:: Camus e Nietzsche ::


Albert Camus
 (1913-1960) falando sobre Nietzsche no clássico “O Homem Revoltado”(originalmente publicado em 1951 pela Gallimard). Tradução de Valerie Rumjanek. Editora Record, 5ª edição, 2003.

“Nietzsche: com ele, a revolta parte do ‘Deus está morto’, que ela considera fato consumado; volta-se em seguida contra tudo aquilo que visa substituir falsamente a divindade desaparecida e desonra o mundo. (…) Nietzsche não meditou o projeto de matar Deus. Ele o encontrou morto na alma de seu tempo. Foi o primeiro a compreender a dimensão do acontecimento, decidindo que essa revolta do homem não podia conduzir a um renascimento se não fosse dirigida. Qualquer outra atitude em relação a ela, quer fosse o remorso, quer a complacência, devia levar ao apocalipse.” (pg. 89)

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“Qual é a corrupção profunda que o cristianismo acrescenta à mensagem de seu senhor? A ideia de julgamento, estranha aos ensinamentos do Cristo, e as noções correlativas de castigo e de recompensa. A partir desse instante, a natureza torna-se história, e história significativa: nasce a ideia da totalidade humana. Da boa-nova ao juízo final, a humanidade não tem outra tarefa senão conformar-se com os fins expressamente morais de um relato escrito por antecipação. (…) O cristianismo acredita lutar contra o niilismo, porque ele dá um rumo ao mundo, enquanto ele mesmo é niilista na medida em que ao impor um sentido imaginário à vida impede que se descubra o seu verdadeiro sentido: ‘Toda igreja é uma pedra que se coloca sobre o túmulo do homem-deus; ela tenta evitar sua ressurreição à força.” (pg. 90)

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“O espírito livre destruirá tais valores [judaico-cristãos] ao denunciar as ilusões sobre as quais repousam, a barganha que implicam e o crime que cometem ao impedir que a inteligência lúcida realize a sua missão: transformar o niilismo passivo em niilismo ativo. (…) Por ser um espírito livre, Nietzsche sabia que a liberdade do espírito não é um conforto, mas uma grandeza que se quer e obtém, uma vez ou outra, com uma luta extenuante. (…) Compreendeu que o espírito só encontrava sua verdadeira emancipação na aceitação de novos deveres. (…) O essencial de sua descoberta consiste em dizer que, se a lei eterna não é a liberdade, a ausência de lei o é ainda menos. (…) O próprio caos também é uma servidão. (…) Sem lei, não há liberdade. Se o destino não for orientado por um valor superior, se o acaso é rei, eis a marcha para as trevas, a terrível liberdade dos cegos.” (pg. 92)

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“NIETZSCHE: ‘Se não fizermos da morte de Deus uma grande renúncia e uma perpétua vitória sobre nós mesmos, teremos que pagar por essa perda.’ (…) Se o homem não quiser perecer nas dificuldades que o sufocam, será preciso que as desfaça de um só golpe, criando os seus próprios valores. A morte de Deus não dá nada por terminado e só pode ser vivida com a condição de preparar uma ressurreição. ‘Quando não se encontra a grandeza em Deus’, diz Nietzsche, ‘ela não é encontrada em lugar algum; é preciso negá-la ou criá-la.’ Negá-la era a tarefa do mundo que o cercava e que ele via correr para o suicídio. Criá-la foi a tarefa sobre-humana pela qual se dispôs a morrer.” (pg. 93)

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“Nietzsche grita-nos que a terra é a única verdade, a qual é preciso ser fiel, na qual é preciso viver e buscar a sua salvação. Mas ensina-nos, ao mesmo tempo, que é impossível viver em uma terra sem lei. (…) A partir do momento em que se reconhece que o mundo não persegue nenhum fim, Nietzsche propõe-se a admitir a inocência do mundo, a afirmar que ele não aceita julgamentos, já que não se pode julgá-lo quanto a nenhuma intenção, substituindo, consequentemente, todos os juízos de valor por um único sim, uma adesão total e exaltada a este mundo. Dessa forma, do desespero absoluto brotará a alegria infinita… A mensagem de Nietzsche é que o revoltado só se torna Deus ao renunciar a toda revolta, mesmo à que produz os deuses para corrigir este mundo. (…) Há, na verdade, um Deus, que é o mundo. Para participar de sua divindade, basta dizer sim. ‘Não rezar mais, mas dar a bênção’, e a terra se cobrirá de homens-deuses. (…) Da mesma forma que Empédocles, que se atirava no Etna para ir buscar a verdade onde ela está, nas entranhas da terra, Nietzsche propunha ao homem mergulhar no cosmos…” (pg. 93)

:: Breve Coleta de Pensamentinhos Instigantes ::


“O tempo só anda de ida.”
(MANOEL DE BARROS)

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“A day without laughter is a wasted day.”
(CHARLIE CHAPLIN)

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“Como o copo de água com açúcar, rezar é muleta psicológica.”
(REVISTA BULAhttp://bit.ly/n8eW4z)

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“Se você não está indignado, é que não está prestando a devida atenção.”
(um manifestante na OCUPAÇÃO DE WALL STREEThttp://tumblr.com/xf14x4sqdq)

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“Não há no mundo amor suficiente para ser desperdiçado
em algo que não o ser humano.”

(MAX SCHELER, o filósofo alemão, 1874–1928)

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“One of the greatest tragedies in mankind’s entire history
may be that morality was hijacked by religion.”

(ARTHUR C. CLARKE, autor de 2001 – UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO)

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‎”Comparados com a história da vida orgânica na Terra,
os míseros 50.000 anos do Homo Sapiens
representam 2 segundos ao fim de um dia de 24 horas.”

(um biólogo citado por WALTER BENJAMIN
– Obras Escolhidas I, p. 231. )

2001: A Space Odyssey (MGM, 1968)

“Behind every man now alive stand thirty ghosts, for that is the ratio by which the dead outnumber the living. Since the dawn of time, roughly a hundred billion human beings have walked the planet Earth. 

Now this is an interesting number, for by a curious coincidence there are approximately a hundred billion stars in our local universe, the Milky Way. So for every man who has ever lived, in this Universe there shines a star. 

But every one of those stars is a sun, often far more brilliant and glorious than the small, nearby star we call the Sun. And many  —  perhaps most  —  of those alien suns have planets circling them. So almost certainly there is enough land in the sky to give every member of the human species, back to the first ape-man, his own private, world-sized heaven–or hell. 

How many of those potential heavens and hells are now inhabited, and by what manner of creatures, we have no way of guessing; the very nearest is a million times farther away than Mars or Venus, those still remote goals of the next generation. But the barriers of distance are crumbling; one day we shall meet our equals, or our masters, among the stars. 

Men have been slow to face this prospect; some still hope that it may never become reality. Increasing numbers, however are asking; ‘Why have such meetings not occurred already, since we ourselves are about to venture into space?’ 

Why not, indeed? Here is one possible answer to that very reasonable question. But please remember: this is only a work of fiction.

The truth, as always, will be far stranger.” 

― Arthur C. Clarke2001: A Space Odyssey

:: My Summer of Love (filmaço britânico vencedor do BAFTA 2005) ::

“…uma grande virtude (ou “valor moral”) é discutida e problematizada através desta narrativa envolvente de My Summer of Love: a AUTENTICIDADE. Me refiro àquela virtude que André Comte-Sponville chama de “boa-fé”, mas que é conhecida também por honestidade, sinceridade, veracidade. Mona é uma espécie de encarnação da autenticidade. Autêntico é aquele que não mente, não se esconde detrás de máscaras e poses, não interpreta um papel diante do outro, mas quer ter sempre reconhecida sua verdadeira face. Autêntico é também aquele que não aceita ser engambelado, que não se deixa enganar com facilidade, que se revolta quando descobre que lhe mentiram, que prefere reconhecer uma verdade dolorida a crer numa mentira confortável.” – LEIA ARTIGO COMPLETO NO ESTETICOSCOPIO!

:: Maiakóvski! (“repleto de versos levanto meu crânio…”) ::

Um cartaz de Maiakóvski onde se lê: “Ucranianos e russos gritam – Não haverá senhor sobre o trabalhador, Milorde!” (tradução do russo por Giselovna Tolstoassa)

“Para engrandecer o homem, ele [Maiakósvki] o eleva a Maiakóvski. Como o grego, que era antropomorfista e equiparava-se de modo ingênuo às forças da natureza, assim também nosso poeta, maiakovski-morfista, povoa consigo mesmo as praças, as ruas e os campos da revolução.” – TROTSKI

“A angústia diante dos limites fixos e estreitos e o desejo de superação dos quadros estáticos constituem um tema que Maiakovski varia sem cessar. Nenhum curral no mundo poderia conter o poeta e a horda desenfreada de seus desejos.” – JAKOBSON

“Ser burguês não é ter capital e esbanjar dinheiro a rodo. É ser o calcanhar dos mortos na garganta dos jovens, é a boca tapada por pelotas de gordura. Ser proletário não significa andar sujo, ser aquele que faz girar as fábricas. Ser proletário é amar o futuro, que fará explodir a sujeira dos porões – acreditem.” – VLADIMIR MAIAKÓVSKI

:: A Utopia Estuprada (O Novo Mundo, de T. Malick) ::

Ah, a Utopia! Não é fácil capturá-la com uma câmera de cinema! A Utopia, por definição, não é algo de empírico: é o que nossos sentidos não podem experenciar. Algo que só se pode enxergar através dos “olhos da imaginação”. Ela, a utopia, costuma ser mais uma quimera criada por cérebros e corações febris, em delírios e desenfreios da fantasia humana, do que algo que se encontre, já pronto, em algum canto da realidade objetiva. Pode-se percorrer o mundo em busca de uma realidade que se encaixe, como uma mão numa luva ou uma chave numa fechadura, em nossas molduras ideais,mas pode-se jamais encontrar esta harmonização, este abraço. Quantos perseguidores audazes de utopias não acabaram diante de quimeras desfeitas e ilusões perdidas e poças de sangue? E quantas sociedades que hoje descrevemos como “idílicas” não foram destroçadas justamente pelo “ímpeto utópico” de estrangeiros imperialistas, querendo estabelecer seu way-of-life lá onde ele não foi desejado?

 Segundo Eduardo Galeano, ela, utopia, é aquilo que sempre está no horizonte, mas que nossas mãos jamais tocam. Os mais impacientes (aqueles que querem uma utopia que possam estreitar nos braços, num abraço amigo!), hão de perguntar: “mas pra quê serve isto que está sempre remoto, distante, inalcançável?” E Galeano responde: para que caminhemos em sua direção. A utopia é aquilo que, no horizonte distante, nos chama, nos convoca, nos solicita… Dá um sentido para a caminhada. É seta que aponta um rumo. Sem esta bússola, estaríamos perdidos, ou a vida pareceria sem sentido.

Pois bem, mas esta não é a única utopia que pode ser criada: há muitas outras. Tão fértil é o cérebro humano em vontades, em delírios! Há outra utopia, concebida como algo que, ao invés de estar no futuro, ficou no passado. A Idade Dourada estaria atrás de nós, não na frente. Para reencontrá-la, teríamos que, de certo modo, andar na marcha à ré. A recuperação de algo perdido torna-se o que motiva a busca do tesouro. Algum fruto proibido nos fez ser expulsos do Éden primordial e agora precisamos dar um jeito, com nenhum guia a não ser nossa saudade e nosso abandono, para retornar ao seio primevo, onde vivíamos em beatitude… Doces sonhos, e bem retrógados! Mas não será a realidade bem mais amarga do que estas “coloridices” (para usar um termo jóia do Caio Fernando Abreu…)? A propaganda subliminar e escancarada dos otimistas do ideal, sejam eles sonhadores do futuro ou sonhadores do passado, deve nos fazer estar cegos às podridões todas que sujam nossas vidas de miséria, injustiça, avareza, ira e guerra?…

A utopia é material perigoso: pode entorpecer as nossas faculdades racionais, deixar-nos tão inebriados, como que sonhando doidamente de olhos abertos, que não mais enxergamos o poste que está diante de nosso nariz e contra o qual nossos ossos estão em rota de colisão. Quando destrói a lucidez, a utopia pode ser a força que empurra alguém na direção do abismo. Quem caminha demais olhando para as nuvens, um dia despenca no buraco e se estrepa. Mas quem caminha só olhando para o chão também não faz jus ao humano: apega-se ao símio ao invés de aspirar a ir além de si mesmo. Mais ou menos assim falava Zaratustra.

O Novo Mundo e A Árvore da Vida, juntos, delineam os contornos de uma utopia tal qual o cinema não faz desde… desde sei lá quando! Na verdade, não me lembro de alguém que tenha sido, antes de Terrence Malick, um artista do cinematógrafo com uma estética tão utópica. Para entender de quê utopia se trata, me parece, é preciso antes de mais nada desistir de querer compreendê-la só com a cabeça. Malick é uma torrente de sensorialidade! Seus filmes são para ser vistos com os SENTIDOS BOQUIABERTOS, meus caros, e não com um cérebro racional e tirânico que impõe o império da Lógica! Sim: filmes para serem mais sentidos do que raciocinados. O que não significa que não precisem ser compreendidos.

A utopia, Malick faz com que ela encarne nas mulheres que, em ambos os filmes, servem de protótipo de criatura com um relacionamento sábio com o cosmos. São mulheres extremamente sensoriais, que mantêm as portas da percepção sempre descomunalmente abertas e que são capazes de se deliciar com “pouco”: os raios de Sol, a carícia do vento, o respingo das gotas de água que regam um jardim verdejante… Estas não são mulheres que caem de joelhos, cabisbaixas e trêmulas, para se submeter a um Deus pintudo, com colhão de sobra. Estas mulheres são servidoras de uma Deusa bem diferente dos velhinhos furiosos do monoteísmo. Vivem em harmonia com uma divindade que concebem como feminina e que toca-nos o corpo e os olhos e a pele a todo o momento, bastando que estejamos atentos. Uma certa Gaia, deusa-Mãe, deusa-Universo, que se confunde com Tudo-Que-Existe, compêndio infinito de forças transbordantes que delicia uma seita dionisíaca e primaveril… É uma deusa que é pura EXUBERÂNCIA, para usar um termo tão caro a William Blake.

Mas há outra utopia, em rota de colisão com esta, que promete estragar o caldo do idílio com o ruído dos canhões.

Virginia, 1607. A colonização inglesa do que um dia irá se tornar os Estados Unidos da América é descrita pelas lentes de Malick como algo que chega para destruir o modo-de-vida ultra harmônico dos nativos do continente. Há decerto uma idealização tipicamente rousseausísta em ação no filme, com uma certa aura de santidade “desenhada” ao redor da cabeça dos “bons selvagens”, especialmente nossa pequena Pocahontas, mulher que exala tanta vitalidade e estarrecimento diante do Mistério de Tudo que não escapa de ser considerada pelos capitães ingleses como um objeto digno do maior amor e devoção.

Toda esta coloridice do idílio indígena será destroçada com a pólvora e as cruzes-do-Cristo que desceram das caravelas junto dos europeus no episódio conhecido como “Descobrimento e Colonização do Novo Mundo”, mas que, como Malick não nos esconde, mais se assemelhou a uma Invasão Imperialista Truculenta, seguida de guerra e morticínio, em que os massacres e as vilanias eram a mais cotidiana das realidades. O sangue caiu em borbotões sobre esta terra do Eldorado, tão repleta de biodiversidade e deslumbrâncias, que Malick filma como algo tão imaculado que mais se assemelhava a um outro planeta, ainda não conspurcado pelo capitalismo…

Resta saber: antes da invasão, a coisa eram assim tão bela e harmônica quanto a propaganda subliminar de Malick, este Rousseau da 7ª arte, nos persuade a acreditar? Não haviam bem antes da invasão dos europeus  guerras terríveis entre diferentes tribos indígenas? Não haviam mortes cruéis, rituais de tortura, mil e uma perversidades? Será realmente que o sadismo só chegou às Américas por ter sido importado? Eram os americanos pré-colombianos assim tão idílicos e bonitinhos em relação aos truculentos estrangeiros, cegados pela febre do ouro, narcisisticamente desejosos de entesourar capitais imensos, que invadiam estas paragens paradisíacas para destroçá-las com sua ganância e sua falta de escrúpulos?
You flow through me, like a river. (The New World, 2005)
You flow through me, like a river. (The New World, 2005)

De qualquer modo, Malick nos faz pensar em profundeza sobre Natureza e Cultura, Utopia e Realidade, Homem e Cosmos. Afinal de contas, o que é a Natureza e qual a posição do Homem nela? Somos o ápice e o supra-sumo do imenso processo histórico-natural que nos gerou, os únicos seres capazes de tomarem consciência da imensidão, os olhos e ouvidos da Criação, sem os quais ela careceria completamente de sentido? Ou não passamos de uma espécie dentre outras, tão extinguível quanto os dinossauros, talvez tão estúpida quanto eles em muitos sentidos, e que acabará por destruir suas próprias possibilidades de existência por não compreender conseguir compreender seus limites?…

Em O Novo Mundo, Malick deixa conviverem a utopia encarnada numa Mulher, um cosmos feminilizado e pintado com as cores de uma Gaia panteísta, cheia de dádivas e graças, com as amargas e sanguinolentas realidades da guerra e da conquista imperialista, da luta visceral por poder e domínio, dos furacões de ira e desentendimento que rasgam os homens em pedaços, que os mutilam de seus membros, que os arrancam a preciosa e única vida em meio à violência irracional que urra e uiva…
Há momentos em que Malick consegue ser tão trágico como Shakespeare, mas no geral há, parece-me, um otimismo que corre firme por detrás da narrativa, diferente da irrupção por vezes brutal do absurdo nas tragédias shakespereanas. Os ingleses de Malick, especialmente os dois personagens principais do filme, interpretados por Colin Farrell e Christian Bale, são figuras que nada tem de mesquinhas, que possuem uma certa nobreza, uma certa “envergadura moral”, o que contrasta com os ingleses que Shakespeare descrevia com tanto veneno, cinismo e penetrante olhar desvendador de vícios. Vejam, por exemplo, o seguinte trecho de A Tempestade, peça de despedida do bardo inglês, e comparem os tratamentos que são dados ao tema dos forasteiros que são recebidos na Terra Nova…
“…outra tempestade vai se armando… posso escutar a dita cuja cantando no vento. Lá longe a mesma nuvem negra, lá longe uma enorme, mais parece uma garrafa, um caneco imundo com boca de canhão, pronto a derramar seu precioso líquido. Se trovejar e relampejar, não sei onde vou me esconder… Lá longe a mesma nuvem não tem escolha, só pode cair aos montões. O que temos aqui [deparando-se com Caliban, o filho da bruxa Sicorax e escravo de Próspero], um homem ou um peixe? (…) Estivesse eu agora na Inglaterra, e este seria um peixe pintado em um belo cartaz de rua; e os bobalhões em passeio de férias pagariam para vê-lo. Lá na Inglaterra, este monstro passava por humano, e seria mais uma fera estrangeira fazendo a fortuna de um homem. Lá eles não se desfazem de uma mísera moedinha para ajudar um mendigo coxo, mas gastam até dez para ver um índio morto.” WILLIAM SHAKESPEARE. A Tempestade. Ato II. Cena II. Pg. 56. Ed. L&PM.
Shakespeare descreve a Natureza como algo tremendo, que ruge e que uiva em tempestades daquelas que Melville descreverá em Moby Dick, séculos depois; os elementos naturais, em Shakespeare, são normalmente descritos como forças irracionais e impiedosas que não se importam com reis e coroas — tanto que o pobre Rei Lear, enlouquecido, traído por Goneril e Regan, é estapeado com violência por um temporal que não se apieda de Vossa Alteza. Já Malick aposta numa Natureza mais benigna, que possa nos servir como seio materno, se soubermos retornar a ela, e cujas forças são intrinsecamente sábias, ainda que nós, humanos, estejamos cegamente envoltos em discórdias menores e rixas mesquinhas.

Já quanto aos ingleses, que Shakespeare descreve com tintas tão maliciosas (“eles não se desfazem de uma mísera moedinha para ajudar um mendigo coxo, mas gastam até dez para ver um índio morto…”), Malick pega mais leve com eles. É com mais complacência que observa com suas lentes os ingleses de 1600 e pouco, e isto talvez por não tê-los conhecido pessoalmente, como Shakespeare pôde. Tampouco pôde conhecer os indígenas das Américas, o que talvez também explique o retrato tão idealizado que nos oferece deles: foram embelezados por Terrence Malick, que lança um olhar retrospectivo de historiador-filósofo-antropólogo carinhoso que quer aprendercom eles mais do que condená-los.E não serei eu aquele que irá condenar Malick por isso. Afinal de contas, seu filme é de uma extrema beleza, possui cenas de uma poesia visual inegável e nos traz na bandeja uma cintilante Utopia que, ao que me parece, está entre as melhores que há no mercado das idéias: uma Utopia que nada tem de capitalista, mercantilista, individualista ou competitivista; uma Utopia que parece consistir numa comunidade de criaturas que possuam portas da percepção bem abertas para os mistérios cósmicos, que querem manter-se conectadas tanto à terra e às plantas quanto ao Sol e estrelas; que sentem-se como parteda Natureza circundante, e não como dela apartados; que não usam relógios nos pulsos pois preferem contemplar o Tempo passando no correr dos riachos ou nos crepúsculos e alvoradas; e que encontram no amor um meio de reconciliação com o Ser, que cessa de ser condenado, desprezado, recusado, tiranizado, tornando-se aquilo que, através do abraço, faz-se Um conosco.


“O fotógrafo australiano Lincoln Harrison registrou o rastro que as estrelas deixam no céu durante a rotação do planeta, através de uma série de imagens feitas em longa exposição. Foram necessárias de 13 a 15 horas para o registro de cada foto. Harrison, de 36 anos, acampou nas margens do lago Eppalock, no Estado de Victoria, no sudoeste do país. Ele permanecia desde o pôr do sol até o amanhecer em um mesmo lugar para conseguir uma única foto.”

Vi no Resumo Fotográfico. Dica certeira da Marina Marques.