Deus está conosco” e ele retruca: “Ele está conosco até que os cossacos venham galopando, aí ele está em outro lugar…”.Dizem-lhe que ele não deve ler os “livros errados” e que deve se manter fiel às Escrituras e ele retruca: “Não existem livros errados. O que é errado é o medo deles.”.

Suplicam-lhe: “não esqueça seu Deus!” E Yakov, num trecho impregnado de revolta contra o Criador, manda: “Quem esquece quem? O que eu ganho dele a não ser uma pancada na cabeça e um jato de mijo na cara? Então o que há para ser venerado Nele? (…) Nós vivemos num mundo onde o relógio bate rápido enquanto ele está em sua montanha intemporal fitando o espaço. Ele não nos vê e Ele não se importa. É hoje que quero meu pedaço de pão, não no Paraíso.” Na prisão, Yakov entra em uma discussão no mesmo tom: Shmuel diz-lhe: “Não culpe Deus pela miséria”, e Yakov replica: “Eu o culpo por não existir. Ou, se ele existe, ele está na Lua ou nas estrelas, mas não aqui. (…) Não posso ouvir a voz de Deus e nunca pude. (…) Tudo que eu jamais disse a ele, Ele nunca me respondeu. Silêncio é o que eu agora dou em troco.”

Baruch Spinoza retratado por Franz Wulfhagen, 1664

Baruch Spinoza retratado por Franz Wulfhagen, 1664

Esta concepção de Deus que Yakov Bok acaba por formar acaba por se assemelhar à de Spinoza, filósofo que, tanto em sua concepção de Deus, quanto em suas conclusões éticas, afastou-se da tradição judaico-cristã, a ponto de ser considerado herético o bastante para ser excomungado. Por um lado, Spinoza não concebe Deus como uma divindade transcendente, interventora, “separada” do mundo que conhecemos, conduzindo-o “de cima” como um rei, um cosmocrata, como normalmente é visto o Deus nas religiões monoteístas. Seu Deus confunde-se com a Natureza, razão esta que levou-lhe a ser chamado de panteísta ou mesmo ateísta por muitos.

Essa ruptura com os cânones religiosos acaba tendo o efeito complementar da completa derrubada da idéia de um Paraíso no além, alcançável nesta vida através de certos atos que agradariam à divindade julgadora e justiceira que o monoteísmo concebe. A caída dessa concepção religiosa, que via na resignação, narenúncia aos prazeres sensíveis e no sofrimento aceito como um bem (que somaria pontos para a conquista do Céu) faz com que Spinoza volte seu olhar para a vida presente, que é tudo que há.

Seria um engano pensar que a eternidade, como sugere o cristianismo, abrirá suas portas ao homem somente no momento da morte – e somente para aqueles que o merecerem. A eternidade já está aqui – é o próprio presente, que não cessa nunca de ser presente, eternamente presente. Yakov Bok também rompe com a tradição monoteísta e deixa de acreditar num Deus pessoal, transcendente, interventor, sentimental, compassivo, justiceiro, que se preocuparia com os destinos humanos e tentaria auxiliar suas criaturas em momentos de apuros.

Em todo o romance, mesmo nos momentos de sofrimento mais extremo, nunca vemos o personagem se render à oração – ele, no máximo, recita frangalhos de salmos bíblicos, mas nunca com a mínima esperança de estar sensibilizando as dinvindades. O Deus de Yakov Bov é um Deus indiferente. Como diz Spinoza na Ética V, “Deus não tem amor nem ódio por ninguém”. É isso que Yakov descobre a duras penas.

Por isso, o personagem chega a uma compreensão do Spinoza bastante adequada, mesmo sem ter tido uma educação formal /erudita no spinozismo (ele não tem muita tendência ao “intelectualismo”, aliás: diz por exemplo – “Se eu tenho alguma filosofia, é que a vida poderia ser melhor do que é.”). Yakov Bok em seus “flashes de percepção” da filosofia de Spinoza, que explica se utilizando de fórmulas bem pessoais e ditas em linguagem popular como: “Deus e a natureza são uma e a mesma coisa”; “a Natureza inventou a si mesma e também ao homem”; “Ou Deus é uma invenção nossa, ou é uma força na Natureza mas não na História. Uma força não é um pai”; “a mente do homem é parte de Deus”; “este Deus, apesar de preencher mais espaço, tem menos a fazer”; “a liberdade está em seu pensamento – é como se o homem voasse acima de sua própria cabeça nas asas da razão… você se une ao universo e esquece suas preocupações…”; “a vida é a vida e não tem sentido chutá-la para o túmulo…”.

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A QUESTÃO DO PRECONCEITO E DA SUPERSTIÇÃO

Yakov é um personagem que representa um livre-pensador, livre dos preconceitos e superstições que Spinoza tanto criticou, mas que se vê rodeado por um “clima cultural” profundamente marcado pela superstição, especialmente aquela que se refere aos judeus, tidos como extremamente temíveis, perigosos e sanguinários. No romance, há o discruso de um padre que sintetiza bem a quê extremos de preconceito se chegava na tentativa de acusar (falsamente) os judeus de crimes de assassinato ritual. Este padre se dirige assim aos cristãos em um inflamado discurso:

“Minhas queridas crianças, se as entranhas da terra se abrissem para revelar a população de homens mortos desde o começo do mundo, vocês ficariam pasmas de ver quantas crianças cristãs inocentes foram torturadas até a morte por judeus quem odeiam Cristo. Através dos tempos, como descrito nos livros sagrados deles, a voz do sangue semítico os dirige a dessacralizações e horrores impronunciáveis – por exemplo, o Talmud, que compara o sangue à água e ao leite, e prega o ódio aos gentios, que são caracterizados como sendo não-humanos, nada mais que animais…

Consequentemente houve uma multidão de crianças inocentes massacradas, cujas lágrimas não comoveram seus assassinos a serem misericordiosos… O assassinato ritual pretende re-encenar a crucificação de nosso Senhor. (…) Diz-se que o homicídio de um gentio – qualquer um – acelera a vinda do tão aguardado Messias deles, Elijah, para quem eles etrenamente deixam a porta aberta mas que nunca aceitou o convite para entrar e se sentar no trono vazio. Desde a destruição do Templo deles em Jerusalém não existiram mais altares de sacrifício para animais nas sinagogas, e então o sacrifício de gentios, em particular crianças inocentes, é aceito como um substituto adequado.

(…) No passado registrado, o Judeu utilizou o sangue cristão de muitas maneiras. O sangue foi utilizado em rituais de bruxaria e magia negra, e para poções do amor e envenenamento de poços d’água, fabricação de um veneno mortal que espalhou a praga de uma nação para a próxima – uma mistura de sangue cristão de uma vítima assassinada, a urina judia deles, as cabeças de serpentes venenosas, e até mesmo uma hóstia roubada e mutilada – o corpo sangrando do Cristo ele mesmo. (…) Naquele tempo eles consideravam nosso sangue como a mais efetiva terapêutica para a cura de suas doenças. Eles o utilizaram, de acordo com os velhos livros de medicina deles, para curar mulheres depois do trabalho de parto, parar hemorragias, curar a cegueira infantil e aliviar as feridas da circuncisão…”

Isso mostra, num discurso extremamente denso e concentrado, o grau de acusações falsas e superstições absurdas que estava no “ar dos tempos” e fazia com que Kiev fosse, como descreve um personagem, “uma cidade medieval cheia de superstição selvagem e misticismo” e que sempre foi o “coração do reacionarismo russo.” Spinoza, no TTP, comentava que “não há nada mais eficaz do que a superstição para governar a multidão.” – e a Kiev de The Fixer é um ambiente social que comprova essa tese.

 

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A QUESTÃO DA LIBERDADE E DO DESPERTAR POLÍTICO

CapaYakov Bok chega a uma concepção de Deus que é semelhante à concepção de Deus de Spinoza e, desse modo, não pode mais conceber que a solução para a sua situação crítica poderia vir “de cima”, já que a hipótese de uma divindade interventora e que se sensibiliza com os destinos humanos havia sido descartada. Ao mesmo tempo que Yakov atinge esse “ateísmo”, percebe-se também como uma figura histórica de relevância, uma personagem pública que faz parte de uma quadro social mais vasto. Por isso todo o processo de prisão e martírio de Yakov acaba conduzindo a um certo “despertar político”.

Durante todo o livro, vemos a evolução ética do personagem Iakov. O devir político de Iakov é uma mudança que se torna necessária. Num de seus delírios na prisão se vê falando novamente com Bibikov e lhe diz: “Algo em mim se transformou. Não sou mais o mesmo homem que era. Agora tenho menos medo e mais ódio.”Conforme ele vai tomando consciência que ser judeu é sua condição no mundo e que portanto ele tem sua posição na cena histórica, Iakov vai conquistando mesmo no cárcere um viés de liberdade.

Yakov, que no começo do romance é um “zé-ninguém”, que não parece ter grandes preocupações na vida além de escapar de seu vilarejo para tentar começar uma vida nova em Kiev, não tendo a mínima inclinação ou atração para a vida política, acaba descobrindo, no fim do romance, que de modo algum poderia se considerar uma pessoa politicamente “neutra”. Uma de suas mais essenciais descobertas na prisão é a de que “não existe homem apolítico, e muito menos quando você é um judeu”. Por efeito desse “despertar” político, Yakov, no fim do romance, transformou-se praticamente num revolucionário, que tem fantasias de assassinar o czar e que está certo de que existe muito mais coisas erradas na Rússia do que o anti-semitismo.

Yakov sente, quando acorrentado e torturado no cárcere, que ele não conseguia, pelos meros poderes da Razão, libertar-se. Sua conclusão parece ser de que sem o mínimo de liberdade física e de proteção por parte do Estado, não é possível atingir a salvação pela Razão e pelo conhecimento da Natureza que Spinoza sugeria. No TTP, Spinoza comenta:

“Dos fundamentos do Estado resulta com toda evidência que o seu fim último não é dominar nem subjugar os homens pelo medo e submetê-los a um direito alheio; é, pelo contrário, libertar o indivíduo do medo a fim de que ele viva, tanto quanto possível, em segurança, isto é, a fim de que mantenha da melhor maneira, sem prejuízo para si ou para os outros, o seu direito natural a existir e a agir. O fim do Estado, repito, não é fazer os homens passar de seres racionais a bestas ou autômatos: é fazer com que a sua mente e o seu corpo exerçam em segurança as respectivas funções, que eles possam usar livremente a razão e que não se digladiem por ódio, cólera ou insídia, nem se manifestem intolerantes uns para com os outros. O verdadeiro fim do Estado é, portanto, a liberdade.”

Deste modo, pode-se ver o romance como um longo e doloroso percurso que conduz um personagem simplório e auto-centrado a se transformar em algo que se assemelha a um “símbolo ético”, como sugere Robert Alter. Isso porque Yakov Bok, ao se libertar dos preconceitos finalistas e religiosos, ao deixar de esperar auxílio dos céus, ao despertar para a dimensão política de seu destino, toma em suas próprias mãos as rédeas de sua vida.

O sofrimento que ele suportou por toda a vida, e que parecia absurdo, injustificável, imerecido, adquire para ele uma espécie de sentido – que não é um sentido religioso, como seria se ele acreditasse que sua dor seria recompensada com uma eternidade de delícias no Paraíso. Friedman comenta que“Ele não é um herói trágico clássico, cujo sofrimento é magnífico por causa de sua grandeza de caráter e pela altura da qual ele cai; pelo contrário, ele é um pobre zé-ninguém que se distingue apenas pela miséria e por seu senso de vitimização. Mas porque ele os abraça, e porque, rejeitando um Deus que parece obcecado com a perpetuação da injustiça, ele encontra algo em si mesmo e em sua vida para afirmar, e se torna um paradigma de um novo tipo de herói (…) que triunfa porque ele persevera.”

Afinal de contas, ele, ao contrário do crente judaico-cristão, que insiste em ver no sofrimento um sentido sobrenatural (seja como uma punição divina, seja como algo que tem sua razão de ser num esquema maior…), chega à conclusão: “A única coisa que o sofrimento me ensinou é a inutilidade do sofrimento”. Mas, ao mesmo tempo, ele percebe que está numa situação em que o sofrimento é inevitável – e então conclui: “se eu devo sofrer, que seja por algo”.

De repente, iluminado por seu despertar político, seu sofrimento ganha a possibilidade de deixar de ser absurdo e se tornar significativo. No fim do percurso, afinal, Yakov parece alcançar um degrau ético superior àquele em que estava no começo do romance, como prova quando se recusa ao suicídio e a uma falsa confissão ou acusação. Quase como um herói existencialista, ele parte da noção de um mundo absurdo, onde o sofrimento é injustificável e Deus é indiferente, e depois escala degraus éticos até a adoção de uma postura de revolta, de luta e de sofrimento posto a serviço de algo maior. Como conclui Friedman: “Yakov, mesmo com sua alienação inicial e seu agnosticismo contínuo, consegue enfim conquistar o direito de sofrer pelos outros, e começa a reconhecer que ele é responsável por todo o seu povo, aquela nação de tão prolongados sofrimentos”.

Por isso o romance de Malamud, muito mais do que somente transposição para a literatura de um evento histórico (e um dos mais emblemáticos da decadência do czarismo russo e da iminente eclosão de Revolução de 1917), pode ser visto como uma obra de poder universal e atemporal. Como em Kafka, mostra-se um ser humano esmagado por poderes superiores que ele não consegue compreender nem aceitar; mas, como em Camus, sua situação inicial de sofrimento absurdo e gratuito vai adquirindo novos contornos conforme ele desperta para a ação política e para a revolta existencial. De mera vítima torturada e apática, ele se ergue, no fim das contas, como um símbolo ético que carrega numa mão uma bandeira quase marxista/revolucionária (“É hoje que quero meu Pão, não no Paraíso!”), e noutra um emblema existencialista, onde ostenta a prova viva do que significa passar “do absurdo à revolta”.

Eduardo Carli de Moraes
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“A GUERRA DO COMEÇO DO MUNDO” (POR ELIANE BRUM)

1A GUERRA DO COMEÇO DO MUNDO

Uma reportagem de Eliane Brum, com fotografia de Lilo Clareto. Originalmente publicada em 2001.

“Roraima e o mundo abriram a semana passada com a notícia de mais um suposto sangrento conflito entre muitos que já ocorreram no barril de pólvora chamado município de Uiramutã, localizado no coração da polemizada reserva indígena Raposa-Serra do Sol. A história recente mostra um cordão bastante extenso de atos de vandalismo e atividades terroristas. O menor sinal de quebra da ordem pública é suficiente para explodir como uma bomba bem ao estilo do conturbado Oriente Médio. As notícias que chegaram na manhã de domingo à capital roraimense, e por certo extrapolaram as divisas do Estado, cruzando as fronteiras, indo ter ressonância imediata em países do Primeiro Mundo, eram de que índios ligados ao Conselho Indígena de Roraima (CIR) teriam invadido as obras de construção do aquartelamento do 6o Pelotão Especial de Fronteira, tocando fogo nas dependências e trocando tiros com os militares baseados naquele local. (…) Mas todo o alvoroço registrado no intervalo de 21h30 a 22 horas de sábado não passou de alarme falso. O Exército não conseguiu estabelecer se era índio, branco ou marciano o único ser que chegou a ser visto apenas pelo sentinela. (Francisco Espiridião, jornal Tribuna, 2 a 8/9/2001)

O dedo acusa a Via Láctea. “Lá!”, berra o homem. À beira do Rio Branco, em Boa Vista, ele levanta-se intempestivo. Os filhos que brincavam ao redor da mesa se imobilizam. Os clientes do Meu Caso, bar de petiscos, suspendem as conversações. Esquadrinham o céu em alerta. “Os americanos espionando a Amazônia”, esclarece. Satisfeito com a perspicácia, volta a sentar-se. Missão cumprida. Perto dele ninguém será enganado por satélites vestidos de cordeiro.

Encravado no extremo norte do mapa, Roraima é assim, 324.152 pares de olhos em ação de vigília permanente. Os demais 172.675.848 brasileiros desconhecem, afinal ainda hoje confundem Roraima com Rondônia, Boa Vista com Porto Velho, mal suspeitam do que se passa nas sobrancelhas do país continental. Sabem mais hoje sobre o Afeganistão que sobre o ex-território, transformado em Estado pela Constituição de 1988. Ligados na CNN, os brasileiros não adivinham. Mas Roraima está em guerra.

Enclave de brancos cercados de índios por todos os lados, coleciona alguns dos títulos mais curiosos do Brasil sem que o Brasil perceba. É o Estado mais aborígine, com 57% do território ocupado por 30 mil índios. É o mais despovoado: cada um dos 324 mil habitantes, 200 mil deles na capital, tem, em tese, 1,5 quilômetro quadrado à disposição. Representa 0,2% na população do país, motivo pelo qual nem sequer é visitado pelos candidatos a inquilinos do Planalto. Os 184 mil eleitores são pouco menos que a zona eleitoral do bairro de Jabaquara, em São Paulo. No terceiro milênio ainda está em fase de colonização, eldorado de 1.000 novos migrantes por mês, metade deles recém-chegada do Maranhão de Roseana Sarney.

À noite, Roraima fecha. Por terra, ninguém sai, ninguém entra. O Estado tem duas estradas asfaltadas. A BR-401 liga a capital a Bonfim, na fronteira com a Guiana, mas quem quiser cruzar em direção ao país vizinho precisa chegar antes das 17 horas, o último horário da balsa. Em corte longitudinal, a BR-174 une Boa Vista a Manaus e a Pacaraima, vizinha da Venezuela. Ao norte da rodovia, a fronteira com Santa Elena de Uiarén fecha às 22 horas. Ao sul, permanece trancada, com cancela e tudo, das 18 às 6 horas: os 125 quilômetros na divisa com o Amazonas cruzam a reserva dos uaimiris-atroaris, que não querem nem ouvir falar de brancos circulando na madrugada.

Roraima é uma terra isolada, ligada ao resto do país apenas por uma transfusão de recursos — intensa e de mão única — de Brasília para o Estado. Mais perto de Miami que do Rio de Janeiro, a capital vive em crise de identidade. Quando um roraimense viaja, anuncia aos amigos: “Vou para o Brasil”. A primeira pergunta aos “estrangeiros” é: “Vieram do Brasil?” Por Brasil, entende-se tudo o que existe do Amazonas para baixo. Para cima está Roraima, cuja geografia nem mesmo se enquadra na canção de Chico Buarque, sobre não existir “pecado do lado de baixo do Equador”. Quase 100% do território de Roraima fica acima, no Hemisfério Norte. O senso comum nem sequer reconhece um paradigma geográfico: o Monte Caburaí é o ponto mais setentrional do país, mas ao sul de Roraima vive se repetindo a clássica “do Oiapoque ao Chuí”. A síntese mais famosa do brasileiro é Macunaíma, o herói dito sem caráter do modernista Mário de Andrade. Pois o mais brasileiro dos brasileiros é uma lenda dos índios macuxis, de Roraima. Nunca se dá o crédito.

Assim, isolado, maltratado até, e um tanto órfão, Roraima vive a guerra do começo do mundo. E ninguém se importa. O Brasil não dá importância a Roraima, mas Roraima importa-se muito. Boa parte dos habitantes acredita piamente que será tomado do Brasil a qualquer momento. Espremidos entre a Venezuela, a Guiana e o Amazonas, defendem a tese de que o império de George W. Bush está de olho no rico subsolo roraimense, com suas jazidas de ouro, diamantes e cassiterita. As organizações não-governamentais e os missionários religiosos usam a desculpa de proteger os índios, mas não passariam de testas-de-ferro do ávido Primeiro Mundo. Quando todas as terras indígenas forem demarcadas, os nativos vão declarar independência, de imediato o país será reconhecido pela ONU e o território miliardário anexado. Essa tese é defendida até em documentos entregues a Fernando Henrique. Graças a ela, o Estado é partido em trincheiras. Até mesmo geográficas: floresta à esquerda, lavrado à direita. Assim, no céu de Roraima, nem as estrelas cadentes escapam à suspeição.

Os brasileiros, mais preocupados com o noticiário do centro econômico e político nacional (leia-se o estreito circuito entre São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília) ou com os ataques sangrentos de Bush e Bin Laden, têm perdido o mais fascinante capítulo da história do país. Em pleno século XXI, Roraima protagoniza a última guerra entre brancos e índios. E várias pequenas batalhas entre índios e índios. É o Brasil de 500 anos atrás acontecendo agora. Em tempo real, para manter o jargão da moda. Sem a CNN nem Pero Vaz de Caminha, out of Brazil, out of the world.

Num dia comum no oeste de Roraima, um ianomâmi da aldeia Xaruna chamado Chicão espanca a mais bela de suas duas mulheres na mata. Abandona a adolescente desmaiada, a cabeça aberta como uma flor de sangue. Ao voltar sozinho para o xapono, a casa comunitária, o povo se espanta, se agita. Os índios perseguem a menina pela floresta, perscrutam os sons. Só encontram um rastro de sangue ainda morno. Desolados, concluem que fora devorada por uma das onças que patrulham o território.

Numa manhã comum no sul de Roraima, a maranhense Cleonice Conceição, de 36 anos, despenca do ônibus, traz no corpo a poeira dos caminhos. A fome azeda o estômago, o medo escala o esôfago. Pela mão arrasta os dois filhos, Silene, de 15, e Rosenildo, de 8, assustados como ela, resignados também. Carregam um colchão emprestado, meia dúzia de roupas, as escovas de dentes penduradas na caixa de papel. Cleonice não tem um centavo. Gastou tudo o que amealhou com a venda de um guarda-roupa e de uma mesa na viagem de Santarém, no Pará, a Rorainópolis, a porta de entrada de Roraima. Não tem para onde ir.

Numa tarde comum no leste de Roraima, Maurício Habert Filho, de 54 anos, supervisiona a labuta dos guianenses contratados para a safra de melancias, suor barato e abundante na região. O pensamento atravessa o oceano. O agricultor vaga pelas ruas de Paris, cujas luzes não conhece. De lá veio seu pai, Maurice Habert, ladrão e desertor da Primeira Guerra Mundial, fugitivo de prisões da Guiana Francesa. Depois de 26 dias numa balsa feita de folhas, bebendo água da chuva, aportou na costa da Guiana Inglesa com cinco parceiros salgados, cozidos em sol, em farrapos por dentro e por fora. O sexto tombara na travessia. Perfurou a selva e alcançou o Brasil em 1941. Tornou-se pioneiro no território de ninguém.

Maurício está decidido a limpar o nome do patriarca. Empenha-se em desmentir a teoria de que Maurice foi cúmplice de Papillon, herói da vida e do cinema. Pior ainda, quase engasga ao contar, que Maurice era homossexual. Tudo uma confusão com outro prisioneiro de mesmo nome, como tem provado em documentos que vão e voltam da França. O filho só pensa na honra do pai.

Numa noite comum no norte de Roraima, o sentinela do 6o Pelotão de Fronteira, quartel em construção no município de Uiramutã, sobressalta-se. Adivinha um vulto na escuridão, despacha um foguete sinalizador para o alto. Abaixo, a comunidade, em vigília permanente de olhos e intrigas, interpreta: “Os índios invadiram o quartel”. Imediatamente, armam-se de paus e pedras. Marcham em direção à aldeia, no outro lado do igarapé que divide brancos e índios em trincheiras de ódio. “Vamos botar fogo na maloca”, é o grito de guerra.

É um dia comum em Boa Vista, capital de Roraima. A bordo do ultraleve, Walter Vogel, de 56 anos, apalpa o horizonte com os olhos azuis do berço suíço de Berna. O pai plantava em 7 hectares no país seis vezes menor que Roraima. Para Walter faltava ar no cenário claustrofóbico. Se fez homem em busca de espaço e, com pouco mais de 20 anos, carregou a mulher pelos descaminhos da América do Sul à procura de uma pátria para o coração. Só a encontrou 19 anos atrás, ao parar no meio da ponte sobre o Rio Branco. Auscultou o peito, pronunciou: “Este é o meu lugar”. A 3 mil metros, desliga o motor e plana, torna-se um homem-pássaro no país que escolheu.

A oeste de Walter Suíço, a floresta proibida dos ianomâmis, 9,7 milhões de hectares estendidos como um tapete verde e úmido sobre Roraima e Amazonas, assemelha-se a um universo primordial. Rios de sucuris gigantes, cachoeiras cinematográficas, árvores eternas. Quase o dia da criação. Os índios, feitos dessa mesma matéria original, se mimetizam à selva, invisíveis ao primeiro olhar, aconchegados ao ventre de Omamë, o precursor de tudo segundo sua cosmologia. Revelam ao cibernético século XXI, agora tragicamente confrontado com as diferenças que julgava encobrir, um modo de viver semelhante ao dos primeiros ancestrais. Dos povos mais isolados do planeta, travam a guerra do começo do mundo enquanto o planeta globalizado ameaça manchar a Terra com um ponto final.

Chicão, essa espécie de tataravô mítico do imaginário ocidental, duvida do rastro da mulher que espancou. Não sente no sangue o cheiro da morte. Fareja, descobre. Sua índia foi raptada por um makabei. Não vacila. Precisa retomar a fêmea. Assim manda o costume. Começa mais uma batalha entre irmãos.

A região que se estende por Surucucu, Parafuri e Arathaú é a mais belicosa do território, dilacerada por brigas que ninguém sabe como começaram. Assemelham-se ao horror eterno entre judeus e árabes. Impossível localizar o assassinato original. Ou o primeiro rapto de mulher.

Os ianomâmis cremam seus mortos, guardam as cinzas por meses, marcam o dia em que serão banqueteadas com mingau de banana. A cabaça que guarda os despojos existe para lembrar o imperativo de vingá-los. Assim, para cada um que tomba numa disputa, outro cairá em seguida, numa interminável fogueira de ódio. Desde que 40 mil garimpeiros alcançaram o território em busca de ouro nos anos 80, a tradição guerreira tornou-se a segunda causa de morte. Os brancos carregaram as espingardas para o útero da selva, com elas compraram o silêncio e mais tarde a cumplicidade dos índios. Desequilibraram os conflitos.

“Quem criou vocês? De onde vieram? Qual é sua raiz?”, indaga Davi Kopenawa, o grande líder ianomâmi, um dos poucos a falar português. “Antes, morriam dois dos nossos. Vocês trouxeram as espingardas, inventaram as bombas, os aviões, a guerra pesada. Trouxeram as doenças. E agora morrem 200, milhares.” Davi peregrina pelo território numa campanha de desarmamento. Troca as armas dos índios por panelas de alumínio.

Nem panelas tem a maranhense Cleonice. “Só vim com a coragem e a fé em Deus”, diz, falando mais com os olhos de fogo perpétuo dos migrantes nordestinos que com a boca. Tem menos dentes que esperança. Rorainópolis, aonde ela chega, é uma das cidades que mais engordam no Brasil: saltou de 7.500 habitantes em 1996 para 17.500 no último censo. Os pés de êxodo de Cleonice preenchem as estatísticas, ela e o exército de refugiados eternos na própria pátria, em busca da terra prometida que sempre escapa como se o mapa inteiro fosse de areia movediça.

Cleonice procura os conhecidos de janela em janela, encontra abrigo numa casinha de porta vermelha de outro retirante. Instalam-se ela, suas crianças e suas trouxas, sonhando cada vez menos, cada vez mais escuro. Corre até a rodoviária, o centro de tudo num lugarejo que só se multiplica no desespero. Encontra Sindi da Silva, a moça de coração generoso e língua afiada, que vende bilhetes mais de ida que de volta e fitas piratas com músicas de marido traído e “outras para quem só está treinando para corno”. Sindi está alarmada, não se conforma, uma paca devorou a perna de uma conhecida no centro da cidade. “Tem cabimento criar uma paca em casa? Por que não cria galinha? Diz que tem amor pela paca, alimentada na mamadeira, que mundo”, apavora-se. Cleonice, aflita, dá o recado, “quando o meu homem chegar diga que estou na casa de porta vermelha”.

Sindi promete, acostumada que está, também ela vinda de outro canto. Por ali são todos forasteiros, todos teimosos. E todos fazendo de conta que aquele rincão poeirento, feioso e pobre, com tanto calor quanto moscas, é o éden bíblico que os pastores não se cansam de lhes prometer. Só para ao final descobrir que por paraíso esperam apenas um lugar de onde não sejam expulsos por mais uma fome, cansados de andar, com mais bolhas na alma que nos pés. Então enfeitam o que lhes coube no mundo com flores de plástico, almofadas de franjas, tapetes de pavões do Oriente, penduram provérbios pelas paredes, reúnem sua pequena fortuna mais de desejos que de concreto. “Cheguei com R$ 10, três panelas, duas delas furadas, e uma mulher grávida”, conta Braulino da Silva, de 51 anos. “Agora tenho casa e trabalho pro governo. A casa fica na frente do cemitério, mas não faz mal, é pra lá mesmo que eu vou um dia e assim já encurta o caminho.” No balcão de Sindi ele se prepara para fazer uma ligação, mandar um recado para a família baiana. “Que venham, melhor que aqui só no Céu.”

Bem mais perto do inferno fica Uiramutã. Brancos e índios estão decididos a resolver no pau, talvez nos tiros, quem é o dono daquele pedaço de Brasil. Trata-se de 1,7 milhão de hectares de cerrado, demarcados, mas nunca homologados, povoados por 12 mil macuxis, ingaricós, uapixanas, taurepangues e patamonas. Sobre essa terra desenham-se as plantações de arroz dos gaúchos, única cultura em que Roraima é auto-suficiente. Nela se escondem os diamantes que movem a cobiça tanto de garimpeiros avulsos, pobres e estropiados, como das grandes mineradoras. E, por fim, elevam-se as vozes dos políticos — e seus interesses — em nome do “desenvolvimento do Estado”. Na última guerra entre brancos e índios, 500 anos após o Descobrimento, os dois lados só comungam de uma ameaça: se o governo federal não se apressar, “vai ser um banho de sangue”.

O tuxaua de Uiramutã, Orlando da Silva, de 58 anos, confere a posição do inimigo pela janela. “Estou cercado”, constata. Da aldeia avista o quartel em construção, a cidade a sua porta. Um e outro, acredita, instalados com o objetivo de ficar no caminho da reconquista da terra. “Não tenho sossego. Se isso acontecer, voltaremos a ser escravos.” Ele sabe o que diz. Aos 8 anos foi vendido pelo pai a um comprador de diamantes por cinco sacas de sal, uma enxada e um machado, um forno e uma espingarda. Só aos 17 conseguiu romper o jugo e voltar. “Encontrei índios encachaçados, mulheres abusadas, forró o dia todo. Nenhuma roça, só meu povo trabalhando para o branco em troca de nada”, lembra. “A isso chamam de boa convivência entre índios e brancos.”

Outra guerra preocupa Maurício Habert. Ele vive numa cidade batizada de Normandia em homenagem ao desembarque das tropas aliadas. Tem na carne a prova dos fios que se entrelaçam para construir destinos só previstos em cenas do realismo fantástico. A saga da família de Maurice Habert, pai de Maurício, é a própria gênese de Roraima, terra de aventureiros proibidos de conjugar o tempo pretérito, em busca furiosa do futuro. Um ladrão de Paris, fugitivo dos calabouços da Guiana Francesa, garimpeiro, marreteiro e produtor de tomates no Brasil funda uma cidade de nome Normandia a leste do fim do mundo. Por ironia ou por culpa, ninguém sabe dizer, já que Maurice fechou a boca sobre o passado e poucas explicações dava para o presente, batizou-a em homenagem ao fim da Segunda Guerra quando tinha fugido já da primeira. Fez três filhos numa mestiça, Maurício Filho, Marta Maria e Joel. Maurício e Joel plantam melancias, Marta foi varada a balas pelo marido.

Maurice morreu de câncer no pulmão aos 68 anos graças a duas carteiras diárias de Continental. Não viveu o suficiente para saber dos nove netos e oito bisnetos. Muito menos para constatar que a cidade semeada por ele viraria o berço do forró de Roraima. Pipoquinha de Normandia é a banda mais famosa, tem seu neto, Joel Perley, no teclado. Outros dois, Joeldson e Maicon, arrastam os pés de Roraima no grupo da Lambe Sal.

A Pipoquinha tornou-se a banda da hora nos eventos oficiais. Sua música transforma a Praça das Águas, em Boa Vista, no palco de uma grande fornicação dançante porque ao norte do Equador há pecados, sim, muitos e de antemão absolvidos. Enquanto as crianças brincam, o povo se esfrega, esquece das dores. Alguns, como o poeta Eliakin Rufino, de 45 anos, acham uma pobreza o tal do forró. Mera importação do que de mais indigente há na fortuna musical do Nordeste. Ele é o filósofo de Roraima, o pensador de um ponto de interrogação, a identidade roraimense. Sim, porque nem sobre isso há unanimidade.

O que seriam eles afinal? Os 11 mil migrantes que ultrapassaram a divisa somente no ano passado? O senador Romero Jucá, o mais conhecido político no cenário nacional, pernambucano da gema? Ou sua mulher, Teresa Jucá, prefeita de Boa Vista e tão pernambucana quanto? Ou outro pernambucano legendário, ex-governador, ex-prefeito, eterno candidato, o brigadeiro Ottomar Pinto? Talvez o governador Neudo Campos, nascido e criado em Roraima. Os índios, provavelmente, por isso é que os ditos roraimenses se referem aos da terra como “macuxis”. Mas estes são apenas uma das nove etnias do Estado, complicando tudo mais uma vez.

Eliakin, buliçosa mistura de brancos, negros e índios, compôs três definições para capturar a amplitude dos da terra. “Roraimense é quem nasce, roraimada quem não nasceu mas ama, roraimoso só suga o Estado”, explica. “Boa Vista é a cidade mais brasileira do país. Contém o Brasil inteiro. O sul é europeizado, o Nordeste é africano, o Sudeste é americanizado e nós é que somos brasileiros!” Decidido a derrubar a ideologia da desinteligência nativa, tornou-se o comandante da cruzada contra o forró.

Também na arte Roraima vive em guerra. De um lado da paliçada, Eliakin canta: “Já em Roraima encontrei muito garimpeiro/Todo mundo fissurado por dinheiro/Matando índio e pondo as índias no puteiro/Tudo por causa de um pedaço de metal/Amazônia Legal, não há nada igual/Amazônia Legal, destruição é geral”. Do outro lado da muralha, a Pipoquinha responde em versos: “Não sou preconceituoso, mas certas coisas não aceito/Se o índio é igual a gente, por que ele tem mais direito?/Roubar gado, tocar fogo em ponte/Pro índio é uma diversão/Rouba tudo do fazendeiro e ainda quer demarcação/Área contínua, não/O índio tá querendo é ser nosso patrão”.

A música escolhe a posição no tabuleiro da Raposa-Serra do Sol, disputado por peões, bispos e cavalos em Uiramutã. Os brancos culpam os padres que um dia vieram batizar, casar e enterrar os filhos de fazendeiros e, não se sabe por qual sussurro de Deus ou do diabo, mudaram de trincheira. “A ala esquerdista da Igreja Católica gerou o ódio nas comunidades”, discursa a prefeita, Florany Mota, de 29 anos. “Os índios têm centros de treinamento de guerrilha, fazem reuniões secretas na aldeia do Maturuca. É lá que mora o padre Jorge, é ele quem comanda tudo”, garante o marido, Sebastião Silva, o Babazinho.

Espécie de Padre Antônio Vieira de Roraima, odiado um como foi o outro pelas elites em formação, o padre italiano Giorgio Dal Ben é vendido como a mente maligna que manipula os fios de marionetes de pele escura. Comandante de um exército de índios, xeque de um harém de mulheres, dono de uma fortuna em ouro e diamantes garimpada pelos fiéis, repete-se de um canto a outro do território. Basta aparecer um índio de olho azul para imediatamente tornar-se o “filho do padre Jorge”. “O cão chupando manga”, segundo a imprensa local. Tornou-se uma lenda.

Diante de tal envergadura, o pouco mais de 1,60 metro do padre de 57 anos é uma decepção. Os partidários dão paradeiros diferentes para confundir quem o procura. Encontrá-lo exige uma via-sacra. Há muito se recusa a aparecer em fotografias, convive com ameaças de morte, move-se como se enfrentasse uma Guerra Fria a 40 graus. Desconfia de tudo, de todos. Tem voz de ferro quente. “Quando cheguei a Roraima encontrei ao mesmo tempo a minissaia e uma sociedade quase feudal. Os índios viviam um quadro de morte”, descreve. “Esbarramos em um problema que se arrastou por cinco séculos e estourou nas nossas mãos. Mudar essa situação foi uma decisão pela vida. Não me interessa o que falam. A história toda é um delírio.”

Estrangeiro como o padre, Walter Suíço, o rei de Roraima, voa de ultraleve sobre seu quinhão de império. Ao avistar a terra que o marido havia elegido como eldorado pessoal, dona Heidy achou que era o limite. Pegou um avião de volta para a Suíça com os três filhos, encerrou o casamento e a paciência. Walter casou com uma maranhense, naturalizou-se brasileiro e entregou-se à conquista do novo mundo. Com tanto afinco que hoje existe um escritório em Zurique só para capturar investimentos para Roraima. Perto de US$ 20 milhões já foram semeados na região de lavrado. “Sou brasileiro por escolha, daqui ninguém me tira”, diz. Para provar, em terra tão desconfiada , ergueu ele mesmo um monumento pelos 500 anos. Nem assim o perdoam. “Quantos será que esse suíço matou para se esconder no fim do mundo?”, cochicham. Walter logo demonstra que se transformou num genuíno made in Roraima. Um paradoxo ambulante, portanto. “Os estrangeiros querem tomar conta da Amazônia”, alerta.

Os interesses internacionais sobre o que de mais verde e amarelo há no mapa revolvem os brios e a imaginação dos militares plantados em Roraima. Eles marcham pelos salões da sociedade local com toda a pompa. E uma circunstância que desde o fim da ditadura já perderam ao sul do Brasil. A principal ameaça estrangeira, na concepção de mundo de alguns oficiais, atende pelo nome de Conselho Indígena de Roraima (CIR). Sim, são os índios ligados ao presidente do CIR, o macuxi Jacir de Souza, e ao padre Jorge que conspiram contra o Brasil. “O CIR é uma ONG e como ONG está numa posição contrária aos interesses nacionais, na medida em que é contra a instalação do pelotão em Uiramutã”, brada o general Claudimar Magalhães Nunes, de 53 anos, espigado como uma espada. “Um Estado com 50% de áreas indígenas é um verdadeiro absurdo, emperra o desenvolvimento.”

Nas fileiras nativas alinhadas ao Exército, o ex-vereador, diácono da Igreja Batista Popular e também índio, Jonas Marcolino, de 33 anos, profetiza. Tem as mãos postas na Bíblia: “O povo de Deus não é só joelho no chão. É guerreiro e nunca perde batalha. Não vamos perder nosso direito à energia elétrica, à televisão e à educação por causa do padre Jorge e do CIR. Essa é uma guerra entre o povo de Deus e o povo do diabo”.

Deus é muito popular em Roraima. O problema é que lá, como no resto do mundo, não se sabe bem de que lado está. O crente Francisco Gildo dos Santos, de 35 anos, tem certeza de que ele acompanha cada um de seus passos tristes, muitas vezes descalços até de esperança. Cada um deles tão difícil, tão moroso de consumar. Para alcançar a mulher, Cleonice, e os dois filhos trabalhou cinco dias como pedreiro em Santarém. Com os R$ 50 recebidos chegou a Manaus. Mais nove dias de labuta numa fruteira para completar a passagem. Ao todo 14 dias sonhando com uma casa sua na mais nova terra de leite e mel. “Uma casa, rapaz, de qualquer maneira, uma casa de madeira bem fechada, um quarto para cada filho, um computador, uma geladeira para beber água fria e um vídeo para ver filmes de pregação”, ergue os alicerces de sua utopia enquanto assenta o tijolo de mais um edifício de doutor.

Desembarca na rodoviária de Rorainópolis sem um centavo, a mesma quantia que possuía a mulher. “Cadê a minha Cleonice?”, pergunta à moça do guichê. “Procura a casa de porta vermelha e bate. Corre homem, já é madrugada.” Francisco caminha com a trouxa no ombro, pedindo ajuda à lua para não passar batido pela cor de seu destino. “Quem é?”, pergunta Cleonice, o coração pulando feito um cabrito. “É eu”, responde Francisco, a alma escapando pelas falhas dos dentes. Assim começa mais uma saga em Roraima.

E outra termina. Armados de paus, os ianomâmis se confrontam. Ao lado do xaruna se posta a aldeia de Komomassipe. Polassai e Roxeana defendem o makabei. Chicão vence a disputa ritual. Toma sua índia de volta. A paz retorna ao território. Nunca por muito tempo. Objetos de amor e guerra, as mulheres movem os homens por seu destino. Oficialmente, são condenadas à passividade. Na prática, comandam mais do que confessam os fios invisíveis de suas vidas. Os roubos são consentidos, muitas vezes combinados. Como em outras culturas, as fêmeas vencidas pela força tramam seus ardis no território que dominam melhor, o da sutileza, seguidamente o do embuste. Defendem-se. Na teia de seus enredos tombam os machos. É assim, provam os ianomâmis, desde o começo do mundo.

Mais um dia comum em Roraima. No oeste os ianomâmis açulam as fogueiras eternas, nus como eram os homens no princípio dos tempos. Os dentes afiados trituram manduruvás assados na brasa. No leste, Maurício Habert mal se contém. Espera mais uma carta com selo da França provando que o pai nunca foi parceiro de Papillon na Ilha do Diabo, menos ainda homossexual. O fundador de Normandia pode até ter sido ladrão, mas muito macho. No sul, de braço dado com Cleonice, Francisco desfila por Rorainópolis. Veste uma camiseta estampada com a imagem da prefeita, expediente aconselhado por outros migrantes para conseguir uma casa. Na rádio de poste da cidade, conhecida por A Voz, o locutor Zé Passos avisa em tom solene: “Homem está precisado de uma mulher de 40 anos para cá, filho só pequeno, para compromisso”. No norte, os macuxis seqüestram um par de botinas e uma boina dos militares para mostrar quem manda naquela quina de Brasil. Diante do ataque estrangeiro, o valente general ameaça tomar os troféus de guerra “na marra”.

Não há dias comuns em Roraima.

* * * * *

ELIANE BRUM.
Olho da Rua: Uma Repórter Em Busca da Literatura da Vida Real.
Pg. 40.

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PREDILETOS DE 2014: DISCOS, FILMES, LIVROS & SHOWS [A CASA DE VIDRO.COM]

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Aí vai, meu povo, uma “retrospectiva cult” do ano que acaba de terminar, em forma de listão de prediletos-da-casa; aí estão reunidas algumas das novidades culturais que mais marcaram meu 2014: são álbuns nacionais e internacionais, filmes de ficção e documentários, além de livros publicados recentemente, que eu prezo pra valer e estimo como alguns dos melhores lançamentos destes últimos tempos… Voilà!

DISCOS

[NACIONAIS]

* JUÇARA MARÇAL, “Encarnado”

* CRIOLO, “Convoque Seu Buda”

* CARNE DOCE, “Carne Doce”

* DIEGO MASCATE, “A.C.”

* CEUMAR, “Silencia”

* FAR FROM ALASKA, “Mode Human”

* TAGORE, “Movido a Vapor”

*ESTRELINSKI E OS PAULERA, “Leminskanções”

* NÔMADE ORQUESTRA, “Idem”

* RUSSO PASSAPUSSO, “Paraíso da Miragem”

* * * * *

[INTERNACIONAIS]

* TEMPLES, “Sun Structures”

* THE WAR ON DRUGS, “Lost in the Dream”

* ROGER DALTREY & WILKO JOHNSON, “Going Back Home”

* SHARON VAN ETTEN, “Are We There?”

* DEATH FROM ABOVE 1979, “The Physical World”

* ST. VINCENT, “St. Vincent”

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SHOWS

* Queens of the Stone Age, Festival d’été de Québec
* Layla Zoe, Festival International de Jazz de Montréal
* Deltron 3030, Fest. de Jazz de Montréal
* Carne Doce, Festival Juriti de Música e Poesia Encenada
* Jello Biafra and the Guantanamo School of Medicine, Toronto’s Opera House
* Soundgarden, Festival d’été de Québec
* The Kills, Festival d’été de Québec


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FILMES

[FICÇÃO]

Snowpiercer-Poster

– SNOWPIERCER: EXPRESSO DO AMANHÃ, de Joon-ho Bong
– NINFOMANÍACA, de Lars Von Trier
– O LOBO ATRÁS DA PORTA, de F. Coimbra
– WE ARE THE BEST, de Lukas Moodyson
– BOYHOOD, de Richard Linklater
– RIOCORRENTE, de Paulo Sacramento
– MAPS TO THE STARS, de David Cronenberg
– LUCY, de Luc Besson
– NIGHTCRAWLER, de Dan Gilroy

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[DOCUMENTÁRIOS]

– THE MISSING PICTURE, de Rithy Pahn
– JE SUIS FEMEN, de Alain Margot
– WATCHERS OF THE SKY, de Edet Belzberg
– FAITH CONNECTIONS, de Pan Nalin
– FINDING FELA KUTI, de Alex Gibney
– THE INTERNET’S OWN BOY: STORY OF AARON SCHWARTZ, by B. Knappenberger
– BJÖRK: BIOPHILIA LIVE
– PARTICLE FEVER, de Mark A. Levinson
TEENAGE, de Matt Wolf

[LIVROS]

thischangeseverything

– NAOMI KLEIN, This Changes Everything
– 
ARUNDHATI ROY, Capitalism: A Ghost Story
– 
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO E DÉBORAH DANOWSKI, Há Mundo Por Vir?
– PETER LINEBAUGH, Stop, Thief! – The Commons, Enclosures and Resistance
– 
RAJ PATEL, The Value of Nothing
– 
RODRIGO SAVAZONI, Os Novos Bárbaros – A Aventura Política do Fora do Eixo

[MELHOR ESCRITOR DESCOBERTO E LIDO PELA PRIMEIRA VEZ EM 2014…]

Arundhati RoyARUNDHATI ROY