:: Brecht! ::

PARÁBOLA DE BUDA SOBRE A CASA INCENDIADA

Gautama, o Buda, ensinou
A doutrina da roda da cobiça, à qual estamos atados, e aconselhou
Livrar-se de toda cobiça e assim
Sem ambição penetrar no Nada, que ele denominou Nirvana.
Perguntaram-lhe então um dia seus alunos:
Como é esse Nada, mestre? Todos nós queremos
Livrar-nos de toda cobiça, como nos aconselhas, dize-nos porém
Se esse Nada, no qual então penetraremos
É talvez como o ser-um com tudo criado
Ao deitar-se alguém na água, corpo leve, ao meio-dia
Sem pensamentos quase, com preguiça deitado na água, caindo
No sono, mal sabendo então que puxa a coberta
Afundando rapidamente. Se esse Nada, portanto
É assim contente, um bom Nada, ou se esse teu Nada
É simplesmente um Nada, frio, vazio, sem sentido.
Longamente silenciou o Buda, e disse então displicente:
Nenhuma resposta para vossa pergunta.
Mas à noite, quando haviam partido
Sentado ainda sob o pé de fruta-pão, contou o Buda aos outros
Aos que não haviam perguntado, a seguinte parábola:
Há pouco tempo vi uma casa. Queimava. A chama
Lambia o telhado. Aproximei-me e notei
Que ainda havia pessoas dentro. Cheguei à porta e gritei-lhes
Que o telhado estava em fogo, incitando-as assim
A sair rapidamente. Mas as pessoas
Pareciam não ter pressa. Uma delas me perguntou
Enquanto o calor lhe chamuscava a sobrancelha
Se não soprava o vento, se não havia uma outra casa
E coisas assim. Sem responder
Afastei-me novamente. Estes, pensei
Têm que queimar, até parar de fazer perguntas. Em verdade, amigos
Àquele que ainda não sente o chão bastante quente
Para trocá-lo por qualquer outro, em vez de lá ficar, a este
Nada tenho a dizer. Assim fez Gautama, o Buda.
Mas também nós, não mais ocupados com a arte de suportar
Antes ocupados com a arte de não suportar, e apresentando
Sugestões várias de natureza terrena, e aos homens ensinando
A desvencilhar-se dos tormentadores humanos, achamos que àqueles que
À vista dos iminentes esquadrões de bombardeiros do Capital gastam
tempo a perguntar
Como pensamos em fazer isto, como imaginamos aquilo
E o que será de suas economias e de seus trajes de domingo após uma
reviravolta
Nada temos a dizer.

Bertold Brecht
Poemas – 1913-1956 (pg. 171-72, ed 34, trad Paulo César Souza)

FREUD E A RELIGIÃO: A fé como ilusão e neurose infantilóide || A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

Foram três as grandes “feridas narcísicas” sofridas pela Humanidade, segundo Sigmund Freud. A primeira ferida: a perda de nossa ilusão de estarmos em um planeta imóvel que estaria no centro do cosmos, fantasia geocêntrica destroçada pelas descobertas de Copérnico (e também de Bruno, Galileu e Kepler), que ocasionou o reconhecimento pleno do heliocentrismo (apesar de tantos cientistas e suas obras terem perecido nas fogueiras da Inquisição). A segunda ferida: a “degradante” descoberta Darwiniana da evolução das espécies pela seleção natural, que deu a nosso narcisismo a má notíci” de que não somos criaturas saídas já prontas das mãos de um deus (como rezava o mito de Adão e Eva), mas meros descendentes dos primatas, macacos melhorados. A terceira ferida seria a própria psicanálise Freudiana, que mostrou que “o ego não é rei em sua própria casa” e escancarou o quanto o comportamento humano é guiado mais por impulsos inconscientes e pulsões biológicas e libidinais do que por princípios racionais.

Mas as feridas narcísicas que Freud surgiu para infligir talvez sejam mais profundas e amplas do que ele mesmo previu: sua teoria a respeito da religião e das raízes da necessidade psicológica da fé também representam ferimentos severos à auto-imagem de todos os Narcisos que gostariam de continuar a crer que são os “favoritos da Criação”. Colapsa, para quem concorda com Freud, qualquer noção de que haveria um “plano divino” dedicado a construir a excepcionalidade do homo sapiens como animal predileto por seu Criador – que estaria, no fundo, devotado a premiar com a beatitude eterna os bem-comportados humanos de seu divino rebanho. Ao contrário destas fantasias neuróticas e infantilóides que costumeiramente passam pelo normal da fé, diz Freud numa frase inesquecível, dum pessimismo à la Schopenhauer:  “somos tentados a pensar que não entrou no plano da ‘Criação’ a idéia de que o homem fosse feliz”.

A Natureza, para um ateu de lucidez tão implacável como era Freud, jamais foi vista através da névoa distorcedora do idealismo ou do antropomorfismo. A Natureza, para o Pai da Psicanálise, evidentemente não é criação de um Deus Onipotente, Bom e Sábio. Não é algo que esteja aí para nos “agradar”, nos deleitar, nos receber calidamente em seu seio. Nem está “do nosso lado”, pronta a atender nossos desejos e preces. Seria uma ilusão humanizá-la, sentimentalizá-la, “encantá-la” e supor nela intenções, desejos, desígnios e vontades. Para Freud, a Natureza, na verdade, é um imenso aglomerado de Forças e Energias que, em sua totalidade, escapa totalmente ao nosso controle. “Ela nos destrói, fria, cruel e incansavelmente”, aponta ele, antes de enveredar por exemplos ilustrativos:

“Os elementos parecem escarnecer de qualquer controle humano; a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que se lhes antepõe; as doenças, que só recentemente identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos, e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização.” (O Futuro de Uma Ilusão, pg. 96)

Jacques Lacan, em seu Discurso aos Católicos, sublinhou que o pensamento de Freud, como já começamos a suspeitar, não concebe uma Natureza que possua “desvelos humanistas” ou que seja “sensível” aos sofrimentos e aos prazeres humanos, ela é indiferente:

“Não, a reflexão de Freud não é humanista. Nada permite aplicar-lhe esse termo” (pg. 34), afirma Lacan. “A realidade física é totalmente inumana. (…) Sabemos o que cabe à terra e ao céu, ambos são vazios de Deus…” (pg. 40) Lacan sugere mesmo que à Freud “a própria dor parece-lhe inútil. Para ele, o mal-estar da civilização resume-se nisto: tanto sofrimento para um resultado cujas estruturas terminais são antes agravantes…” (pg. 34) [LACAN, O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos. RJ: Jorge Zahar, 2005.]

Não importa o quanto a Civilização avance, pois, com seu séquito de novos conhecimentos científicos e novas tecnologias; a Natureza “inumana” está sempre presente como um poder superior e ameaçador, desencadeando tempestades, terremotos, tsunamis e chuvas de cometa capazes de, por vezes, reduzir à pó milênios de árduo trabalho humano ou mesmo extinguindo espécies inteiras de animais. Descobrir-se em meio a um mundo natural tão hostil certamente gera tormentos psíquicos e crises de valor, como Freud aponta: “A auto-estima do homem, seriamente ameaçada, exige consolação; a vida e o universo devem ser despidos de seus terrores; ademais, sua curiosidade pede uma resposta.” (O Futuro de Uma Ilusão, Em: Os Pensadores, pg. 96)

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TRÍPLICE MISSÃO

A religião teria sido inventada, pois, com uma tríplice missão: “exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs.” A psicanálise, portanto, reduz à religião a um mero “cabedal de idéias”, “nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana” (O Futuro de Uma Ilusão, pg. 98). Testemunho mais de nossa fraqueza que de nossa força, mais de nossa fragilidade que de nossa indestrutibilidade, mais de nossa angústia que de nossa felicidade, a religião é, de fato, como Marx depois dirá, “o suspiro da criatura oprimida” – e, como Freud sugere, a tentativa delirante de suplantar essa opressão das forças naturais, da morte e da repressão cultural.

As idéias religiosas, pois, não descem do Céu para a Terra como um graça ou uma revelação, como um dom dos deuses para os pobres mortais, mas são germinadas no vaso fértil e imaginativo do crânio humano: é aí, na cachola atormentada do homo sapiens, que nascem e morrem todos os deuses.

“As idéias religiosas, proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados da experiência ou resultados finais de pensamentos: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 107).

A psicanalista Julia Kristeva define a posição freudiana em relação à religião nos seguintes termos:

“É como uma ilusão que a religião aparece precisamente a Freud, ilusão gloriosa porém, já que ele a entendia no sentido do equívoco de Cristóvão Colombo ou dos alquimistas. Como estas experiências pré-científicas, que vão dar, no entanto, origem à geografia moderna e à química, a religião seria uma construção de pouca realidade do desejo de seus sujeitos. (…) Notando a dificuldade que têm os seres humanos de suportar o desmoronamento de seus fantasmas e o fracasso de seu desejo, sem substitui-los por novas ilusões das quais não percebem nem a pouca realidade nem a desrazão, Freud tenta precisar o benefício secundário que comporta precisamente esta ilusão.” (No Príncípio Era O Amor – Psicanálise E Fé, pgs. 21-22)

Kristeva, na esteira de Freud, destaca o fato que as crenças servem justamente para “gratificar o indivíduo em seu cerne narcísico” (pg. 36), “reparar nossos transtornos de Narcisos feridos” (pg. 37) e nos ofertar a “certeza da remuneração” (pg. 42). Além disso, um certo anseio amoroso está na base do impulso para a fé: o desejo de ser amado por Deus é um dos motores que lança o crente à sua crença. “Deus vos amou primeiro”, “Deus é amor”, são os postulados que asseguram ao crente a permanência da generosidade e da graça. É-lhe feito o dom de um amor de que não terá sido merecedor de antemão, mesmo que, certamente, a questão venha a se colocar ulteriormente, com uma exigência de ascese e de aperfeiçoamento”. (op cit, pg. 37)

A religião, pois, é entendida no universo freudiano como uma invenção humana destinada a remediar um desamparo existencial que perdura, após a infância, na vida madura. A religião procura “mitigar nosso temor dos perigos da vida” com a imaginação do suposto “governo benevolente de uma Providência divina; e procura ainda ser uma “resposta aos enigmas que tentam a curiosidade do homem” (resposta obviamente fictícia). Enfim, representa um “alívio enorme para a psique humana” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 107) e uma das mais tenazes ilusões que manteve a humanidade cativa através dos milênios.

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DESEJO E ILUSÃO

Em Moisés e O Monoteísmo, Freud já dizia:

“Não foi possível demonstrar (…) que o intelecto humano possua um faro particularmente bom para a verdade, ou que a mente humana demonstre qualquer inclinação especial para reconhecê-la. Encontramos antes, pelo contrário, que nosso intelecto facilmente se extravia sem qualquer aviso, e que nada é mais facilmente acreditado por nós do que aquilo que, sem referência à verdade, vem ao encontro de nossas ilusões carregadas de desejo.” (pg. 153 – edição Standard das Obras Psicológicas Completas, volume 23 [1937-1939], trad. Jayme Salomão.)

Os crentes, pois, iludem-se acreditando no Paraíso, na alma imortal e no Bom Governo de um Papai dos Céus Benevolente pois estão completamente cegados pelo desejo. Pois o procedimento do religioso consiste em, ao invés de fazer uma admissão sincera de um desejo (“seria muito bom se Deus existisse, gostaria muito que ninguém morresse…”), saltar para uma abusiva anunciação sobre uma suposta realidade (“existe um Deus, ninguém morre, iremos para o Paraíso se fizermos o Bem…”). O crente faz do que desejaríamos que fosse real a afirmação de que é real – ou, para usar uma expressão de Sponville, o crente “toma seus desejos pela realidade”.

Em certos casos, a cegueira é tamanha que atinge o nível de um delírio – como Richard Dawkins quis sublinhar quando entitulou seu livro. Freud também considera que as ilusões extremadas saltam para este outro nível de alienação da realidade: “algumas são tão improváveis, tão incompatíveis com tudo que laboriosamente descobrimos sobre a realidade do mundo, que poderíamos compará-las à delírios” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 108).

Tudo o que a religião nos conta é uma cantilena de ninar, um conto-de-fadas kitsch, um conjunto de idéias feito sob medida para dar de mamar aos desejos humanos mais profundos e infantis: o desejo de proteção, de amparo, de sentido, de êxtase, de paz, de imortalidade etc. A religião nos diz justamente o que mais queremos ouvir, e por isso é de se suspeitar que a tenhamos inventado interesseiramente, com o único objetivo de nos convercermos, através de ficções e delírios, de que a vida é como desejaríamos que fosse.  É o que Freud aponta no irônico trecho abaixo, onde narra as consolações que nos tentam inculcar os monoteísmos ocidentais:

“Tudo o que acontece neste mundo constitui expressão das intenções de uma inteligência superior para conosco, inteligência que (…) ordena tudo para o melhor. (…) Sobre cada um de nós vela uma Providência benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza. A própria morte não é uma extinção, não constitui um retorno ao inanimado orgânico, mas o começo de um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo mais elevado. (…) Ao final, todo o bem é recompensado, e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de vida, pelo menos em existências posteriores que se iniciam após a morte. Assim, todos os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a se desfazer…” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 98)

Não se nega que as religiões possam ser, em certas sociedades, “prezadas como o mais precioso bem da civilização, como a coisa mais preciosa que ela tem a oferecer a seus participantes” (99). Mas Freud coloca a questão de saber se religião é de fato bem sucedida em dissipar, como pretende, os “terrores, sofrimentos e asperezas da vida” – algo que não só não está provado, como é questionável, duvidoso e em muitos casos absolutamente implausível. Ainda assim, Freud não se engana: “As pessoas sentem que a vida não seria tolerável” sem a religião (99) – e é isso que explica sua força.

A religião, este cabedal de idéias que é transmitido culturalmente, inculcada na nova geração pela educação, pelo sermão e pela catequisação, não tem nada de “natural” ou de “fruto da graça ou da revelação”, é claro. É “a civilização que fornece ao indivíduo essas idéias”; “são-lhe presenteadas já prontas, e ele não seria capaz de descobri-las por si mesmo. Aquilo em que ele está ingressando constitui a herança de muitas gerações, e ele a assume tal como faz com a tabuada de multiplicar, a geometria e outras coisas semelhantes”. A religião, sublinha Freud, não é verdade eterna, mas invenção humana, histórica, mutante, na estrada da civilização.

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O COMPLEXO PATERNO E A CRENÇA EM DEUS-PAI

Além disso, a idéia de Deus tem, para a psicanálise freudiana, um protótipo infantil: a imagem do Pai. O paralelo entre o desamparo infantil frente ao Pai e o desamparo do homem crescido frente à Natureza (hostil) é a base do raciocínio de Freud: “Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de desamparo: como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razão para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos que conhecíamos.” (97) Na vida adulta, re-experimentamos o desamparo e fragilidade da primeira infância frente à colossal e esmagadora maquinaria dos cosmos, de modo que esperamos de um Deus-Pai proteção e consolo. Ao mesmo tempo, “transformamos as forças da natureza” “lhes concedendo o caráter de um pai”, ou seja, “transformando-as em deuses” (97).

Isso porque, no fundo, uma certa dose de desamparo é incurável e inelutável. “Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai” (102).

Em suma, como ele aponta em Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci (Paris, Gallimard, 1987, p. 156):

“A psicanálise nos fez conhecer a relação íntima entre o complexo paterno e a crença em Deus, nos mostrou que o Deus pessoal, psicologicamente, não passa de um pai levado às nuvens, e nos apresenta cotidianamente o espetáculo de jovens que perdem a fé a partir do momento em que sobre eles desaba a autoridade do pai. É portanto no complexo parental que reconhecemos a raiz da necessidade religiosa.”

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ILUSÃO BENIGNA?

Em “O Futuro De Uma Ilusão” é também posto em xeque um dos argumentos que julga-se dos mais fortes na defesa da religião: já que as grandes questões metafísicas são insolúveis para a razão humana, e já que a crença religiosa oferece tamanhas consolações e “cura” o homem de tantas angústias, trazendo tanto “alívio” psíquico, por que não aceitá-la e acolhê-la como uma espécie de ilusão benigna, de cegueira que faz bem?

Freud, é claro, não se deixa convencer por uma raciocínio desses, que denigre sem dó como “desculpa esfarrapada”: a religião de modo algum pode ser vista como algo que traz saúde psíquica! “Os crentes devotos são em alto grau salvaguardados de certas enfermidades neuróticas”, Freud o admite, mas é porque “sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar uma neurose pessoal” (118)! Poucas vezes ele foi mais cáustico, mais irônico e mais iconoclástico do que aqui: possuir uma religião é possuir uma neurose coletiva, uma cegueira compartilhada por muitos, um delírio da imaginação profundamente alienante, e nada de benigno pode sair daí:

“Ignorância é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo pode ser derivado dela. Em outros assuntos, nenhuma pessoa sensata se comportaria tão irresponsavelmente ou se contentaria com fundamentos tão débeis para suas opiniões e para a posição que assume. É apenas nas coisas mais elevadas e sagradas que se permite fazê-lo” (pg. 109). Além do mais, “as verdades contidas nas doutrinas religiosas são, afinal de contas, tão deformadas e sistematicamente disfarçadas que a massa da humanidade não pode identificá-las como verdade. O caso é semelhante ao que acontece quando dizemos a uma criança que os recém-nascidos são trazidos pela cegonha.” (118)

Freud, sem dúvida, espera que a humanidade seja capaz de um heroísmo de lucidez que ele próprio testemunhou com seu pensamento e que tanto nos empolga e ilumina. E nos conclama a uma atitude de desdém e de abandono em relação aos “contos de fada da religião” (106):

“Os críticos insistem em descrever como ‘profundamente religioso’ qualquer um que admita uma sensação de insignificância ou impotência do homem diante do universo, embora o que constitua a essência da atitude religiosa não seja essa sensação, mas o passo seguinte, a reação que busca um remédio para ela. O homem que não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra.” (109)

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MORALIDADE E IRRELIGIÃO

Também a espinhosa questão moral Freud enfrenta de frente. Há por parte dos religiosos um intenso temor, quase um pavor, de que um caos social e ético se instalaria caso caísse o império da religião. Freud se imagina um opositor que lhe confronta com este argumento: “Caso se ensine às pessoas que não existe um Deus todo-poderoso e justo, nem ordem mundial divina, nem vida futura, os homens se sentirão isentos de toda e qualquer obrigação de obedecer aos preceitos da civilização” (110). Ou seja: se as pessoas não tiverem fé, acharão que “tudo é permitido”, e nunca mais agirão de modo ético e responsável, de modo que, “no interesse da preservação de todos nós”, ainda que essas idéias sejam reconhecidas pelas lúcidos como ilusões e delírios, a religião deveria ser mantida, ainda que a título de “cimento social” e impulso para o agir moral.

Freud obviamente discorda. “A civilização corre um risco muito maior se mantivermos nossa atual atitude para com a religião do que se a abandonarmos” (111), diz ele, como um profeta ateu que garante que viveríamos melhor abandonando de vez a quimera de Deus. A religião já “dominou a sociedade humana por muitos milhares de anos e teve tempo para demonstrar o que pode alcançar”, ou seja, o planeta Terra já foi por séculos demais o laboratório à céu aberto onde os padres e papas usaram os humanos como cobaias para suas ideologias religiosas. “Se houvesse conseguido tornar feliz a maioria da humanidade, confortá-la, reconciliá-la com a vida, e transformá-la em veículo de civilização, ninguém sonharia em alterar as condições existentes. Mas, em vez disso, o que vemos? Vemos que um número estarrecedoramente grande de pessoas se mostram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a como um jugo do qual gostariam de se libertar” (113).

Portanto, é francamente falsa ou altamente implausível a tese de que a religião faria os homens mais felizes e mais bondosos – por que não, como a História nos dá tamanhas provas, não os tornaria mais culpados, atormentados, angustiados, sectários, intolerantes e sanguinários? “É duvidoso que os homens tenham sido em geral mais felizes na época em que as doutrinas religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais certamente não foram”. Sem falar que, como comenta Freud com ironia, “o pecado é indispensável à fruição de todas as bênçãos da graça divina”. Não se esqueçam, irmãos, que estas noções de “pecado”, “culpa” e “inferno” são criações de crentes e não de ateus!

Apesar de não conceber nenhum perigo de “queda moral” na passagem da fé para o ateísmo nas “pessoas instruídas”, Freud chega a dar um pouco de razão àqueles que temem o caos social que se seguiria à derrocada da religião, especialmente se quem perdesse a fé fosse “a grande massa dos não instruídos e oprimidos, que possuem todos os motivos para serem inimigos da civilização” (114). Os proprietários, os dominadores, os poderosos, têm razão de tremerem pelo seu tão querido status quo se as massas despertarem de seu sono teológico e quebrarem as correntes!

Mas será que só um estado policial e repressor seria capaz de conter, pela força, as massas irreligiosas? É uma hipótese que Freud considera: “Se a única razão pela qual não se deve matar o próximo é porque Deus proibiu e nos punirá severamente por isso nesta vida ou na vida futura, então, quando descobrirmos que não existe Deus e que não precisamos temer Seu Castigo, certamente mataremos o próximo sem hesitação e só poderemos ser impedidos de fazê-lo pela força terrena” (114). No caso desta proibição – de matar o próximo – nós “revestimos a proibição cultural de uma solenidade muito especial, mas, ao mesmo tempo, nos arriscamos a tornar sua observância dependente da crença em Deus” (116).

Para Freud, as proibições culturais não precisam ficar nesta dependência em relação à religião.

“Constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua pretensa santidade, esses mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e imutabilidade. As pessoas compreenderiam que são elaborados, não tanto para dominá-las, mas, pelo contrário, para servir a seus interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com eles e, em vez de visarem à sua abolição, visariam unicamente à sua melhoria” (116).

Diríamos, por exemplo, que não se deve matar o próximo, não porque Deus assim o proibiu, mas porque se isto se tornasse “moda” os homens acabariam se exterminando mutuamente. Um motivo racional no lugar de um motivo religioso.

Freud, como bom racionalista, afirma a “impossibilidade de provar a verdade das doutrinas religiosas”, o que ele mesmo reconhece ser uma idéia que nada tem de novo: “Isso já foi sentido em todas as épocas e, indubitavelmente, também pelos ancestrais que nos transmitiram esse legado. Muitos deles provavelmente nutriram as mesmas dúvidas que nós, mas a pressão a eles imposta foi forte demais para que se atrevessem a expressá-las. E, visto que incontáveis pessoas foram atormentadas por dúvidas semelhantes e se esforçaram por reprimi-las, por acharem que era seu dever acreditar, muitos intelectos brilhantes sucumbiram a esse conflito” (105 – grifo meu).

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A FÉ ASFIXIANDO O PENSAMENTO

A obrigação de crer, sustentada por séculos através das ameaças de fogueira e excomunhão, sufocou e asfixiou o vôo do pensamento e as vitórias do saber. Quem há de contar os infinitos prejuízos e danos causados à progressão da sabedoria humana por esta cruel engrenagem de estraçalhar intelectos brilhantes que foi a religião ortodoxa e fanática, que reprimia a dúvida e a investigação e fazia apologia do dogmatismo e da fé cega e sem provas? E quem há de calcular o quanto se deforma e se impede o desenvolvimento intelectual de uma criança através de uma pedagogia alicerçada na religião?

“Pode um antropólogo fornecer o índice craniano de um povo cujo costume é deformar a cabeça das crianças enrolando-as com ataduras desde os primeiros anos? Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e os débeis poderes intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é exatamente a educação religiosa que tem grande parte da culpa por essa relativa atrofia? Penso que seria necessário muito tempo para que uma criança, que não fosse influenciada, começasse a se preocupar com Deus e com as coisas do outro mundo. Talvez seus pensamentos sobre esses assuntos tomassem então os mesmos caminhos que os de seus antepassados. Mas não esperamos por um desenvolvimento desse tipo; introduzimo-la às doutrinas da religião numa idade em que nem está interessada nelas nem é capaz de apreender sua significação. Não é verdade que os dois principais pontos do programa de educação infantil atualmente consistem no retardamento do desenvolvimento sexual e na influência religiosa prematura? Dessa maneira, à época em que o intelecto da criança desperta, as doutrinas da religião já se tornaram inexpugnáveis. Mas acha você que é algo conducente ao fortalecimento da função intelectual o fato de um campo tão importante lhe ser fechado pela ameaça do fogo do Inferno? Quando outrora um homem se permitia aceitar sem crítica todos os absurdos que as doutrinas religiosas punham à sua frente, e até mesmo desprezar as contradições existentes entre elas, não precisamos ficar muito surpresos com a debilidade de seu intelecto. Não dispomos, porém, de outros meios de controlar nossa natureza instintual, exceto nossa inteligência. Como podemos esperar que pessoas que estão sob domínio de proibições de pensamento atinjam o ideal psicológico, o primado da inteligência?” (F.I, p. 121)

Freud, pois, manifesta-se claramente favorável a um pedagogia irreligiosa e conclama os homens a assumirem sem covardia a lucidez implacável que ele, Freud, tão bem exercitou e exemplificou. Quanto mais cultos, inteligentes e lúcidos nos tornamos, quanto mais cresce em nós a capacidade de pensar de modo preciso e coerente, mais nos afastamos das quimeras delirantes da religião, sugere: “Quanto maior é o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa” (113). Este afastamento em relação às crenças religiosas abre os horizontes humanos para uma reflexão sobre o quanto nossas existências são transitórias e qual sabedoria poderia ser aprendida e vivida a partir do pleno reconhecimento desta transiência, tema de um dos mais belos escritos de Freud:

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SOBRE A TRANSITORIEDADE

“Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.

A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.

Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.

Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vida, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda a vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.

Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhe estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.

O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, e até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.

Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.

Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso para muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.”

(Sigmund Freud. Obras Completas Volume 14, ed. Imago.)

 

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REFERÊNCIAS
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FREUD, S. O Futuro de Uma Ilusão. In: Os Pensadores. Ed. Abril Cultural.

FREUD, S. Moisés e o Monoteísmo. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas, volume 23 [1937-1939], trad. Jayme Salomão.

FREUD, S. Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci. Paris, Gallimard, 1987, p. 156.

FREUD, S. Sobre a Transitoriedade. Em: Obras Completas Volume 14, ed. Imago.

KRISTEVA, Julia. No Princípio Era o Amor – Psicanálise e Fé. Ed. Brasiliense, 1987.

LACAN, Jacques. O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos. RJ: Jorge Zahar, 2005.

GERAÇÃO PROZAC – Sobre “O Tempo e o Cão – A Atualidade das Depressões”, de Maria RIta Kehl

— DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES 
Reflexões sobre O Tempo e o Cão – A Atualidade das Depressões
de Maria Rita Kehl

Os dados são estarrecedores:

“A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou que os ‘transtornos depressivos’ se tornaram a quarta causa mundial de morbidade e incapacitação, e atingem cerca de 121 milhões de pessoas no planeta – sem contar, evidentemente, as que nunca se fizeram diagnosticar. Até 2020, segundo a OMS, a depressão terá se tornado a segunda principal causa de morbidade no mundo industrializado, atrás apenas das doenças cardiovasculares.” (KEHL, 2009, pg. 51)

Só no Brasil, são 17 milhões de pessoas reconhecidas como depressivas; e a comercialização de Prozac no país vem crescendo numa taxa de 22% ao ano, movimentando anualmente 320 milhões de dólares.

Yves de la Taille, por sua vez, analisa outra estatística alarmante da mesma pesquisa da OMS, de 2000, que indicou que

“o que mais mata no mundo, hoje, é o suicídio. Foram 815 mil suicídios naquele ano, contra 520 mil mortes ocasionadas por crimes e 310 mil em guerras. Ou seja, seria preciso somar as mortes decorrentes de crimes e guerras para empatar com o número de suicídios. Naturalmente, isso depende da região. Em alguns países, é a guerra que ocasiona mais mortes – como no Iraque. Em outros, como o Brasil, são os crimes. Portanto,  o mal-estar moral e ético, que pode levar a pessoa ao suicídio, manifesta-se de maneira mais forte no hemisfério norte, justamente aquele cuja cultura costuma ser considerada como a mais avançada e a mais desejável do mundo ocidental.” (DE LA TAILLE, 2009, pg. 9)

Curioso e sintomático que este “aumento assombroso dos diagnósticos de depressão”, desde a década de 70, se dê paralelamente à expansão dos tentáculos do império do consumo e do espetáculo, que exigem de todos nós que gozemos sem entraves (com a condição, é claro, de que gastemos no processo muito dinheiro!). A depressão ganha dimensões de epidemia enquanto a sociedade de consumo consegue cooptar e fazer de slogan seu até mesmo um mote de Maio de 68!

A constatação desta epidemia mundial de depressão, além do aumento significativo de pacientes que se declaram deprimidos e que procuram a clínica psicanalítica, levou Maria Rita Kehl a debruçar-se sobre o tema em seu livro  O Tempo e o Cão (ed. Boitempo). Nele, a depressão é descrita como um “sintoma social”, como a expressão generalizada de um “mal-estar na civilização” muito difundido.

“Analisar as depressões como uma das expressões do sintoma social contemporâneo significa supor que os depressivos constituam, em seu silêncio e em seu recolhimento, um grupo tão incômodo e ruidoso quanto foram as histéricas no século XIX. A depressão é a expressão de mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt-à-porter, da saúde, do exibicionismo e do consumo generalizado. A depressão é sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social desta 1a década do século 21. Por isso, os depressivos, além de se sentirem na contramão de seu tempo, vêem sua solidão agravar-se em função do desprestígio social de sua tristeza. Se o tédio, o spleen, o luto e outras formas de abatimento são malvistos no mundo atual, os depressivos correm o risco de ser discriminados como doentes contagiosos, portadores da má notícia da qual ninguém quer saber.  ‘Entre nós, hoje em dia, o blues não é compartilhável’, escreve Soler. ‘Uma civilização que valoriza a competitividade e a conquista, mesmo se em última análise esta se limite à conquista do mercado, uma tal civilização não pode amar seus deprimidos, mesmo que ela os produza cada vez mais, a título de doença do discurso capitalista’.” (22)

Os deprimidos, que apesar de seu imenso número são verdadeiros “proscritos” sociais, cujos discursos ninguém parece a fim de ouvir, são descritos por Maria Rita Kehl como pessoas que estão “desajustadas” em relação ao sistema econômico e cultural imperante, e que por isso são tão incômodos: não suportam o sistema ao qual os outros estão tentando se ajustar e aceitar.

“Não há, entre os discursos hegemônicos da vida contemporânea, nenhuma referência valorativa dos estados de tristeza e da dor de viver, assim como do possível saber a que eles podem conduzir. O mundo contemporâneo demonizou a depressão, o que só faz agravar o sofrimento dos depressivos com sentimentos de dívida ou de culpa em relação aos ideais em circulação” (KEHL, 16).


>>> DE HERÁCLITO A BAUDELAIRE: O BLUES ATRAVESSA OS SÉCULOS

Na Antiguidade, excêntricas teorias, hoje obviamente obsoletas, procuravam explicar a melancolia de modo puramente orgânico: a bile negra seria a causadora destes saturninos estados de espírito. E desde então já se contrastavam grandes personalidades da intelectualidade segundo sua predisposição à gravidade ou à leveza — como no célebre contraponto entre o riso de Demócrito, que “seria uma manifestação da impossibilidade de tudo saber e da falta de sentido do mundo”,  e as lágrimas de seu “antípoda” Heráclito (KEHL, pg. 72). Também muito se sugeriu que haveria uma ligação entre melancolia e criatividade, entre depressão e genialidade, tão numerosos os artistas – de Baudelaire a Pessoa, de Virginia Woolf a Clarice Lispector – que criaram em meio à abatimentos, spleens e desassossegos extremos.

Partindo da interpretação de Benjamin sobre Baudelaire, Maria Rita sustenta que

“o heroísmo de Baudelaire não consiste em se fazer defensor da multidão fascinada e consumida pelas mercadorias e pelo trabalho braçal que a aproxima e afasta do brilho das mercadorias. Consiste apenas, o que já é muito, em descrer de tal fascínio.” (KEHL, pg. 75)

Os depressivos de hoje, pois, são como pequenos Baudelaires, apesar de raramente atingirem seu gênio poético e sua potência expressiva, que também não deixam-se fascinar e conquistar pelo cortejo das coisas a consumir nem pela atração do trabalho mecanizado, monótono e mau-pago.

Por isso, do mesmo modo como há um “sentido político no dandismo” de Baudelaire, há um sentido político nos deprimidos que escondem-se debaixo de suas cobertas, como um modo de retirarem-se de um jogo social que são incapazes de jogar. Isto passa também pela Indústria Cultural, tão severamente esmiuçada e criticada por Adorno e a Escola de Frankfurt, e pela Sociedade do Espetáculo teorizada por Guy Debord —

“imagens que aparentemente se diversificam para repetir sempre o mesmo mandato”, escreve Maria Rita, “uma nova forma de discurso único, fundado sobre razões de mercado, muito mais eficaz do que a dominação da Igreja na Idade Média – já que a norma contemporânea se impõe pela sedução, não pela interdição.” (KEHL, pg. 92)

Vivemos numa sociedade radicalmente constrastante com a medieval, onde o gozo carnal e sensível era condenado e anatemizado — repressão sexual e hedônica sustentada pelo poderio opressor de uma Igreja toda-poderosa. Hoje, o ascetismo e a moderação saíram completamente de moda frente às centenas de canais de TV, a proliferação da pornografia na Internet e fora dela, as técnicas de obsolescência programada dos produtos e às técnicas publicitárias que nos convidam a consumir sem cessar. Este imperativo de gozo se articula, é claro, com os ideais de eficácia econômica:

“Tal articulação subverteu os ideais de renúncia pulsional que oprimiam os contemporâneos de Freud, convocados a sacrificar suas modestas possibilidades de prazer em favor da produtividade, no período de consolidação do capitalismo industrial.” (KEHL, pg. 92)

Passamos para a fase do “capitalismo consumista” —  sistema que adora propagandear que devemos perseguir a “felicidade”… obviamente comprando-a no hipermercado e no shopping center. Devemos sim desejar ardentemente o gozo, desde que para gozar procuremos as satisfações enlatadas pela Coca-Cola ou por Hollywood! O problema é que todos aqueles que não conseguem “amar tudo isso” ou “ser um tigre”, como pedem alguns slogan publicitários, nem ter uma família Doriana toda-fofura ou um sorriso Colgate de orelha-a-orelha, sentem-se uns fodidos na vida. E deprimem-se ao não poderem encarnar o ideal do consumidor-satisfeito-sorridente-e-saltitante que o capitalismo-consumista solicita que sejam.

“O depressivo é aquele que se retira da festa para a qual é insistentemente convidado; sua produção imaginária empobrecida não sustenta as fantasias que deveriam promover a crença na combinação aparentemente infalível entre o espetáculo e o capital. Os depressivos, cujo número parece aumentar na proporção direta dos imperativos de felicidade, são incômodos na medida em que questionam esse projeto.” (KEHL, 104)

São eles que “desafinam o coro dos contentes”, para usar o brilhante verso de Torquato Neto, e que “afundam a nau dos bem adaptados ao século da velocidade”, do entretenimento fútil e do consumo desenfreado.

* * * * *

>>>PROZAC GENERATION!

Outra hipótese que tenta explicar o exponencial crescimento de diagnósticos de depressão é a da ganância da indústria farmacêutica que, estando a fim de faturar milhões no Prozac e demais painkillers, instiga a medicalização de qualquer tristezazinha ou bode passageiro. Mas não será “teoria-da-conspiração” demais julgar que estas empresas multinacionais fabricantes de remédio tem este poder todo? Tão grande oferta de medicação não seria devida à imensa demanda? Ou as multinacionais teriam culpa na própria criação desta demanda? Decerto que já sabemos que ela é capaz de diabólicas maquinarias – escancaradas em filme por Fernando Meirelles em O Jardineiro Fiel, por exemplo, no qual o continente africano serve como fonte de cobaias para o teste de remédios de duvidosas consequências para o organismo humano.

Maria Rita Kehl critica vigorosamente a tendência “medicamentosa” que procura extirpar de modo imediato a depressão (ou algo erroneamente diagnosticado como tal) receitando remédios – sintoma de uma sociedade viciada em soluções rápidas e conflitos quimicamente desfeitos.

“O projeto pseudo-científico de subtrair o sujeito – sujeito de desejo, de conflito, de dor, de falta – a fim de proporcionar ao cliente uma vida sem perturbações acaba por produzir exatamente o contrário: vidas vazias de sentido, de criatividade e de valor. Vidas em que a exclusão medicamentosa das expressões da dor de viver acaba por inibir, ou tornar supérflua, a riqueza do trabalho psíquico – o único capaz de tornar suportável e conferir algum sentido à dor inevitável diante da finitude, do desamparo, da solidão humana.” (53)

O processo de “cura” da depressão, ao invés do apelo ao imediatismo da farmacopéia, deve ser vagaroso: o deprimido deve aprender a “viver em seu próprio tempo” ao invés de sentir-se fora dos trilhos do tempos dos outros. Isso porque a “experiência subjetiva do tempo” que possuem os depressivos, frisa com insistência Maria Rita Kehl, é extremamente empobrecida. A depressão é vista por Kehl como uma “doença do tempo”, causada por uma certa desarmonia cacofônica entre o tempo subjetivo e o tempo-dos-outros (ou ainda, o tempo imposto pelo sistema econômico atual, frenético e apressado, que não suporta perder os segundos que são centavos…).

Pois se o depressivo sente-se apático, abatido, entediado, como se vivesse num tempo estagnado e onde “nada acontece”, é principalmente devido à sua incapacidade de “distender a temporalidade” — ele encontra-se num presente desvinculado do passado (tanto o pessoal quanto o coletivo) e do futuro (dada a atrofia de sua vontade e de seu desejo). “A duração, para o depressivo, frequentemente adquire a forma insuportável de um tempo estagnado, sem apoio em nenhuma lembrança significativa do passado, sem nenhuma fantasia que torne o futuro desejável.” (KEHL, 140) Lembremos da linda idéia de Virginia Woolf, que dizia que o tempo presente flui como um rio, mas é o passado que confere profundidade às águas…

Neste sentido, a psicanálise representaria uma possibilidade, para o depressivo, de vivenciar uma “temporalidade distendida”, onde o frenêsi e a pressa do “mundo-lá-fora” fossem substituídos pela calmaria e pelo silêncio — um “lugar” onde, mediado pela escuta do analista, a pessoa pode reencontrar sua temporalidade perdida, tanto num mergulho em suas reminiscências quanto na tentativa de construção de objetivos, projetados no futuro, que encham seu horizonte com ilhas cuja conquista pode ser desejada.

“Na duração do tempo diacrônico instaurado por essa ‘magia lenta’ que é a psicanálise, os depressivos se instalam aliviados, sem pressa, seguros de que é dessa temporalidade distendida que eles precisam para se libertar da pressão aniquiladora das demandas do Outro” (KEHL, 119).

Muitas outras explicações e hipóteses sociológicas e psicológicas podem ser arroladas na tentativa de explicar tamanha difusão de depressão e suicídio neste nosso início de século. Eu aqui gostaria de rapidamente sugerir uma, aliás nada original, que a Maria Rita Kehl comenta muito de leve, sem desenvolver a idéia: o fato de que os grandes centros urbanos, além da imposição de um estilo de vida frenético e de imperativos de consumo-feliz que são metralhados de todos os lados, são também formigueiros tão super-lotados que para muitas pessoas o convívio social torna-se um horror.  O inchaço das metrópoles faz com que as pessoas, por serem muitas, acabem por se “chocar” mais, de modos desagradáveis e irritadiços, como os porcos-espinhos de Schopenhauer. Claro que o ser-humano é um animal social, que procura a companhia dos seus, mas nos grandes centros o formigamento é tamanho que a presença dos outros, tornando-se compulsória e invasiva, fere aquela película que protege o que Goethe chamava de nossa “cidadela interior”. O depressivo, se esconde-se no subsolo, como o anti-herói do livro de Dostoiévski, talvez seja para escapar do fardo de pertencer a uma imensa massa, ruidosa e apressada, muitas vezes hostil e irritada, do qual ele não passa de uma ínfima parte… Situação que faz com que ele, ao invés de se sentir “acompanhado” e “acolhido”, sinta uma desagradável anomia e angústia por estar “apagado” em meio aos outros, com um destroço que flutua inotado pelos mares da multidão indiferente… Trancado em seu quarto, ele pelo menos pode ter a revigorante sensação de ser seu próprio centro (ainda que só dor e solidão se irradiem deste centro…).

Como conheço pouquíssimo de sociologia, não posso desenvolver estes argumentos com pesquisas e estatísticas que certamente estão sendo realizadas mundo afora averiguando as relações entre a vida nas grandes metrópoles e as patologias psíquicas como a depressão; mas largo aí estas idéias por sentir que são referendadas pela minha experiência pessoal de 5 anos morando na maior cidade da América Latina, onde eu tantas vezes tenho preferido permanecer no meu “subsolo” assistindo filmes de Bergman ou com um romance russo em mãos a enfrentar este monstro de mais de 15 milhões de cabeças chamado São Paulo…

Para finalizar, deixo uma das conclusões mais marcantes que a Maria Rita tira deste seu longo estudo sobre a relação entre a depressão e nossa cultura, além de uma canção que é uma das melhores expressões de desolação na arte dos últimos anos:

“O que distingue a sociedade de consumo não é o fato de que todos comprem incessantemente os bens em oferta, acessíveis a poucos, mas que todos estejam de acordo com a idéia de que tanto o sentido da vida social como o valor dos sujeitos sejam dados pelo consumo. Dito de outra forma, o que caracteriza a sociedade de consumo é o fato de que o fetiche da mercadoria, acrescido do valor (imaginário) de gozo, seja o verdadeiro organizador do laço social.” (KEHL, 100)

:: poeminha à la caeiro ::

Mirò

:: O VALOR DO PASSO ::

“Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos. E então cada flor amarela é uma nova flor amarela, ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A gente não é já o mesmo nem a flor a mesma. O próprio amarelo não pode ser já o mesmo. É pena a gente não ter exatamente os olhos para saber isso, porque então éramos todos felizes.” — ALBERTO CAEIRO


Caminho por beiras-de-mar descalço,
deixando as línguas das marés
beijarem meus pés.

Despreocupado com as pegadas
que assim que imprimo sobre a terra,
as águas apagam…

Não vou para que me sigam.

Caminho de curioso, de olhos pasmos.
Que a trilha dê em nada, em abismo, em mata fechada,
não me estraga em nada a minha jornada.

Vou, não para chegar, mas para ir.

E não temo retornar sobre meus passos:
serão, na volta, passos novos,
diferentes dos da vinda.

E também o mar, o Sol, meus pés,
já não serão os mesmos:
cada instante brilha de ineditismo.

O valor do passo não está no rastro.

Está no passo.

* * * * *

Quanta poesia já nasceu de passos vagabundos!
E pesquisem quantos carteiros são poetas: não sei de nenhum.
(A não ser os que são carteiros das próprias cartas de amor.)
É que seus passos são demasiado ordeiros:
passos de carneiro, os de carteiro, e não de poeta…

Andar à toa, no esmo das internas marés, é fecundo.

Não é preciso ir a lugar algum.
O que é preciso é se estar onde se está.

Presente à presença:
prestrando testemunho.
Ainda que seja mudo.
Olhos em espanto.

Melhor do que fitar horizontes
Com olhar de insaciável desejo
É saber amar cada um dos mares
Que vão sendo singrados e transpostos.

Pois talvez a felicidade não consista
Em atingir-se o hoje fora-de-alcance
Mas no alegrar-se de alma inteira
Com o ter alcançado o que hoje tem-se.

O valor do passo não está no rastro.

Está no passo.

:: Rousseau (um trampo acadêmico chatonildo…)


A CIVILIZAÇÃO NO BANCO DOS RÉUS

breve passeio pelas idéias de Jean Jacques Rousseau

“Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais…”. É o que escreveu o poeta francês Paul Válery, de certo modo ecoando um trecho de Rousseau (C.S., Livro 1, XI) no qual este nos lembra que a vida dos Estados e das civilizações é transitória e passageira: o império da mortalidade não se estende somente a nossas existências individuais, mas engloba também os corpos políticos.

“Se Esparta e Roma pereceram, qual o Estado que pode esperar durar eternamente? Se quisermos constituir um estabelecimento durável, não pensemos em absoluto em fazê-lo eterno. Para sermos bem-sucedidos, não devemos tentar o impossível, nem nos vangloriarmos de dar à obra dos homens uma solidez que as coisas humanas não comportam”. (C.S., pg. 90). Em outro trecho de sua obra, põe ainda a questão crucial de “saber se mais importa aos impérios serem brilhantes ou fugazes, ou virtuosos e duráveis” (D.C.A., pg. 222).

É preciso, pois, estudar aquilo que conduz os corpos políticos à degeneração e à decrepitude, de modo semelhante a um médico que diagnostica e procura remediar e curar os males que acometem um organismo. Do mesmo modo que o indivíduo possui fases sucessivas – de fraqueza e dependência, de maturação e crescimento, de ápice de vigor físico e mental, de decadência e de velhice etc. – também os Estados passam por sucessivas “idades”, imensamente variadas em relação às eras e aos espaços. Para Rousseau, porém, os povos muitas vezes  iludem-se ao pensar que estão indo rumo ao melhor, trilhando a rota do progresso, quando caminham, na verdade, rumo à barbárie, ainda que esta se oculte sob um véu de adornos, riquezas e polidez…

É bem conhecido, quase senso-comum, o “Mito do Bom Selvagem” de Rousseau — que sintetiza de modo muito eloquente todas as críticas e suspeitas que o filósofo dirigia à figura da Civilização.  J.J.Rousseau,  numa otimista perspectiva sobre a natureza humana, sustentava a tese de que haveria uma “bondade natural” no ser humano não-civilizado e que seria a sociedade (com seus vícios, desigualdades, discórdias, desarmonias, ganâncias, luxos, futilidades, duelos de propriedade etc.) que corromperia este idílio primevo. Contrapondo-se à Hobbes, que em seu Leviatã pinta com cores sombrias o “estado de natureza”, em que vige a “guerra de todos contra todos” e os humanos vivem apavorados, sob constante ameaça de violência, Rousseau descreve o “estado de natureza” como algo que beira o “idílico”.

Romantismo datado e obsoleto? Pelo contrário! Pensemos num exemplo altamente contemporâneo onde uma mentalidade “rousseauísta” mostra-se viva e atuante: em Into The Wild – Na Natureza Selvagem (livro de Jon Krakaeur recentemente adaptado para o cinema, com direção de Sean Penn), o personagem principal revolta-se contra as iniquidades e os luxos supérfluos da sociedade-de-consumo capitalista, corta as amarras que o prendem à esta civilização, e lança-se a uma existência mais autêntica e livre em meio à natureza indomada, como um Robinson Crusoé voluntário, colhendo em sua jornada muitas sabedorias e epifanias…

O que Rousseau está pondo em cheque, bem antes de Freud versar sobre o “mal-estar na civilização” (que decorreria, segundo este, da repressão de nossos instintos naturais que seria necessária ao processo civilizatório), é a “possibilidade da felicidade” no estado civilizado. É como se Rousseau estivesse perguntando à humanidade: não seríamos mais felizes se levássemos uma vida mais aparentada àqueles que chamamos de “selvagens”, se nos livrássemos da obsessão com a propriedade privada, se nos desfizéssemos das quinquilharias e bugigangas da civilização…? Sugestão profundamente atual, já que, p. ex., nossa sociedade consumista nos persuade, dia a dia, pela propaganda explícita ou subliminar, dos êxtases que teremos comprando e possuindo itens que são, de resto, absolutamente supérfluos…

“Eu pergunto”, diz Rousseau, “qual é a vida, civil ou natural, mais sujeita a se tornar insuportável aos que dela desfrutam. Vemos à nossa volta quase que apenas gente a lastimar-se da existência, e mesmo inúmeras criaturas que dela se privam… Eu pergunto se alguma vez se ouviu dizer que um selvagem em liberdade haja apenas sonhado em queixar-se da vida ou matar-se…” (D.O.D., p. 164).

Indo na contra-mão da noção comum de que um “selvagem” é bestial, cruel, sanguinário e “sem coração”, como se não tivesse nenhuma consciência moral ou super-ego, Rousseau sustenta que a empatia/identificação existe em alto grau já no estado de natureza e que o “selvagem” possui uma “repugnância inata de ver sofrer o semelhante”, tendência que encontramos também nos animais e que é o princípio das outras virtudes (como a generosidade, a clemência, a humanidade).

Só após a instituição da propriedade privada e a abolição do estado natural é que o “vício moral” surgiria. É uma tese que Freud, mais pessimista, irá recusar: “A agressividade não foi criada pela propriedade”, escreve ele em “O Mal-Estar na Civilização”. “Reinou quase sem limites nos tempos primitivos, quando a propriedade ainda era muito escassa…” (FREUD, pg. 168).

Contrário a esta noção de uma “agressividade sem limites” dos selvagens e dos indígenas, Rousseau destaca que esta comiseração de que fala é anterior à toda reflexão: não é por pensar na dor do semelhante que nos compadecemos dela, mas é por sentirmos que ele padece, por identificação e empatia, pela imaginação e pela sensibilidade, que nasce em nós, a despeito da razão, este sentimento natural de piedade.

Há, pois, um sentimento espontâneo de compaixão que serve como fundamento da moral, idéia que encontra-se também em ancestrais filosofias orientais: como em Mêncio, na China Antiga, o que François Jullien bem apontou em seu livro Fundar a Moral, onde procura estabelecer um diálogo entre a ancestral sabedoria chinesa e a filosofia das Luzes:

“qualquer um que vê uma criança quase caindo num poço é tomado por um temor violento e se precipita para salvá-la. Ora, não se faz isto para obter as boas graças dos pais da criança, nem para atrair os elogios dos vizinhos ou dos amigos, nem mesmo para evitar uma má reputação. O que caracteriza este sentimento do insuportável, diante da infelicidade do outro, é que ele não procede de nenhum cálculo, não é objeto de nenhuma reflexão, e a reação é espontânea” (JULLIEN, pg. 11).

Em Rousseau sugere-se que o “desenvolvimento da razão”, no homem-civilizado, apresenta-se concomitante com um certo “refreamento” de sua capacidade de empatia e de um exacerbamento de uma tendência “individualista”, atitude que consiste num “tapar os ouvidos” aos lamentos alheios. Já o selvagem, segundo ele, vive num estado de consciência muito mais apto à identificação e à compaixão com os outros, e é “visto a entregar-se atordoadamente ao primeiro sentimento humanitário” (D.O.D., 168).

Visão “otimista” e “idílica” da natureza humana, certamente, que considera uma “repugnância de praticar o mal” que é “experimentada por todos os homens, independentemente das máximas da educação” (D.O.D., pg. 169). Contra a visão socrática de que a virtude só decorre do trabalho racional, de que o fazer-o-bem é decorrência do conhecer-o-bem, Rousseau destaca que há uma espécie de “bondade natural” que antecede a razão, e sem a qual “o gênero humano já de há muito não existiria” (D.O.D., 169). Mas ele faz a ressalva importante, no Emílio, de que “para impedir a piedade de degenerar em fraqueza” é essencial que só nos entreguemos a ela “na medida em que estiver de acordo com a justiça”; ademais, mais vale “ter piedade com a nossa espécie do que com nosso próximo” (Em, p. 303).

A piedade, pois, não é “ensinada” – e o “ensino civilizado” talvez somente a resfrie e amaine, ao invés de exaltá-la e expandi-la. A civilização, de certo modo, engendra o egoísmo e o isolamento dos eus, fabrica homens presos ao seu amor-próprio, que perderam contato com as genuínas manifestações de empatia e piedade pelo próximo que os que chamamos de “selvagens” manifestam de modo tão espontâneo. Isto é que, no estado natural, “faz as vezes de lei, de costumes e de virtude, com a vantagem de que ninguém intenta desobedecer-lhe a doce voz” (D.O.D., pg. 168).

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De Prometeu a Fausto, os mitos se multiplicam alertando a raça humana sobre as ciladas da ciência, do excesso de saber, da busca incontida por conhecimento. Rousseau cita, no início da 2a parte do D.C.A., uma curiosa “tradição”, “passada do Egito à Grécia”, que conta ter sido um “deus inimigo do repouso dos homens” quem inventou a ciência (pg. 219)! O próprio Nietzsche, logo em sua primeira obra, A Origem da Tragédia, polemizava com Sócrates, o “primeiro dos homens teóricos”, questionando se esta “fome de ciência” não teria consequências funestas, se suas pretensões de verdade não seriam descabidas e se não haveria um mal em reprimir as tendências dionisíacas, sentimentais e ancestrais de nossos espíritos…

Pode-se dizer, portanto, que Rousseau foi um autor que “soou os alarmas” contra os “excessos da civilização” (com sua obsessão pela propriedade privada, pelo progresso técnico, visto quase como um fim em si, e pela “ciência instrumentalizada”) ressaltando tudo o que perdíamos e deixávamos para trás ao abandonar a “naturalidade”. Rousseau possui uma obra repleta do que os ingleses chamariam de cautionary tales, ou seja, contos que recomendam prudência e cautela – como ele mesmo sublinha na carta ao senhor Philopolis, ele procurou alertar os homens contra o “perigo de ir tão depressa” e contra “as misérias de uma condição que tomam como a perfeição da espécie.”

Como Sócrates fazia na Atenas de sua época, Rousseau desconfia da “eloquência frívola”, da “presunção” ao saber, dos “letrados ociosos”, dos “vãos e fúteis declamadores”, dos doutos cheios de títulos que pretendem ter atingido a verdade última sobre as coisas… Vê nisso sinais de decadência, ou seja, de “envelhecimento” do corpo político. Em vários momentos de seu Discurso Sobre as Ciências e As Artes, manifesta seu ceticismo em relação à suposta progressão simultânea e proporcional do conhecimento e da virtude. Para ele, os “homens-de-bem” se “eclipsaram” em sociedades em que as ciências e as artes alçaram-se alto demais. O trecho a seguir é bem representativo da radical crítica que Rousseau realiza contra aqueles que põe as vãs ciências acima das virtudes, e as honrarias mais alto que o bem:

“Não mais se pergunta a um homem se possui probidade, mas sim se tem talento; nem de um livro se indaga se é útil, mas se está bem escrito. As recompensas são prodigalizadas às belezas do espírito, e permanece a virtude desprovida de honrarias. Há milhares de prêmios para os belos discursos, nenhum para as belas ações.” (D.C.A., pg. 226).

Se na ética platônica o bem é decorrência de uma percepção racional do Bem em Si, de uma “ascensão” que vá além do domínio da sensibilidade e erga-se até às essências imutáveis do domínio inteligível, em Rousseau aparece uma certa disjunção desta duas ordens, o saber e a virtude. Ele, por exemplo, elogia Esparta, “cidade tão célebre por sua feliz ignorância”, onde as inúteis doutrinas eram devidamente desdenhadas, enquanto suspeita de Atenas, “residência da polidez e do bom gosto, país dos oradores e dos filósofos” (D.C.A., pg. 215).

Para Rousseau, “as almas se foram corrompendo à medida que nossas ciências e nossas artes avançaram para a perfeição” (D.C.A., pg. 213). Do mesmo modo que o homem foi tornando-se cada vez mais corrupto e depravado ao afastar-se do estado natural, sendo a sociedade civil aquilo que engendra as desigualdades e as guerras, a “virtude” também foi sendo escamoteada pelas ciências vãs e pelas artes frívolas. A polidez, a aparência, a pompa, a futilidade, a vã curiosidade, o ornamento, a presunção de saber, a pseudo-sabedoria etc. tomaram o lugar do “bom coração” e da virtude “simples” do homem natural.

Rousseau não cinde o homem em dois domínios, o racional e o sensível, estabelecendo uma hierarquia de valor entre ambos, à maneira platônica-cristã, mas considera que a razão e as paixões são fenômenos correlatos, que aparecem e se desenvolvem “mesclados”, sendo impossível conceber o funcionamento de um “independente” do de outro.

“Digam o que quiserem os moralistas, o entendimento humano muito deve às paixões, as quais, de comum aprovação, também muito lhe devem. É graças à sua atividade que a nossa razão se aperfeiçoa. Procuramos conhecer por desejarmos desfrutar. E não é possível conceber por que se dará ao trabalho de raciocinar quem não tiver nem desejos nem receios.” (D.O.D., 155)

Não faz, portanto, um elogio de uma “razão” que fosse “fria”, neutra, desprovida de quereres, empenhada num conhecimento no qual não se imiscuísse nenhum desejo, mas aponta a necessidade crucial de concentrar esforços não somente em empreendimentos racionais, científicos, artísticos (em suma: civilizatórios), mas atentar para a virtude e para o bem. Pois o bem-fazer é mais importante que o bem-dizer. E o cultivo das virtudes é um valor superior à aquisição de eloquência ou vãos saberes.

“Ó virtude! Ciência sublime das almas simples!”, diz ele ao fim do Discurso Sobre as Ciências e as Artes, tomado por um certo lirismo romântico. “Não estão teus princípios gravados em todos os corações? E não é o bastante, para aprender tuas leis, entrar em si mesmo e ouvir a voz da própria consciência no silêncio das paixões?” Ele mesmo responde pela afirmativa: “Eis aí a verdadeira filosofia; saibamos contentar-nos com ela.” (D.C.A., p. 231).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Trad. De José Octávio de Aguiar Abreu. Em Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

HOBBES, Thomas. Leviatã – ou Matéria, Forma E Poder De Uma Republica. São Paulo: Martins Fontes.

JULLIEN, François. Fundar a Moral – Diálogo de Mêncio com um filósofo das Luzes. Trad. Maria das Graças de Souza. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. A Origem da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social; Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens; Discurso Sobre as Ciências e as Artes. Trad. Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix.

——————————–. Émile, ou de l’éducation. Paris, Garnier, 1961.

VÁLERY, Paul. A Crise do Espírito.

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SIGLAS UTILIZADAS:

C.S. = Contrato Social
D.C.A. = Discurso Sobre as Ciências e as Artes
D.O.D. = Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens
Em = Emílio ou a Educação

:: not one is demented with the mania of owing things… ::

“I could turn and live with animals,
they are so placid and self-contained.
I stand and look at them long and long;
They do not sweat and whine about their condition.
They do not lie awake in the dark and weep for their sins.
Not one is dissatisfied,
not one is demented with the mania of owing things,
Not one kneels to another,
nor to his kind that lived thousands of year ago.
Not one is respectable or unhappy over the whole earth.”

WALT WHITMAN