O GRUNGE QUE SE MEDE EM GIGATONS: Pearl Jam mostra vitalidade e sintonia com nossa época em “Gigaton” (2020), seu 11º disco

A música, quando entra em sintonia fina com o tempo histórico e consegue expressar o zeitgeistatinge aquele estado raro em que ultrapassa os modismos e consumismos, transcendendo a condição que tentam lhe impor, a de mercadoria consumível e rapidamente descartável, para transformar-se em obra-de-arte de interesse perene, inclusive para futuras gerações que queiram entrar em contato com uma obra que seja um sign of the times.

Obviamente, nada impede que uma obra musical seja simultaneamente um marco histórico e uma mercadoria altamente lucrativa (é só pensar no fascinante paradoxo da Beatlemania ou nos rios de dinheiro gerados pela cataclísmica eclosão do Nevermind do Nirvana). São raros, mas existem os “queridinhos dos críticos” que são simultaneamente um estouro nas paradas. Na corda-bamba entre a margem da indústria cultural e a margem da aventura artística, as melhores bandas do mainstream mass-mediático são aquelas que, a exemplo do Pearl Jam, não se rendem a serem meros serviçais do sistema a serem achincalhados como sell-outs, prosseguindo sempre com este alvo no horizonte: criar uma arte que esteja à altura de expressar nossa existência coletiva no tempo atual.

Quando a arte tem esta umbilical ligação com a atualidade e esta capacidade de captar o aqui-e-agora, ela é menos evanescente do que o seu banal hit toppin’ the charts (o sucesso que dura pelo verão e depois é semi-esquecido para venham os próximos na fila da fama…). “O dever do artista” é ser um espelho onde se reflete o tempo em que o artista vive, como propunha Nina Simone. Mas a arte serve também, como queria Brecht (citando Maiakóvski), não apenas como um espelho que reflete o mundo (deixando-o subsistir tal qual é) mas muito mais como um “martelo para forjá-lo”. Como um escultor que trabalha a pedra bruta para dê-la extrair O Pensador ou o Laoconteo artista martela sua matéria-prima, dando forma a algo novo ao invés de ser apenas espelho ou prisma.

Na música, às vezes o artista martela canções nos tímpanos dos ouvintes até que elas entrem para um tesouro cultural comum que a coletividade enxerga como seu repositório de clássicos, ou seja, aquilo que merece ser salvo do naufrágio do tempo. Na da sucessão de gerações, os clássicos são aquilo que consideramos digno de ser transmitido pelos contemporâneos aos vindouros. O exemplo mais emblemático que consigo pensar é deste ethos Brechtiano alçando-se à condição de clássico, na história do rock, é o The Clash.

Uma banda tão espetacularmente bem-sucedida em sua capacidade de entrar sintonia com o tempo histórico, tão supimpa em sua expressão entusiasmada de um ímpeto ativista e transformador, que fazia com que todas as outras parecessem desimportantes. O The Clash, para nós seus fãs, é descrito com a hipérbole: A Única Banda Que Importa. Pois Joe Strummer, Mick Jones e cia não faziam apenas a expressão da época do mundo, além disso explodiam nos amplificadores a fúria criativa de quem quer modificar o que há pois descobriu que a realidade social é co-criável por nós. É um pouco deste ethos, crucial por suas ressonâncias posteriores em bandas cruciais como o Fugazi ou o Rancid, que fez de London Calling uma das maiores obras-primas da história da arte (e fodam-se quem, por preconceito acadêmico ou elitismo estético, pré-julga o movimento punk como se fosse incapaz de alçar-se às nuvens elevadas das Belas Artes…).

É que a arte, criando a si mesma, recria o mundo, refaz os outros, no que poderíamos chamar, sob a inspiração de Gênio Gil, de uma refazenda de tudo – a começar pelas nossas percepções de nós mesmos e do próprio mundo. Isto é, a arte é uma criação do engenho criativo humano que entra na História como uma novidade, expressando o que antes não tinha sido expressado, expandindo a paleta de cores, de dramas, de sinfonias etc. do mundo-em-fluxo onde estamos embarcados.

Tendo atravessado toda a Era Grunge, do começo dos anos 1990 até a aurora dos 2020, resilientes como ninguém daquele movimento, o Pearl Jam é hoje uma destas instituições que já virou clássica. O quinteto formado por Eddie Vedder, Jeff Ament, Mike McCready, Stone Gossard e Matt Cameron, nascido em 1990 das trágicas ruínas do Mother Love Bone (banda de Seattle que foi a pique com a overdose fatal que acometeu seu líder Andy Wood, o que deu ensejo para a criação do Temple of the Dog), adentra a década de 2020 com muita vitalidade.

Após o colapso do Nirvana, do Soundgarden, do Stone Temple Pilots, do Hole, dos Screaming Trees, além da reinvenção com novo vocalista do Alice in Chains, alguns se apressaram a decretar a morte do grunge após tantas bandas já terem encerrado suas atividades (muitas vezes de maneira trágica, devido a suicídios e overdoses fatais). Mas o Pearl Jam sobreviveu a tudo, mantendo pulsante o Som de Seattle – e está vivinho para cravar em 2020 um dos álbuns mais significativos desta entrada de década.

Em meio à pandemia de covid-2019, no primeiro semestre de 2020, foi lançado “Gigaton”, novo álbum das lendas vivas do Grunge: Pearl Jam ressurge após um hiato de 7 anos desde “Lightning Bolt” (disco de 2013). A banda de Seattle entrega ao mundo seu 11º álbum de estúdio, com 12 canções inéditas, sem perder o pique mesmo após 3 décadas de carreira (os 20 primeiros deles já celebrados em livro e documentário através do magistral projeto PJ20 de Cameron Crowe).

 

Os caras do Pearl Jam – liderados por um incansável Eddie Vedder, um dos grandes poetas líricos e um dos mais expressivos cantores de nossa geração – encaram o desafio gigatônico de expressar musicalmente os dilemas mais urgentes de nossa época:

“O clima é uma preocupação estimulante [galvanizing] em ‘Gigaton’, com o Pearl Jam estruturando seu décimo álbum em torno da crise climática iminente. Há pouca sutileza a esse respeito: o título se refere à quantidade de gelo perdido nos pólos árticos, a capa do álbum mostra uma geleira derretida, e as letras estão sujas com imagens apocalípticas, ainda que nem todas derivadas do clima.” Stephen Thomas Erlewine, AMG All Music Guide (https://bit.ly/3dDV92m)

Aderindo ao catastrofismo esclarecido, o Pearl Jam evoca a ciência climática atual que mede em gigatons a quantidade de gelo derretido na Antártida ou na Groenlândia em nossa era de Efeito Estufa – segundo um Tweet da banda, 1 gigaton equivale ao peso de 100 milhões de elefantes ou 6 milhões de baleias azuis.

Em uma das obras-primas do álbum, “Retrograde”, a banda utiliza um vídeo-clipe sensacional para evocar grandes metrópoles sendo afundadas debaixo de dilúvios causados pelas mudanças climáticas. Menciona figuras contemporâneas que estão na vanguarda da luta ecológica, como Greta Thunberg e o movimento grevista #FridaysForFuture. Conclama ainda que “será preciso muito mais que amor ordinário” para nos erguer para cima diante deste contexto que ameaça nos submergir (o que lembra do ethos de Neil Young em canções como “Lotta Love”).

Outra das obras-primas do “Gigaton” (2020), novo álbum do Pearl Jam, “Quick Scape” (Fuga Rápida) revela Vedder, um dos melhores letristas vivos, aderindo ao eu lírico de um nômade das catástrofes sócio-ambientais. “Cruzei a fronteira para o Marrocos”, canta a certo ponto. “Quantas distâncias tive que cruzar / Até encontrar um lugar que o Trump ainda não tinha fodido!”.

A vida dura do refugiado, condenado a “levantar pedras por um salário”, evoca a trágica punição imposta por Zeus a Sísifo, na mitologia grega. O que não impede que o eu-lírico seja também o veículo daquela Sabedoria que Vedder expressou na trilha-sonora que compôs para Into The Wild – Na Natureza Selvagem: “Atento a todo pôr-do-sol / Nenhuma noite estrelada desperdiçada…”. Siga a letra na íntegra e aprecie o videoclipe das lendas vivas do grunge:

Reconnaissance on the corner
In the old world not so far
First we took an aeroplane
Then a boat to Zanzibar
Queen cracking on the blaster
And Mercury did rise
Came along where we all belonged
You were yours and I was mineeah, yeah

Had to quick escape
Had to quick escape
Had to quick escape
Had

Crossed the border to Morocco
Kashmir then Marrakech
The lengths we had to go to then
To find a place Trump hadn’t f*cked up yet
Living life on the back porch
Lifting rocks to make a wage
Every sunset paid attention to
Not a starry night went to waste

Had to quick escape
Had to quick escape
Had to quick escape

And here we are, the red planet
Craters across the skyline
A sleep sack in a bivouac
And a Kerouac sense of time
And we think about the old days
Of green grass, sky and red wine
Should’ve known so fragile
And avoided this one-way flight

Had to quick escape…

O Pearl Jam tornou-se uma das bandas atuais que melhor conseguiu, em suas mutações, seguir sintônica com o que rolava de mais urgente no globo. Rebeldes e dissidentes, as canções de Vedder e cia explodem nos amplificadores com a ousadia de tematizar os descaminhos da evolução humana (“Do The Evolution”), as tendências suicidas da civilização capitalista-ocidental (“World Wide Suicide”), a angústia juvenil e as engrenagens de um massacre escolar (“Jeremy”), dentre outros temas cabeludíssimos.


Em 2020, o Pearl Jam segue honrando a sonoridade e a atitude das bandas do passado que mais inspiram a caminhada do mamute grunge: penso no The Who, em Neil Young e Crazy Horse, em Bruce Springsteen, mas também nos Ramones. O processo de amadurecimento de Vedder, que parecia conduzi-lo a se tornar um ícone folk, o Dylan ou Young de sua geração, como mostra sua criação solo mais genial, Into the Wild, e como sugere também sua faceta mais suave e tranquila que se expressa no projeto Ukulele Songs, não foi uma maturação que o tenha feito esquecer suas raízes punk grunge. 

Canções como “Quick Scape”, “Superblood Wolfmoon” ou “Never Destination” revelam um Vedder que nunca cessou de amar os Ramones. Além de uma instituição da história do movimento punk, acredito que os Ramones tem uma significação mais ampla, para o rock’n’roll como um todo, entendido não como estilo musical mas também como subcultura. Em outros termos, tão importantes quanto Chuck Berry, Little Richard, Elvis Presley, Jerry Lee Lewis ou Bo Didley para  história do rock’n’roll, os Ramones são uma espécie de condensação daquilo que o punk propôs: o back to basics, o foco na energia rítmica, na entrega emocional, na eletricidade exuberante, na ausência de firulas para que pudesse melhor brilhar o essencial.

Joey Ramone, enquanto vivia, serviu como uma espécie de mentor para o cantor e compositor do Pearl Jam de muitas maneiras, sobretudo conduzindo o Pearl Jam e seu líder a estarem sempre engajados com os “elementos fundamentais do rock’n’roll”, como o próprio Vedder relata no livro Pearl Jam 20 (p. 314): “Munição extra [para Vedder] veio do falecido Johnny Ramone, que não apenas inspirou a letra de “Life Wasted”, mas desafiou Vedder a estudar os elementos fundamentais do rock’n’roll” – e sabe-se do impacto emocional que a vida e a morte de Joey tiveram sobre Vedder:

– Há essa energia fúnebre, quando você literalmente se senta ali com a morte de seu amigo e percebe como a vida é preciosa – diz Vedder sobre a morte de Joey Ramone. Funerais e casamentos são bons para isso. Você tem essa sensação renovada de viver a vida ao máximo quando você vê como ela evapora rápido. Você não dá o devido valor… ‘Life Wasted’ veio disso: ‘Já passei por isso, uma vida desperdiçada, nunca voltarei’. Viva a vida ao máximo. Eu não ia deixar essa perda profunda passar sem reconhecimento.”

O reconhecimento que Vedder quis expressar por seu ídolo e amigo passou inclusive por cantar com os Ramones no show de despedida em 1996 (lançado no álbum We’re Outta Here) e pelo papel que ele teve como anfitrião da consagração Ramônica no Rock’n’roll Hall of Fame em 2002. Um bootleg interessante revela Vedder cantando Ramones:

É bem verdade que o Pearl Jam transcendeu aquela simplicidade dos Ramones que alguns confundem com tosquice, mas que não é senão a arte do foco energético concentrado que torna tão pulsante a maquinaria sônica rock’n’roller ramônica. O Pearl Jam se complexificou, explorou muitas sonoridades e afetos, tornou-se capaz de soar às vezes como o Jethro Tull ou o Pink Floyd, bandas nas antípodas dos Ramones. Mas algo de ramônico sempre permaneceu lá, no âmago do Pearl Jam, e ouso afirmar que está aí um dos segredos para a vitalidade do grupo.

É verdade que, como Gigaton mostra, a concepção de álbum que move o Pearl Jam difere bastante daquela que norteava bandas como os Ramones, o AC/DC, o Motörhead ou o Nirvana – para estas bandas, com o perdão de uma generalização que corre o risco de uma certa injustiça, um bom álbum retira sua coerência do fato de que as canções soam parecidas umas com as outras, seguem-se numa acachapante fileira de riffs matadores e refrões-chiclete, gerando um daqueles objetos que os fãs adoram pois está inteiramente repleto de thrills (e nenhum filler). 

O Pearl Jam, em contraste, pensa um álbum como um “épico” onde a diferenciação é valor: o disco deve ter muitos contrastes, mesclando as pedradas pesadas mas também as baladonas mais atmosféricas. Deve ter aquele frio na barriga e aquela taquicardia de uma viagem de montanha-russa, mas pode e deve conter também um momento mais contemplativo, como flutuar num lago sobre um caiaque sob a luz de uma lua cheia enquanto lobos uivam para a lua. Grandes álbuns do Pearl Jam, como Vs, Yield, Binaural, Riot Act, tem esta abordam do álbum multi-colorido e excêntrico, que viaja de momentos punky e explosivos em direção a experimentalismos menos palatáveis, para depois voltar à quebradeira catártica.

O Pearl Jam chegou em 2020 com uma single que mostra a banda querendo brincar com sonoridades meio funky, em “Dance of the Clairvoyants”, que parece uma homenagem a David Byrne e os Talking Heads, mas que também dialoga com as obras-primas do Gang of Four nos anos 1970 e 1980 (Entertainment, Solid Gold…). 

Esta ousada sonoridade, com sabor de excentricidade, que o primeiro single de “Gigaton” traz, mostra não só que o Pearl Jam curte e idolatra os caras que fizeram obras-primas como Fear of Music Remain in Light: é verdade que os Talking Heads re-vivem através do prisma grungy-funky de “Dance of the Clairvoyants”, mas isso se dá sem que o Pearl Jam perca o bonde do contemporâneo. A música dialoga perfeitamente com a obra de algumas das melhores bandas atuais, como o s maravilhosos Dirty Projectors e TV On The Radio.

Já em “Seven O’Clock”, uma power-baladona que honra como heróis os xamãs nativo-ameríndios Sitting Bull e Crazy Horse, o Mr. Trump toma na testa um petardo: é xingado de “Sitting Bullshit”, “our sitting president”. A música é um tratado sobre as ações tresloucadas de húbris dos seres humanos diante da natureza, exemplificada pela atitude de alguém que agarra uma borboleta, quebra suas asas e a põe numa vitrine, desprovida de toda a sua beleza desde o momento em não pôde mais voar livre:

“Caught the butterfly, broke its wings then put it on display
Stripped of all its beauty once it could not fly high away
Oh, still alive like a passerby overdosed on gamma rays
Another god’s creation destined to be thrown away
Sitting Bull and Crazy Horse, they forged the north and west
Then you got Sitting Bullshit as our sitting president
Oh, talking to his mirror, what’s he say, what’s it say back?
A tragedy of errors, who’ll be the last to have a laugh?”

É 2020 e talvez não haja em atividade nos EUA nenhuma banda tão capaz quanto o Pearl Jam de denunciar a “tragédia de erros” que domina um virulento zeitgeist, ao mesmo tempo que prova, por sua própria resiliência, a possibilidade de uma trajetória de acertos. O ethos pearljâmmico, aquilo que segue animando esta lenda viva do rock global, tem ainda muita relevância em nosso mundo, mostrando que as duas visões sobre as funções da arte que mencionamos a pouco – a de Nina Simone, a de Brecht / Maiakóvski – não são mutuamente excludentes mas sim conjugáveis. O artista tem sim o dever de refletir em sua obra o tempo histórico, mas sua obra é também um martelo com o qual forjar o novo. O élan vital que atravessa a obra do Pearl Jam, banda incansável e que não quer ir dormir na auto-satisfação, é um salutar contágio nestes tempos em que viralizam desgraças.

Eduardo Carli de Moraes
Abril de 2020
http://www.acasadevidro.com

 

OUÇA TAMBÉM, DE “GIGATON”:

DISCOGRAFIA DO PEARL JAM:

01. Ten (1991)
02. Vs. (1993)
03. Vitalogy (1994)
04. No Code (1996)
05. Yield (1998)
06. Binaural (2000)
07. Riot Act (2002)
08. Pearl Jam (2006)
09. Backspacer (2009)
10. Lightning Bolt (2013)
11. Gigaton (2020)

 

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Adriel Vinícius lança o álbum “Vivo Aqui e Agora” (2019), gravado em A Casa de Vidro Ponto de Cultura em parceria com Bern Studio Live

A Casa de Vidro Ponto de Cultura, em parceria com Bern Studio Live, apresentam o álbum ao vivo de Adriel Vinícius, Vivo Aqui e Agora (2019), contendo 10 canções autorais (ouça na íntegra em YouTube: http://bit.ly/33wXg2i). O show contou com participação especial do rapper Vitor Hugo Lemes (VH – O Escrivão) nas músicas “Ande” e “Preto”. Faça o download gratuito do disco: http://bit.ly/2IUgg2R (MP3 de 320kps).

TRACKS:

01 – Ande (Feat. VH) (0:17)
02 – Areia Vermelha (8:59)
03 – De Rolê (12:15)
04 – Buquê de Plástico (16:18)
05 – Netflix (19:33)
06 – Esferográfica (23:02)
07 – Casa de Ferro (26:05)
08 – Vida Rara (29:28)
09 – Força Flor (30:52)
10 – Preto (Feat. VH) (37:27)

Gravado em 28 de Setembro de 2019, em Goiânia, no ponto de cultura A Casa de Vidro em 1ª Av. 974 (St. Leste Universitário). Técnico de som e gravação: Bern Silva. Produção cultural e audiovisual: Eduardo Carli de Moraes. Ilustração da capa (em transparência): Rafael Brito. Poster por Gustavo Lopes Assis.

Todas as letras são inéditas, com exceção de “Preto”, que encerra a mixtape “Pele Negra Máscaras Brancas” de VH (https://www.youtube.com/watch?v=DBUyh…), e “Areia Vermelha” e “Netflix”, presentes no EP de Adriel lançado em 2019 (https://www.youtube.com/watch?v=ICP_D…).

VÍDEOS:

“Preto”

“A rede social é um Buquê de Plástico…”

A contracultura e suas urgentes responsabilidades – Sobre a turnê cancelada dos Dead Kennedys e o grito punk de um poster

“Don’t hate the media, become the media.” JELLO BIAFRA

Uma cultura ajoelhada diante do altar do conformismo é uma cultura com rigor mortis. E é disso que sofre a cultura hegemônica sob o império do capetalismo neoliberal que hoje em dia anda flertando desavergonhadamente com o fascismo: é uma cultura engessada na forma-mercadoria, quando a bagaça sempre esteve conectada, para o artista revolucionário, com o ato explodir a gaiola da mercadoria e instaurar no mundo a experiência sensorial inédita que é vocação da arte autêntica propiciar.

A Cultura Viva é balbúrdia anticonformista, e não – nunca! – cumplicidade com os tiranos. Diante das injustiças, os artistas são os berram, não os que se calam. Em nossos tempos de neofascismo e de democracias golpeadas pras cucuias, a Contracultura tem sua responsa e sua urgência. Até porque o Coiso que hoje tem por função ser presidente da república é tão “culto” que não fala uma palavra em homenagem a Chico Buarque pelo prêmio Camões, não dá seus pêsames após a morte de Beth Carvalho, mas presta suas homenagens ao MC Reaça depois que este espancou sua amante grávida e depois se suicidou…

O Brasil de 2019, sob a batuta insana do Bolsonarismo, raiou já com a extinção do MinC perpetrada pelos que, no palanque, faziam o gesto das armas de fogo, instrumentos da morte. A arte, que é o sim da vida à criatividade que é intrínseca a tudo que prospera e evolui, é o contrário do armamentismo destrutivo que pregam aqueles que poderiam repetir como o célebre dito nazista: “quando ouço a palavra Cultura, puxo meu revólver”. Quando Bolsonaro ouve a palavra Paulo Freire, puxa seu lança-chamas. E o Museu Nacional ardeu mesmo em chamas até as cinzas no país do pós-Golpe, desgovernado pela barbaridade desses “cidadãos-de-bem” que aniquilam a cultura no altar de Mammon, ou seja, da mercantilização geral de tudo e da imposição da política de terra-arrasada para a educação e a cultura…

Contra tal barbarismo, somos os que levantam uma contravoz, dissonante em relação à monocórdica voz dominante: quando nos falam em revólver, sacamos nossa cultura. Somos os que se armam de livros e se livram de armas. Os que se armam de grafites e beats, de teatro e de poemas, de cinema e de canções, para resistir à canalhização geral da vida. Assim coletivamente e sem muito programa vamos parindo a contracultura da atualidade, cultura-do-contra que é essencial para a cultura viva. Como Gilberto Gil e Juca Ferreira sonharam e começaram a concretizar, antes de tal utopia ser (também ela!) golpeada. Tantos golpes, e ainda assim nos levantamos (and still we rise!). A contracultura enquanto organismo indomável e insurgente é prova viva de que o devir histórico é Movimento irrefreável e serão levados pela correnteza os que desejam imobilizá-lo.

Em seu cartaz para a turnê dos Dead Kennedys no Brasil, Cristiano Suarez criou a A Grande Carapuça, obra endiabrada em que evoca clássicos da banda hardcore californiana como “Kill The Poor” e “Nazi Punks Fuck Off”. O artista parodia o Cidadão-de-Bem, vulgo Coxinha ou Bolsominion, que está todo aderido ao projeto-de-país miliciano-torturador hoje em voga:

O polêmico cartaz realizado por Cristiano Suarez já se tornou uma das imagens mais emblemáticas do Brasil de 2019 (quer comprar um poster, em tamanho A2 e por apenas 30 pilas? Siga o link >>> https://bit.ly/2Ji6fgL). Emblema de um país desgovernado pela extrema-direita Bolsonarista que tomou o Estado de assalto para impor uma fusão caótica e imbecilizante de neoliberalismo selvagem e neofascismo.

Emblema também de um território contaminado pela disseminação massiva de odientas ideologias que foram inoculadas nesse pessoal que relincha slogans como: “bandido bom é bandido morto!”, “o Lula tá preso, babaca!” e “nossa bandeira jamais será vermelha”. Originalmente criado para a turnê-que-não-rolou dos Dead Kennedys – na formação atual, que não inclui o vocalista original Jello Biafra (líder do Guantanamo School of Medicine) -, o poster foi renegado pela banda de hardcore californiana (a despeito de um entusiasmo inicial do qual eles depois arregaram).

Os Kennedys Mortos cancelaram sua vinda ao Brasil devido a todas as tretas vinculadas à disseminação viral desta provocativa peça de propaganda antifa saída da pena de Suarez. Uma arte rapidamente reapropriada, via hacking cibernético, por outras bandas – a exemplo dos Ratos de Porão, dos Garotos Podres e do francisco, el hombre. Sobre o episódio, Biafra assim se manifestou:

Sim, nós estamos preocupados com o Brasil. Porque nós nos importamos com o Brasil. E porque nós nos preocupamos com o mundo. Nós tememos pela situação dos brasileiros, tememos pela Amazônia. Tememos pelas tribos indígenas que poderão ser massacradas. Nós não queremos que mais nenhum inocente morra como aconteceu com a Marielle Franco. Sim, a notícia de seu assassinato chegou até os noticiários americanos. E, meus caros amigos, nós admiramos e respeitamos muito cada um que tenha a coragem de se posicionar contra o Bolsonaro e seus apoiadores fascistas metidos a valentões. – JELLO BIAFRA, Leia na íntegra em Tenho Mais Discos Que Amigos

 

Com o cancelamento da tour, choveram críticas contra os Dead Kennedys (sem Jello, os fake kennedys…) por terem “amarelado” – e não faltaram antigos entusiastas da banda, responsável por discos clássicos como “Fresh Fruit for Rotting Vegetables”, que os xingaram, cuspindo e dizendo que não se fazem mais punks como ultimamente…

A produtora EV7 Live teve que arcar com os custos astronômicos vinculados ao cancelamento da turnê e, para isso, está vendendo camisetas e pôsteres A2 com a arte de Suarez, numa curiosa estratégia mercadológica de transformar em commodity aquilo que o poder hegemônico desejaria censurar e silenciar.

A viralização do poster não foi à toa: ele encapsula toda a insanidade coletiva que conduziu ao triunfo provisório do que existe de mais sórdido e péssimo entre nós: a cultura do ódio e do irracionalismo, da segregação e da desunião, da intolerância e do chauvinismo cego, da subserviência acéfala ao Tio Sam e seus tanque$ e dollar$ – todo o “caldo” mórbido que serviu de substrato para o assalto-ao-poder que empoderou a Necropolítica mais brutal.

Não é preciso ser um ás da semiótica para ler, no centro do quadro, a presença da Família Tradicional Brasileira, pequeno-burguesa e que sonha em enriquecer mais, conservadora nos costumes e liberal na economia, idólatra das armas de fogo e das soluções truculentas para os problemas sociais. A Família, muitas vezes bestificada por religiões instituídas e por lógicas evanjegues, que reúne-se diante da TV para sua dose diária de alienação com sitcoms e filmes de ultraviolência made in Hollywood.

A Família Tradicional Brasileira que, aos milhões de exemplares, é o sustentáculo do Estado de Exceção que hoje nos desgoverna propondo o desmonte dos bens públicos e dos direitos sociais duramente conquistados. A Família Tradicional Brasileira que, durante a fraude do golpeachment, teleguiada pela rede Globo e demais integrantes do P.I.G., bateu panelas e encheu as ruas do país para “protestar contra a corrupção”, sem notar no absurdo que era fazer isso vestindo camisetas da CBF, votando em Aécio Neves e apoiando um golpe parlamentar liderado pelo gangster Eduardo Cunha.

Ecoando a ironia de “Kill The Poor”, porrada hardcore em que Jello Biafra exibia toda sua endiabrada e cáustica crítica social repleta de um cinismo indomável, o cartaz fala da Família Bozólatra como adoradora do cheiro de pobres mortos na manhã que fede à gasolina e óleo diesel. Tudo pega fogo no país em que os incêndios na favela são comemorados de dentro das BMWs e dos apartamentos de luxo onde se juntam, na Varanda Gourmet, os eleitores do Homem-de-Bem (aquele mesmo, que idolatra torturadores e defende grupos de extermínio… aquele mesmo, que até agora não sabemos que relações tinha com seu vizinho, assassino de Marielle Franco, miliciano dos mais de cem fuzis domésticos…).

O cartaz é brilhante por mostrar em uma cápsula imagética todo o tragicômico de nossa desastrosa situação. Em situações normais de temperatura e pressão, uma figura como o Coiso não passaria de fato de uma piada de mau gosto, de um Bozo da política, não muito diferente de um Tiririca anazistado. Em um país que estivesse são da cabeça e são do coração, uma figura como Jair Bolsonaro seria apenas uma espécie de Novo Enéas e não teria conquistado nem 5% dos votos para a eleição presidencial, tamanho o grau de sadismo, crueldade e desconsideração com os parâmetros mais básicos de ética e civilidade que ele manifestou nestes 28 anos de vida pública. Aliás completamente pífia e nula em matéria de quaisquer benefícios prestados à população.

Em suma, qualquer mente lúcida sabe que esse cara nunca fez merda nenhuma em prol de ninguém a não ser a favor de seu enriquecimento familiar e do favorecimento de conglomerados empresarias de que é o títere e o bem-remunerado cafetão.

Este poster incendiário, retrato hiperbólico da Bozolatria (mas que também remete ao Coxinismo), serve também como um retrato caricatural da Base Eleitoral que foi usada como trampolim por aquela minúscula fração da elite brasileira tão bem cognominada por Jessé de Souza como “Do Atraso”.

A Elite do Atraso composta por homens brancos e ricos, herdeiros dos senhores de escravos e capitães-do-mato, que se notabilizam por misoginia, racismo, LGBTfobia, supremacismo, armamentismo, para não falar na apologia da tortura e dos grupos de extermínio, tudo isso portando a máscara do “cristão” e do “cidadão-de-bem”.

Aos que se sentiram incomodados e ofendidos com a arte, talvez seja pois a carapuça serviu. Aos que gritaram por censura e mordaça, talvez seja pois vocês tem saudades do AI-5 e do totalitarismo repressor que foi o fruto amargo, em 1968 (início dos Anos de Chumbo), do golpe desferido contra o governo Jango em 1964.

Aos que acham que isto não é arte, mas propaganda política, eu diria que as noções de arte de vocês estão muito quadradinhas: a arte está aí também pra incomodar, pra instigar o debate, pra provocar reações emocionais, pra sacudir as apatias, pra cutucar as onças com varas curtas.

Aos que desejariam acender fogueiras para queimar este pôster junto com seu autor, vocês são a Nova Inquisição e integram a vergonhosa Cruzada por um Brasil Medieval – e contra vocês, só nos resta desejar que os artistas do Brasil resistente e insurgente prossigam sendo, e cada vez mais, deliciosamente endiabrados.

Fellipe Fonseca foi outro artista que, nada sutil e seguindo na senda de Vitor Teixeira, botou a boca no trombone, ou melhor, meteu as tintas no papel pra gritar #EleNão, porra (e seus minions muito menos!):

São claros os sinais de que a Cultura se insurge, apesar do decreto de extinção do MinC. Como organismo social de vida que transcende o âmbito institucionalizado, a cultura (selvagem) é indomável, resiste à domesticação. O mesmo fogo que incendeia as favelas no poster de Cristiano Suarez – um fogo-no-morro que vem somado às cataratas de sangue que fluem por debaixo dos tanques no asfalto – é convocado para outras funções pelo Francisco El Hombre, a banda neotropicalista latinoamericana que cometeu dois álbuns de extrema caliência e incandescência: Soltasbruxa Rasgacabeza.

O ato de botar fogo na monotonia, expressa pela banda, é sinal desta vivacidade da ContraCultura, organismo indomável e insurgente, prova viva de que o devir histórico é Movimento inescapável e serão arrastados pela correnteza aqueles que tiverem pretensões de estagnação. Algumas obras de arte do Brasil contemporâneo parecem-me expressá-lo com uma admirável beleza queer de intenso fascínio:


Queimando os velhos mapas pra vida renovar, Ju Strassacapa teve a genialidade criativa suprema ao parir “Triste Louca ou Má” – uma tão bela poesia, e que encontrou sua perfeita expressão musical nesta canção destinada ao cânone da MPB do Futuro. O Francisco El Hombre é um coletivo utópico, neohippie, purpurinado, pós-binário, que demonstra a vitalidade desta cultura que estou chamando de selvagem e indomável.

Num país que observa também brutais retrocessos nas políticas de drogas, com o incremento das internações compulsórias em “Comunidades Terapêuticas” de forte marca teocrática-sectária, o “Parafuso Solto” francisco-el-hombreano, somado ao jornalismo-subversivo do Gregório Duvivier, são salutares doses de cultura insurgente:


Pra terminar, queria lembrar de algo aparentemente estúpido, mas que tem seu interesse: o termo Bozo, que alguns usam para apelidar Bolsonaro, remete a um famoso palhaço televisivo brasileiro, mas também na língua inglesa existe o termo Bozo e este possui toda uma carga semântica dentro do movimento punk. Os Dead Kennedys, por exemplo, têm uma canção chamada “Rambozo, The Clown”, fusão de Rambo com Bozo, perfeitamente atual para a descrição de muitos brucutus Bolsonaristas.

Tanto que, em fins de 2018, com a ascensão do Capetão, o Rambozo fã do Ustra, “California Übber Allez” foi reavivada pela vigorosa versão, transposta pro Brasil em incendiário videoclipe em p&b pelo Projeto Rambozo:



Retrocedendo ainda mais na História da Contracultura, encontramos pulsando no epicentro do Movimento Punk a entidade inglesa The Clash; numa adorável entrevista concedida a Steve Walsh e publicada em Sniffin’ Blue em Setembro de 1976, Joe Strummer, Mick Jones e companhia já se manifestavam explicitamente como Anti-Bozos:

– Some people change and some people stay as they are, bozos,  and they don’t try to change themselves in any way. (…) I think people have got to find out where their direction lies and channel their violence into music or something creative.  (…) The alternative is for people to vent their frustrations through music, or be a painter or a poet or whatever you wanna be. Vent your frustrations, otherwise it’s just like clocking in and clocking out. (Mick Jones, In: Let Fury Have The Hour, p. 26)

Eles que foram um dia conhecidos como A Única Banda Que Importam ensinam lições que nada perderam de seu valor à contracultura da atualidade: em uma das mais icônicas faixas de London Calling, de 1979, “Clampdown”, Joe Strummer pede que a gente dê uma chance à fúria:

“Let fury have the hour
Anger can be power
D’you know that you can use it?”

 

REINVENTANDO A VIDA EM TEMPOS CONTURBADOS – Francisco, El Hombre lança novo disco “Rasgacabeza” (2019)

O novo álbum do francisco, el hombre desembarca entre nós com o estrondo de uma nave espacial repleta de aliens incendiários cujas armas são o som. Segundo a Rolling Stone, a banda “incendiária e combativa joga gasolina na monotonia com novo disco Rasgacabeza“, em que “usa a influência do punk rock para lidar com os tempos conturbados no Brasil” (nas palavras de Pedro Antunes).

Tudo pega fogo – literal e metaforicamente – nos primeiros ritmos e melodias de um disco que começa com altas doses de adrenalina e convocando a acender e acordar todos os rituais da “pulsão de vida”:

“Queima o véu da sua vista
Abana essa monotonia
Autonomia chama
Combustão que sana
Acende, acorda, acorda, acorda…”

Mas nem tudo no álbum é assim fogoso e esta festa inicial da incandescência encontra seu ponto de serenidade e sabedoria na belíssima “O Tempo É Sua Morada”, prova inconteste de que Ju Strassacapa é uma gênia da nossa música e uma das melhores cantoras e compositoras em atividade no Brasil. Mergulhe na viagem audiovisual:

A canção, explica Mateo Piracés-Ugarte à Rolling Stone Brasil, foi “criada a partir das experiências deles no Dia de Los Muertos (ou Dia dos Mortos), no México, no ano passado. O Dia dos Mortos tem uma ideia interessante de dar um novo significado para a morte. De nunca se esquecer, de celebrar as pessoas que morreram. A ideia era essa, matar o Soltasbruxa“, explica Mateo.

É por estas vias que o álbum “Rasgacabeza” (2019), sucessor do já lendário “Soltasbruxa” (2016), vem pra propor outros caminhos culturais e comportamentais a um país sem rumo. Como um Cavalo de Tróia cultural, destinado a hackear por dentro a cultura mainstream podre e pustulenta do Bolsonarismo relinchante, o Francisco el Hombre chega com toda sua exuberância pra cumprir com a recomendação de Emma Goldman: “Se eu não posso dançar, não é minha revolução…”

Em menos de 30 minutos, breves mas de alta intensidade, o álbum novo mostra a alta temperatura da arte fogosa realizada com tanta maestria pelo quinteto composto por Juliana Strassacapa, Mateo Piracés-Ugarte, Sebastián Piracés-Ugarte, Andrei Martinez Kozyreff e Rafael Gomes. Neo-tropicalista e conectado ao que de melhor se faz na música latina (de Perotá Chingó a Muerdo, de Churupaca a Anita Tijoux), o Francisco El Hombre revela-se uma banda tropicaliente irresistível e em metamórfica evolução artística.

Uma trajetória que enche-nos de fascínio e que faz crer na pulsação indomável da cultura brasileira, apesar das desgraças ocasionadas pela avalanche de retrocessos nos direitos sociais duramente conquistados, e hoje avassaladoramente detonados.

Como oráculos de uma festança revolucionária ou insurreição orgiástica, os músicos do Francisco se lançam no transe, numa cultura da exuberância, num neobarroquismo cheer que quase flerta com os Dzi Croquettes, mas que sabe também investir num classudo indierock intimista (em diálogo com Carne Doce e Flaira Ferro).


Uma banda quer nos fazer sentir o “calor da rua” e que tornou-se talvez a mais emblemática agremiação da atual arte brasileira a manifestar o que eu chamaria de Espírito Queer. Um ethos de subversão de todos os paradigmas de comportamento impostas pela tirania careta. Uma atitude neo-hippie, com um ritmado que também recupera temperos à la Madchester e Primal Scream, que torna a máquina rítmica da banda algo como um Convite para o Eldorado, para a utopia La Belle Verte, para outro mundo possível…

Uma música onde pulsa diversidade e incandescência, realizada por jovens cheios de vida que sentem que nossa morada (provisória) é o Tempo e que ele é escasso demais para o desperdiçarmos com arranca-tocos destinados a impor a Ditadura da Caretice, da Uniformidade, do Modelo Único a que todos deveriam conformar-se.

Com “Bolso Nada”, fizeram história ao conceder ao Brasil a mais significativa canção de rebeldia e escracho contra o fascista calhorda que se elegeu fraudulentamente em 2018, impulsionado pela prisão injusta de Lula. Chamaram Bolsonaro de “cara escroto”, mas fizeram uma crítica alegre, cheia de capetices e glitter: “desrespeito é o que prega, então é o que colherá! / jogo purpurina em cima para o feio embelezar!” Historiadores do futuro poderão evocar a época do Pesadelo Bozonazi que ora atravessamos evocando tais versos emblemáticos:

“Se ao fascista é concedido
Cargo alto e voz viril
Vai lucrar do desespero
Essa loucura já se viu
Bolso dele sempre cheio
Nosso copo anda vazio
Mesquinhez, intolerância,
Bolsonada que pariu!”

Se um espírito punk, escrachado, pulsa em “Bolsonada” e arrasa com a monotonia em vários momentos de Rasgacabeza, o Francisco também vem se notabilizando por reinventar o folk. “O Tempo é sua Morada” é a investida de 2019 que dá sequência à obra-prima “Triste, Louca ou Má” de 2016.

Nesta última, os músicos inscreveram pra sempre o nome na história da MPB com uma canção que já virou um hino queer, propiciador de momentos de transe coletivo quando interpretada ao vivo, sensível e inteligente manifesto em defesa de todos aqueles que a sociedade rotula, estigmatiza e vilipendia por terem se recusado a seguir a “receita cultural” (machista, heteronormativa, patriarcal, autoritária, binária, monocromática, monótona, Bozoasnal…). A literatura brasileira ganhou, com esta canção, uma das melhores poesias do século 21:

“Triste louca ou má
Será qualificada
Ela quem recusar
Seguir receita tal
A receita cultural
Do marido, da família
Cuida, cuida da rotina

Só mesmo rejeita
Bem conhecida receita
Quem não sem dores
Aceita que tudo deve mudar

Que o homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar

Ela desatinou
Desatou nós
Vai viver só

Eu não me vejo na palavra
Fêmea: Alvo de caça
Conformada vítima
Prefiro queimar o mapa
Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar…”

Com o novo álbum, Francisco El Hombre mostra que, somado ao BaianaSystem e seu magistral O Futuro Não Demora (já esmiuçado aqui n’A Casa de Vidro),  o grupo é no Brasil contemporâneo um dos poucos capazes de shows que são autênticos rituais xamânicos. Um dos poucos que merece o elogio que se dirigia ao The Clash: “a band that matters”.

Cientes da importância de suas propostas estético-comportamentais de ruptura, de transgressão de normalidades confinantes, os músicos ainda assim sabem abandonar-se ao deleite inocente da dança lúdica, deliciosamente absurda, celebração da dinâmica sem sentido de corpos que movem-se em sintonia com o planeta e seus elementos.

Em Rasgacabeza, música de confronto, o que sobressai é o elemento Fogo. É o Francisco el Hombre em incandescência. Deixando o Gelo pra depois. Derretendo com um lança-chamas de música a peste emocional do fascismo, já performando na prática uma estética e uma ética do Liquidificador.


Joga tudo no Liquidificador e se joga na mescla! E aí “multidão vira maré”… Talvez aí esteja uma súmula da ética que pulsa nesta música. A Revista NOIZE já soube reconhecer neste novo trampo a centralidade do Fogo. O fogo das chamas dinâmicas, a um só tempo destruidoras e renovadoras: 

“Aqui, o Fogo é tanto símbolo da destruição do que não serve mais quanto de algo que se acende dentro do ouvinte a cada faixa que passa. Urbano, contemporâneo, ácido e visceral, Rasgacabeza é um disco feito para desacomodar suas certezas. Um álbum histórico que merece lugar na sua coleção.” (Noize)

Baiana System e Francisco el Hombre nos trazem boas novas: a Cultura brasileira não se cala, nossa subversão não se doma, nossa criatividade não aceita o amargo cálice do “cale-se!”

O futuro não demora e nele o Bolsonazismo será apenas as cinzas de um pesadelo superado. O inverno é deles, a primavera será nossa.

Convite à utopia que já se pratica desde já, “Rachacabeza” e “Soltasbruxa” são as Dionisíacas Tropicalientes de um novo tempo em gestão, cheio de gente que pulsa empatia e criatividade, preferindo sempre o colorido ao monocromático, o múltiplo ao binário, o amor ao ódio.

O tipo de música que importa tanto pois deseja incandescer as atitudes daqueles que, queimando os mapas, tratam de juntos a vida reinventar.

 

 

OUÇA:

SOLTASBRUXA

RASGACABEZA

* * * * *

VISITE O SITE OFICIAL: Sonoridades latino-americanas e pe na estrada. Letras em espanhol com sotaque brasileiro. Portugues com sotaque latino. Coco, cumbia, maracatu, salsa, samba e sopros de ciranda. Uma corrente musical nomade e transcultural em forma de banda. Prazer, francisco, el hombre. >>>https://www.franciscoelhombre.org/

A Casa de Vidro – www.acasadevidro.com // por Eduardo Carli de Moraes

O PUNK ROCK AINDA GRITA “LIBERDADE & AUTONOMIA!” – The Interrupters: muito mais que o ska-punk mais chiclete do pedaço

Caí violentamente fissurado numa droga sônica bombando no pedaço: The Interrupters, banda da Califórnia que grava pela Hellcat Records, braço da Epitaph. Justo quando as veias pediam uma dose cavalar de punkadaria política e poesia flamejante, descobri nos Interrupters uma banda que é muito mais que o ska-punk com as canções mais “chiclete” do pedaço. 

Além de mestra em grudar melodias em nossas memórias, Aimee Allen é também querosene. Seus bandmates, vestindo terninhos à la The Hives, são uns carequinhas com TDAH, que em seu hiperativo transe puxam ao extremo o andamento e a pulsação rítmica das canções. Querem ser serelepes como foram um dia Little Richard e Chuck Berry, dois dos Pais da Matéria: rock and roll, um das artforms of the 20th century. Secundada pela trupe, Aimee parece antenadíssima com os músicos que lhe fornecem às mancheias as fagulhas e faíscas que fazem-na explodir como incendiária vocalista:

Para além do bubblegum, da máquina de rhythm’n’blues apunkalhado que o quarteto realiza com seu impetuoso senso rítmico, evocando grandes bandas de outrora como Richard Hell, Television ou Blondie, há conteúdo subversivo explosivo. Desde a denúncia da indústria midiática de celebridades em “Media Sensation” até a conclamação à insurreição e à rebeldia em “Take Back The Power”.

MEDIA SENSATION

“Land of the free, home of the slave
The uniformed are digging their own grave
Pacified with the mainstream media
What’s it gonna take? mass hysteria!
And that’s fine ‘cause i’m not blind
I’m ready for a fight of any kind
And we’re forming, trust me the drones are swarming
Take this as a global warning!
 
Don’t watch their T.V. stations!
It’s all a fabrication!
And don’t march in their formation!
A media sensation…

They’ll keep you suspended in fear
Until your freedoms disappear
I said it once, but you’re not hearing me.
You’re giving up liberty for security
And that’s fine, the sheep are blind
shepherds indoctrinate the minds of the masses,
Poor and middle classes
all parading like a bunch of fascists.
 
Don’t watch their T.V. stations!
It’s all a fabrication!
And don’t march in their formation!
A media sensation…
(I’m not buying, I’m not buying)
a media sensation
(I’m not buying, I’m not buying)
a media sensation
(I’m not buying, I’m not buying)
a media sensation!”

 

A discografia se limita, por hora, a três álbuns estupendos onde convocam, em alta dosagem de decibéis, a “lutar a boa luta”: The Interrupters, de 2014, o álbum de estréia; “Say It Loud”, de 2016; “Fight the Good Fight”, de 2018.

É verdade que, escutando os Interrupters, vocês se arriscam a ser fisgados pela iscas melodias infectious e o contágio será profundo – e a cura, repetidas doses da drug-of-choice. Assim como faziam outrora Green Day, Offspring, Undertones ou Ramones, os Interrupters são propulsionados pela forte melodiosidade das linhas vocais de sua fenomenal cantora-líder, Aimee Allen. Mas por trás de todo, um senso de performatividade de quem acredita que a música mobiliza. Canções são forças mobilizatórias, e o punk é movimento-de-movimentação.

Na primeira das mais de trocentas repetições do álbum Fight the Good Fight que por aqui rolou, o impacto das paredes-de-som do Interrupters serviu de background para que explodisse um vulcão de lirismo em flor. Foi só ouvir aquela voz e todo um panteão de musas se levantou: Brody Dalle no auge dos Distillers, Mia Zapata cantando no The Gits até ser brutalmente silenciada-assassinada, Patti Smith encarnando aqueles orixás brilhantes que ajudaram a parir obras-primas como Horses e Easter.

Os Interrupters são mais uma prova inconteste do poderio feminino no punk rock, um estilo musical que conta entre seus greatest chick-artists um time deste nível: Patti Smith, Blondie, Sleater-Kinney, Elastica, Breeders, X-Ray Spex, Hole, The Gits, Bellrays, Bikini Kill…

Uma canção como “Jenny Drinks” é um exemplo do quão foda o Interrupters consegue ser: sobre uma máquina de groove que evoca o The Clash ou o Gang of Four, a banda descreve a mina vida lôka Jenny, uma junkie a quem se dá voz no refrão da canção para que ela enuncie, em desespero altissonante:

“The world just ain’t ready for a spirit like me!
I never been so frustrated with humanity!
And I suppose that I’m the one who seems crazy!
But the world just ain’t ready for a spirit like me!”

Um certo espírito nietzschiano está aí manifesto: a sensação de ser “extemporâneo”, de ter “nascido póstumo”, como Nietzsche dizia de si mesmo.

A Jenny, eu-lírico da canção, provável alterego de Aimee Allen, sabe que gentileza não é fraqueza. Seu senso apurado de inadequação provêm de seu inconformismo: ela não se conforma em abaixar-se até a mediocridade que reina no tempo contemporânea.

E assim grita à rosa dos ventos para que todos ouçam: “o mundo não está preparado para um espírito como eu / nunca estive tão frustrada com a humana / e eu suponho que sou quem parece louca / mas o mundo não tá pronto pr’um espírito como eu!”

O aspecto político deste desespero inconformista fica mais explícito em “Take Back The Power” e “Babylon”. A primeira reativa afetos insurrecionais presentes no Rage Against the Machine, no System of a Down, e mete no trilho de um delicioso punkpop TheClash-esco. A segunda, adere a um tom imperativo e tenta afetar nas massas a rebelião: “Rebel against the kings of Babylon!”

BABYLON
God made man and man made kings
And the kings rule man and they bring the suffering
When the people rise up they see it as a riot
They wanna have control so you can’t be self-reliant
They make your world and don’t make an alliance
They sell your soul, they will buy it for a dime
They sell it for a dollar, so they can turn a profit
It’s a vicious cycle and the only way to stop it:
Rebel against the kings of babylon!

Yeah: they got the swords and the spears
and the bows and the knives
But we’ll fight it with our brothers
And our sisters for our lives.
Rebel against the kings of babylon!

A extraordinária cantora que encabeça o quarteto, Aimee Allen, tem alguns trampos pré-Interrupters que vale a pena conhecer, a começar por “I’d Start a Revolution If I Could Get Up in the Morning”, canção título do álbum homônimo e que tornou-se famosa na trilha sonora da série Birds of Prey:

Batizando a nossa era como The Age of Outrage, o Interrupters denuncia os poderosos e suas máscaras, trazendo abaixo o engodo e a fraude por trás das media sensations. Realizam assim um trampo de importância social ao tirar um sarro e lançarem um alerta aos que ficam pagando micos ao tratarem imbecis psicopatas e fascistas monstruosos (como Trump ou Bolsonaro) como se fossem Mitos:

Aimee Allen, em toda sua versatilidade, é uma artista imensamente colaborativa. As parcerias são notáveis: com o Sublime, gravou “Safe and Sound”; com Tim Armstrong do Rancid, “Phantom City” e “Got Each Other”; com um tal de Scott, um álbum inteiro (ao vivo e em clipe abaixo:).

Para além dos memoráveis e cantaroláveis refrões, a banda vem para interromper a caretice de um cenário que parece ter esquecido a lição do The Clash, a de que o único sentido de uma banda existir é tentar ser a “única banda que importa”.

A ponte Rancid – Interrupters aparece na atualidade histórica do punk-rock-em-movimento como uma reativação daquele espírito salutar que animava Joe Strummer, Mick Jones e Cia. Os Interrupters sabem-se enraizados em uma história linda e cujo legado tem que ser berrado para as próximas gerações – e é o que acontece no hino-de-empoderamento “11th Hour”, um emblema do poderio do punk como forma estética e ruptura comportamental. Tudo isso cabe em 2 minutos e meio de pura dinamite estética:

Neste esplêndido tributo (dê o play acima) prestado a uma das melhores bandas punk da história, o Rancid, quem homenageia os mestres é o quarteto ska-punk mais quente da atualidade, The Interrupters.

Honrando o legado do Rancid, os Interrupters replicam e reativam todo aquele ímpeto indomável, aquele entusiasmo afetivo, aquela salutar idolatria pela “Única Banda Que Importa” (o The Clash), toda a lírica subversiva e rançosa desses punkrappers do gueto, todo o espírito de equipe-em-plena sintonia que ajudam a consagrar …And Out Come The Wolves (1995, Epitaph Records) como um dos melhores álbuns já paridos na história deste treco ruidoso, rebelde e rude que se chama rock’n’roll.

A poesia questiona onde começa e termina o Poder:

THE 11TH HOUR

“Hey little sister,
Do you know what time it was
When you finally seen
All your broken dreams
Come crashing down your door?

They demand an answer
And they demand it quick
Or the questions fade
And then the wasted days
Come crawling back for more

Do you know where the power lies?
And who pulls the strings?
Do you know where the power lies?
It starts and ends with you!

The face of isolation
Well that’s one you recognize
Well you can’t get straight
It’s a lonely place
And one you do despise

Boredom is for sale now
And helplessness you feel
It’s a wounded dove
And the hawks are above
Blood splattered in a reel to reel

Do you know where the power lies?
And who pulls the strings?
Do you know where the power lies?
It starts and ends with you!

I was almost over
And my world was almost gone
And in a sudden rush
I could almost touch
The things that I’d done wrong

My jungle’s made of concrete
Although the silence I could feel
My aim is true
And I will walk on through
These mountains made of steel

Do you know where the power lies
And who pulls the strings
Do you know where the power lies
It starts and ends with you
Ohh, I say: it starts and ends with you!
I say: it starts and ends with you!”

Nestes tempos tenebrosos em que somos submergidos por uma enxurrada de retrocessos civilizatórios e agressões fascistas, em que estar antenado à mídia é como estar alerta a um constante pesadelo de péssimas notícias, há pelo menos uma boa nova: o punk rock ainda grita “Liberdade & Autonomia!”

OS MELHORES ÁLBUNS DA MÚSICA BRASILEIRA EM 2018: Ouça a todos na íntegra [Seleção A Casa de Vidro]

“Eles querem um preto com arma pra cima
Num clipe na favela, gritando cocaína
Querem que nossa pele seja a pele do crime
Que Pantera Negra só seja um filme
Eu sou a porra do Mississipi em chamas
Eles têm medo pra caralho de um próximo Obama
Racista filha da puta, aqui ninguém te ama
Jerusalém que se foda, eu tô a procura de Wakanda.”
BACO EXU DO BLUES

Tudo junto e misturado, compartilhamos aqui um apanhado geral com alguns dos grandes discos da MPB (sigla considerada no sentido o mais amplo possível) que consideramos os mais significativos da safra 2018. Um ano em que tivemos o retorno de divas e gênios consagrados, como Elza Soares, Gilberto Gil e Gal Costa; tivemos bandas veteranas do cenário manguebeat pernambucano de volta com lançamentos, como Mundo Livre S.A., Eddie e Cordel do Fogo Encantado; tivemos a revelação e consolidação de novos talentos do hip hop (Baco Exu do Blues, Edgar) e no folk-rock (Joe Silhueta, The Baggios, Bemti) etc.

As mulheres arrasaram com discos de alta qualidade: Mulamba, Luiza Lian, Anelis Assumpção, Ava Rocha, Iza, Ceumar, Ana Cañas, Mahmundi, todas marcaram um ano que teve em Deus É Mulher uma de suas obras mais emblemáticas, reafirmando Elza como lenda viva.

Em específico no cenário goiano, que acompanho mais de perto, tivemos a consolidação do Carne Doce com seu terceiro álbum Tônus, o retorno do Cambriana com Manaus Vidaloka e o primoroso álbum de estréia do Ave Eva. Além disso, fortaleceram-se muito no cenário figuras como Adriel Vinícius, Vitor Hugo Lemes (assista ao video-clipe abaixo), Diego Mascate, Pó De Ser – que prometem excelentes lançamentos para 2019.

Além disso, o documentário Novos Goianos (de Isaac Brum) foi lançado, conquistando o prêmio de melhor curta nacional no Lobo Fest de Brasília, uma relevante premiação para um filme dedicado ao novo cenário musical autoral goianiense, encabeçado pelo sucesso de Boogarins, Carne Doce e Diego de Moraes.

Na sequência, aprecie os bons sons destes álbuns magistrais – uma seleção que A Casa de Vidro realizou baseada nas seleções e listas de melhores do ano de Tenho Mais Discos Que Amigos, Rolling Stone Brasil, Multimodo, Miojo Indie, Eu Escuto, dentre outras fontes. Suba o volume pro talo e boa fruição!

Vale mencionar, entre os eventos memoráveis de 2018, também a conturbada turnê brasileira do Roger Waters @ Pink Floyd, que marcou época em seus protestos contra Bolsonaro. Waters pediu resistência, ironizou a censura e aderiu ao movimento#EleNão, a principal mobilização cidadã ocorrida no Brasil em 2018.

Ao mandar no telão frases como Resist The Unholy Alliance of Church and State – Resistam Contra a Ímpia Aliança da Igreja e do Estado – o tiozão tornou-se um emblema de artista engajado na luta contra o fascismo. De lambuja foi entrevistado por Caetano Veloso em um excelente programa da Mídia Ninja (assista abaixo) e estes episódios renderam um dos melhores artigos de reflexão na crítica musical neste ano: Para o duplipensar brasileiro, Roger Waters é uma ameaçade Maurício Angelo na Revista Movin’ Up.

– Por Eduardo Carli de Moraes

ELZA SOARES – Deus é Mulher


GILBERTO GIL – Ok Ok Ok


BACO EXU DO BLUES – Bluesman


ANDRÉ ABUJAMRA – Omindá


MULAMBA


ANELIS ASSUMPÇÃO – Taurina


IZA – Dona de Mim


THE BAGGIOS – Vulcão [DOWNLOAD]


CAMBRIANA – Manaus Vidaloka


TUYO – Pra Curar


MATEUS TORREÃO


EL EFECTO – Memórias do Fogo


BIG PACHA – 11:11 [DOWNLOAD]


ILLY  – Vôo Longe


EDDIE – Mundo Engano


EDGAR – Ultrasom


JOE SILHUETA – Trilhas do Sol


DISASTER CITIES – Lowa


BLACK PANTERA – Agressão


MENORES ATOS – Lapso


CARNE DOCE – Tônus


AVE EVA


MARIA BERALDO – Cavala


LUIZA LIAN – Azul Moderno [DOWNLOAD]


WADO – Precariado [DOWNLOAD]


GAL COSTA – A Pele do Futuro [DOWNLOAD]


PENSE – Realidade, Vida e Fé


DINGO BELLS – Todo Mundo Vai Mudar


ANA CAÑAS – Todxs


MAHMUNDI – Pra Dias Ruins


HAMILTON DE HOLANDA TOCA JACOB DO BANDOLIM


MAURÍCIO PEREIRA – Outono no Sudeste


MUNDO LIVRE S/A – A Dança dos Não Famosos


AVA ROCHA – Trança


VIOLINS – A Era do Vacilo


TATÁ AEROPLANO – Alma de Gato [DOWNLOAD]


JOSYARA – Mansa Fúria [DOWNLOAD]


FELIPE RET – Audaz


INQUÉRITO – Tungstênio


NEGRA LI – Raízes


RODRIGO CAMPOS – 9 Sambas


E A TERRA NUNCA ME PARECEU TÃO DISTANTE – Fundação


ADORÁVEL CLICHÊ – O Que Existe Dentro De Mim


CATAVENTO – Ansiedade na Cidade


BEMTI – Era Dois


MARCELO CAMELO – Sinfonia Número 1


MARRAKESH – Cold as a Kitchen Floor


CEUMAR, LUI COIMBRA E PAULO FREIRE – Viola Perfumosa
https://open.spotify.com/embed/album/3QngmgwnfNw5sQhvZ7iW5X


A SER CONTINUADO…
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A TRILHA SONORA DA INSURREIÇÃO: A Renovação da Revolta na Música Brasileira Atual – A Saga do Cavaco Profano do Machete Bomb

“Aqui ninguém nasceu pra ser domesticado (aqui não!)”
MACHETE BOMB, “Fatcap”

Há quem se recuse a ser o colonizado submisso, o conformado domesticado, o oprimido calado. Ainda pulsam, aqui e ali, nos subterrâneos da cultura, aquelas expressões subversivas que, apesar de não circularem no mainstream, são máquinas sônicas enraivecidas contra o Sistema. São artistas flamejantes e indiespensáveis (com a licença do neologismo estrangeirista).

É o Emicida pondo o dedo na ferida e convocando a neo-guerrilha de Panteras Negras. É o Baiana System falando de uma Sociedade do Lucro que é “máquina de louco”. É a esplêndida Larissa Luz, musa-afro, cheia-do-axé, que manifesta todo o poderio de uma mulher empoderada e descolonizada. Os exemplos poderiam ser multiplicados.

Neste cenário, contrariando a tendência do rock brasileiro de tornar-se um tiozão bundão de Direita (como viraram o Lobão e o Roger do Ultraje A Rigor), chegou ao cenário, vinda do Paraná, a Machete Bomb. E declararam aberta a “Temporada de Caça”.

violência expressiva que se manifesta na sonoridade do Machete é reflexo da sociedade ultra-violenta que somos, com seus mais de 60.000 homicídios anuais e o maior índice global de mortes por arma de fogo.

Só faça o favor de não confundir a violência lírica e musical, estratégia dos oprimidos em seu processo de partejar um mundo menos opressivo, com a violência concreta e brutal perpetrada pelos opressores.

O Machete Bomb encena uma espécie de teatro insurrecional (falo aqui inspirado por Augusto Boal e sem sombra de intenção pejorativa ao evocar o “teatro”). Esses caras estão fazendo um som que parece convidar as massas ao levante de indignação, estão dizendo que aquilo que o Brasil precisa é de uma injeção, na veia, de altos decibéis de rebeldia. É uma sonzeira que fala daquele momento em que a “paciência do violentado” se esgota, a taça transborda, o vulcão entra em erupção, e a lava é feita de fúria.

O que domina é uma vibe de vendeta-dos-violentados, o som daqueles que se cansaram de serem esculhambados. Resolvem virar a mesa e tornarem-se os agentes da transformação social radical, utilizando-se das armas a seu dispor no vasto arsenal anarco-lírico.

É um tipo de música que parece embebida nas atitudes guerrilheiras de figuras como Malcolm X, Marighella, Che Guevara. É Guerrilla Radio. E os alvos da vendeta são muitos: “o colarinho branco com o poder da caneta”, “o empreiteiro bilionário que compra a licitação”, “o tribunal de faz-de-conta que aprova a corrupção”, “o bispo com os dedos pretos de contar notas de cem”, “o vendedor de milagre que faz o povo de refém” (acesse a letra completa).

A poética de “Temporada de Caça” deleita-se em espalhar imagens de figuras que merecem ser “caçadas”, instaurando uma explicitação de cenário convulsionado e bélico. Rompendo com o mito dourado do Homem Cordial, o Machete Bomb revela o Brasil como um caos e como um caso grave de guerra civil não-declarada. E eles vão elencando aqueles que são considerados como adversários políticos – políticos escrotos, pastores ricos, juízes injustos etc. -, que passam a estar na mira do mic, feito patinhos numa estande de tiro.

É uma atitude que faz pensar na Revolução dos Escravos no Haiti. Que lembra uma trilha sonora criada para acompanhar a leitura de Franz Fanon ou de Eduardo Galeano. É verdade que a banda aborda temas já “batidos”, em especial para quem acompanha o Movimento Hip Hop: a violência policial em “Giroflex”, a resistência aguerrida dos que “ocupam e resistem” em “Tiro e Queda”, mas quem disse que isso não é bem-vindo quando, na realidade concreta, estes continuam temas urgentes e atuais?

“Uma mente consciente engatilhada é um perigo!”, cantam eles nesta última, em estado de auto-celebração por serem uma frente anarcolírica anti-sistêmica. É o tipo de atitude que, lá fora, os críticos musicais podem descrever como guys who are proud to be rebels. 

MACHETE BOMB é: Vitor Salmazo (vocal), Rodrigo Spinardi (percussão), Rodrigo Suspiro (baixo), Daniel Perim (bateria) e Madu (cavaco).

São bandas assim que me fazem pensar que daria para escrever um livro inteiro sobre A Revolta na Música Brasileira. Uma trajetória do Homem Revoltado em sua encarnação tropical, ausente das explorações de Albert Camus no seu L’Homme Revolté. Poderíamos viajar nas ondas sonoras insurrecionais destas terras, indo do samba ao rap, do frevo ao punk, do baião ao manguebeat. Daria para explorar as múltiplas vertentes da canção de protesto: tão arrojada e cosmopolita na Tropicália, tão bruta e chuta-bundas nas mãos do Movimento Punk, tão malandra e periférica nos cronistas da marginalidade (de Bezerra da Silva a Planet Hemp…).

Daria para explorar diferentes períodos históricos, em seus contrastes e similaridades: na Ditadura Vargas do Estado Novo (1937-1945), os rebeldes eram aqueles que celebravam a boêmia, a vida “improdutiva” do artista-malandro, que não é otário de ficar amassado no Bonde de São Januário… prefere viver cantando e tocando, embriagado.

Mas na Ditadura Civil-Militar de 1964 a 1985, a rebeldia é outra, e aliás multiforme: a lírica buarquista, que combina a denúncia de tenebrosas transações, mas que insufla utopia e esperança (“amanhã vai ser outro dia”), difere bastante do clima de folk nacionalista de Vandré (que seguimos cantando enquanto caminhamos: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer), que também difere radicalmente daquela irrupção do Maio do 1968 parisiense no caldo tropicaliente de Caetano e Os Mutantes em uma das obras-primas da Tropicália (“É Proibido Proibir”!).

Mas o que nos interessa sondar aqui, no entanto, não é nosso passado, mas o presente e o futuro das canções revoltadas entre nós. E nesse contexto, precisamos sim falar do Machete Bomb e A Saga do Cavaco Profano.

Conheci a sonzeira destes caras no Goiânia Noise 2018, lá dentro daquela Panela de Pressão em formato de teatro que é o Pyguá do Martim Cererê. O Machete Bomb derrubou todo o suor que tinha – honrando o lema do Macaco Bong: artista = pedreiro – e fez um show que deixou uma excelente impressão.

O mais óbvio a dizer é que enfim o Brasil possui uma banda com potência comparável ao Rage Against the Machine. Mas com uma originalidade notável que é aquele cavaco endiabrado, plugado numa pedaleira de efeitos, cheia das pirotecnias. Quando tocaram no Estúdio Showlivre, o  Madu foi descrito como “O Tom Morello do cavaco”. E, naquela ocasião, o vocalista Vitor Salmazo também se definiu como anarco-indígena (porra, meu!) e falou de uma sintonia não só musical, mas também ideológica, com o R.A.T.M.

SHOW COMPLETO – ESTÚDIO SHOWLIVRE

É verdade que já existiu muita inovação nesta mescla de cavaco endemoniado com rock abrasileirado, e só lembrar do Mundo Livre S.A., uma das mais geniais bandas do manguebeat, que tem na comissão de frente o cavaco de Fred Zero Quatro.

Mas o Madu está explorando uma outra senda, uma trip mais extrema, é um músico extraordinário que está explorando a via inovadora do cavaco heavy. O cavaco com os sinais transtornados por uma pedaleira cheia das pirotecnias e dos scratches típícos de DJ, mas com uma potência que, quando o som está rolando ao vivo, ficamos de fato com a impressão de que Tom Morello está no recinto. Mas ao invés de uma guitarra elétrica preferiu algo de uma brasilidade mais explícita. A voz à la Zack de La Rocha de Salmazo só torna mais forte a impressão de combatividade da banda.

Também há algo de uma celebração das afrobrasilidades, com certas evocações da capoeira, dos tambores africanos. Um dos grandes momentos do show do Machete, segundo meu paladar, é quando eles decretam (com o som no talo, como de praxe): “o agogô chegou!”, com tambores de batuques afro mesclando-se linhas de baixo que não ficariam incoerentes dentro de um groove dos Chili Peppers. É aí que fica claro que o Machete Bomb veio para se pôr no campo-de-jogo cultural como uma daqueles expressões artísticas que Marcelo Ridenti chama de “brasilidade revolucionária”. E, como o Baiana System também promete, a Babilônia vai cair… se depender desses músicos.

Os vocais na confluência entre o rap e o hardcore não só evocam o Rage Against the Machine e o System of a Down, mas recuperam no cenário cultural brasileira pós-2013 um certo sabor de Planet Hemp. As letras de confrontação violenta do status quo (com o mais sincero “foda-se a vocês” que defendem o estabelecido) sugerem que no Brasil ainda sobrevive uma estética da resistência em que a música é vista não como entretenimento, mas como ferramenta para a motivação prática de nossas mobilizações coletivas.

E é bom saber que nosso povo não é achincalhado e fica calado. Nas voltas intermináveis que o mundo dá, a música múltipla e multiforme que não cessa de nascer sobre o planeta segue sendo uma roda viva rumo a novas paragens. Mais do que espelhar a época, a música às vezes dá voz e alto-e-bom-som às fúrias e rebeldias dos que não aceitam nem acatam que a época prossiga como está sendo. A música faz como Brecht dizia que a arte tinha que fazer: não ser espelho que reflete o mundo, mas um martelo com o qual escupi-lo.

A música às vezes atinge graus de intensidade impressionantes, capazes de desvelar as contradições sociais e explicitar as vontades e afetos complexos daqueles que levam a sério o direito humano fundamental: resistir à opressão. É um alento saber que ainda há produção cultural desta potência vinda daqueles que estão engajados em transformar esta época do mundo com as armas da linguagem. As munições sendo rimas, os tiros sendo de riffs! Tempos históricos catastróficos como os nossos exigem expressões artísticas de radicalidade.

E me parece que, por onde quer que passem – como fizeram no festival Psicodália (SC) – o Machete Bomb transforma o recinto numa Zona Autônoma Temporária (Hakim Bey). Numa área provisoriamente liberada. Num espaço de potencial insurrecional. E nele as lições de um dos mais geniais dos músicos revoltados que já viveu – Joe Strummer, do The Clash – seguem ecoando:

“Let fury have the hour
Anger can be power
Don’t you know that you can use it?”
THE CLASH – Clampdown


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Escrito por Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro.com || Setembro de 2018

GRUNGY FEELINGS – Songs From Generation X [Coletâneas / Playlists em Spotify]

GRUNGY FEELINGS – Songs From Generation X [Volume 1]
Coletânea / Playlist @ Spotify

01. SCREAMING TREES, “Dying Days”
02. NIRVANA, “Heart-Shaped Box”
03. SOUNDGARDEN, “The Day I Tried To Live”
04. LIVE, “Lakini’s Juice”
05. DAYS OF THE NEW, “Touch, Peel and Stand”
06. ALICE IN CHAINS, “Down in the Hole”
07. STONE TEMPLE PILOTS, “Meatplow”
08. BUSH, “Machinehead”
09. SILVERCHAIR, “Freak”
10. PEARL JAM, “Do The Evolution”

SENTIMENTOS GRUNGY NA ERA TRUMP – O suicídio de Chris Cornell, a Renascença do Stone Temple Pilots, e a redescoberta do Hole

Como a mítica Fênix, que não cessa de renascer das cinzas, o GRUNGE renasce de suas tragédias. Sua maré no mainstream já passou, mas os sentimentos grungy sejam vivos na Era Trump. Fazendo frente ao baque tremendo que foi para este cenário pós-grunge o suicídio de Chris Cornell (Soundgarden / Audioslave), o cenário tenta se reinventar.
Stone Temple Pilots renasce agora após duas outras mortes: a de Scott Weiland (vocalista dos 6 primeiros álbuns) e a de Chester Charles Bennington (do Linkin Park, que gravou apenas 1 EP como cantor do STP, em 2013, tendo se suicidado em 2017). São os corações ensombrecidos pelas tragédias reais, que recolocam tudo em clima de “Hunger Strike”:

“I don’t mind stealing bread
From the mouths of decadence
But I can’t feed on the powerless
When my cup’s already overfilled…”

Temple Of The Dog (1991) – Com Eddie VedderChris Cornell, Jeff Ament, Mike McCready, Jeff Ament, Matt Cameron.

Somando-se neste caldo as mortes trágicas de Kurt Cobain e Layne Stanley, pra não falar na overdose fatal de Andrew Wood (do Mother Love Bone) nos primórdios da saga Pearl Jam), temos um microcosmo cultural assombrado pela recorrência de fins-da-vida violentos, de pungente tragicidade, o que também se expressa nas sombrias e intensas paisagens sônicas que marcaram para sempre a estética contemporânea com as obras de Screaming Trees, Mudhoney, Nirvana, The Gits, dentre tantas outras bandaças.

“Roll Me Under” traz todo o peso e intensidade dos grandes dias do grungy noventista de novo ao primeiro plano, ilustrando sua mensagem sônica impactante com um clipe meio Into the Wild, evocando a vertente Steppenwolfiana que sempre nutriu o estilo grunge, este ethos do rock’n’roll que tão bem entremesclou o punk, o heavy metal e o indie-garage, reinventando para sempre a estética musical dos anos 1990.

Quem assume os vocais neste retorno do STP em 2018 é Jeff Gutt, que vem sendo chamado por alguns críticos de “um Scott Weiland bem-comportado”: “He nails how the late singer could slide from a snarl to a sigh, conjuring a bit of a snaky sexuality while still seeming a bit safe”, escreveu Stephen Thomas Erlewine em sua crítica para a AllMusic.

As 12 músicas novas demonstram uma banda ainda vigorosa e re-colocam o Stone Temple Pilots no epicentro do rock mainstream global para disputar as atenções com as mega-bandas Foo Fighters, em que Dave Grohl decolou após o naufrágio do Nirvana, e o Pearl Jam, já uma instituição consagrada da música global, que em breve completa 30 verões, merecendo um lugar de honra na História do Rock na companhia de um Neil Young & Crazy Horse ou de um Grateful Dead.

Já o STP, que sempre soou mais despretensioso e menos grandiloquente que o Pearl Jam, retorna para mostrar que um dos caminhos mais interessantes para a evolução do estilo grunge estava na tentativa de mesclá-lo com a new wave, o punk rock 77, o glam à la T.Rex. O poderio guitarrístico da banda sempre foi impressionante, desde os estupendos álbuns iniciais “Core” e “Purple”, e em 2018 eles não demonstram nenhum desejo de se aquietar. Os amps continuam no talo, o batera continua batendo forte, os riffs continuam te enganchando pelo queixo e batendo contigo nas paredes até tirar sangue.

O STP é uma daquelas raras bandas que pode soar alegremente subversiva como atos punk seminais como Johnny Thunders and the heartbreakers ou Richard Hell & The Voidoids, e na próxima faixa já se transmutar num denso e desesperador propagador de um estilo de rock grave e angustiante, à maneira das bandas históricas do movimento como Screaming TreesSoundgarden e Alice in Chains.
É um álbum que agrada e empolga por mostrar artistas grunge em plena forma, e prometendo ainda muito futuro. O grunge resiste! Ainda que o melhor álbum lançado ultimamente na estética grunge não tenha sido feito por uma banda que assim se rotule, ou que a este cenário cultural se vincule: me refiro ao “Wilderness Heart”, do Black Mountain, que fez neste álbum uma obra-prima do gênero, com canções magníficas como “Rollercoaster” e “The Hair Song”.

Com muito gosto ouvi este comeback do STP, um disco tão agradável de ouvir, tão lindamente executado, tão “radiofônico” (até mesmo no sentido Bon Joviano do termo), que quase nos convida a abandonar qualquer pose de crítico musical e simplesmente recomendar aos amigos: “ouve lá, é um discaço da porra!” A música fala bem em sua própria defesa e até nos desarma da iniciativa inglória de perguntar pelos interesses econômicos que possam estar envolvidos nesta empreitada, certamente acusável pelos críticos mais “cricos” de ser um “caça-níqueis”.

A indústria da música é de fato uma mina de ouro e não está fora de cogitação que o STP se enxergue como uma empresa, e das mais lucrativas. Mas isto não significa que estes caras não tenham algo a dizer artisticamente. Seria bem injusto, aliás, taxar de “comercial” uma banda que nunca abriu as pernas para o Sistemão do Rock Mainstream como fizeram os Creeds e Nickelbacks. O Stone Temple Pilots seguiu com seus fios elétricos plugados nas tomadas do Grunge noventista, soando como banda independente que teve acesso aos estúdios de gravação do Big Business – e soube se aproveitar disso.

Se o cérebro coloca estas questões, questionando se há vontade de grana alta por trás da nova encarnação do STP, os tímpanos e o coração simplesmente embarcam no rollercoaster deste álbum pulsante e cheios de belos thrills. Fazia tempo que um álbum de estilo grungy chegava com tamanho estrondo – que o Queens of the Stone Age  se cuide, pois tem rival forte de volta na cena!

Saudamos a chegada deste álbum como uma bela anfetamina musical para nossos tempos em que o Grunge segue tendo muitas razões para existir. Pois temos direito à divergência e a dissonância. E queremos nossa fúria tomando de assalto as ondas do rádio!

A alucinógena borboleta que estampa a capa do disco, e que parece a obra de algum artista das HQs que tomou um peiote, indica de modo simbólico o poder desta banda: dentro da borboleta, há uma teia de aranha.

A aparência mais englobante, da bela butterfly, é atraente e sedutora, mas na essência mais interna esconde-se o perigo, o aracnídeo.

Entre as asas desta borboleta, parece caber todo o caos e maravilha do mundo – e o som que fazem estas asas ao voar indica que, por mais agradável que seja esta rock-sinfonia, propulsionada pelos músicos como um foguete, pulsa aqui também algo de perigoso.

Algo que morde, que devora, como um aranha faz com o inseto que cai em sua teia.

As reações iniciais da imprensa musical parecem ser muito positivas, com reviews que destacam o quanto o álbum traz “a banda lidando emocionalmente com suas tragédias”:

The album comes after STP’s tragic last few years which saw the deaths of Scott Weiland and Chester Bennington. Losing two singers in such a short period is really one of the biggest tragedies in rock history, to see STP come back with a new album with some really triumphant sounding songs is powerful especially on the first few listens. Scott and Chester’s spirits are definitely felt throughout the album.” – Alternative Nation

Chester e Scott, dois mortos precoces do rock contemporâneo, somados à ausência monumental de Chris Cornell, também recentemente suicidado, mostram que a Era Trump, nos EUA, está sendo também a de uma maré cultural de redescoberta do grunge, em tudo aquilo que ele tem de problemático e obscuro. A Geração X ainda está entre nós, assim como o Fantasma de Kurt Cobain, assombrando com sua poesia atormentada a propaganda do cartão postal chamado American Dream, aquele em que só acreditam os que estão dormindo.

O grunge parece passar pela história da cultura humana como uma espécie de híbrido entre tragédia e resiliência. Um movimento cultural que sobrevive a todas as suas tragédias, que se reinventa na mudança: Mark Lanegan cantando com o QOTSA, Josh Homme e Dave Grohl (dos Foo Fighters) flertando com o que restou do Led Zeppelin (Them Crooked Vultures), Alice In Chains seguindo em frente com novo vocal após a morte de Layne Stanley… Para não falar da farta colheita que foram as passagens de Cornell e Weiland pelo mundo, já que eles também povoaram nosso horizonte artístico com as criações de Audioslave e Velvet Revolver, além dos respectivos álbuns-solo…

Enquanto seus heróis vão caindo mortos, o grunge segue em frente como pode, aos trancos e barrancos. E no epicentro deste drama, segue queimando supremo o inesgotável Nirvana: Cobain não precisou de mais que 27 anos de idade para causar um terremoto cultural que não dá sinais de que irá simplesmente desaparecer, e em pleno 2018 aquele som que smells like teen spirit está por aí, pulsando no coração do Império decadente!
O retorno, em tão boa forma, do Stone Temple Pilots nos mostra isso: o ímpeto nirvânico está sendo re-acendido. A Fênix grunge alça vôo outra vez. E ela vem enraizada no passado, atenta ao novo e disposta a ser ouvida em toda sua dissonância e dissidência.

Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro

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