Da angústia solitária à revolta solidária: sobre a filosofia de Albert Camus || A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.”
ALBERT CAMUS em “Núpcias” [1]

CAPÍTULO 1: A Indesejada das Gentes

Confinados na implacável finitude da vida, nós, os mortais, temos acesso a poucas certezas inabaláveis, dignas do estatuto de verdades absolutas. A mais irrecusável das certezas, para cada um e todos, é a de que todos nós um dia vamos morrer – como diz o provérbio: morte certa, hora incerta.

Por ser aquilo que nos é comum, não importa em que latitude e longitude vivamos, nossa finitude nos une. No entanto, sermos finitos não é simplesmente algo aceito e acolhido como um fato bruto, mas sim algo que é “vestido” pela consciência humana com as mais variadas roupas, embalado nas vestes de crenças multiformes. O único bicho que sabe que vai morrer é também o animal simbólico, faminto por sentido. A vivência do perceber- se mortal é de extrema diversidade conforme as crenças (ou ausência destas) que a pessoa nutra (ou que tenha destroçado em si).

Além disso, é variável o grau de realização da morte [2], ou seja, o sujeito considera como real tal condição num gradiente que vai da negação de quem finge que a morte nunca virá, à obsessão mórbida de quem pensa-se como “cadáver adiado” (Fernando Pessoa) [3] a todo momento de todos os dias. As dinâmicas psíquicas do recalque / repressão desta consciência de nossa radical limitação espaço-temporal, socialmente consolidadas em ideologias destinadas ao negacionismo da finitude, são tema do clássico A Negação da Morte (The Denial of Death) de Ernest Becker [4].  

O fato de sermos mortais, ao mesmo tempo que nos une na mesma condição que nos é comum, também nos separa radicalmente: assim como “ninguém vive por mim” (cantou lindamente Sérgio Sampaio) [5], também podemos dizer a qualquer um: ninguém vai morrer no teu lugar, a tua própria morte é algo que você vai ter que encarar, cedo ou tarde, querendo ou não. Cada um encara o processo de morrer num estado onde a solidão se manifesta de modo mais extremo do que em outras vivências humanas. Pode ser que o poeta chileno Nicanor Parra tenha razão ao propor que “a morte é um hábito coletivo” [6], mas cada sujeito a vivencia de maneira singular. E arrasta para o túmulo e seu eterno silêncio o segredo incomunicável do que se passou por dentro naqueles últimos momentos vitais antes do fatal ponto-final.

Pedra irremovível no caminho do desejo de imortalidade que muitas vezes os humanos nutrem, a morte existe sobretudo como horizonte. Está presente por sua iminência. O que nos condena à angústia como parte integrante da condição humana. Costuma-se dizer que somos os únicos animais no planeta Terra que sabem que vão morrer, mas talvez fosse mais preciso dizer que o sentimos mais que sabemos. A angústia é este afeto em nós que atesta a nossa finitude.

Na história da filosofia, a reflexão sobre o futuro estado de esqueleto de cada um de nós já foi alvo de muitas reflexões: a sabedoria Epicurista pretendia curar o medo da morte e dos deuses, causadores de intranquilidades da alma que impedem a sábia ataraxia, com uma argumentação que a Carta a Meneceu (Sobre a Felicidade) sintetiza assim: “Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações.” [7] Quase dois milênios depois, Michel de Montaigne, em um de seus mais célebres ensaios, exploraria a noção de que “filosofar é aprender a morrer” [8].

É preciso aprender que, querendo ou não, a morte é nosso quinhão e que dar sentido a uma vida que acaba é nossa perpétua tarefa. A sensação de absurdo que às vezes se espraia pela existência tem a ver com o fato de que a foice às vezes pode arrasar com um vivente em momento inoportuno, em hora precoce, quando ele ou ela ainda estava cheio de sonhos, planos e forças.

Por isso, raros são aqueles que enfrentam a vida sem medo algum: a possibilidade da morte, sobretudo injusta, súbita, dolorida, tira-nos o sossego. Talvez nunca tenha nascido e completado sua trajetória finita entre os vivos nenhum animal humano que possa dizer, do berço ao túmulo: “atravessei o tempo sem nunca temer a morte”. Para o poeta Manuel Bandeira, a morte é “a indesejada das gentes”, a “iniludível” (aquela que não se pode burlar ou enganar) [9]:

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.

Pintura de Arnold Boecklin


CAPÍTULO 2: A CLARIVIDÊNCIA, IMPRESCINDÍVEL VIRTUDE CAMUSIANA 

Para Albert Camus (1913 – 1960), não há escapatória: “a angústia é o ambiente perpétuo do homem lúcido” – e a questão das questões, como o príncipe Hamlet sabia, consiste em escolher entre o sim à vida (ainda que angustiada) ou o não à ela (o caminho do suicídio) [10]. Quem vê claro, nesta vida, não escapa de sentir o fardo de afetos angustiantes. O que importa é que a angústia não nos paralise, que possa inclusive servir à nossa ação e ao nosso Combat – nome do jornal com o qual Camus colaborou, crucial na cobertura de eventos históricos como a Resistência à ocupação nazista da França, a Guerra de Independência da Argélia e o Maio de 1968.

Neste livro (Folio, 2013, 784 pgs), estão reunidos 165 artigos publicados por Camus no jornal Combat, onde ele atuou como editor chefe entre agosto de 1944 e junho de 1947. Saiba mais.

Publicado em 1947 pela Editora Gallimard, o romance “A Peste” expressa a atitude existencialista Camusiana diante dos flagelos que parecem querer soterrar a humanidade sob os escombros de um sentido arruinado. Diante da irrupção do absurdo coletivo que é a peste, esta máquina mortífera que ceifa vidas de animais humanos como se estes fossem moscas, o que propõe o artista-filósofo franco-argelino?

Para começo de conversa, o absurdo, para Camus, é um ponto de partida e não de chegada. Não se deve ficar estagnado diante do absurdo, como se ele fosse uma barreira intraponível que deveria nos fazer desistir de qualquer ação, abandonando-nos à passividade. A percepção do absurdo deve conduzir à revolta solidária dos humanos em luta contra os males de seu destino. Se, de fato, a revolta e a solidariedade são valores basilares do ethos camusiano, é preciso destacar ainda o posição de destaque que a virtude da clarividência ocupa no universo temático de Camus.

Isto que a língua francesa chama de clairvoyance tem um sentido próximo ao de lucidez. A lúcida clarividência está fortemente presente em A Peste, como se Camus quisesse ensinar que é preciso ver claro em meio ao horror se não queremos aumentá-lo ou colaborar com ele. Perder a lucidez, deixar ir pelo ralo a clarividência, em nada ajuda a frear a expansão das epidemias, nem auxilia a vencer as infestações do fascismo. O médico Bernard Rieux, narrador do romance, trabalha arduamente em meio à proliferação da doença, ainda que sinta seu cotidiano de combatente anti-peste como um trabalho de Sísifo, repleto de “intermináveis derrotas”.

É preciso compreender que Bernard Rieux é uma espécie de Sísifo em tempos de flagelo coletivo, numa época em que há a irrupção do absurdo em escala massiva. O rochedo que ele tenta arrastar montanha acima é a saúde de seus pacientes. Muitos de seus esforços médicos são em vão: a peste vence frequentemente e o paciente morre. Mas a batalha perdida não finda a guerra. Novos infectados não param de chegar aos hospitais, como novos rochedos a tentar empurrar montanha acima rumo à saúde sempre precária.

Rieux jamais desiste da luta, por mais que seja muitas vezes derrotado em seu intento de curar os adoentados ou de diminuir o sofrimento dos agonizantes. Rieux, apesar do tom afetivo que o domina ser o de um pessimismo de homem ateu, não cai nunca no derrotismo ou na resignação imóvel. Rieux é um trabalhador: não fica de braços cruzados diante dos males concretos que afligem os corpos de seus concidadãos. Não espera ou pede nenhum auxílio divino ou sobrenatural. Por isso, apesar de tantas derrotas diante da peste mortífera, o Doutor Rieux não se torna nunca um derrotado no sentido que dá a esta palavra o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, para quem “os únicos derrotados são os que baixam a cabeça, que se resignam com a derrota.  A vida é uma luta permanente, com avanços e retrocessos”. [11]

Imaginem se Mujica, em algum momento de angústia extrema, durante o período de 12 anos em que esteve confinado nos cárceres da Ditadura Militar uruguaia, tivesse desistido da luta. Se tivesse gasto até a última fibra de sua coragem e resiliência de tupamaro, se tivesse utilizado a saída do suicídio para escapar dos horrores de estar entre os vivos em tais condições horríficas, aí sim teria sido um derrotado – e não o futuro presidente do Uruguai e um ícone das esquerdas latinoamericanas. Por isso, no poster do filme Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner, que retrata as vivências de Mujica e outros dois prisioneiros, destaca-se a frase: “los únicos derrotados son los que bajan los brazos”. [12]

História semelhante se poderia contar sobre Nelson Mandela, Oscar Wilde, Antonio Gramsci ou Luiz Inácio Lula da Silva: na prisão, eles não abaixaram a cabeça, não se renderam à opressão deixando a resiliência cair estilhaçada ao solo, seguiram determinados em sua luta, clarividentes e revoltados em face de absurdos insultantes. Atravessando a noite que parece interminável. Nunca aderindo à preguiça dos passivos ou à inação dos resignados.


CAPÍTULO 3: A LITERATURA DAS ENCRUZILHADAS

Vários debates filosóficos atravessam o romance de Camus: A Peste é um romance repleto de difíceis encruzilhadas em que os personagens tentam escolher entra as alternativas que o destino lhes impõe. O jornalista Rambert, por exemplo, está separado da mulher que ama, preso na Oran empesteada, de onde as autoridades não permitem que ninguém entre ou saia. Tomando medidas para pagar por uma fuga, Rambert entra em negociações com contrabandistas, mas os acordos não avançam muito bem. Retido na cidade em quarentena, Rambert decide-se a trabalhar junto com o Dr. Rieux enquanto aguarda ocasião mais oportuna de escapar dali para se re-encontrar com sua amada.

Depois de muito refletir, quando enfim se apresenta a ocasião da fuga, Rambert prefere ficar ao invés de partir. Explica que “se partisse sentiria vergonha”. Ao que Rieux responde com firmeza que isto é uma “estupidez” e que “não há vergonha em preferir a felicidade”. Ou seja, em meio à desgraça toda, os personagens debatem sobre o hedonismo enquanto doutrina ética, a noção de que uma prazeirosa felicidade é o fim último (télos) da existência humana.

Rambert, nesta sua encruzilhada ética, sopesa as alternativas: fugir em direção à mulher de quem sente saudades é sua tentação mais forte, sua vontade quase irreprimível, pois é este o caminho que lhe aponta sua ânsia de felicidade, sua fome relacional, seu ímpeto de gozo afetivo, sexual, de estima carnal. Porém, o outro caminho que se desenha na encruzilhada é o de ficar na cidade para trabalhar, junto com os outros, em prol de uma melhoria da condição de todos. Rambert prefere ficar, argumentando, contra Rieux e seu hedonismo, que pode sim ser motivo de vergonha “querer ser feliz sozinho” (être heureux tout seul) [13].

Em contexto de flagelo coletivo, Rambert acaba por concluir que não tem direito à fuga na direção de sua felicidade individual. Terceira voz neste diálogo, Tarrou percebe bem que a natureza da escolha na qual Rambert se debate envolve um desejo de empatia para com os que sofrem durante a peste. Porém, esta empatia pode mergulhar o sujeito numa tal maré de compaixão que ameaça destruir completamente sua possibilidade de vivenciar afetos alegres e vivificantes. Para Tarrou, se Rambert “quisesse partilhar da infelicidade dos homens, não haveria jamais tempo para a felicidade. Era preciso escolher.”

Rambert, apesar do sofrimento da separação, que às vezes o conduz a gritar a plenos pulmões (op cit, item 13, p. 185) em montes desertos da cidade, acaba por decidir-se que não quer suportar a vergonha de fugir tentando ser feliz alhures, argumentando que “essa história nos concerne a todos”. Sua atitude tem pontos de contato com Sócrates tal como descrito no diálogo platônico Crítono filósofo se recusa a fugir da prisão de Atenas onde está condenado a morrer pela cicuta, argumentando que ser vítima de uma injusta é preferível a ser injusto violando as leis da pólis.

O Dr. Rieux, de maneira similar ao jornalista Rambert, está separado de sua esposa, com quem se comunica por cartas e telegramas, mas nunca lhe ocorre a tentação de escapar: ele chega a trabalhar 20 horas por dias nos meses de auge da peste, como heróico médico que vê sua fadiga e exaustão crescerem até os extremos, sem nunca desistir de seus deveres ou “amarelar” diante do fardo de sua responsabilidade.


CAPÍTULO 4: CAMUS E NIETZSCHE: UM DIÁLOGO FECUNDO

Ganhador do Nobel de Literatura de 1957, Camus devotou muitos esforços a um diálogo fecundo e crítico com a obra de Nietzsche (1844-1900): “o filósofo alemão agiu como um álcool forte sobre Camus”, defende Michel Onfray [14].

No Brasil, um livro brilhante de Marcelo Alves, pesquisador graduado em Filosofia e Mestre em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), explora com maestria o tema: Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche (um livro que nasce de sua tese de mestrado disponível na íntegra) [15].

Unidos na “fidelidade à terra”, como dizia Zaratustra, Nietzsche e Camus estão sintonizados no interesse que compartilham pelo amor fati, o amor ao destino. O ethos do espírito livre consiste em amar a vida  exatamente como ela é, sem exclusão de tudo que existe nela de contraditório, problemático, horrendo e assustador. Camus fala assim das “núpcias” do homem com a natureza:

“Aprendo que não existe felicidade sobre-humana, nem eternidade fora da curva dos dias. Esses bens irrisórios e essenciais, essas verdades relativas são as únicas que me comovem. (…) Não encontro sentido na felicidade dos anjos. Só sei que este céu durará mais do que eu. E o que chamaria de eternidade, senão o que continuará após minha morte?

A imortalidade da alma, é verdade, preocupa a muitos bons espíritos. Mas isso porque eles recusam, antes de lhe esgotar a seiva, a única verdade que lhes é oferecida: o corpo. Pois o corpo não lhes coloca problemas ou, ao menos, eles conhecem a única solução que ele propõe: é uma verdade que deve apodrecer e que por isso se reveste de uma amargura e de uma nobreza que eles não ousam encarar de frente.” (CAMUS) [16]

Alves comenta:

“O corpo é a medida do homem lúcido diante da sua condição. Amar a natureza é reconhecê-la, antes de tudo, enquanto limite e possibilidade da vida humana. Amor trágico esse, na medida em que se ama o que por fim nos aniquila. Muitos homens, no entanto, preferem recusar essa sabedoria trágica e transformar o seu medo da morte na esperança de outra vida… Mas custa caro desprezar a verdade do corpo, ser infiel à terra, deixar-se iludir por uma esperança, isto custa o preço da própria vida, ‘porque se há um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por uma outra vida e se esquivar da implacável grandeza desta’, como escreve Camus. (…) Fidelidade à terra é justamente o que Zaratustra não cessa de pedir encarecidamente a seus discípulos, alertando-os ao mesmo tempo sobre a ‘enfermidade’ característica dos ‘desprezadores do corpo’, dos ‘transmundanos’ e dos ‘pregadores da morte’.” (M. ALVES) [17]

Esta valorização do corpo, da vida encarnada, das verdades relativas, da sensorialidade palpável, nada tem a ver com uma idealização do corpo que apagasse tudo que há nele de problemático e trágico: Camus chama o corpo de “uma verdade que apodrece” e não cessa de refletir sobre a revolta humana diante da morte, ou seja, da finitude deste corpo matável e adoecível. Camus quer manter-se fiel à Terra e à virtude da lucidez, o que exige vivenciar nossa condição corpórea em tudo que ela comporta de delícia e de tragédia: é com o corpo que se pode entrar no êxtase das núpcias dionisíacas com a natureza, mas é com o corpo que se pode também sofrer os horrores da angústia e as indizíveis dores da agonia.

“Para Camus ser fiel à terra inclui ser fiel aos homens de carne e osso que conosco compartilham, aqui e agora, a experiência de viver. (…) A solidariedade assim praticada é uma chance ao possível, uma chance àquilo que só através dos homens em luta comum contra sua condição pode vir à existência: a liberdade, a justiça, a felicidade e o amor.” (ALVES, op cit., p. 90-91) [18]

Ao analisar “A Peste”, Marcelo Alves destaca que Camus está ali “trabalhando literariamente as críticas formuladas nas Cartas sobre o nazismo” (em especial a Carta a Um Amigo Alemão), de modo que “é preciso tomar o mal como o símbolo maior do romance: o mal que o nazismo produziu e o mal a que o homem está condenado a sofrer por sua própria condição. Trata-se do mal no sentido trágico, do mal que se expressa através do sofrimento físico e moral daquele que vive sob o peso inexorável da mortalidade. É nesse sentido que Camus pode afirmar que a peste é a mais concreta das forças.” (op cit, p. 97) [19]

Escrevendo sobre o tema, o autor português Hélder Ribeiro aponta outras similaridades e sintonias entre Camus e Nietzsche:

“A origem da ética de Albert Camus está na monstruosidade que consiste em sacrificar os corpos às ideias. Encontramos talvez aqui o segredo do laço que une as concepções de Camus e de Nietzsche. Se Nietzsche empreende uma genealogia da moral cristã, para compreender como esta veio a produzir a negação da própria vida, e isto no contexto da sociedade burguesa do século XIX, Camus empreende uma genealogia da moral política do século XX, para compreender como esta veio a produzir a negação hitlerista e estalinista da vida.

Como na Genealogia da Moral, Camus pensa que a cultura e a moral do Ocidente chegaram a um envenenamento inexorável da vida e trata-se de tirar a máscara. (…) Que deve Camus a Nietzsche? Mais do que afirmações, o clima do seu pensamento, e acima de tudo a recusa global da ficção platônico-cristã dos dois mundos. Não há Além que repare a decepção multiforme de cá-de-baixo e que nos conduza ao Uno. Quando Camus suspira pela unidade, não a refere à ideia platônica que supõe o ultrapassar das aparências. As aparências são a única verdade. O Uno deve descobrir-se na própria dispersão do sensível e a tentação mística só pode ser naturalista.

“Todo o meu reino é deste mundo”, escreve Camus. É a fórmula mais flagrante desta convicção. O corolário é a exaltação do corpo e das verdades que o corpo pode tocar. A verdade do corpo ultrapassa a verdade do espírito. Ora, o mais alto poder do corpo é a arte, que opera uma transmutação do sensível sem o recusar.

O niilismo de Nietzsche, procedendo de uma experiência extrema do desespero, quebrando todos os ídolos do progresso com o mesmo cuidado com que recusava a sombra de Deus, chega, no entanto, a um consentimento radioso, dionisíaco, ao Todo do ser real do mundo, na sua totalidade e em cada realidade particular. O consentimento que dorme na revolta de Camus e lhe dá um sentido, esse “amor fati” que no sim à vida inclui a própria morte, de modo que chega a chamá-la de “morte feliz”, provém em parte de Nietzsche…”. (RIBEIRO, H.) [20]


CAPÍTULO 5: RELEVÂNCIA DE CAMUS NA ATUALIDADE PANDÊMICA

Diante da pandemia de covid-2019 que assola o mundo em 2020, “A Peste” teve uma notável re-ascensão e tornou-se um dos livros mais procurados na Europa, como relata a reportagem da BBC Brasil [21]. Seu status de best-seller na conjuntura deste evento traumático do séc. 21 é prova inconteste não só da atualidade da literatura Camusiana, mas também do brilhantismo com que seu autor sobre tratar dos flagelos da doença somados aos horrores da política. Pois se sabe que a obra nasce sob a influência da Ocupação Nazifascista de Paris, onde Camus escrevia no jornal libertário Combat e participava da Resistência contra a extrema-direita alemã.

O paralelo com o Brasil de 2020 é extremamente possível: a “peste” da covid-19 já é uma lástima terrível por si só, mas a ela se soma o fato de estarmos sob o desgoverno neofascista da seita obscurantista do Bolsonarismo. O chefe da seita, durante toda a pandemia, foi criminosamente irresponsável, acarretando milhares de infecções e mortes ao negar a gravidade do problema, boicotar medidas de isolamento e dar preferência a CNPJs e não a CPFs – ou seja, preferindo agradar empresários, banqueiros e rentistas, aderindo ao “matar ou deixar morrer” no que diz respeito aos trabalhadores empobrecidos pela crise. Além disso, o ocupante do Palácio da Planalto notabilizou-se globalmente por ser o líder do negacionismo do coronavírus, desdenhando de uma doença que em Maio de 2020 já havia ceifado mais de 300.000 vidas, mas que segundo Seu Jair não passa de um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta” e que não deve fazer parar as rodas da economia.

No romance de Camus, o fenômeno do negacionismo da peste, típico do Bolsonarismo na atualidade, também dá as caras. Alves escreve: “A primeira dificuldade dos homens diante da peste é a de reconhecer a sua existência. Por todos os meios procuram negá-la. Muitas vezes simplesmente dando-lhes as costas, outras encarando-a como uma abstração. Primeiro, a administração pública hesita em tomar as providências para não alarmar a população…. Depois, mesmo diante dos sintomas, muitos recusam-se a admiti-la: ‘Mas certamente isso não é contagioso.’, diz um personagem. Por fim, mesmo após o reconhecimento oficial do flagelo e do isolamento importo à cidade, os habitantes ainda resistem a aceitar o fato…” (ALVES, M. p. 98) [22]

A seita necrofílica dos Bolsonaristas tornou-se mundialmente famigerada justamente por este tipo de funesta e macabra irresponsabilidade das ações negacionistas.  Ao seguirem como ovelhas obedientes os ditames do Grande Líder, muitos cidadãos Bolsominions acabaram sabotando medidas de contenção, aglomerando-se para manifestações golpistas, fazendo coro à pregação de Jair de que algumas milhares de mortes eram preferíveis à diminuição dos lucros empresariais. Tudo isso tornou Bolsonaro uma figura internacionalmente repudiada como um dos piores presidentes do mundo em seu trato com a peste, tendo sido denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais.

Neste contexto, a leitura de Camus torna-se ainda mais relevante ao grifar sempre a importância crucial de transcendermos a angústia solitária e isolada, rumo à solidariedade na revolta:

“A vitória sobre a peste só acontece quando o homem reconhece que se trata de uma tragédia coletiva e, no lugar do isolamento individual, faz da sua cumplicidade trágica com os outros homens um só grito de revolta e lucidamente dá início à sua tarefa de Sísifo: ‘colocar tanta ordem quanto possa em uma condição que não a possui’. É verdade que nesse caso a vitória é sempre provisória, jamais definitiva, mas é a única vitória possível e desejável para aqueles que procuram nada negar nem excluir: nem a condição humana, nem a dor do homem. O médico Rieux, personagem e narrador do romance, encarnará o homem camusiano que vive entre o sim e o não: aquele que não se esquiva da condição humana, mas não se resigna às suas misérias; aquele que aceita o peso da existência, aceita rolar a sua pedra, que é o espelho opaco da sua virtude, mas se recusa a aumentar o mal, tanto através da ação quanto da omissão.” (ALVES, M., op cit, p. 101) [23]

O Dr. Bernard Rieux, encarnação da lucidez e da solidariedade, age em A Peste com um ethos de Zaratustriana fidelidade à terra e a seus viventes. Mesmo que na época em que o romance se passa a cidade argelina de Orã esteja empestada, mergulhada nos flagelos da doença e do sofrimento, Rieux permanece aferrado a este princípio: “O essencial era impedir o maior número possível de mortes e de separações definitivas. E o único meio para isto era combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas consequente.” (CAMUS, A Peste, I, 1327) [24]

Na verdade, Bernard Rieux não é um Übbermensch super-heróico, mas um médico de carne-e-osso, sujeito à fadiga e ao desespero, mas que decide suportar o peso de sua lucidez e agir incansavelmente com base na sua ética da solidariedade, da empatia e da revolta contra a peste. Esta peste é tanto doença em si quanto, de maneira metafórica, a política fascista, aquilo que chamaríamos hoje, a partir de conceito proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, de necropolítica [25].


CAPÍTULO 6: A AGONIA DE UMA CRIANÇA DIANTE DE UM MÉDICO E UM PADRE

No enredo, o médico Rieux também aparece como o antípoda do padre Paneloux. Onde o cristianismo prega oração e resignação, o médico ateu defende a ação coletiva solidária e obstinada contra o mal. Alves comenta: “Rieux combate ídolos, contesta abstrações, não a marteladas, mas através de sua obstinação em cuidar dos corpos… O médico é aquele que sabe dos limites da condição humana, mas não se submete a eles; sabe que não salvará tudo ou a todos, mas decide agir segundo as suas forças para salvar o que pode ser salvo: alguns corpos, por algum tempo.” (Alves, p. 106) [26]

No destino do Padre Paneloux, Camus nos fornece um memorável memento do que significa o desprezo pela Ciência em tempos de peste. Em meio à Orã transtornada pela epidemia, o padre Paneloux fazia sermões pregando que o flagelo era uma punição divina pelos pecados de alguns de seus concidadãos. Daí saltava para a idéia de que a vontade divina utilizava-se da peste como seu instrumento. E daí foi só um passo até que passasse à noção de que seria heresia ir contra a vontade de Deus: a atitude de um autêntico cristão consistiria na aceitação plena dos decretos do Céu.

No capítulo 3 da parte IV, uma cena-chave de A Peste se desenrola: uma criança gravemente enferma será cobaia para um teste de uma vacina (sérum), uma das esperanças de conter a epidemia. O sofrimento horrendo desta criança dá ensejo para que os personagens reflitam a fundo sobre a condição humana, os males do mundo e as injustiças de que nossa situação existencial está repleta. A tentativa de curar a criança não é bem sucedida e após uma longa agonia, extremamente sofrida, o menino morre. Ao redor do leito, Dr. Rieux, padre Paneloux, Tarrou realizam um debate crucial nesta situação excruciante.

O que está em questão, em última análise, é a dor infligida aos inocentes, em todo seu escândalo. A agonia de uma criança parece causar o desmoronamento da argumentação teológica exposta no primeiro sermão do Padre Paneloux (cap. 3, parte II), segundo o qual a infelicidade (malheur) seria sempre merecida, pois toda peste é punição contra pecadores, um purgativo enviado por Deus (p. 91). Caso aceitássemos o argumento do padre, Orã seria similar a Sodoma e Gomorra e “a peste teria origem divina e caráter punitivo” (p. 95). Daí decorre que o padre recomende a seus concidadãos que se ajoelhem, se arrependem e orem aos céus por misericórdia. Com fé, Deus os ouvirá e salvará. Seu discurso traz o dedo em riste, acusatório, lançando sobre os pecadores a culpa pelo flagelo vivido pela cidade. Assim, inventa-se um sentido como antídoto para o absurdo num procedimento que Slavoj Zizek chama de “the temptation of meaning” [27].

Esta cena d’A Peste em que a agonia da criança é sentida diferencialmente pelo médico e pelo padre está entre as obras-primas da dramaturgia Camusiana e aí também se jogam os lances decisivos para a apreciação plena do que pensa o autor sobre a fé. O sofrimento horrendo de uma criança que agoniza põe em crise o discurso do padre Paneloux, sua noção de que os afligidos pela peste eram pecadores: para manter tal ideologia, seria preciso dizer que a criança era culpada, ou mesmo que nasceu com a culpa provinda do princípio dos tempos, ou seja, do Pecado Original de Adão e Eva. É assim que a fé judaico-cristã pretende nos convencer que é merecido o sofrimento na infância?

O Dr. Rieux opõe-se a esta ideologia religiosa que culpabiliza para que possa manter a fé, ainda que num Deus abjeto e que se sirva da agonia infantil como um de seus perversos instrumentos de vingança contra os pecadores. O Dr. Rieux é muito mais ateu e a vivência da peste só aprofunda seu ateísmo. O suplício e a agonia de uma criança lhe parecem um escândalo injustificável, uma absurdidade que estilhaça a possibilidade de crer em Deus.  Porta-voz do ateísmo Camusiano, o Dr. Rieux se recusa em amar uma criação onde crianças são torturadas, ou seja, recusa a própria noção de um Criador que pudesse ter aceito, como parte do mundo criado, a agonia injusta de pequenas pessoas que vieram ao mundo recentemente e que acabam por ser expulsas dele em meio a um absurdo sofrer.

Na história da filosofia contemporânea, o filósofo Marcel Conche inspirou-se em argumentos muito próximos aos Camusianos para formular suas provas da inexistência de Deus com que abre sua obra Orientação Filosófica. [28]

O ateísmo, em Camus, parece ser a decorrência necessária da lucidez daqueles que não escamoteiam o absurdo da existência e que, através da revolta, alçam-se do “eu sou” ao “nós somos”: superando o racionalismo idealista de René Descartes e seu cogito (“penso, logo existo”), Albert Camus propôs o cogito existencialista-ateu, digno de virar bandeira de todos nós que nos solidarizamos na revolta contra os males de que o mundo terrestre está repleto: “eu me revolto, logo somos”.

Ao adoecer, o padre Paneloux recusa-se terminantemente a chamar um médico – ainda que soubesse que o Doutor Rieux estaria a postos, prestativo, para atendê-lo, sem poupar esforços para salvá-lo. Para o padre Paneloux, há uma contradição insolúvel entre a fé e a ciência: para manter-se crente, ele precisa recusar a medicina. No extremo do delírio desta fé auto-destrutiva, prefere fechar as portas ao socorro que poderia lhe vir dos terráqueos, permanecendo aberto apenas ao socorro que lhe viria do divino. Agarra-se ao crucifixo, recusando hospitais e remédios.

A desastrosa escolha de Paneloux o conduz a uma agonia horrorosa, sem analgésicos nem morfina, em que ele decide imolar a saúde num altar imaginário onde pensava estar encontrando a salvação. Encontrou apenas a morte absurda dos que desdenham daquilo que o ser humano pôde inventar, neste mundo, em prol do auxílio mútuo e da solidariedade concreta.

No livro de George Minois sobre A História do Ateísmo, Camus aparece como um artista-pensador que jamais recomenda que percamos tempo de vida com a ânsia de ascensão a um Paraíso transcendente, prometido aos “eleitos”, aos que tenham sido dóceis e obedientes nesta vida. Camus convoca para que trabalhemos juntos neste mundo para torná-lo menos opressivo e mais amável, o que exige que possamos assumir nossas responsabilidades. Não aquela responsabilidade de “servir a um ser imortal”, mas sim a de livrar-se desta subserviência para assim “assumir todas as consequências de uma dolorosa independência”. (MINOIS: p. 671) [29]

Como diz Marcelo Alves, na obra A Peste está ilustrado que “o pessimismo de Camus, longe de ser resignado ou valorar negativamente a vida, pretende, através da revolta diante da peste, culminar num lúcido sim à vida.” (ALVES, M. Pg 98) [30] De modo que a lucidez é uma das virtudes que Camus celebra entre as supremas. Não a lucidez derrotista, resignada ou solitária, mas a lucidez clarividente, a capacidade de enxergar com clareza, inclusive e sobretudo os males concretos que nos afligem e aos quais só a solidariedade das revoltas pode fazer frente.


 

CAPÍTULO 7: A CONCRETUDE EM CARNE-E-OSSO DE NOSSA CONDIÇÃO

A tarefa de ver claro torna-se mais difícil diante dos flagelos da peste, da pandemia, da guerra, pois enxergá-los em toda sua horrífica realidade é perturbador para a psiquê humana, que vê-se em apuros para “digerir” tais experiências. Preferimos então recusar a concretude dos sofrimentos das pessoas de carne-e-osso para olhar o problema através do prisma de pálidas abstrações e estatísticas. Pode-se ler em livros de História que umas 30 pestes que o mundo conheceu fizeram cerca de 100 milhões de mortos, mas quem nunca viu nem conheceu sequer um desses vivos transformados em cadáveres pode se ver tentado a deixar-se esse número torna-se uma fumaça na imaginação, sem carne e sem sangue.

Por isso a literatura é tão crucial e imprescindível: ao ler uma obra como A Morte de Ivan Ilítch, de Tolstói, podemos ter acesso a uma morte concreta e individualiza, que nos comove pelo que tem tanto de idiossincrática quanto de expressiva da condição humana geral. A Peste de Camus também funciona maravilhosamente como um dispositivo literário de concretização, um livro destinado a nos ensinar como os seres humanos de carne-e-osso lidam com o flagelo pestífero. A certo ponto, o Doutor Rieux relembra da peste de Constantinopla, que em seu pico fazia 10.000 vítimas fatais por dia, e pede que imaginemos o público de 5 grandes cinemas sendo assassinado na saída do filme (pg. 42).

Dar concretude às estatísticas, fornecer carnalidade aos números, fazer-nos sentir visceralmente aquilo que se esconde por trás de relatórios burocráticos ou meditações abstratas, é uma das funções essenciais da literatura. Rieux está impedido por seu ofício de médico de “abstrair” em meio à peste pois é obrigado a lidar com a concretude de doentes e mortos, de tosses e catarros, de agonias e cadáveres. Sua lucidez é trágica! E a única salvação que concebe é a união solidária de pessoas que trabalham juntas contra o flagelo. Pois isolar-se, fechar-se na mônada e no monólogo, não é nenhuma solução contra o absurdo. Separação e isolamento nunca serão panacéias.

O ator William Hurt, que interpreta o médico Rieux na adaptação cinematográfica do romance de Camus realizada por L. Puenzo em 1992

Rieux recusa a resignação, a prece, a passividade. Tampouco deseja fazer pose de herói. Sua humildade lúcida está em saber que não salvará todo mundo, apenas alguns corpos por algum tempo. Este médico sabe que suas vitórias são sempre provisórias mas que esta não é uma razão para cessar de lutar. Trata-se sempre de adiar a morte para mais tarde, pois restabelecer a saúde de alguém jamais significa livrá-lo da incontornável finitude.

– Já que a ordem do mundo é regrada pela morte, talvez convenha a Deus que não se creia nele e que se lute com todas as forças contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se esconde. (ALVES, op cit, p. 106) [31]

Este ateísmo Camusiano, que se manifesta em Rieux, tem a ver com uma crítica que o autor de O Homem Revoltado faz ao processo de sacrifício de pessoas concretas em nome de um ideal, um valor absoluto, uma abstração descarnada. Até mesmo Marx e Nietzsche são denunciados por Camus por terem instituído uma espécie nova de idealismo em que a sociedade sem classes do futuro comunismo ou os espíritos livres e Übermensch do porvir serviriam como ideais laicizados. Assim, substituem a noção religiosa de outra vida, acessível pela morte, por uma outra vida a ser construída e concretizada mais tarde – trocam o além pelo mais tarde. Chamo isto de uma oposição entre uma transcendência vertical (as pessoas que crêem numa ascensão ao céu, após a vida terrena) e a transcendência horizontal (as pessoas que crêem numa transfiguração desta vida terrena nos amanhãs cantantes de um futuro que está no horizonte). 

Se o entendo bem, Camus propõe uma imersão na imanência em que possamos celebrar as núpcias com a vida e a natureza, nas quais devemos amorosamente nadar como peixes deleitando-se na imensidão do mar. É óbvio que este mar está repleto de tubarões, que há predação e peste, sofrimento e finitude, injustiça e opressão, mas também extremas belezas e deleites, uma grandeza implacável que devemos aceitar e abraçar com toda lucidez e clarividência que pudermos. Viver é mergulhar no absurdo mas não deixar-se afogar aí. Este banho de absurdo só pode ser redimido pela cumplicidade revoltado dos solidários, dos justos, dos que trabalham juntos em prol de uma realidade menos absurda. A medicina, para Rieux, é um trabalho de Sísifo ateu – e é preciso imaginá-lo feliz, empurrando pedregulhos montanha acima, no aprendizado perene com todos os esforços e tombos.

Em O Mito de Sísifo, Camus escreveu: “Se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos contra sua vontade. Se ele não existe, tudo depende de nós.” [32] A fé em Deus desempodera o ser humano, coloca-nos na dependência de uma vontade alheia e de uma autoridade transcendente, condenando-nos à “minoridade” tutelada de uma criança que não ousa fazer uso pleno da força de sua razão [33]. Já o ateísmo nos liberta para as difíceis tarefas da responsabilidade, da solidariedade, das construções coletivas de sentido que façam frente aos absurdos que sempre ameaçam nos submergir.

Confinados na finitude de uma vida que fatalmente terminará, condenados à angústia que é o ambiente perene do ser humano lúcido, temos somente esta vida, este mundo, este espaço, este tempo, para celebrar nossas fenecíveis núpcias com o real. Quem não se revolta contra as injustiças e opressões que impedem estas núpcias, quem não se solidariza diante dos males que nos afligem em comum, este é um semi-vivo ou um zumbi, sempre necessitado de ser despertado pelas amargas mas salutares verdades que a arte e a filosofia podem conceder.

Sem além nem deus, espíritos livres Camusianos plenamente fiéis à terra, sejamos Sísifos felizes! Estejamos aqui-e-agora solidários, lúcidos, clarividentes e reunidos na revolta. Somando forças, alentos, beijos, amplexos, vozes e obras que permitem nossas núpcias com a vida, a natureza e os outros. Sem nunca esquecer que a angústia solitária precisa ser transcendida por uma revolta solidária que seja o emblema em ação de nossa “insurreição humana” – aquela que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, “em suas formas elevadas e trágicas não é nem pode ser senão um longo protesto contra a morte, uma acusação veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.” [34]

Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro [www.acasadevidro.com]
Goiânia, Maio de 2020

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REFERÊNCIAS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS, CINEMATOGRÁFICAS E FONOGRÁFICAS

[1] CAMUS, Albert. Núpcias  / O Verão. Editora Círculo do Livro, 1985.

[2] THE FLAMING LIPS. Ao usar a expressão “grau de realização da mortalidade”, penso sobretudo nos versos de uma canção da banda estadunidense de rock alternativo The Flaming Lips, chamada “Do You Realize?” (também interpretada por Sharon Von Etten), presente no álbum Yoshimi Battles The Pink Robots, em que o ouvinte é interpelado pela questão: “você realmente percebe que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?” The Fearless Freaks é um excelente documentário sobre a trajetória da banda.

“Do you realize that everyone you know someday will die?
And instead of saying all of your goodbyes, let them know
You realize that life goes fast
It’s hard to make the good things last
You realize the sun doesn’t go down
It’s just an illusion caused by the world spinning round…”

[3] PESSOA, Fernando. Mensagem. O trecho completo diz: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. A mesma expressão aparece nas Odes de Ricardo Reis:

NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas feitas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A quem um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

— Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), in “Odes”.

[4] BECKER, Ernest. A Negação da Morte (The Denial Of Death). Vencedor do prêmio Pulitzer, o livro também inspira o documentário The Flight From Death (2005), que compartilhamos na íntegra a seguir:



[5] SAMPAIO, Sérgio. Canção “Ninguém Vive Por Mim”. Em: Tem Que Acontecer. Saiba mais neste artigo em A Casa de Vidro.
[6] PARRA, Nicanor. O poeta chileno que viveu 103 anos (1914 – 2018), irmão da lendária cantora, compositora e folclorista Violeta Parra, escreveu muitas profundas reflexões sobre a morte.
[7] EPICURO. Carta Sobre a Felicidade (a Meneceu). Sobre o tema, acesse em A Razão Inadequada o artigo Epicuro e a Morte da Morte.
[8] MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Capítulo XX. Em: Os Pensadores, Abril Cultural.
[9] BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. Publicado originalmente em 1930.
[10] CAMUS, AlbertO Mito de Sísifo. Ed Record, 2004.
[11] MUJICA, José. Em: Rede Brasil Atual.
[12] BRECHNER, Alvaro. La Noche de 12 Años (2018), filme uruguaio que retrata ações do militantes Tupamaros, que lutavam contra a ditadura militar, e suas vivências na cadeia.
[13] CAMUS, ALa Peste. Folio: 1999, Pg. 191.
[14] ONFRAY, Michel. A Ordem Libertária – A Vida Filosófica de Albert Camus. Flammarion, 595 págs. Citado a partir de artigo na Revista Cult.
[15] ALVES, MarceloCamus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche. Florianópolis, 2001, Ed. Letras Contemporâneas.
[16] CAMUS. Essais, Paris: Gallirmard, 1993, 75 – 80.
[17] [18] [19] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[20] RIBEIRO, Hélder. Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Pg. 89-90.
[21] BBC News Brasil. ‘A Peste’, de Albert Camus, vira best-seller em meio à pandemia de coronavírus.
[22] [23] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[24] CAMUS, A. La Peste. Op cit.
[25] MBEMBE, AchilleNecropolítica. Saiba mais em A Casa de Vidro.
[26] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[27] SLAVOJ ZIZEK fala em “the temptation of meaning” ao responder as questões de Astra Taylor, realizadora do filme documental Examined Life: “Meaning allows us to create fantasies which defend ourselves from the awful truth that we’re bags of meat who can never escape death. That is, the turn towards subjectivity is itself a defense mechanism against the fact that the universe doesn’t care. God, whether He be loving or vengeful, is a way of turning this utter indifference into a fantasy of mattering.”

[28] CONCHE, Marcel. Orientação Filosófica. Ed. Martins Fontes. Coleção Mesmo Que O Céu Não Exista.
[29] MINOIS, George. História do Ateísmo. Ed. Unesp, pg. 671.
[30] [31] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[32] CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Citado em: MINOIS, op cit, idem item 29.
[33] A conclusão atéia não condiz com as apostas kantianas na necessidade de Deus como “apêndice” da razão prática, mas aqui penso no auxílio salutar que o ateísmo concede ao sapere aude tal como descrito por Immanuel Kant em seu texto sobre o Iluminismo / Esclarecimento.
[34] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Capítulo: “Niilismo e História”. Ed. Record, 2003, p. 125.

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APRECIE TAMBÉM:

Um combate contra o Absurdo | Albert Camus (documentário completo e legendado)

A Esperança Equilibrista Despencou no Abismo na Noite do Brasil || In Memoriam: Aldir Blanc (1946 – 2020)

“Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos

A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco… louco!

O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil

Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete

Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar.”

João Bosco e Aldir Blanc
“O Bêbado e a Equilibrista”

HENFIL

Perdendo o equilíbrio ao tentar atravessar a corda bamba sobre o abismo, “a esperança equilibrista” de Aldir Blanc se precipitou, em queda livre, para “morrer na contramão atrapalhando o tráfego” (para citar outro célebre cancionista). Eliane Brum, em artigo para o El País, assim lamentou a perda:

“O Brasil abriu a semana com a morte de Aldir Blanc, o poeta que, em uma das canções mais pungentes contra a ditadura militar, escreveu: ‘a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar’. Morto aos 73 anos por covid-19, o show de Aldir Blanc não pôde continuar. A esperança já não consegue se equilibrar no Brasil e deslizou para o abismo. O país de Aldir Blanc e todo o seu imaginário foram mortos pelo perverso Jair Bolsonaro que se embriaga com a própria boçalidade, espirra e aperta com dedos lambuzados as mãos de seus seguidores. E então diz, diante das milhares de vítimas da pandemia e de sua irresponsabilidade: “E daí?”. A morte do poeta oficializa que o Brasil continental perdeu seu continente ― sua carne, sua alma e seus contornos ― e a poesia já não nasce.”

João Bosco, no dia em que perdeu o parceiro de tantos botecos e canções, escreveu o seguinte relato comovido:

 “Peço desculpas aos que têm me procurado hoje. Não tenho condições de falar. Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos despedido na madrugada anterior. Desde então, voltamos a nos falar ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos. Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. Não existe João sem Aldir. Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu cantá-las. Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Meu coração está com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio.”

José Miguel Wisnik, professor da FFLCH / USP e também ele cancionista, aproveitou a ocasião para nos conceder uma bela exploração da canção “De Frente Pro Crime”:

“Olhei o corpo no chão e fechei / minha janela de frente pro crime”. A letra de Aldir Blanc nesse samba com João Bosco tem a cadência de um miniconto. Parece que é simplesmente a narrativa impessoal, a crônica de uma cena de rua em torno de um cadáver estendido que tem “em vez de rosto a foto de um gol”. Populares passam, entre pragas perdidas e silêncio anônimo, o ambiente em volta se agita, o bar se enche (“malandro junto com trabalhador”). Na confusão, algum oportunista bêbado, de cima da mesa, se lança candidato a vereador, um comércio parasita floresce num frenesi de camelô, anel, cordão, perfume barato, baiana, pastel, churrasco de gato. Fim de noite, fim de festa, baixa ainda “um santo na porta-bandeira” enquanto o ajuntamento se dispersa. O morto continua lá, no ponto cego do transbordamento de vida que suscitou, e que se dissipa. Só então ficamos sabendo que tudo isso se passa aos olhos de alguém que vê de fora, de outro lugar, de trás de uma janela que agora se fecha, voyeur da vida e da morte, do crime sem rosto e sem nome, como nós. Assim como “Incompatibilidade de gênios”, da mesma dupla, “De frente pro crime” acontece no ritmo do pulo do gato, e é uma pérola da junção do sublime com o banal, sempre na veia do mundo popular carioca. É bonito vê-los, Aldir e João, malandros trabalhadores da canção, trocando uma ideia na porta do Café Capital. (Me pergunto quem terá feito essa foto linda.) (WISNIK, em sua página no Facebook)

Já o Enzo Banzo, da banda mineira Porcas Borboletas, publicou o seguinte artigo no Diário de Uberlândia:

Para celebrar a trajetória e a obra de Aldir Blanc, após concluir sua jornada pela estrada-só-de-ida da vida (como gosta de dizer o espírito livre Diego Mascate)A Casa de Vidro recupera, a seguir, um pungente texto de Aldir escrito para celebrar a criação da C.N.V. pelo governo da Dilma. Além disso, decidimos exercitar um pouco da boa e velha pirataria construtiva e disponibilizar, para download gratuito, em MP3 de qualidade, vários álbuns que permitem conhecer mais a fundo a obra deste grande poeta e compositor popular que foi Aldir Blanc. Baixe sem dó e aprecie sem moderação!

Texto de Aldir Blanc na época da criação da Comissão Nacional da Verdade no governo Dilma Rousseff.

“Não sou historiador nem sociólogo. Não consultei nenhum livro para escrever o texto abaixo. Minha memória está se movendo como estilhaços do amado caleidoscópio que perdi, menino, em Vila Isabel.

Viva a Comissão da Verdade para que nunca mais coloquem uma grávida nua sobre um tijolo, atingida por jatos d’água, com ameaça: “Se cair vai ser pior”;

Para que senhoras que fazem seu honrado trabalho não sejam despedaçadas por cartas bombas;

Para que um covarde que bote a boca de um homem torturado no escapamento de uma viatura militar não passe por homem de bem onde mora;

Para que orangotangos que se tornaram políticos asquerosos não babem sua raiva na internet: “Nosso erro foi torturar demais e matar de menos”;

Para que presos em pânico não sofram ataques de jacarés açulados por antropóides;

Para que nunca mais teatros e livrarias sejam vandalizados e queimados;

Para que um estudante de psiquiatria não seja obrigado a passar por sentinelas de baioneta calada para ouvir um coronel médico dizer que “histeria é preguiça”;

Para que os brasileiros possam homenagear um autêntico herói nacional, João Cândido, com um monumento, sem que surjam energúmenos prometendo “voltar a explodir tudo se isso apontar para o Colégio Naval”;

Para que a nossa Força Aérea, que nos deu tanto orgulho na Itália, com seus valentes pilotos de caça, não atire pessoas, como se fossem sacos de lixo, no mar;

Para que um pai, ao se recusar a cumprir a ordem de manter o caixão lacrado, não se depare com o corpo destruído do filho, jogado lá dentro feito um animal;

Para que militares honrados não sintam “constrangimento” na busca de Justiça; para que cavalos ( aqueles de quatro patas, montados por outros) não pisoteiem um garoto com a camisa pegando fogo por estilhaço de bomba, na Lapa;

Para que torturadores não recebam como “prêmio” cargos em embaixada no exterior;

Para que uma estudante não desmaie num consultório médico ao falar sobre as queimaduras do pai, feitas com tocha de acetileno;

Para que esquartejadores não substituam Tiradentes por Silvério dos Reis;

Para que inúmeros Pilatos ainda trambicando naquela casa de tolerância do Planalto vejam que suas mãos continuam cheias de sangue e excremento;

Para que nunca mais na vida de uma jovem idealista – o queixo firme, olhos faiscantes de revolta, com a expressão da minha Suburbana no 3X4 que guardo na carteira – seja ceifada por encapuzados. Uma delas, quem sabe?, pode chegar a Presidência da Republica e enquadrar a récua de canalhas.”

Não podemos nos calar!”

Aldir Blanc

DISCOS PRA BAIXAR:

 

O GRUNGE QUE SE MEDE EM GIGATONS: Pearl Jam mostra vitalidade e sintonia com nossa época em “Gigaton” (2020), seu 11º disco

A música, quando entra em sintonia fina com o tempo histórico e consegue expressar o zeitgeistatinge aquele estado raro em que ultrapassa os modismos e consumismos, transcendendo a condição que tentam lhe impor, a de mercadoria consumível e rapidamente descartável, para transformar-se em obra-de-arte de interesse perene, inclusive para futuras gerações que queiram entrar em contato com uma obra que seja um sign of the times.

Obviamente, nada impede que uma obra musical seja simultaneamente um marco histórico e uma mercadoria altamente lucrativa (é só pensar no fascinante paradoxo da Beatlemania ou nos rios de dinheiro gerados pela cataclísmica eclosão do Nevermind do Nirvana). São raros, mas existem os “queridinhos dos críticos” que são simultaneamente um estouro nas paradas. Na corda-bamba entre a margem da indústria cultural e a margem da aventura artística, as melhores bandas do mainstream mass-mediático são aquelas que, a exemplo do Pearl Jam, não se rendem a serem meros serviçais do sistema a serem achincalhados como sell-outs, prosseguindo sempre com este alvo no horizonte: criar uma arte que esteja à altura de expressar nossa existência coletiva no tempo atual.

Quando a arte tem esta umbilical ligação com a atualidade e esta capacidade de captar o aqui-e-agora, ela é menos evanescente do que o seu banal hit toppin’ the charts (o sucesso que dura pelo verão e depois é semi-esquecido para venham os próximos na fila da fama…). “O dever do artista” é ser um espelho onde se reflete o tempo em que o artista vive, como propunha Nina Simone. Mas a arte serve também, como queria Brecht (citando Maiakóvski), não apenas como um espelho que reflete o mundo (deixando-o subsistir tal qual é) mas muito mais como um “martelo para forjá-lo”. Como um escultor que trabalha a pedra bruta para dê-la extrair O Pensador ou o Laoconteo artista martela sua matéria-prima, dando forma a algo novo ao invés de ser apenas espelho ou prisma.

Na música, às vezes o artista martela canções nos tímpanos dos ouvintes até que elas entrem para um tesouro cultural comum que a coletividade enxerga como seu repositório de clássicos, ou seja, aquilo que merece ser salvo do naufrágio do tempo. Na da sucessão de gerações, os clássicos são aquilo que consideramos digno de ser transmitido pelos contemporâneos aos vindouros. O exemplo mais emblemático que consigo pensar é deste ethos Brechtiano alçando-se à condição de clássico, na história do rock, é o The Clash.

Uma banda tão espetacularmente bem-sucedida em sua capacidade de entrar sintonia com o tempo histórico, tão supimpa em sua expressão entusiasmada de um ímpeto ativista e transformador, que fazia com que todas as outras parecessem desimportantes. O The Clash, para nós seus fãs, é descrito com a hipérbole: A Única Banda Que Importa. Pois Joe Strummer, Mick Jones e cia não faziam apenas a expressão da época do mundo, além disso explodiam nos amplificadores a fúria criativa de quem quer modificar o que há pois descobriu que a realidade social é co-criável por nós. É um pouco deste ethos, crucial por suas ressonâncias posteriores em bandas cruciais como o Fugazi ou o Rancid, que fez de London Calling uma das maiores obras-primas da história da arte (e fodam-se quem, por preconceito acadêmico ou elitismo estético, pré-julga o movimento punk como se fosse incapaz de alçar-se às nuvens elevadas das Belas Artes…).

É que a arte, criando a si mesma, recria o mundo, refaz os outros, no que poderíamos chamar, sob a inspiração de Gênio Gil, de uma refazenda de tudo – a começar pelas nossas percepções de nós mesmos e do próprio mundo. Isto é, a arte é uma criação do engenho criativo humano que entra na História como uma novidade, expressando o que antes não tinha sido expressado, expandindo a paleta de cores, de dramas, de sinfonias etc. do mundo-em-fluxo onde estamos embarcados.

Tendo atravessado toda a Era Grunge, do começo dos anos 1990 até a aurora dos 2020, resilientes como ninguém daquele movimento, o Pearl Jam é hoje uma destas instituições que já virou clássica. O quinteto formado por Eddie Vedder, Jeff Ament, Mike McCready, Stone Gossard e Matt Cameron, nascido em 1990 das trágicas ruínas do Mother Love Bone (banda de Seattle que foi a pique com a overdose fatal que acometeu seu líder Andy Wood, o que deu ensejo para a criação do Temple of the Dog), adentra a década de 2020 com muita vitalidade.

Após o colapso do Nirvana, do Soundgarden, do Stone Temple Pilots, do Hole, dos Screaming Trees, além da reinvenção com novo vocalista do Alice in Chains, alguns se apressaram a decretar a morte do grunge após tantas bandas já terem encerrado suas atividades (muitas vezes de maneira trágica, devido a suicídios e overdoses fatais). Mas o Pearl Jam sobreviveu a tudo, mantendo pulsante o Som de Seattle – e está vivinho para cravar em 2020 um dos álbuns mais significativos desta entrada de década.

Em meio à pandemia de covid-2019, no primeiro semestre de 2020, foi lançado “Gigaton”, novo álbum das lendas vivas do Grunge: Pearl Jam ressurge após um hiato de 7 anos desde “Lightning Bolt” (disco de 2013). A banda de Seattle entrega ao mundo seu 11º álbum de estúdio, com 12 canções inéditas, sem perder o pique mesmo após 3 décadas de carreira (os 20 primeiros deles já celebrados em livro e documentário através do magistral projeto PJ20 de Cameron Crowe).

 

Os caras do Pearl Jam – liderados por um incansável Eddie Vedder, um dos grandes poetas líricos e um dos mais expressivos cantores de nossa geração – encaram o desafio gigatônico de expressar musicalmente os dilemas mais urgentes de nossa época:

“O clima é uma preocupação estimulante [galvanizing] em ‘Gigaton’, com o Pearl Jam estruturando seu décimo álbum em torno da crise climática iminente. Há pouca sutileza a esse respeito: o título se refere à quantidade de gelo perdido nos pólos árticos, a capa do álbum mostra uma geleira derretida, e as letras estão sujas com imagens apocalípticas, ainda que nem todas derivadas do clima.” Stephen Thomas Erlewine, AMG All Music Guide (https://bit.ly/3dDV92m)

Aderindo ao catastrofismo esclarecido, o Pearl Jam evoca a ciência climática atual que mede em gigatons a quantidade de gelo derretido na Antártida ou na Groenlândia em nossa era de Efeito Estufa – segundo um Tweet da banda, 1 gigaton equivale ao peso de 100 milhões de elefantes ou 6 milhões de baleias azuis.

Em uma das obras-primas do álbum, “Retrograde”, a banda utiliza um vídeo-clipe sensacional para evocar grandes metrópoles sendo afundadas debaixo de dilúvios causados pelas mudanças climáticas. Menciona figuras contemporâneas que estão na vanguarda da luta ecológica, como Greta Thunberg e o movimento grevista #FridaysForFuture. Conclama ainda que “será preciso muito mais que amor ordinário” para nos erguer para cima diante deste contexto que ameaça nos submergir (o que lembra do ethos de Neil Young em canções como “Lotta Love”).

Outra das obras-primas do “Gigaton” (2020), novo álbum do Pearl Jam, “Quick Scape” (Fuga Rápida) revela Vedder, um dos melhores letristas vivos, aderindo ao eu lírico de um nômade das catástrofes sócio-ambientais. “Cruzei a fronteira para o Marrocos”, canta a certo ponto. “Quantas distâncias tive que cruzar / Até encontrar um lugar que o Trump ainda não tinha fodido!”.

A vida dura do refugiado, condenado a “levantar pedras por um salário”, evoca a trágica punição imposta por Zeus a Sísifo, na mitologia grega. O que não impede que o eu-lírico seja também o veículo daquela Sabedoria que Vedder expressou na trilha-sonora que compôs para Into The Wild – Na Natureza Selvagem: “Atento a todo pôr-do-sol / Nenhuma noite estrelada desperdiçada…”. Siga a letra na íntegra e aprecie o videoclipe das lendas vivas do grunge:

Reconnaissance on the corner
In the old world not so far
First we took an aeroplane
Then a boat to Zanzibar
Queen cracking on the blaster
And Mercury did rise
Came along where we all belonged
You were yours and I was mineeah, yeah

Had to quick escape
Had to quick escape
Had to quick escape
Had

Crossed the border to Morocco
Kashmir then Marrakech
The lengths we had to go to then
To find a place Trump hadn’t f*cked up yet
Living life on the back porch
Lifting rocks to make a wage
Every sunset paid attention to
Not a starry night went to waste

Had to quick escape
Had to quick escape
Had to quick escape

And here we are, the red planet
Craters across the skyline
A sleep sack in a bivouac
And a Kerouac sense of time
And we think about the old days
Of green grass, sky and red wine
Should’ve known so fragile
And avoided this one-way flight

Had to quick escape…

O Pearl Jam tornou-se uma das bandas atuais que melhor conseguiu, em suas mutações, seguir sintônica com o que rolava de mais urgente no globo. Rebeldes e dissidentes, as canções de Vedder e cia explodem nos amplificadores com a ousadia de tematizar os descaminhos da evolução humana (“Do The Evolution”), as tendências suicidas da civilização capitalista-ocidental (“World Wide Suicide”), a angústia juvenil e as engrenagens de um massacre escolar (“Jeremy”), dentre outros temas cabeludíssimos.


Em 2020, o Pearl Jam segue honrando a sonoridade e a atitude das bandas do passado que mais inspiram a caminhada do mamute grunge: penso no The Who, em Neil Young e Crazy Horse, em Bruce Springsteen, mas também nos Ramones. O processo de amadurecimento de Vedder, que parecia conduzi-lo a se tornar um ícone folk, o Dylan ou Young de sua geração, como mostra sua criação solo mais genial, Into the Wild, e como sugere também sua faceta mais suave e tranquila que se expressa no projeto Ukulele Songs, não foi uma maturação que o tenha feito esquecer suas raízes punk grunge. 

Canções como “Quick Scape”, “Superblood Wolfmoon” ou “Never Destination” revelam um Vedder que nunca cessou de amar os Ramones. Além de uma instituição da história do movimento punk, acredito que os Ramones tem uma significação mais ampla, para o rock’n’roll como um todo, entendido não como estilo musical mas também como subcultura. Em outros termos, tão importantes quanto Chuck Berry, Little Richard, Elvis Presley, Jerry Lee Lewis ou Bo Didley para  história do rock’n’roll, os Ramones são uma espécie de condensação daquilo que o punk propôs: o back to basics, o foco na energia rítmica, na entrega emocional, na eletricidade exuberante, na ausência de firulas para que pudesse melhor brilhar o essencial.

Joey Ramone, enquanto vivia, serviu como uma espécie de mentor para o cantor e compositor do Pearl Jam de muitas maneiras, sobretudo conduzindo o Pearl Jam e seu líder a estarem sempre engajados com os “elementos fundamentais do rock’n’roll”, como o próprio Vedder relata no livro Pearl Jam 20 (p. 314): “Munição extra [para Vedder] veio do falecido Johnny Ramone, que não apenas inspirou a letra de “Life Wasted”, mas desafiou Vedder a estudar os elementos fundamentais do rock’n’roll” – e sabe-se do impacto emocional que a vida e a morte de Joey tiveram sobre Vedder:

– Há essa energia fúnebre, quando você literalmente se senta ali com a morte de seu amigo e percebe como a vida é preciosa – diz Vedder sobre a morte de Joey Ramone. Funerais e casamentos são bons para isso. Você tem essa sensação renovada de viver a vida ao máximo quando você vê como ela evapora rápido. Você não dá o devido valor… ‘Life Wasted’ veio disso: ‘Já passei por isso, uma vida desperdiçada, nunca voltarei’. Viva a vida ao máximo. Eu não ia deixar essa perda profunda passar sem reconhecimento.”

O reconhecimento que Vedder quis expressar por seu ídolo e amigo passou inclusive por cantar com os Ramones no show de despedida em 1996 (lançado no álbum We’re Outta Here) e pelo papel que ele teve como anfitrião da consagração Ramônica no Rock’n’roll Hall of Fame em 2002. Um bootleg interessante revela Vedder cantando Ramones:

É bem verdade que o Pearl Jam transcendeu aquela simplicidade dos Ramones que alguns confundem com tosquice, mas que não é senão a arte do foco energético concentrado que torna tão pulsante a maquinaria sônica rock’n’roller ramônica. O Pearl Jam se complexificou, explorou muitas sonoridades e afetos, tornou-se capaz de soar às vezes como o Jethro Tull ou o Pink Floyd, bandas nas antípodas dos Ramones. Mas algo de ramônico sempre permaneceu lá, no âmago do Pearl Jam, e ouso afirmar que está aí um dos segredos para a vitalidade do grupo.

É verdade que, como Gigaton mostra, a concepção de álbum que move o Pearl Jam difere bastante daquela que norteava bandas como os Ramones, o AC/DC, o Motörhead ou o Nirvana – para estas bandas, com o perdão de uma generalização que corre o risco de uma certa injustiça, um bom álbum retira sua coerência do fato de que as canções soam parecidas umas com as outras, seguem-se numa acachapante fileira de riffs matadores e refrões-chiclete, gerando um daqueles objetos que os fãs adoram pois está inteiramente repleto de thrills (e nenhum filler). 

O Pearl Jam, em contraste, pensa um álbum como um “épico” onde a diferenciação é valor: o disco deve ter muitos contrastes, mesclando as pedradas pesadas mas também as baladonas mais atmosféricas. Deve ter aquele frio na barriga e aquela taquicardia de uma viagem de montanha-russa, mas pode e deve conter também um momento mais contemplativo, como flutuar num lago sobre um caiaque sob a luz de uma lua cheia enquanto lobos uivam para a lua. Grandes álbuns do Pearl Jam, como Vs, Yield, Binaural, Riot Act, tem esta abordam do álbum multi-colorido e excêntrico, que viaja de momentos punky e explosivos em direção a experimentalismos menos palatáveis, para depois voltar à quebradeira catártica.

O Pearl Jam chegou em 2020 com uma single que mostra a banda querendo brincar com sonoridades meio funky, em “Dance of the Clairvoyants”, que parece uma homenagem a David Byrne e os Talking Heads, mas que também dialoga com as obras-primas do Gang of Four nos anos 1970 e 1980 (Entertainment, Solid Gold…). 

Esta ousada sonoridade, com sabor de excentricidade, que o primeiro single de “Gigaton” traz, mostra não só que o Pearl Jam curte e idolatra os caras que fizeram obras-primas como Fear of Music Remain in Light: é verdade que os Talking Heads re-vivem através do prisma grungy-funky de “Dance of the Clairvoyants”, mas isso se dá sem que o Pearl Jam perca o bonde do contemporâneo. A música dialoga perfeitamente com a obra de algumas das melhores bandas atuais, como o s maravilhosos Dirty Projectors e TV On The Radio.

Já em “Seven O’Clock”, uma power-baladona que honra como heróis os xamãs nativo-ameríndios Sitting Bull e Crazy Horse, o Mr. Trump toma na testa um petardo: é xingado de “Sitting Bullshit”, “our sitting president”. A música é um tratado sobre as ações tresloucadas de húbris dos seres humanos diante da natureza, exemplificada pela atitude de alguém que agarra uma borboleta, quebra suas asas e a põe numa vitrine, desprovida de toda a sua beleza desde o momento em não pôde mais voar livre:

“Caught the butterfly, broke its wings then put it on display
Stripped of all its beauty once it could not fly high away
Oh, still alive like a passerby overdosed on gamma rays
Another god’s creation destined to be thrown away
Sitting Bull and Crazy Horse, they forged the north and west
Then you got Sitting Bullshit as our sitting president
Oh, talking to his mirror, what’s he say, what’s it say back?
A tragedy of errors, who’ll be the last to have a laugh?”

É 2020 e talvez não haja em atividade nos EUA nenhuma banda tão capaz quanto o Pearl Jam de denunciar a “tragédia de erros” que domina um virulento zeitgeist, ao mesmo tempo que prova, por sua própria resiliência, a possibilidade de uma trajetória de acertos. O ethos pearljâmmico, aquilo que segue animando esta lenda viva do rock global, tem ainda muita relevância em nosso mundo, mostrando que as duas visões sobre as funções da arte que mencionamos a pouco – a de Nina Simone, a de Brecht / Maiakóvski – não são mutuamente excludentes mas sim conjugáveis. O artista tem sim o dever de refletir em sua obra o tempo histórico, mas sua obra é também um martelo com o qual forjar o novo. O élan vital que atravessa a obra do Pearl Jam, banda incansável e que não quer ir dormir na auto-satisfação, é um salutar contágio nestes tempos em que viralizam desgraças.

Eduardo Carli de Moraes
Abril de 2020
http://www.acasadevidro.com

 

OUÇA TAMBÉM, DE “GIGATON”:

DISCOGRAFIA DO PEARL JAM:

01. Ten (1991)
02. Vs. (1993)
03. Vitalogy (1994)
04. No Code (1996)
05. Yield (1998)
06. Binaural (2000)
07. Riot Act (2002)
08. Pearl Jam (2006)
09. Backspacer (2009)
10. Lightning Bolt (2013)
11. Gigaton (2020)

 

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Na gangorra de emoções e obcecada com a mortalidade, Phoebe Bridgers destaca-se no cenário indie-folk

A arte, por vezes, é capaz de proezas espantosas como enfiar a condição humana inteira dentro de uma canção de 3 minutos. É o que faz a artista californiana Phoebe Bridgers – que também integra, na companhia de Conor Oberst, a banda Better Oblivion Community Center – em “Killer”, faixa de seu álbum de estréia “Stranger in the Alps” (lançado em 2017, baixe o disco em Mp3 de alta fidelidade: https://bit.ly/30JgSQK.)

A estilística da canção não difere muito das baladas conduzidas ao piano que fizeram a fama de duas das mais importantes artistas da música norte-americana contemporânea – Tori Amos e Fiona Apple. Porém Phoebe Bridgers traz uma marca própria, uma ousadia lírica toda sua, como prova esta canção que tematiza, com coragem e abertura, o amor diante da morte – e o direito à eutanásia.

Depois de assistir este esplendoroso videoclipe algumas vezes, fiquei impressionado pela capacidade extraordinária de união de vertentes expressivas que se manifestam nestes 3 minutinhos de audiovisualidade em eflorescência: o video-clipe é puro cinema e a letra é pura poesia. E não faltam provocações filosóficas.

“Às vezes penso que sou uma assassina”, começa a canção, evocando um clima de filme de horror, o que a segunda estrofe só sublinha: “Não consigo dormir perto de um cadáver, mesmo que esteja indefeso na morte / E tenho certeza que sentirei tua falta / E de fingir-me adormecida para contar tua respiração…”. A letra inclui uma referência a um notório serial killer (Dahmer) e revela uma artista arriscando-se na expressão de suas obsessões mais sombrias.

“I feel like a lot of my friends, especially artists, are consumed with this idea of the inevitability of death.” Phoebe Bridgers, Interview @ The Line of Best Fit

A canção tem um endereçamento: o eu lírico canta como quem escreve uma carta. Algo do espírito de “When I’m 64” – de Lennon/McCartney, a memorável canção dos Beatles – aparece aqui, pois o eu lírico imagina-se mais velho, questionando-se de modo bem imaginativo sobre seu porvir. Nada evoca, menciona ou fede a morte na canção pop alegrete de McCartney, em que envelhecer ao lado da amada é descrito como a maior das felicidades.

Só que onde Paul McCartney foi jovial, lúdico e solar, Phoebe Bridgers foi dark, melancólica e saturnina. Ela fala assim ao destinatário de sua carta-canção: “Quando eu estiver doente e cansada, e minha mente praticamente não estiver mais lá / Quando uma máquina me mantiver viva e estiver perdendo toda minha cabeleira / Eu espero que você beije minha cabeça apodrecida e tire a máquina da tomada / Sabendo que queimei todas as playlists e dei todo meu amor.” Coube até o amor fati nestes três minutos de esplendorosa canção.

KILLER

Sometimes I think I’m a killer
Scared you in your house
I even scared myself by talking
About Dahmer on your couch

But I can’t sleep next to a body
Even harmless in death
Plus I’m pretty sure I’d miss you
And faking sleep to count your breath.

Can the killer in me
Tame the fire in you?
Is there nothing left to do for us?

I am sick of the chase
But I’m hungry for blood
And there’s nothing I can do
But when I’m sick and tired
And when my mind is barely there
When a machine keeps me alive
And I’m losing all my hair
I hope you kiss my rotten head
And pull the plug
Know that I’ve burned every playlist
And I’ve given all my love.

Can the killer in me
Tame the fire in you?
I know there’s something waiting for us
I am sick of the chase
But I’m stupid in love
And there’s nothing I can do.

Esta obsessão com a inevitabilidade da morte, enfatizada pela artista nesta pela entrevista, também se manifesta em “Funeral”. A poetisa, distanciando-se da eutanásia que se coloca como bifurcação ética no fim de muitas existências humanas, exigindo a escolha pelo suicídio assistido ou pelo morrer-de-morte-morrida, dedica-se em “Funeral” à morte precoce, começando a canção anunciando: “Vou cantar num funeral amanhã de uma criança um ano mais velha que eu.”

O brilhantismo deste início está no fato de que a narrativa cria de imediato um suspense sobre esta misteriosa morte de criança que será cantada por uma criança ainda mais jovem. A música evoca a falência da razão ao tentar compreender este horror, o sentimento de asfixia diante da tragédia: when I think too much about it I can’t breathe.

Phoebe Bridgers, com sua voz afinadíssima, com seu charme sussurrante, fez em “Funeral” um dos canções mais tristes dos últimos anos, culminando num refrão onde o sentimento que impera é o de estar sempre blue. Emblema musical do que alguns psicanalistas chamariam de uma síndrome maníaco-depressiva é a confissão do eu-lírico de que este sentir-se blue all the time é algo que “sempre foi assim e sempre será”. Não é verdade que isto captura à perfeição o mood depressivo, que consiste num presente triste em que tanto passado quanto futuro aparecem dominados por uma tristeza que se espraia para todos os lados?

O quadro fica ainda mais forte quando a poetisa evoca, de maneira impressionante, uma imagem onírica: “tenho um sonho em que estou gritando debaixo da água / enquanto meus amigos estão me acenando da margem”. O sarcasmo de Phoebe ergue-se mesmo em meio à desolação deprê deste funeral sônico e ela pede, como Rebecca Solnit: “não preciso que você me explique o que isso quer dizer…”

É evidente que há hipérbole e exagero nesta expressão da tristeza, estar blue todo o tempo, sempre foi assim e sempre será – mas é através deste recurso expressivo que ela atinge algo muito significativo sobre a experiência humana. Às vezes levamos muito a sério nossos próprios sofrimentos, sem nos lembrar que eles são ninharia diante de pais e mães que neste momento estão chorando a morte precoce de seus filhos.

Phoebe deixa no mistério a causa mortis e seu vínculo com o falecido, mas tudo indica que, já que foi convidada a cantar no funeral, trata-se de um conhecido, alguém quase de sua idade, que nunca estará mais aqui, situação que a afunda temporariamente nesta asfixia emocional onde os moods deprês parecem destinados a ficar para sempre. A boa notícia é que na vida tudo acaba, até a nossa dor de viver, sempre temporária.

Outro destaque deste disco de estréia da Phoebe é “Motion Sickness”, que também ganhou um belo videoclipe que já ultrapassou 2 milhões de visualizações. O teor “confessional” que se mostra nas composições dela é repleta de uma auto-ironia mordaz. Ela confessa que sofre de “emotional motion sickness“, que já tentou curá-la com grana emprestada em um “hypnotherapist”.

Difícil de traduzir – ela mesma fala da escassez de termos na língua inglesa para “afogar” o problema -, este “mal-estar do movimento emocional” evoca uma condição que talvez se caracterize por algo parecido com “ficar doente com a gangorra de afetos”. Os primeiros versos já evocam uma mistura de raiva e de saudade, de autenticidade e de fingimento, em que Phoebe entrega-se como um belo buquê de contradições ambulante. Indo de patinete até o karaokê, a moça do clipe estabelece uma jornada da frieza à catarse, mas sempre solitária. O crescendo catártico do clipe nos conduz à revelação da terapia que ela vem tentando para sua auto-cura: surrender to the sound. 

O tom afetivo da música de Phoebe Bridgers evoca o folk-triste de figuras lendárias do sadcore como Eliott Smith, Cat Power, Nick Drake etc. No encerramento de seu disco de estréia, Phoebe homenageia um desses luminares da melancolia musicada no alt-folk norte-americano: Mark Kozelek (que além de prolífica carreira-solo, foi o líder das bandas Sun Kil Moon e Red House Painters), realizando sua interpretação de “You Missed My Heart”.

Phoebe Bridgers também vem se destacando em projetos colaborativos – caso do trio de mulheres Boygenius  e da dupla de folk-rock alternativo que integra junto com Conor Oberst (o Bright Eyes), o Better Oblivion Community Center. A colaboração Oberst e Bridgers começou no álbum de estréia da cantora, em que Mr. Bright Eyes cantou na faixa “Would You Rather”.

A banda – cujo nome se traduz como algo semelhante a “Centro Comunitário Melhor o Esquecimento” – é uma das novidades mais interessantes do cenário musical indie recente, tendo lançado seu álbum de estréia em 2019 pela gravadora Dead Oceans (a mesma que publicou Stranger in the Alps). Em sua resenha para a AMG All Music Guide, Fred Thomas destacou o quanto Phoebe e Conor são espíritos em sintonia:

“It’s evident that indie songwriters Phoebe Bridgers and Conor Oberst are kindred spirits from a brief sampling of any cross-section of their catalogs. Both deal in folk-inflected storytelling that tends to slowly curdle from introspection to darkness and both have deftly balanced approaches to their songcraft that keep their hooks from being swallowed by that darkness. (…) Along with her unhurried vocals, Bridgers’ signature styles gel nicely with Oberst’s trademark shaky croon and stark lyrical perspectives. While both performers are too iconic for Better Oblivion Community Center to truly feel separate from their respective bodies of work, there’s still a strange magic that comes from the combination.

O disco foi eleito um dos melhores do ano em publicações como Exclaim! e Stereogum. Confira já o belo clipe da canção magistral “Dylan Thomas”, que inclui uma homenagem ao poeta galês:

It was quite early one morning
Hit me without warning
I went to hear the general speak
I was standing for the anthem
Banners all around him
Confetti made it hard to see
Put my footsteps on the pavement
Starved for entertainment
Four seasons of revolving doors
So sick of being honest
I’ll die like Dylan Thomas
A seizure on the barroom floor
I’m getting greedy with this private hell
I’ll go it alone, but that’s just as well
These cats are scared and feral
The flag pins on their lapels
The truth is anybody’s guess
These talking heads are saying
“The king is only playing a game of four dimensional chess”
There’s flowers in the rubble
The weeds are gonna tumble
I’m lucid but I still can’t think
I’m strapped into a corset
Climbed into your corvette
I’m thirsty for another drink
If it’s advertised, we’ll try it
And buy some peace and quiet
And shut up at the silent retreat
They say you’ve gotta fake it
At least until you make it
That ghost is just a kid in a sheet
I’m getting used to these dizzy spells
I’m taking a shower at the Bates Motel
I’m getting greedy with this private hell
I’ll go it alone, but that’s just as well.

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Por Eduardo Carli de Moraes. Acesse a página com todos os artigos sobre música.

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Lula, libertado após 580 dias de cárcere injusto, publica um Manifesto pela Cultura [Leia na íntegra]

Manifesto de Lula à Cultura

por Luiz Inácio Lula da Silva, 18 de dezembro de 201

“Pra eles cultura é coisa de comunista; pra gente é libertação.”

Em primeiro lugar, quero agradecer a cada um e a cada uma de vocês aqui presentes, e à classe artística que se mobilizou de todas as formas para que eu pudesse estar de volta ao convívio com o povo brasileiro.

Minha eterna gratidão aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura, dos mais famosos aos mais anônimos, e aos intelectuais comprometidos com a construção de um Brasil melhor, que novamente emprestaram sua arte e seu ofício a uma causa justa, como tantas outras vezes em nossa história.

Gilberto Gil e Chico Buarque, artistas que se mobilizaram em prol da libertação de Lula; o ex-presidente foi um preso político do Estado pós-demorático nascido do golpe de 2016 por 580 dias entre 2018 e 2019.

Tenho a consciência de que a luta de vocês não foi só pela liberdade do Lula. A luta de vocês foi, e será sempre, pela Liberdade, esta palavra que, na definição da Cecília Meireles,“o sonho humano alimenta, e não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”.

A democracia tem uma dívida impagável com os artistas deste país. Fui testemunha da resistência de vocês à ditadura implantada pelo golpe civil e militar de 1964 e ao famigerado AI-5, que o atual governo volta e meia fala em ressuscitar. Estivemos juntos nas inesquecíveis campanhas pela Anistia e pelas Diretas Já.

Juntamos nossas forças na tentativa de barrar o golpe contra a presidenta Dilma. Todos e todas vocês lutaram o bom combate, mas eu quero destacar o nome de uma artista que fez do seu canto o canto do povo brasileiro, e que certamente estaria agora aqui conosco, como sempre esteve quando foi preciso: nossa querida e saudosa Beth Carvalho.  

Eu hoje acompanho, com imensa admiração, a luta cotidiana de vocês contra a ascensão do fascismo no Brasil. Toda luta tem um preço, e vocês estão pagando caro, com a extinção do Ministério da Cultura, a redução brutal dos recursos para a área, a destruição de programas que tornaram a cultura acessível às mais diversas camadas da população brasileira, e a volta da censura, esse monstro que julgávamos extinto em nosso país.

Doze meses depois da posse, já se pode dizer que esse governo tenta colocar em prática um projeto de destruição da rica e diversificada cultura brasileira.

O Fábio Porchat (Porta dos Fundos) disse recentemente que “Bolsonaro não governa, ele se vinga”. Estejam certos de que a tentativa de desmonte da cultura promovida pelo atual governo é, em primeiro lugar, uma vingança contra cada um e cada uma de vocês, que ousaram cantar, escrever, encenar, filmar, grafitar, dançar e gritar “Ele Não”.

É também a vingança contra tudo o que a cultura representa para o ser humano, e que é justamente o que esse governo mais odeia e mais teme.

Cultura é vida, e o atual governo vive de promover a morte, com a insistência em colocar armas de fogo nas mãos da população, a liberação indiscriminada de agrotóxicos, o incentivo à devastação do meio ambiente, o desemprego que leva milhões de pessoas ao desespero, a naturalização do assassinato de mulheres, negros, indígenas e LGBTs.

Cultura é libertação, e o governo Bolsonaro é contra todas as formas de liberdade, inclusive de pensamento e de expressão. A liberdade que esse governo defende é a liberdade para os milionários ficarem cada vez mais ricos, com a retirada dos direitos dos trabalhadores e a destruição da Previdência.

A liberdade que esse governo defende é a liberdade de extermínio da juventude negra, que o Moro tentou legalizar sob o pomposo nome de “excludente de ilicitude”, mas que nada mais é que a licença para escolher o alvo de acordo com o endereço e a cor da pele.

Só o arraigado racismo institucional brasileiro, o mais profundo desprezo pelas vidas negras a criminalização da cultura da periferia podem explicar o massacre de nove jovens que saíram de suas casas para se divertir num baile funk, em Paraisópolis, e de tantos outros moços e moças que são mortos diariamente também nas comunidades do Rio e de todo o Brasil.

Este país carrega em seu passado a vergonha de ter um dia criminalizado o samba e a capoeira, que eram tratados como caso de polícia, da mesma forma que hoje criminaliza expressões artísticas populares como o funk e o grafite.

Festival Lula Livre, no Recife: o ex-presidente com Lia de Itamaracá

A elite brasileira sempre deu as costas à imensa riqueza cultural que brotou e continua brotando das periferias deste país. Ignorou o quanto pôde genialidade de Cartola, Dona Ivone LaraElza Soares, Lia de Itamaracá, de Clementina e Carolina de Jesus. Recusa-se a ouvir as novas vozes, sobretudo negras, de indignação e afirmação, que hoje se manifestam no ritmo do rap e na poesia dos slams que se consolidam pelo país afora.

Nós, ao contrário, sempre acreditamos e investimos na diversidade cultural brasileira. Tive a honra de contar com dois ministros da estatura de Gilberto Gil e Juca Ferreira. Enxergamos a cultura sempre em três dimensões: como direito de todos os brasileiros e brasileiras, como promotora do desenvolvimento social e econômico, e como expressão da rica e diversa identidade brasileira.

Assumimos, e cumprimos, o compromisso de combater a exclusão cultural de milhões de brasileiros e brasileiras. Garantimos a participação de artistas, gestores, produtores e sociedade na formulação e gestão das políticas para a cultura.

Nunca pedimos atestado ideológico a nenhum artista.

Multiplicamos por cinco o orçamento da Pasta, que era de apenas R$ 770 milhões em 2002, e chegou a R$ 4 bilhões em 2015.

Criamos o programa Cultura Viva, que reconheceu e investiu em cerca de 4.500 pontos de cultura, apoiando as mais diversas expressões artísticas, fosse nas periferias dos grandes centros ou nas distantes comunidades indígenas e quilombolas.

Criamos o Sistema Nacional de Cultura, a partir da articulação do governo federal com estados e municípios para a construção de planos, conselhos, conferências e fundos de cultura.

Criamos o Plano Nacional do Livro e Leitura, implementando ações como a formação de mediadores de leitura e a instalação de bibliotecas públicas em cada município brasileiro.

Criamos o Ibram, para cuidar dos museus. Fizemos o PAC das Cidades Históricas, para defender o patrimônio histórico nacional.

Criamos o Vale Cultura, para que o trabalhador tivesse o direito de alimentar também o seu espírito, comprando livros e ingressos para cinema, teatro e shows, entre outros bens culturais. Porque, como diz a canção dos Titãs, “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.

Criamos uma política eficiente e vitoriosa para o audiovisual brasileiro, apoiando desde a produção até a exibição de filmes para cinema e séries para a televisão, contando histórias do Brasil para o mundo e gerando milhares de empregos.

Financiamos nada menos que 306 longas-metragens e 433 séries ou telefilmes. Promovemos o talento e a cultura do nosso país, sem qualquer tipo de censura ou análise ideológica. Aliás, quem mais se beneficiou desses mecanismos de incentivo ao audiovisual foi a Globo, sem jamais reconhecer que foram criados nos governos do PT.

Hoje, o audiovisual sofre com o descaso desse governo. O invencível talento de nossos realizadores e realizadoras continua produzindo boas notícias, como o reconhecimento internacional de “A Vida Invisível”, o sucesso de “Bacurau” no Brasil e no exterior, e a pré-seleção de “Democracia em Vertigem” para o Oscar de Melhor Documentário. Mas milhares de trabalhadores e trabalhadoras altamente especializados são vítimas da tentativa de desmonte de um setor vital para a economia e para a construção da identidade brasileira.

Inimigo da diversidade, o atual governo tenta censurar a produção e a veiculação de obras cujas temáticas não estejam de acordo com o conservadorismo hipócrita que ele prega.

Inventa toda sorte de dificuldades para o lançamento do filme “Marighella”, que conta um importante capítulo da nossa história e até hoje não conseguiu estrear em seu próprio país.

Manda arrancar cartazes dos filmes brasileiros da sede da Ancine, numa absurda demonstração de ódio contra as obras de arte que o nosso cinema produziu ao longo da história.

Chega ao cúmulo de insultar uma das maiores artistas que este país já produziu, ignorando o fato de que a Fernanda Montenegro olhando 30 segundos para uma câmera fez muito mais pelo Brasil que o Bolsonaro em 30 anos sentado na cadeira de deputado.

Cobrindo mais uma vez o país de vergonha aos olhos do mundo, Bolsonaro tomou a inacreditável decisão de não assinar, junto com o presidente de Portugal, o diploma concedido a Chico Buarque, agraciado com o Prêmio Camões, o mais importante reconhecimento dado a um autor de língua portuguesa.

Não satisfeito na sua ânsia de ferir a alma do povo brasileiro, disparou ofensas contra alguns dos nossos artistas mais queridos, a exemplo de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Martinho da Vila e tantos outros.

Atitudes autoritárias como essas não deixam dúvidas de que este é o governo do avesso. Bota para cuidar da cultura os inimigos da cultura. Para cuidar do meio ambiente, os inimigos do meio ambiente. Para cuidar das relações exteriores, os inimigos da diplomacia. Para cuidar da educação, os inimigos da educação – sobretudo das universidades, essas extraordinárias e inesgotáveis fontes geradoras de conhecimento.

Bota machistas para cuidar das políticas para as mulheres, e racistas pra comandar a fundação que tem como objetivo promover os valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira.

Instituições caras à nossa memória, como a Casa de Rui Barbosa, um patrimônio nacional com 90 anos de história, são entregues a representantes da direita mais atrasada e fundamentalista que o Brasil já conheceu.

Eles são inimigos de tudo o que há de bom neste país. Eles só são amigos deles mesmos. Ou nem isso, porque não param de brigar entre si, um xingando o outro, um denunciando as falcatruas do outro.

O ódio que eles sentem pelo povo brasileiro fez com que eu passasse 580 dias encarcerado numa prisão política, por crime que até meu mais ferrenho adversário sabe que não cometi. Nesses quase 600 dias, senti na pele a importância da cultura na vida de um ser humano.

Eu renovava minhas forças ouvindo o “bom dia, boa tarde, boa noite presidente Lula” que os companheiros da Vigília Lula Livre entoavam todo santo dia. Mas havia os momentos de silêncio. E o silêncio, como ensina Guimarães Rosa, “é a gente mesmo, demais”. E o silêncio, na prisão, ecoa com ainda mais força dentro da gente.

Então eu lia, para espantar o silêncio e a solidão. Li para aprender, para adquirir novos conhecimentos, para sair de lá melhor do que entrei. Eu li para ser livre. Porque quando você voa nas asas de um livro, quando você tem nas mãos uma arma tão poderosa quanto uma obra de arte, não existe grade nem parede que possa te prender.

Quero que vocês saibam que estarei sempre ao seu lado. Eu me sinto parte da valente resistência que vocês – cineastas, músicos, dramaturgos, artistas plásticos, escritores, atores e atrizes, pessoas de todas as artes – sustentam contra essa verdadeira arquitetura da destruição.

É preciso lembrar que a censura imposta pelo atual governo não é apenas à cultura. É também ao conhecimento, o que explica o permanente ataque às universidades. É uma censura à ciência, como ficou explícito na demissão do presidente do INPE, Ricardo Galvão, que demonstrou, com base em dados sólidos, o crescimento acentuado do desmatamento na Amazônia.

Aproveito para parabenizar o Ricardo Galvão, que na semana passada foi eleito, pela revista britânica Nature, uma das dez pessoas que mais se destacaram na área da ciência em todo o mundo.

Portanto, não se entreguem, não abaixem a cabeça, não desanimem. Estamos juntos. Um país que deu ao mundo o Samba, o Cinema Novo, a Bossa Nova, a Tropicáliao Teatro do Oprimido e a arquitetura de Niemeyer não ficará jamais de joelhos.

Como na Alemanha nazista, querem destruir o Brasil começando pela cultura. Não permitiremos. Vamos resistir, como já resistimos a outros pesadelos. Estou de mãos dadas com vocês para defendermos juntos o legado da música, do cinema, do teatro, da literatura, de todas as expressões artísticas deste país.

Antes de concluir, quero fazer um agradecimento especial aos intelectuais brasileiros, homenageando um dos maiores pensadores que este país já teve, e que é hoje reverenciado no mundo inteiro. Paulo Freire nos deixou há muito tempo, mas suas ideias revolucionárias e amorosas para a educação e a construção de um mundo melhor continuam iluminando nossos caminhos, e tirando o sono daqueles que em pleno século 21 ainda acreditam que a Terra é plana.

Contra o ódio à arte e ao conhecimento, nós estamos armados com as luzes da civilização. Estou seguro, minhas amigas e meus amigos: mais uma vez, nós venceremos. Contem comigo.  

Viva a cultura. E viva a liberdade.

Fred Di Giacomo: “Seguimos insistindo nesse estranho vício de transformar dor e morte em arte.” || Entrevista à Casa de Vidro

A CASA DE VIDRO ENTREVISTA FRED DI GIACOMO

Em 4 vídeos, o escritor revela suas vivências, processos criativos e críticas à conjuntura contemporânea

Por Eduardo Carli de Moraes

Com 8 livros publicados, Fred Di Giacomo Rocha descreve-se como um “caipira punk”, nascido em Penápolis/SP, em 1984, mas que atinge em 2020 a plena maturidade enquanto artista cosmopolita e polímata – como o classificou a reportagem da revista Vice (EUA). De fato, Fred exerce sua criatividade irrefreável em várias áreas: escreve contos, poemas, reportagens, ensaios históricos, crítica musical etc.

Seu romance de estréia, o impressionante Desamparo (Editora Reformatório, 2018, 248 pgs), inspira-se no realismo mágico celebrizado por Garcia Márquez para realizar uma radiografia da colonização do interior paulista no começo do século XX, em obra que “une a precisão ágil do jornalismo com a prosa poética” e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.

Seu livro de estréia, Canções Para Ninar Adultos (Editora Patuá, 2012), foi prefaciado por Xico Sá, responsável pela seguinte síntese da prosa giacomiana: “Fred Di Giacomo faz um free-jazz que junta o repertório de vasta leitura com a velocidade fragmentada da sua geração.” Algumas das influências de Fred – autores como Bukowski, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Nelson Rodrigues – integram o time de personalidades literárias homenageadas nesta ilustração do livro:

Ilustração por Leonardo Mathias

Fred ainda encontra tempo para compor e tocar na banda Bedibê (com dois álbuns lançados: Envelhecer [2016] América [2019]); para investigar os caminhos da felicidade na companhia de sua esposa Karin Hueck no Projeto Glück; para colaborar como designer de games interativos (o mais famoso deles, Filosofighters, desenvolvido em parceria com a Superinteressante); e pra arriscar-se como crítico de cinema – como fez na provocativa análise do Coringa publicada pelo UOL. Já foi também coordenador pedagógico da escola e agência de jornalismo ÉNóis.

Um caipira em Berlim: Fred Di Giacomo, que tem várias vivências na capital da Alemanha, esteve recentemente lá participando de uma das mais importantes feiras literárias do mundo, a Feira do Livro de Frankfurt. Saiba mais na Farofafá @ Carta Capital.

Nesta entrevista exclusiva que Fred Di Giacomo concedeu à Casa de Vidro, direto de Berlim, explora o tema da descolonização e as ressonâncias de teorias e práticas decoloniais nas obras literárias e jornalísticas que escreve. Reflete também sobre o conceito de escrevivências proposto pela Conceição Evaristo. Fala sobre o cenário de literatura brasileira contemporânea, explorando as similaridades e diferenças entre escritores já bem conhecidos, como Férrez e Paulo Lins, em relação a artistas hoje em atividade e que estão marcando a produção literária do Brasil – gente como Micheliny Verunschk, Mailson Furtado, Ana Paula Maia, Anderson França, Luisa Gleiser, Itamar Vieira Jr, dentre outros. Fred garante que “das bordas do Brasil nasce uma revolução literária no hemisfério sul.”

Fred Di Giacomo, escritor multimídia e polímata, é hoje uma das vozes críticas e contestadoras mais potentes do jornalismo e da literatura no Brasil. Em artigo para a revista Cult, falando sobre o que significa fazer arte em tempos de Bolsonaro, com o incremento assustador das práticas de censura, silenciamento e auto-exílios, Di Giacomo escreveu: “Eles não querem que existamos, que escrevamos nossos histórias, que cantemos nossas canções e façamos nossos filmes. Mas mesmo que estejamos longe de casa e de nossas raízes, seguimos insistindo nesse estranho vício de transformar dor e morte em arte.”

A CASA DE VIDRO ENTREVISTA FRED DI GIACOMO
Assista aos vídeos:

PARTE 1 – Apresentação

PARTE 2 – Descolonizando a Cultura

PARTE 3 – Escrevivências e Renovações dos Cânones

PARTE 4 – Censuras e Artistas na Resistência

Créditos do vídeo: Edição por Eduardo Carli de Moraes. Trilha Sonora: Bedibê.

A CANÇÃO POVOADA JAMAIS SERÁ CALADA – A Ditadura Pinochet até tentou, mas não silenciou Quilapayún, Victor Jara, Inti-Illimani ou Violeta Parra. O canto em coro ainda ecoa.

Em 1968, uma das mais importantes bandas da história do Chile, o Quilapayun (que significa “Os Três Barbudos” em língua mapuche), lançou seu álbum Por Viet Nam. Ele foi publicado pela Dicap (Discoteca Del Cantar Popular), iniciativa ligada ao Partido Comunista do Chile, que teve Víctor Jara como diretor artístico e foi crucial para todo o movimento da Nova Canção Chilena.

Em sinergia com os movimentos cívicos nos EUA que se insurgiam contra a agressão imperialista contra o Vietnã, o Quilapayún denunciava a “águia do imperialismo” na primeira canção do álbum, para logo na sequência abordar a Guerra Civil Espanhola (1936 – 1939), que engendrou a ditadura de Franco, em “Que La Tortilla Se Vuelva”.

Após visitar, através das canções de protesto, as lutas dos povos no Vietnam e na Espanha, realizam uma “canção fúnebre” em homenagem a Ernesto Che Guevara, médico argentino que havia participado da revolução em Cuba (que triunfou em 1959) e havia se mobilizado também em prol da libertação do Congo e na Bolívia, antes de ser brutalmente assassinado em 9 de outubro de 1967, em La Higuera.

Já não surpreenderá a ninguém, dado o teor das canções, que este tenha se tornado um dos LPs que os “milicos” e carabineiros mais se esforçariam por quebrar e incinerar após o Golpe de Estado de 11 de Setembro de 1973.

O disco se tornaria alvo de repressão, de sanha exterminista, por parte da ditadura Pinochetista. Após a destituição violenta do governo da União Popular, encabeçado por Salvador Allende, o Quilapayún passou a ser uma espécie de “inimigo do Estado”. Por ter sido, antes, uma força cultural alinhada às forças da União Popular, vitoriosas nas eleições de 1970, e que só pôde governar até o dia fatídico em que as Forças Armadas do Chile traíram a democracia e se fizeram as serviçais dos EUA naquele coup d’état que, além da democracia e das liberdades civis, também levou a vida de Allende e o direito de um povo seguir cantando.

A carnificina grotesca e brutal que Pinochet dali em diante comandaria também tinha a ver com uma “guerra cultural”, bem ao gosto do que a extrema-direita Bolsonarista e Olavete hoje defende. No Chile Pinochetista, os Quilapayuns e Victor Jaras, os Inti-Illimanis e as Violetas Parras, tinham que ser silenciados; as obras deles tinham que ser destruídas, as mãos deles tinham que ser amputadas pra que nunca mais tocassem violão ou piano; os fuzis dos milicos tinham que encher as bocas e línguas de balas para que estes “esquerdistas” nunca mais ousassem soprar uma zampoña ou cantar uma décima libertária!

Álbum de 1970 do Quilapayún, eleito pela Revista Rolling Stone do Chile como um dos 5 melhores discos da história da música popular no país.

A cada vez que um brasileiro, ostentando sua ignorância como se mérito fosse, despreza a produção cultural dos pueblos latinoamericanos, desinteressando-se de qualquer contato com uma obra artística como esta, é de novo a vontade tirânica dos Pinochets que triunfa; mas a cada vez que estas músicas ressurgem, bombam alto nos alto-falantes, aí é que gritam de novo na cara dos opressores os agentes culturais que estiveram devotados às causas da beleza, da verdade e da justiça. Aí podemos celebrar que as mordaças das ditaduras, por mais que tenham tentado, fracassaram em silenciar o que precisava ser dito e o que prossegue querendo ser em coro cantado – como provam as fenomenais apresentações do Inti-Illimani com “El Pueblo Unido Jamás Será Vencido” na Santiago conflagrada de 2019.

Ouvir Quilapayun é um ato de resistência, e tocar um disco desses bem alto, para que toda a vizinhança ouça, é mais que democratização da boa música: é enviar pelos ares, re-ativada, a potência de uma arte que nada tem de “isentona” nem de cúmplice de tiranos e fascistas. Uma arte que atua no campo da história como força colaborativa e “coro fecundo” que se levanta “exigindo liberdade”. Exigir liberdade é o ofício deste canto, garantem em “Himno De Las Juventudes Mundiales”, uma canção emblemática do ano 1968 – este que, para além do eurocentrismo que nos leva sempre a lembrar das Jornadas de Maio em Paris, teve no México e no Brasil episódios históricos igualmente importantes.

As tiranias que, em 1968, massacraram os manifestantes mexicanos às vésperas das Olimpíadas ou que deram o golpe mais brutal nas liberdades civis dos brasileiros com o AI-5 (de Dezembro de 1968), sempre precisaram instaurar um clima de censura cultural exacerbado, exilando artistas ou mesmo praticando assassinatos contra os dissidentes contraculturais. Os exílios de Caetano e Gil, com a Tropicália trucidada em pleno vôo pelo AI-5, são emblemas disso no Brasil.

No belo documentário de Nanni Moretti, “Santiago, Itália”, em uma cena chave, polvilhada de melancolia e indignação, este vinil do Quilapayún queima em uma fogueira acesa por militares armados com fuzis. É uma cena que evoca lembranças das fogueiras em que os nazistas queimaram a literatura “degenerada” dos judeus, comunistas, ciganos e outros “párias” que perseguiram e exterminaram. Evoca também a Inquisição incinerando Brunos e bruxas.

No entanto, encontrar este álbum, na íntegra, na Internet, é um sopro de esperança: os amordaçadores não venceram! O Quilapayún ainda canta, e dentro do álbum também cantam os Vietnãs, os Ches, as juventudes ingovernáveis, os melhores amanhãs! Ecoando os versos de Violeta Parra, a arte chilena espalha poesia povoada pelo mundo:

Pintura de Claudia Martinez dedicada a Violeta Parra: “Dulce Vecina De La Verde Selva”

“Miren como nos hablan de libertad
Cuando de allá nos privan en realidad
Miren como pregonan tranquilidad
Cuando nos atormenta la autoridad

Que dirá el santo padre
Que vive en Roma
Que le están degollando
A sus palomas?

Miren como nos hablan del paraíso
Cuando nos llueven balas como granizo
Miren el entusiasmo con la sentencia
Sabiendo que mataban ya a la inocencia

El que oficia la muerte como un verdugo
Tranquilo esta tomando su desayuno
El trigo por lo sembrao
Regao con tu sangre Julian Grimao

Entre más injusticia, señor Fiscal
Más fuerza tiene mi alma para cantar
Con esto se pusieron la soga al cuello
El sexto mandamiento no tiene sello.

Que dirá el santo padre
Que vive en Roma
Que le estan degollando
A sus palomas…”
(Violeta Parra)

Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

OUÇA:
QUILAPAYÚN – “Por Vietnam” (1968)

01. Por Viet-Nam 00:00
02. Que La Tortilla Se Vuelva (De La Revolución Española) 02:20
03. Cancion Fúnebre Para El Che Guevara 04:32
04. Mamma Mia Dame Cento Lire (Del Folklore Italiano) 07:35
05. La Zamba Del Riego 09:57
06. Cuecas De Joaquín Murieta 12:45
07. Himno De Las Juventudes Mundiales 14:18
08. El Tururururú (De La Revolución Española) 16:30
09. Que Dirá El Santo Padre 18:55
10. Canto A La Pampa 21:36
11. La Bola 27:23
12. Los Pueblos Americanos 30:34

SIGA VIAGEM: OS 50 MELHORES ÁLBUNS CHILENOS DA HISTÓRIA SEGUNDA A ROLLING STONE @ RATEYOURMUSIC

PLAYING THE PAIN AWAY – Sobre a arte prodigiosa de Tash Sultana e sua prática da catarse musicoterápica

Fico impressionado, de queixo caído, com os múltiplos dons musicais da Tash Sultana. Esta multi-instrumentista australiana, nascida em 1995 lá em Melbourne, vem se destacando no cenário cultural global como uma “banda-duma-mina-só” que esbanja inovação e feeling através dum som viajado, complexo, irrotulável. Sobretudo inspirador.

Virtuose da sinergia, Tash revigora como poucas artistas atuais os domínios do Rock Alternativo e da “cultura neo-hippie”. No processo, semeia fascínio em relação aos poderes da juventude humana quando pode deixar florescer sua criatividade e curiosidade. Com seu controle ímpar de instrumentos múltiplos e pedais de loop, ela chegou pra provar que é possível o surgimento de novos “guitar heroes” que não sejam apenas os que repisam nas pegadas de Clapton, Hendrix, Jeff Beck ou Eddie Van Halen.

Esta guitar heroine despontou com a viralização de seu vídeo caseiro da música “Jungle”, há 3 anos atrás (hoje ele possui cerca de 30.000.000 de visualizações no YouTube – assista abaixo). Com uma câmera estática filmando seu processo de “maga” dos sons, ela mostrou ao mundo que o cenário do indie-rock da Austrália ia muito além do Tame Impala. A performance de Tash, adicionando camadas e mais camadas de sons ao seu caldo de bruxa, voodoo child da novíssima generation, estarreceu muita gente com uma espécie de orquestra rock de uma mulher só:

Natasha (vulgo Tash) empilha sons em camadas superpostas sem precisar para isto do recurso de estúdio do overdub. Ela é capaz de criar, ao vivo, as “paredes de som” Phil Spectorianas que muitos pensavam só serem produzíveis em um contexto de estúdio e overdubbing. Ela é mestra na produção de um fluxo sônico onde os primeiros sons que ela produz na canção entram em estado de loop (repetição cíclica), repetindo-se como um eco do passado que segue presente, e os próximos sons adicionam-se a estes sons tocados no passado que seguem ressoando por proeza da tecnologia digital.

Conforme a canção progride, o que temos é uma espécie de câmara de ecos que poderia chafurdar na confusão mais caótica se não houvesse, no controle do processo, uma “regente” genial de si mesma como esta moça é. A revista Rolling Stone publicou uma crítica onde demonstrou toda sua admiração por um disco de estréia descrito como “deeply impressive”, onde sobressai a “guitar wizardry” da moça que é uma faz-tudo (cantora, compositora, multi-instrumentista, produtora, e por aí vai):

This Melbourne-based busker-gone-legit raises the “do it yourself” stakes with her debut, which is a top-to-bottom showcase of her varied virtuosity; she’s the lone musician credited on the album, as well as its producer and songwriter. Given Sultana’s playing-for-tips roots, it’s probably appropriate that Flow State whirls through styles — “Cigarettes” starts as loose-limbed R&B then speeds things up to a near-frantic pace, “Salvation” recalls the marriage of big beats and gossamer voices that dominated indie discos in the late Nineties, and the simmering “Seven” showcases Sultana’s violin skills over plush synth-pop and agitated chase-scene scores. Sultana can play 20 instruments, but her guitar wizardry is the clear star here; the yearning solo on “Pink Moon” yawps and shudders, while the gathering-storm riffage of “Blackbird” stretches out over nearly ten minutes, all thrilling. After years of being a festival and YouTube sensation, Sultana’s thrown down the gauntlet forcefully. (ROLLING STONE)

Parece-me que este é um procedimento estético que, além de dialogar com aquilo que o Radiohead fez de mais vanguardístico em sua carreira (a exploração cada vez mais arrojada de patterns rítmicos e ambiências que rompessem todas as caixinhas fechadas dos dogmas e paradigmas), aproxima Tash da “lógica” dos mantras budistas. Além disso, faz com que ela dialogue com a filosofia do Eterno Retorno Nietzschiana, como se seu imperativo categórico enquanto musicista fosse: “toque cada nota e cante cada frase como se você quisesse que aqueles compassos se repetissem eternamente no futuro da canção”.

Mas ninguém precisa intelectualizar demais a sua “stésis” (ou seja, seu aprendizado a partir da experiência sensorial) pra apreciar esta música: ela é capaz de fazer algo de benigno com nosso cérebro se simplesmente nos abrirmos a ela, sem pensamentos inúteis servindo de barreira para o impacto de seus encantos. Seus dois primeiros álbuns, Notion (2016) e Flow State (2018) – que A Casa de Vidro disponibiliza para dowload gratuito – penetram por nossos sentidos como uma avalanche sensorial complexa e inebriante, uma espécie de hippie-prog-rock do século 21.


“Synergy”, canção que abre o EP de estréia de Tash Sultana, Notion 

A habilidade rítmica da moça faz com que ela seja mestra em nos conduzir ao transe místico. Como uma neo-hippie pilotando a tecnologia da atualidade com maestria poucas vezes vista, Tash Sultana abre novos horizontes para uma percepção mais fluida de mundo e para uma redescoberta da música como mística. Ouvir os álbuns é uma vivência que recomendo, mas antes de ir a eles seria interessante uma imersão nos vídeos, pois neles se explicitam melhor os procedimentos técnicos e performáticos que permitem que uma musicalidade de tamanha complexidade possa nascer, ao vivo, de uma única pessoa, extraordinariamente jovem, que toca todos os instrumentos que se ouvem em seus shows e discos – o que alguns ouvintes vão julgar inacreditável. Tash Sultana toca como se quisesse nos conduzir, pela via dos sons, a alguma espécie nova de iluminação búdica.

FAÇA O DOWNLOAD DA DISCOGRAFIA DE TASH SULTANA EM MP3 – Notion EP (2016) e Flow State LP (2018)

Pra se ter uma noção do que são Notion e Flow State, são necessárias repetidas imersões em seus complexos sons. As explorações de territórios novos no indie rock, como Velvet Underground, Talking Heads ou Pixies fizeram no passado, convivem na obra de Sultana com influências culturais orientais, vibes meio rasta, flertes com o dub e o trance, tudo impregnado de uma espiritualidade meio búdica. Uma neo-hippie no perfeito comando da tecnologia a seu dispor, ela é também capaz de explorações existenciais e mergulhos psicológicos que expressam sua subjetividade conturbada. Uma de minhas prediletas fala sobre tudo aquilo que nos oprime por dentro, nos confunde a subjetividade, nos esmaga invisivelmente – tudo que é “assassinato pra mente” (“murder to the mind”):



“I was only screaming out for help
It was murder to the mind
It was blood on my hands
Fire in my soul…”

“Murder to the Mind” é uma das músicas que mais impressionam em Flow State, um dos álbuns de estréia mais ambiciosos do século 21. O videoclipe é primoroso e revela ao espectador toda a densidade da experiência sensorial envolvida em Tash Sultana. Ela, em operação, é um corpo pulsando intensamente com a música, com seu organismo inteiro movimentado pelo estado-de-fluxo que a música propicia quando se é capaz de cometer, com ela e através dela, “abraço místico”, tema de outra das lindas canções do disco, “Mystic”, que evoca Van Morrison e sua música que nos conduz a “velejar into the mystic” em obras-primas da história da música como Moondance e Astral Weeks:


“There’s a natural mystic in the air…”

Na guitarra de Tash, repercutem os ritmos do dub, do ska, do reggae, do R&B, enfim: da diversidade abraçada, celebrada, praticada. Ela vai criando riffs onde também se manifestam toda a maestria Sultânica para a arte do loop. E acima de tudo isso, evidências de sobra de que ela sabe rockear: sua atitude nos palcos e na vida é de alguém que sabe também ser confrontacional. Outro de seus méritos enquanto musicista é que, não importa quão experimental seu som se torne, ela é sempre groovy em seu processo de ir experimentando… Não se trata apenas duma geek privilegiada que está com tempo livre de sobra pra aprender uns gimmicks com pedais-de-guitarra e softwares de sequenciamento de beats. Em Tash Sultana, estes instrumentos estão a serviço da maestria expressiva e interpretativa:


Estamos em uma era, na música, onde se agigantam de novo as teens fenomenais, dando uma nova versão da angústia adolescente através de uma Billie Eilish, mas igualmente através da imensa sabedoria que Tash Sultana já manifestava aos 21 anos de vida. Isso se evidencia na TED Talk em que ela, em clima confessional (similar àquela linda sessão TED com Flaira Ferro), relembra de certos episódios de sua vida pregressa em que lidou com a “psicose”, a confusão mental, a insociabilidade, a incapacidade de funcionar corretamente em meio à sociedade careta. Toda aquela dor, ela diz, foi sendo trabalhada através do tocar música, até que ela tenha alcançado um pouco de “clareza” [clarity] sobre os afetos [passions].

Aí, parece-me, está se exprimindo algo que também marcou a trajetória de Kurt Cobain, aquele irônico e icônico ídolo juvenil suicidado aos 27 e que cravou versos inesquecíveis como aquele que agora acorre à memória: “teenage angst has paid off well” (de “Serve the Servants”, magistral faixa de abertura do “In Utero”). Talvez Sultana possa dizer que conheceu a teenage angst cobainiana, que esteve tentada a auto-destruir-se devido a suas suicidal tendencies, mas que conseguiu, ao contrário do líder do Nirvana, encontrar saúde e clareza através da catarse musicoterápica. O que a aproxima também de Laura Jane Grace, mulher-trans à frente de uma das mais importantes bandas punk do mundo, o Against Me, que também fala no processo de “buscar claridade” em meio ao caos, através de sua arte, em álbuns incríveis como Searching For a Former Clarity e Transgender Disphoria Blues.

Ela não buscou esta catarse através da expressão por vontade de se conformar aos padrões e paradigmas da sociedade careta, mas ao contrário foi “playing the pain away” em sessões de performance-de-rua [streetperforming] que ela foi burilando seu estilo e aprendendo a comandar a impressionante aparelhagem que ela opera. Multi-instrumentista capaz de tocar mais de 10 instrumentos diferentes, ela é prova da vivacidade extasiante da capacidade de aprender humana manifestando-se na flor da juventude. Skateira, pouco conformada aos padrões de gênero que propõe à mulher que seja dócil e comportada, sempre de trejeitos “femininos” (ou seja, delicados…), ela traz na pele tatuada os signos de uma ânsia por sentido, diante da morte, construída com arte.

Aquela TED Talk, neste contexto, ensina uma imensidão: uma mente humana, há 21 anos no mundo, é uma das coisas mais complexas e fascinantes do cosmos – e pobres dos velhos que, prepotentes e arrogantes, ousam desprezar a juventude e supõe que ela é sempre mais tola e estúpida do que a geração que está a mais tempo no mundo. Na verdade, pode ser que o apego às velharias conhecido pelo nome de conservadorismo seja uma esclerose senil e que as forças da renovação da existência encarnam-se na geração juvenil. Isto é tão óbvio e evidente mas precisa ser reafirmado diante de uma faceta que nos esfaqueia no fascismo da atualidade: os fascistas são quase sempre velhos, opressores da juventude, apegados ao dogma de que os mais velhos devem mandar, numa espécie de gerontocracia. 

A música e a pessoa de Tash Sultana é pra dar um pontapé nesses arrogantes gerontocratas. A juventude pode muito e ainda vai poder mais: Rimbaud já tinha marcado para sempre a história da poesia francesa com 17 anos de idade, e eu afirmaria sem medo de errar que a música “pop” nos EUA poucas vezes foi marcada por uma obra prima artística tão primorosa quanto foi pelo lançamento de Tidal, disco de estréia gravado por uma Fiona Apple  que havia criado aquilo após apenas 16 giros de seu corpo ao redor do Sol.

Na esteira dos Beatles e do mantra “Can’t Buy Me Love”, ela realizou “Can’t Buy Happiness” (Não Se Pode Comprar Felicidade), sugerindo que só se é feliz, nesta vida, quando utilizamos a criatividade para lidar com os sofrimentos inevitáveis que a vida comporta.

A salvação não precisa ser privilégio dos crentes, nem ser necessariamente post mortem: pra salvar-se em vida de uma morte travestida de existência, de uma meia-viva apagadinha e meia-boca, é preciso que a arte seja convocada para infundir beleza e sentido ao que de outro modo poderia chafurdar no nonsense e na insignificância confusa. Para além de ser uma wizard dos instrumentos musicais, de ser brilhante no controle dos aparatos tecnológicos, Tash Sultana é também alguém que vivencia a arte como espiritualidade – o que é laico, secular, acessível a qualquer ateu. A beleza é um deus terreno que não exige de nós crença na transcendência sobrenatural, nem sacrifícios ascéticos em louvor a esta. Salvação, aqui e agora, através da criação, pela arte, de um mundo mais belo e mais habitável, de uma vida mais fascinante e envolvente.

É claro que, de um viés crítico, há o que se dizer sobre esta hipérbole do protagonismo que é o método do-it-yourself de Sultana levado ao extremo de um do-it-alone (with no one else). Alguns podem ler excesso de individualismo nesta estratégia artística de alguém que quer fazer tudo, estar no controle de todos os elementos, levando a questão da expressão individual à elefantíase. Avessa à especialização de funções, Tash não quis chamar uns brothers ou sisters para tocarem baixo, batera, trompete com ela. Ela toca consigo. Será isso solipsismo? Mesmo numa artista que, em “Mystic”, nos fala de uma sabedoria que consiste em botar o ego pra dormir?

“I guess I laid my ego to rest.” (“Mystic”)

Ela corre o risco de se embrenhar numa jornada egóica, como muito guitar hero já fez, fazendo a ostentação de seus feats técnicos para platéias embasbacadas. Ela é prodigiosa e sabe disso, mas isto coloca o perigo de um ego que cresça como um balão que se enche de ar e se desprega do chão. De todo modo, como o clipe de “Cigarettes” indica, Tash é um exemplo vivo do que pode acontecer com alguém que tem sua iniciação musical bem cedo, que tem seus dons expressivos incentivados desde o berço, e que ademais consegue trilhar como estudante os caminhos do aprendizado auto-didata (ela se diz self-taught):

Em seu pertinente e provocante documentário The Century of the Self, Adam Curtis sugeriu que vivemos no “século do self” no último centênio. Tash Sultana é expressão isso, de uma self made woman que conseguiu tornar-se “sozinha” um fenômeno transnacional da música. Só que este self é nela questionado pelos tropismos que ela manifesta pelas vertentes da sabedoria oriental que colocam a felicidade justamente na transcendência do ego e numa mística da re-união. Búdica religião do re-ligare, que através da arte faz o eu transbordar de si e encontrar-se com outros na mística profana e maravilhosa da comunicação estética. Através de sua arte, como uma blueswoman tecnizada, ela segue a caminhada da vida playing the blues away, na descoberta de uma catarse musicoterápica.

 

Por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 20/12/2019

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Conheça o videoclipe da canção “Morro Abaixo”, de Luiza Camilo e Iná Avessa, uma produção d’A Casa de Vidro Ponto de Cultura

Presente em Nascência, álbum de estréia da artista goiana Luiza Camilo, a canção “Morro Abaixo” conta com participação especial de Inà Avessa, MC em ascensão no cenário Hip Hop de Goiânia.

O video-clipe é uma produção do ponto de cultura A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com), com filmagem e montagem por Eduardo Carli de Moraes, assistência e making of por Naihara Moraes.

O lançamento oficial aconteceu na Festa da Resistência Latinoamericana com shows de Adriel & Iná, n’A Casa de Vidro, durante a 3ª Jornada Goiana de Direitos Humanos, organizada pelo Comitê Goiano de Direitos Humanos ‘Dom Tomás Balduino’, em 14 de Dezembro de 2019.

O lirismo e a musicalidade ímpares da Camilo já lhe renderam o reconhecimento em festivais como Canta Cerrado, Canto da Primavera e Juriti – Festival de Música e Poesia Encenada. Neste último, por exemplo, Camilo foi a vencedora do 1º lugar, na terceira edição do Juriti no ano de 2013, por sua interpretação da obra de poesia encenada “Amanheçamos” (Fonte: https://bit.ly/2RZrgS6). Ela também integrou a banda Bandita Codá (assista, desta, ao clipe da canção “Destino”, também presente em Nascência). 

Convidamos a todos para que apreciem e disseminem o vídeoclipe oficial de “Morro Abaixo”, uma das mais belas canções do disco “Nascência”. A confluência entre Luiza Camilo e Iná Avessa, nesta canção emblemática do que de melhor tem nascido na cultura goiana, está em sintonia com outros trabalhos de protagonismo feminino que vem despontando e florescendo no cenário: AveEva (da dupla Paula de Paula e Flávia Carolina), Cocada CoralBanda MadáIngrid Lobo, Lorranna Santos, Coró Mulher, Retalha Vento, Luciana Clímaco, Nina Soldera e Banda Mundhumano e Meimundo, M’Bandi, dentre outros.

Este é o terceiro videoclipe produzido e publicado pel’A Casa de Vidro: antes vieram “Marginal Latina”, de Vitor Hugo Lemes (VH, O Escrivão) e Bergkamp Magalhães (acesse: https://www.youtube.com/watch?v=s2svqzGlXew), e “Peles Negras Máscaras Brancas”, de VH e Jordana Luz Negra (https://youtu.be/pwx-qGRtE_M).

“Morro Abaixo” nasceu da colaboração de muita gente que somou forças para atingir este resultado e que estão reconhecidas abaixo:

CRÉDITOS DA PRODUÇÃO MUSICAL:
Arranjo, bateria e guitarra – Ricardo de Pina
Trombone – André Luiz
Percussão – Diego Amaral
Trompete – Wellington Santana
Composição, voz e contra-baixo elétrico – Luiza Camilo
Voz e composição – Iná Avessa

CRÉDITOS DA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL:

Câmera e Montagem – Eduardo Carli de Moraes
Fotografia e Making Of – Naihara de Moraes
Figuração e Assistência – Guilherme Eurípides, Afrodite Flow
“Performers” / Atrizes – Luiza Camilo e Iná Avessa

CRÉDITOS DA COMPOSIÇÃO:
Camilo / Iná

MORRO ABAIXO [Letra]:

É, ‘tá difícil respirar aqui
Tanta gente que não vê
o dia florir, a sorrir.

É, tanta tragédia acontece aqui
Muita gente foi embora.
E na TV ainda tem um tal de besteirol
Enganando a cabeça de quem acha
Que tudo vai bem.
‘Tá na hora de pensarmos mais além.

Os dias passam,
Tudo continua o mesmo.
Pessoas morrem,
Tudo continua o mesmo.
O lixo só aumenta
E continua igual. Continua igual.

(RAP – Iná Avessa MC)

O tempo do plantio é diferente do tempo da colheita. Sobrevoam duvidas suspeitas, espreitam, e vezes ganham atenção que desejam. Então não pense que eu estou parada. Isso não é um simulador, a vida é um tiro, eu ‘tô engatilhada, ando pensando, conhecendo a escola do caminho, algo que agora beira o não espera nada. Nada melhor que o não visto, nada melhor que o não quisto. O horizonte com firmeza é bem maior que o objetivo, a alma calma, o indivíduo o coletivo e o subjetivo. Então não pense que eu estou parada. Poesia marginal contra toda alienação, guerrilha verbal no país da alegria, onde impera a covardia, liberdade é utopia e no momento é ilusão. P’ros parça força nessa caminhada. Não deixe não.

E no jornal uma reportagem sensacional,
Acomoda a cabeça
De quem acha a norma normal,

Basta olhar e ver
Que o mundo vai bem mal.

Os anos passam,
Tudo continua o mesmo
Pessoas matam, mentem,
Tudo continua o mesmo.
O lixo só aumenta e continua igual.
Continua igual.

É hora de atenção, muito mais ação
Porque se não,
Felicidade vai virar ilusão.
Felicidade vai virar ilusão.
Felicidade vai virar ilusão.
Não deixe não.

* * * *

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ÁLBUM DE FOTOS – MAKING OF e SCREENSHOTS

Adriel Vinícius lança o álbum “Vivo Aqui e Agora” (2019), gravado em A Casa de Vidro Ponto de Cultura em parceria com Bern Studio Live

A Casa de Vidro Ponto de Cultura, em parceria com Bern Studio Live, apresentam o álbum ao vivo de Adriel Vinícius, Vivo Aqui e Agora (2019), contendo 10 canções autorais (ouça na íntegra em YouTube: http://bit.ly/33wXg2i). O show contou com participação especial do rapper Vitor Hugo Lemes (VH – O Escrivão) nas músicas “Ande” e “Preto”. Faça o download gratuito do disco: http://bit.ly/2IUgg2R (MP3 de 320kps).

TRACKS:

01 – Ande (Feat. VH) (0:17)
02 – Areia Vermelha (8:59)
03 – De Rolê (12:15)
04 – Buquê de Plástico (16:18)
05 – Netflix (19:33)
06 – Esferográfica (23:02)
07 – Casa de Ferro (26:05)
08 – Vida Rara (29:28)
09 – Força Flor (30:52)
10 – Preto (Feat. VH) (37:27)

Gravado em 28 de Setembro de 2019, em Goiânia, no ponto de cultura A Casa de Vidro em 1ª Av. 974 (St. Leste Universitário). Técnico de som e gravação: Bern Silva. Produção cultural e audiovisual: Eduardo Carli de Moraes. Ilustração da capa (em transparência): Rafael Brito. Poster por Gustavo Lopes Assis.

Todas as letras são inéditas, com exceção de “Preto”, que encerra a mixtape “Pele Negra Máscaras Brancas” de VH (https://www.youtube.com/watch?v=DBUyh…), e “Areia Vermelha” e “Netflix”, presentes no EP de Adriel lançado em 2019 (https://www.youtube.com/watch?v=ICP_D…).

VÍDEOS:

“Preto”

“A rede social é um Buquê de Plástico…”