REQUENTANDO A MARMITA NAZISTA E MACARTISTA – O Bolsonarismo e sua guerra contra o “marxismo cultural”

Com seu cosplay de Goebbels ao som do Lohengrin de Wagner, o ex-secretário de cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, deixou explícitos os vínculos ideológicos que unem a extrema-direita brasileira com o III Reich alemão (1933 – 1945).

Com o retrato do “Seu Jair” ao fundo, numa imitação barata da cenografia utilizada pelo Ministro de Propaganda do hitlerismo, Alvim – de fato encarnado toda a “alvura” de um ariano… – encenou ali um rito macabro. Nesta comunicação pública nazistóide, feita logo após de uma reunião com o chefe, Alvim desmascarou que temos na presidência da República um “projetinho de Hitler tropical”, como o apelidou Mário Magalhães.

Em artigos publicados em The Intercept Brasil e que integram seu livro Sobre Lutas e Lágrimas, o jornalista Mário Magalhães (que também é o autor da biografia de Marighella que Wagner Moura adaptou para o cinema) já denunciava desde 2018 o “parentesco do ideário bolsonarista com o arsenal ideológico nazi”.

Um dos elos mais fortes que une o Bolsonarismo e o Hitlerismo está no feroz combate que ambas ideologias buscam empreender contra o fantasma do “marxismo cultural”.

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Para contribuir com este debate, na alvorada de 2020 e já entrando em seu 20º ano de existência, a Editora Expressão Popular publica Dialética do Marxismo Cultural (69 pgs, R$ 3), um panfleto crucial para a compreensão do imbróglio em que atualmente nos debatemos. Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), a autora Iná Camargo Costa busca rastrear as fontes originais do conceito de “marxismo cultural”.

Torna-se claro que “marxismo cultural” é uma expressão criada por forças políticas da direita para combater os perigos encarnados pelo proletariado organizado e mobilizado na construção de uma sociedade pós-capitalista. O nazismo teve força para cometer suas gigantescas atrocidades ao conquistar a adesão a “dois de seus fundamentos mais conhecidos: o racismo e o anticomunismo”, escreve Iná:

“O racismo, dirigido abertamente ao genocídio do povo judeu na Europa, explorou uma das mais descaradas fraudes literárias de que se tem notícia: Os Protocolos dos Sábios de Sião… E o anticomunismo reage a duas causas muito imediatas: a vitoriosa revolução bolchevique de 1917 e a revolução alemã de 1918-1919, devidamente massacrada por uma original combinação entre social-democratas, militares e freikorps (estes últimos constituem um dos embriões das tropas de choque nazistas, conhecidas como SA. A combinação de ressentimento, racismo e anticomunismo produz o caldeirão onde germinará o entusiasmo dos fanáticos de Hitler.” (pg. 15)

Os nazis e os bolsominions também estão unidos em sua sanha de utilizar-se desavergonhadamente da mentira e da fraude como arma política: aos Protocolos dos Sábios de Sião, documento repleto de teorias da conspiração estapafúrdias que apontavam o dedo para um plano de dominação mundial arquitetado por judeus diabólicos, corresponde no universo bolsonarista a mamadeira de piroca, kit gay e a fantasia engana-trouxa do PT Comunista. 

Uma operação ideológica, propulsionada por altos capitalistas que não tiveram pudor de injetar milhões na campanha do sujeito que integra o fã-clube de Ustra, foi construída para convencer os crédulos manipuláveis de várias mentiras. A começar pela mentira de que o PT é um partido comunista, gayzista e abortista, devotado à diabólica operação de espalhar pelo Brasil o marxismo cultural e a “ideologia de gênero”.

Rastreando o nascimento da expressão “marxismo cultural” nas obras da extrema-direita que o combate, Iná Camargo descobre que a certidão de nascimento deste fantasma foi lavrada por Hitler em seu lamentável Mein Kampf (Minha Luta): “o livro é uma declaração de guerra ao marxismo e à sua expressão cultural máxima que seria o bolchevismo” (p. 16). O movimento nazista, através de suas lentes delirantes e paranóicas, enxerga no marxismo uma arma da conspiração judaica internacional e coloca-se como missão a aniquilação do marxismo judaico, incluindo suas manifestações culturais.

Marx é defenestrado pelos nazistas por ser judeu e comunista – e, para Adolf Hitler, “judaísmo e marxismo estão em simbiose, de modo que o combate a um é o combate ao outro.” (p. 18) Por isso, o Estado totalitário do III Reich tem que manter a imprensa sob controle, jamais caindo na armadilha de conceder liberdade aos jornais – afinal de contas, na Alemanha dos anos 1930, “a maioria dos jornais – tanto os liberais quanto os marxistas – está nas mãos dos judeus”, de modo que “esta imprensa deve ser destruída, inclusive a poder de granadas. (…) Assim como a imprensa judaico-marxista deve ser destruída, a arte bolchevique deve ser proibida em todas as suas manifestações (…) pois seus apóstolos são degenerados, descarados e embusteiros.” (p. 21-24)

O Bolsonarismo também se assemelha ao Hitlerismo na mobilização de um aparato de perseguição, censura e silenciamento contra tudo o que rotula como marxismo cultural. Um exemplo disso é a truculência com que se persegue no Brasil atual tudo que se relacione não só a Marx e Engels, mas também a Gramsci e a Paulo Freire. As declarações do führerzin tropical sobre a gestão ideal do Ministério da Educação foram exemplares: como exposto em reportagem de Época, Seu Jair disse que precisava pôr alguém no MEC com um lança-chamas pra reduzir a cinzas tudo que cheirasse a Pedagogia do Oprimido ou a “gramscismo”.

“Lança-chamas” contra Paulo Freire, queima de bruxas representando Judith Butler, perseguição contra professores marxistas pintados como “doutrinadores”, tudo isso faz parte do pântano em que o Bolsonarismo abraça o cadáver insepulto do nazifascismo, requentando esta amarga marmita.

Ao propor “tacar fogo” em Paulo Freire, o Coiso aproxima-se muito dos nazis: desde 1933, ano de ascensão de Hitler e do partido nazista ao poder, a Alemanha foi palco de vários processos de perseguição brutal contra artistas e de grandes queimas de livros, processo conhecido como bibliocausto

“Uma vez no poder, o nazismo efetivamente desencadeou a mais vasta guerra de que se tem notícia contra todas as manifestações culturais que rotulou de bolchevismo cultural ou arte degenerada. Esta guerra cultural atingiu os intelectuais, os artistas e as obras que fizeram a paisagem da República de Weimar, nacionais e estrangeiras, com destaque para as de origem soviética, mas sem prejuízo de franceses, ingleses e estadunidenses. Artistas foram presos, conduzidos a campos de concentração e assassinados ou, quando tiveram sorte ou a devida sagacidade, partiram para o exílio.

Obras de arte foram confiscadas de museus e destruídas; livros foram queimados em sucessivos espetáculos públicos de bibliocausto. O regime nazista produziu uma série de listas negras, tanto com os nomes dos seus inimigos, quanto com os títulos de obras banidas, a serem destruídas. Só da biblioteca do Instituto de Pesquisa Sexual foram sequestrados 25 mil volumes, que alimentaram a primeira fogueira realizada em Berlim pelos estudantes nazistas. Naquele espetáculo macabro, Goebbels disse, solenemente, entre outras barbaridades, que “vocês, jovens, já têm a coragem de encarar o brilho cruel, de superar o medo da morte e reconquistar o respeito pela morte – é esta a tarefa desta nova geração. Fazemos muito bem de lançar às chamas o demônio do passado.”

Para se ter ideia de quem eram os inimigos da “cultura” alemã, tal como entendida pelos nazistas, enumeremos alguns dos mais conhecidos no Brasil: Sigmund Freud, Albert Einstein, Bertolt Brecht, Kurt Weill, Arnold Schoenberg, Stefan Zweig, Franz Kafka, Lasar Segall, Marc Chagall, Henri Matisse, Van Gogh, Picasso, obviamente Marx, Engels, Lenin, Trostky, Kautsky, Rosa Luxemburg, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Ernst Bloch, Herman Hesse, Thomas Mann, o já citado Lion Feuchtwanger, Romain Rolland, Marcel Proust, Helen Keller, Marlene Dietrich…” (pg. 24, 25)

De modo que Ray Bradbury, para escrever seu clássico da ficção científica distópica Farenheit 451, não precisou tanto de imaginação quanto de investigação histórica: livros queimando nas fogueiras da intolerância e do fanatismo não são nada de novo. Iná Camargo Costa revela, em sua crítica do Mein Kampf, que Hitler, no programa do partido nazista, declara-se favorável a um dogmatismo típico de religiões instituídas.

Segundo Hitler, “cada ponto deve ser tratado como dogma; deve-se seguir o exemplo da Igreja Católica Romana, que não recua em seus dogmas nem diante das verdades científicas, pois é assim que se inspira a fé cega na excelência da doutrina… o futuro do movimento nazista depende do fanatismo e da intolerância com que seus adeptos o defendem como a única causa justa… a grandeza de toda organização política que corporifique uma ideia está no fanatismo religioso e na intolerância com que hostiliza todas as outras, pois seus adeptos estão convencidos de que só eles estão com a razão…” (p. 23).

Alguns podem argumentar que os vínculos que tenta-se estabelecer entre bolsonarismo e nazifascismo são frágeis pois há um ponto crucial onde eles se separam: Bolsonaro é favorável ao sionismo israelense e deseja ser amiguinho de Netanyahu, de modo que não haveria em ação no bolsonarismo nada semelhante ao feroz antisemitismo nazi. Ou seja, o vínculo que os nazistas instituíram entre o judaísmo e o marxismo seriadesfeito na ideologia bolsonarista, que institui uma outra clivagem: os sionistas são do bem, do mal são apenas os judeus comunistas.

A demissão de Alvim, neste contexto, não significa que o ex-secretário de cultura estivesse dessintonizado com o führer, mas sim que exagerou na dose de nazificação de sua performance, o que causou escândalo na comunidade judaica: tudo indica que Bolsonaro chutou a bunda de Alvim para não ficar muito feio na fita em suas relações com o sionismo de Israel que, como bom vira-lata do Império ao Norte, ele deseja apoiar – ainda que a ocupação ilegal e o massacre cotidiano da população palestina prossigam sendo um descalabro global de violação sistemática dos direitos humanos e do princípio da autodeterminação dos povos.

Para compreender melhor o monstro híbrido que é a extrema-direita brasileira, precisamos seguir rastreando o passado do combate ao “marxismo cultural” e lidar com outra das grandes inspirações dos Bolsominions: a extrema-direita dos EUA. Tema também exposto em minúcias desde a campanha eleitoral, em que houve o episódio em que David Duke, liderança da Ku Klux Klan, reconheceu muitas similaridades entre o Bolsonarismo e a KKK.

Além de irmão-siamês do supremacismo branco que dá o tom em milícias racistas como a KKK, o Bolsonarismo está totalmente alinhado ao chamado macartismo, processo de caça-às-bruxas comunistas que marcou o período da Guerra Fria nos EUA. Na verdade, a dita guerra fria pode não ter esquentado entre os EUA e a URSS, mas foram quentes as guerras contra o comunismo empreendidas pelo Império capitalista na América Latina, na Ásia e na África. As chamadas ações de contrainsurgência foram responsáveis pela perseguição, prisão, tortura e extermínio de vários militantes de esquerda, da Colômbia ao Vietnã, do Brasil ao Congo.

Sabemos que as ditaduras militares na América Latina, instaladas após golpes de Estado, como aquele na Guatemala em 1954 e aquele no Brasil em 1964, implicaram o empoderamento de regimes ilegítimos e brutalmente alinhados à política Yankee de perseguição ao comunismo. Segundo Iná, “a guerra anticomunista estadunidense se trava preferencialmente na indústria cultural”:

“Seu momento de maior visibilidade foi o capítulo conhecido como ‘Os Dez de Hollywood’, uma lista de roteiristas convocados para depor perante a House of Un-American Activities Committee (HUAC). Dentre os convocados, atualmente um dos mais conhecidos no Brasil é Dalton Trumbo, que recentemente teve livro e filme dedicados a esta amarga experiência de denunciado e condenado a um ano de prisão, mais a proibição de trabalhar na indústria cinematográfica (que foi devidamente contornada pelo recurso aos ‘testas de ferro’ – pessoas que se dispunham a emprestar seus nomes para os roteiros que continuaram a ser escritos).

Produziu-se neste contexto uma lista negra com cerca de 300 ‘suspeitos’. Para ficar nos mais conhecidos entre nós, limitemo-nos aos seguintes: Bertolt Brecht; Howard Koch (roteirista de Casablanca, de 1942); Jules Dassin (diretor de Nunca aos Domingos, filmado já no exílio, em 1960); Orson Welles; Joseph Losey (diretor de Galileu, de Brecht); Charlie Chaplin; Elia Kazan; Dashiel Hammet; Dorothy Parker; Lena Horne; Langston Huhes; Arthur Miller; Harry Belafonte etc.

Ainda merecem destaque, por seus feitos posteriores ao mar de lama anticomunista, Ring Lardner Jr.,que escreveu o roteiro de M.A.S.H., filme dirigido por Robert Altman em 1970, e Martin Ritt, diretor de Testa de Ferro Por Acaso, de 1976, cujo roteiro foi escrito por Walter Bernstein, igualmente vítima da caça aos comunistas em Hollywood e participante da tática dos ‘testas de ferro’.” (INÁ CAMARGO COSTA. p. 35)

O site Tudo Sobre Seu Filme realizou um belo mapeamento do Macartismo no Cinema, um guia com filmes essenciais para compreender a perseguição aos comunistas na sétima arte. Torna-se claro que o Bolsonarismo não tem originalidade nenhuma: está apenas requentando a marmita azeda do nazismo e do macartismo no Brasil contemporâneo. Mas é preciso também frisar as conexões entre os bozolóides da extrema-direita brasileira e seus cupinchas nos EUA, pois é público e notório que “entre os mais proeminentes porta-vozes atuais do combate ao marxismo cultural estão Steve Bannon e o canadense Jordan Peterson” (p. 37).

Um dos marketeiros da campanha vitoriosa de Donald Trump à Casa Branca, Bannon também tem documentadas relações com a familícia e ajudou a articular a estratégia, repleta de fake news e de intolerância sectária contra a esquerda, que pôs Bolsonaro na presidência do Brasil. Segundo Iná, data do início dos anos 1990 a utilização pejorativa e condenatória do termo “marxismo cultural”:

Iná Camargo da Costa, autora de “Dialética do Marxismo Cultural” (Expressão Popular, 2020)

“Seus primeiros usuários são cristãos fundamentalistas, ultraconservadores, supremacistas – enfim, a extrema-direita estadunidense. Uma das mais eloquentes manifestações da tendência é o movimento Iluminismo Sombrio – antítese assumida do iluminismo, que prega a moral vitoriana do século XIX, uma ordem tradicionalista e teocrática, declara guerra aberta a todo conhecimento científico e, em primeiro lugar, ao marxismo cultural. Os objetos mais imediatos de sua fúria conservadora são o feminismo, a ação afirmativa, a liberação sexual, a igualdade racial, o multiculturalismo, os direitos LGBTQ e o ambientalismo.

Para esta horda de reacionários, incluídos os integrantes do movimento Tea Party, a instituição precursora do marxismo cultural foi a Escola de Frankfurt pelas seguintes razões: imigrou para os Estados Unidos em sua fuga do nazismo, é constituída por judeus, combinou as teorias dos judeus Marx e Freud, e sobretudo promoveu a arte moderna (combatida pelos nazistas), contaminando o espírito da contracultura dos anos 1960. Em suma, a Escola de Frankfurt seria uma instituição de fachada do comunismo.” (p. 38)

Obviamente, não devemos esperar da extrema-direita em suas encarnações trogloditas nenhuma crítica razoável à Escola de Frankfurt – pois os neofascistas atacam uma caricatura e enchem de balas um espantalho de sua própria invenção. Não se deram ao trabalho de ler e estudar as obras de Adorno, Horkheimer, Marcuse, Krakauer ou Benjamin. Também não estudaram as obras de Martin Jay ou Stuart Jeffries. A Escola de Frankfurt é apenas um bode expiatório para a fúria conservadora destes caçadores-de-comunistas que, infantilóides, não param de desenhar chifrinhos demoníacos sobre as cabeças de todos os comunistas. Como se requentassem aquela outra marmita fria do “comunista, comedor de criancinhas”.

Jair Bolsonaro jamais poderá ser acusado de ser uma pessoa original ou criativa: tudo nele fede à mediocridade. Mas a mediocridade está longe de ser inofensiva – e Seu Jair pode ser descrito como alguém tão medíocre quanto Adolf Eichmann. Em outras condições históricas de temperatura e pressão, tal figura medíocre e truculenta jamais teria saído do baixo clero do Congresso Nacional, tamanha a sua incompetência para a gestão pública e para o trato civilizado com as diferenças que constituem uma sociedade humana.

Caso as mentes do eleitorado brasileiro estivessem lúcidas, a imensa maioria teria percebido a tempo que Jair não está capacitado nem mesmo para ser o síndico de um condomínio residencial (no Vivendas da Barra, sabemos, ele estava mais interessado em suas interações com milicianos cheios de fuzis em suas casas que tramavam o assassinato de Marielle Franco do que em qualquer coisa parecida com gestão de um espaço coletivo).

Parte desta desgraça obscena em que estamos afundando vem também do “guru” do governo, Mr. Olavo de Carvalho – aquele charlatão delirante e boca suja, que argumenta aos coices e que pretende influir nos destinos do Brasil, mas morando bem longe dele. Olavo mora lá em Richmond, capital da Virgínia, onde estava sediada a central do exército escravocrata sulista que perdeu a Guerra Civil (1861 – 1865) – e o velhote que adora armas-de-fogo vai, a partir dali, teleguiando o Ministério Bolsonarete, indicando seus testas-de-ferro para o MEC e o Itamaraty.

O combate ao marxismo cultural passa, entre nós, pelo Olavismo, uma ideologia responsável por requentar a marmita da perseguição aos comunistas, servindo assim aos interesses da metrópole capitalista onde habita o próprio Olavo. O Bolsonarismo, turbinado por figuras como Bannon e Olavo, “não passa de extensão à neocolônia (por opção) da pauta metropolitana, graças ainda aos bons serviços da alfândega ideológica instalada no Estado da Virgínia, responsável pela péssima tradução dos dogmas americanos. Isto também explica a profundidade de pires de suas manifestações por estas plagas.” (p. 42)

Eis o pântano em que querem nos afundar: O Brasil reduzido à colônia, não mais de Portugal mas dos EUA. Os “novos lacaios da neocolônia”, esta elite econômica medíocre e racista, fanática e misógina, teocrática e anti-iluminista, vê uma de suas metas principais o combate ao marxismo cultural – aí inclusos no mesmo balaio de gatos não só Paulo Freire e Gramsci, Marighella e Rosa Luxemburgo, mas também o Porta dos Fundos, o Planet Hemp, o Pussy Riot, o Jean Wyllys, a Judith Butler…

Além disso, vale dizer que a guerra ideológica da extrema-direita também envolve a pauta do combate à “ideologia de gênero”, uma guerra “santa” que a Pastora Damares não inventou, e que inclusive não é originária dos cristãos evangélicos, mas do próprio epicentro da Igreja Católica Apostólica Romana. Este papo de “menino veste azul, menina veste rosa”, os discursos e práticas que transbordam com a fúria homofóbica e transfóbica, a defesa da “família tradicional brasileira” (heteronormativa, patriarcal, destinada a procriar novos cidadãos-de-bem…), foi uma das trincheiras de luta do Papa que precedeu Francisco (episódios que Fernando Meirelles tratou apenas en passant em seu filme):

“Esta guerra ideológica contou com os bons serviços da Santa Madre Igreja, que desde os anos 1990 desfraldou para todo o mundo a bandeira do combate à ideologia de gênero, num assalto similar ao realizado pelos nazistas ao repertório marxista e análogo ao combate travado contra a ‘ideologia comunista’ por nossa penúltima ditadura (1964 – 1985). Um dos mais importantes ideólogos desta empreitada foi o cardeal Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI, que de 1981 a 2005 comandou uma importante divisão do Vaticano historicamente conhecida como Inquisição e mais recentemente denominada Sagrada Congregação Para a Doutrina da Fé. Saiu da forja da reação católica a tese de que ‘ideologia de gênero’ é um conjunto de ideias falsas, marxistas, que objetivam aniquilar a ‘família natural’, para tanto fomentando a libertinagem, a união homoafetiva, a pedofilia [como se eles mesmos não fossem seus mais contumazes praticantes]…

Para enfrentar esta pouco surpreendente aliança entre extrema-direita católica, extrema-direita evangélica e extrema-direita  propriamente dita (ou neofascismo) em guerra declarada às expressões culturais da multissecular luta pelo esclarecimento e pelo socialismo, estamos desafiados a apresentar nossas armas.” (INÁ CAMARGO COSTA, Expressão Popular, 2020, p. 43 – Compre o panfleto por 3 reais)

Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro – Goiânia, Janeiro de 2020

Show inédito de Ana Flor de Carvalho em Goiânia anima A Casa de Vidro (Sexta, 31/01/2020)

A Casa de Vidro Ponto de Cultura promoveu o show, inédito em Goiânia, de Ana Flor de Carvalho (página do evento no Facebook / reportagem no O Que Rola). Acompanhada por uma banda cheia de suingue e unida por laços sanguíneos, Flor dividiu o palco com seus irmãos Noel Carvalho (bateria), Daniel Pregnolatto (guitarra), Emanuel Pregnolatto (baixo) e amigo Marcos Galvel Morais (teclado) e propiciou uma noite envolvente com muita dança n’A Casa de Vidro.

FOTOS DO EVENTO – Por Fernandinha (@Maria Tatuaria)

RELEASE

Todo jardim precisa de terra boa, luz e muita água. Ana Flor de Carvalho, ou só FLOR, brota de um jardim fértil, nasce forte e tem tudo isso na sua música. A terra, o chão vem da sua ancestralidade, da sua relação com a cultura popular. É filha do mestre Tião Carvalho (Wikipedia – Cravo Albin) e, desde criança, conviveu com a música dentro de casa.


Flor vivenciou diversas expressões e matrizes da cultura popular brasileira em grupos como Cupuaçu (SP) e Flor de Pequi (GO). Mas, Flor também desbravou e continua a desbravar outros terrenos, como a banda Zafenate e o Forró do Assaré, e agora com este projeto solo e autoral.

A luz emana dela mesma – de dentro, do seu percurso da vida, do seu ser feminino. De temperamento intempestivo, FLOR está sempre de prontidão; não para o conflito, necessariamente, mas para os afetos – seja o amor ou não, mas sempre intensa. Sua música traz essa energia, fluindo de momentos rock n’roll e urbanos a outros, caipiras e idílicos.

A água vem da saliva, do verbo, gastado nos versos das canções. São canções que se alternam num movimento pendular, hora viscerais – explosivas e cheias de verdades pessoais -, hora debochadas – balançadas, auto irônicas, mas não menos verdadeiras. Entoadas por sua voz árida e potente, trazem a sensação que fazem qualquer sertão virar mar (ou um belo e estranho jardim).”

OUÇA FLOR:

“Salomé” (Single)

“Delito” (Ao Vivo)

“Carroça” (Ao Vivo)

“Meu Xuxu” (Ao Vivo)

“Treta” (Ao Vivo)

Saiba mais

Maria Rita Kehl, em novo artigo, responde à questão: “o ressentimento chegou ao poder?”

O ressentimento, apesar do tom morno e conformista das lamentações que provoca, deve ser entendido como uma paixão. Mais especificamente, o ressentimento está entre aquelas que Espinosa qualificou como paixões tristes. A raiz da palavra “paixão” nos remete ao sentido primordial da palavra páthos – a mesma de que também advém “patologia”. A originalidade do filósofo setecentista em sua época, assim como a permanência de suas ideias no século 21, reside no afastamento da tradição platônica que ele empreendeu. Para isso, além de ter incluído as paixões no conjunto de objetos do pensamento filosófico, Espinosa propôs que estas fossem avaliadas a partir de critérios diferentes daqueles que norteavam a filosofia platônica e a moral cristã. Em vez de avaliar as paixões como boas ou más (lato sensu), Espinosa propõe avaliá-las como alegres ou tristes. As paixões tristes, para Espinosa, são aquelas que diminuem a potência de agir do indivíduo.

O ressentimento pode ser entendido como uma paixão triste.

Faz sentido, para o psicanalista, tomar a ética de Espinosa para pensar sobre o ressentimento. Antes de mais nada, porque a lógica do ressentido ignora o sujeito – este que, para a psicanálise, atreve-­se a pagar o preço pelo seu desejo e, portanto, a investir em escolhas “desejantes”. A lógica do ressentimento, que bem se adapta à demanda das sociedades capitalistas, concebe o ser humano não como sujeito, e sim como indivíduo – este que não reconhece sua divisão subjetiva. Ocorre que aquele que se pensa como indivíduo (i.e., indivisível, não dividido) precisa forçar-se continuamente a estar de acordo com as determinações do superego – muitas das quais advindas da moral comum. Ele não se deixa reger pelo desejo, mas pelos mandatos e interdições morais, que respondem não ao sujeito desejante, e sim à imagem de perfeição que o indivíduo quer oferecer ao mundo e reconhecer no espelho.

Esta seria, no sentido geral, uma resposta característica da neurose: em vez de perseguir a direção indicada pelo desejo, o sujeito escolhe a segurança subjetiva de “fazer o que deve ser feito”, pensar de acordo com o que se deve pensar e reprimir ou ignorar fantasias que se desviem de um suposto caminho bem-sucedido. O que Freud chamou de “covardia moral” do neurótico consiste em tais escolhas por caminhos seguros, onde não haja riscos de deparar com nada que lhe indique desejos contrários ao caminho certo para uma vida “normal”. Ou seja: uma vida chata. Não me parece necessário definir o que venha a ser uma vida chata. Pois é justamente em relação às consequências dessa mesma vida chata que aquele que orientou suas escolhas pela servidão voluntária um dia há de se ressentir.

Só que, ao deparar com sua infelicidade (ou, no mínimo, com a mediocridade de sua vida), o ressentido há de tentar culpar alguém. Esse é o recurso do ressentido para não ter que avaliar suas escolhas, e depois se arrepender. O arrependimento dói, mas pelo menos revela algum tipo de questionamento. O ressentido, ao contrário, não se arrepende nem se questiona. Ele não suporta a condição (que é de todos nós) de sujeito dividido: que entra em dúvida, que se ilude e se engana, que ignora o desejo que o constitui. Para não ter de deparar com sua divisão subjetiva, o ressentido escolhe um culpado a quem atribuir seu infortúnio. Eis aqui uma característica do ressentimento bem fácil de identificar: a necessidade de eleger culpados a quem acusar quando a barra pesa. Ou quando a vida fica besta. “Eu sofro: alguém deve ser culpado por isso.” Este seria, para Nietzsche, o leitmotiv do ressentimento: procurar um culpado por ter causado suas frustrações.

No entanto, do fato de que o ressentido sempre encontre subterfúgios para dizer “não foi culpa minha”, não se deve deduzir automaticamente que o oposto do ressentimento (ou sua cura) seja a culpa. Não se trata de substituir um páthos por outro. Se, por um lado, o ressentido procura apontar culpados para justificar suas frustrações, por outro, a admissão de culpa ou de responsabilidade (melhor opção) pelo que fracassou em sua vida ainda não basta para tornar o sujeito mais potente diante de suas escolhas de destino. Vale esclarecer: a potência de que se trata aqui é a potência do desejo, esta que orienta as apostas e os investimentos que são feitos durante a vida e também os riscos que cada um se dispõe a correr em nome deles. Entre estes últimos, interesso-me sobretudo pelos riscos narcísicos: riscos de queda, de fracasso, de ficar aquém do que se idealizou…

Nesse ponto é importante diferenciar res­sentimento de revolta. Se o ressentimento é uma “revolta passiva”, a atitude que se opõe a ela, diante de injustiças e humilhações, seria a da revolta ativa, por todos os meios legítimos de que a sociedade democrática (ainda) dispõe. A passividade é uma das atitudes que caracteriza o ressentido. Uma das causas do ressentimento seria o “divórcio entre a potência do sujeito e sua capacidade de agir”. [1]

Nesses termos, a decepção com as promessas não cumpridas não predispõe à ação; ela produz um exército de queixosos passivos, prontos a se (re)alinhar ao que existe de pior entre os conservadores, como forma de reação amarga e estéril, carregada de desejos de vingança. [2]

Não seria possível nomear tal “divórcio” entre potência e capacidade de agir como covardia? Seriam todos os ressentidos covardes? Penso que sim, se considerarmos o sentido que Freud atribui à palavra ao se referir à covardia moral do neurótico. O sintoma neurótico seria, em termos freudianos, uma solução de compromisso entre o desejo e a repressão de suas manifestações. O sintoma é uma forma de gozo neurótico e, ao mesmo tempo, uma forma de manter a interdição do desejo. A “covardia” que Freud atribui ao neurótico se revela nessa solução de compromisso, na qual o gozo se expressa através do mesmo sintoma que mantém a recusa do desejo.

Todorov

Mas o ressentimento também pode se tornar uma paixão coletiva. O filósofo búlgaro Tzvetan Todorov [3] atribui a eleição de Hitler, na Alemanha, à frustração de uma classe média baixa espremida entre a burguesia e a potência de luta do proletariado durante a grande inflação do início dos anos 1930. Para Todorov, o ressentimento na Alemanha brota de uma parte das “classes decadentes”:

“As classes decadentes que se sentem humilhadas com a perda de sua posição se ressentem, acima de tudo, contra os que, situados em um lugar inferior a eles na hierarquia social, não se deixam humilhar. Em vez de tomá-­los como aliados em uma empreitada pela recuperação da dignidade perdida, procuram afastá-los e assegurar os mais ínfimos sinais de distinção e respeitabilidade.” [4]

Ao buscar uma estratégia de desidentificação com seus vizinhos mais pobres e fracassar na tentativa de ascensão social, milhões de cidadãos dessa classe média decaída encontraram a resposta na designação de um culpado pelo sofrimento que eles entendiam como humilhação social. A tal disposição subjetiva do ressentimento, que pede um bode expiatório para desimplicar o sujeito de suas culpas e fracassos, comparece nesse caso, em que o personagem ideal para carregar tal culpa não poderia ser “um dos nossos”. Não obstante, tinha de pertencer à mesma ordem social. Ninguém melhor do que este semelhante (socialmente), mas tão desigual (subjetiva­mente): o judeu.

É evidente que o ressentimento, nesse caso, participa das motivações inconscientes dos eleitores de Hitler, mas não esgota as razões de tal escolha. No campo objetivo, é preciso considerar o peso da crise econômica que sacrificava a população alemã no período. A escritora e psicanalista Lou Salomé relata, em suas memórias, que para comprar um quilo de trigo era preciso levar ao mercado o mesmo peso em moedas. As crises econômicas destroem a confiança que as pessoas teriam no futuro. Elas as obrigam a garantir a sobrevivência dia a dia. Diante disso, torna-­se impossível vislumbrar um futuro melhor, uma transformação promovida pelos próprios sujeitos esmagados pela crise. Assim, apostas regressivas parecem ter conferido alguma segurança imaginária aos eleitores do Führer.

No caso da “psicologia do bolsonarista”, vale considerar o momento anterior à retração econômica – esta que aniquilou o segundo mandato de Dilma Rousseff e pegou em cheio o governo ilegítimo de Michel Temer. Durante o período de crescimento econômico promovido pelos governos petistas anteriores a 2014, um grande contingente de “pobres” ascendeu aos padrões econômicos da classe média baixa. O Bolsa Família, ao contrário do que diziam seus detratores, não funcionava como “bolsa­-esmola” para alimentar a vadiagem do povo. Muitas famílias que viviam abaixo da linha da pobreza usaram o pouco dinheiro do programa, ou parte dele, para iniciar pequenos negócios. De criação de cabras (começando com dois ou três animais…) à abertura de videolocadoras ou fornecimento de comida caseira, muitos beneficiados pelo programa criaram alternativas de sobrevivência. [5] Vale lembrar que a maioria desses beneficiários, tão logo se firmava em um novo negócio ou um novo emprego, declarava não precisar mais do auxílio; já se sentiam pertencendo, daí por diante, a uma emergente classe média baixa.

Presenciei algumas demonstrações do desagrado de pessoas “tradicionalmente” de classe média ou alta contra a invasão daqueles “ex-­pobres” em seus espaços de prestígio. A frase, por exemplo, “este aeroporto está par­ecendo uma rodoviária” traduz a rejeição de passageiros de quarta ou quinta viagem à presença dos que provavelmente pegavam um avião pela primeira vez, que “desprestigia­riam” o sinal de status recentemente adquirido pelos insatisfeitos. A rejeição e o ressentimento não se dirigiram aos passageiros mais endinheirados do que eles, mas àqueles em relação aos quais os revoltados gostariam de ostentar pelo menos uma pequena diferença. A presença de pessoas mais pobres nos aviões anulava o privilégio dessa diferença.

Freud criou o conceito de “narcisismo das pequenas diferenças” para tentar entender o avanço do antissemitismo que precedeu a eleição de Hitler. A rejeição do povo alemão aos judeus não se fundava apenas na concorrência que os comerciantes e trabalhado­res judeus representavam para os alemães numa economia em crise. A sensibilidade analítica de Freud detectou uma questão psicológica determinante na ascensão do nazismo: o fato de que, culturalmente, os judeus tinham muito mais semelhanças do que diferenças com o povo alemão. Os argumentos que movem a intolerância baseiam-se na busca de diferenças inconciliáveis entre povos ou culturas que, ao contrário, contam com uma larga margem de aspectos em comum. É mais fácil tolerarmos uma cultura exótica do que outra tão próxima à nossa que desafia nossa segurança identitária. Não ignoro (tampouco Freud) que muitos povos tribais foram escravizados por civilizações suposta­ mente mais “adiantadas”; mas nesse caso não se trata de ódio, e sim de menosprezo. Já o “narcisismo das pequenas diferenças” volta-­se para o vizinho, o semelhante, aquele que poderia ser “quase um de nós”.

Avancemos para 2018. Dias antes do segundo turno, diante das assombrosas manifestações machistas de Jair Bolsonaro,6 feministas de várias gerações organizaram as manifestações do #EleNão nas capitais do país. Na de São Paulo, da qual participei, milhares de mulheres – na maioria, jovens – partiram do largo da Batata, em Pinheiros, e subiram em direção à avenida Paulista. Foi uma passeata colorida, irreverente, alegre e desafiadora. Muitas meninas tiraram a camiseta e exibiram “ele não” escrito no corpo seminu.

Fui uma das muitas pessoas que, naquela tarde, tiveram a expectativa de que as mulheres e os homens feministas seriam capazes de barrar a emergência do capitão machista. O efeito, no entanto, foi oposto: a votação obtida por Bolsonaro, na semana seguinte, superou o esperado. Teria a potência feminina nas ruas despertado ressentimentos antediluvianos entre os machistas até então conformados com as novas regras de convívio com as mulheres? Teria o #EleNão acordado a vontade masculina de mostrar quem manda na casa, expressa no surpreendente “ele sim” do segundo turno?

Acrescento outra hipótese: a de que uma grande parcela dos eleitores de Jair Bolsonaro seja composta de pessoas que não conseguiram, ou não quiseram, integrar nenhuma das festas democráticas que encheram as ruas das grandes cidades brasileiras desde os idos da Lei da Anistia, em 1979. As grandes manifestações da redemocratização, desde o retorno dos exilados até as manifestações pelas diretas, não tiveram a intenção de excluir ninguém. Tampouco a imensa manifestação que saudou a primeira eleição presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, em outubro de 2002.

Foram manifestações alegres, festivas, grandes confraternizações de gente que sempre lutou contra o autoritarismo, pela liberdade e pela diminuição das desigualdades no Brasil. As ruas são de todxs, toda praça é do povo como o céu é do condor, ou do avião, ao gosto de quem preferir Castro Alves ou Caetano Veloso.

Mas nem todo mundo se sente à vontade na multidão. Nem todo mundo se inclui na alegria geral, seja pela volta da democracia, seja pela eleição do primeiro líder operário para a presidência da República. Deve ser duro ficar de fora da alegria geral, da mesma forma como é duro para aqueles que se excluem, por mau humor ou timidez, das festas de Carnaval ou de ano-­novo. Da mesma forma, para o machista à moda antiga, deve ser um osso duro de roer ver a alegria, a liberdade e a autossuficiência das meninas da geração do #EleNão.

Em breve teremos pesquisas confirmando se o machista ressentido, eleitor de Bolsonaro, sente-se compensado pelo revival das atitudes retrógradas ostentadas (e moralmente autorizadas) pelas primeiras medidas do novo governo. Vale também investigar se os ganhos “morais” ou ideológicos possibilitados pelo novo governo compensam ou não seus fracassos administrativos. Posso prever que aqueles que acabam de perder o emprego tal­vez tenham se decepcionado. Pesquisa do Datafolha divulgada em julho de 2019 revelava que apenas 30% da população considerava o desempenho de Bolsonaro ótimo ou bom: menos de um terço da população, a menor taxa de aprovação a um governante em início de mandato desde Fernando Collor – que, por sinal, sofreu impeachment. No momento em que escrevo este texto, outra pesquisa do Datafolha revela que para 39% dos brasileiros Bolsonaro “não fez nada de positivo”. O número sobe para 58% se considerarmos os 19% que “não sabem” apontar nenhuma boa iniciativa do capitão-­presidente.

Seria uma generalização abusiva considerar que todos os eleitores de Jair Bolsonaro tenham sido movidos pelo ressentimento. Há, entre eles, muitos setores sociais que defendem os próprios privilégios e lutam pela expansão destes, à custa dos direitos adquiri­ dos recentemente por camadas mais pobres da população. Ruralistas querem expandir suas terras em prejuízo de reservas indígenas, de assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de áreas protegidas de florestas. Empresários querem aproveitar o aumento do desemprego para legalizar o trabalho escravo. Aliás, parece que a economia deu um primeiro sinal de sair do buraco a partir da perspectiva de aprovação do relaxamento dos direitos dos trabalhadores…

Por razões diferentes, alguns brutamontes também devem ter se alegrado com a perspectiva da expansão do direito ao porte de armas – talvez a única proposta que se possa atribuir genuinamente a Jair Bolsonaro, já que de resto ele parece um fantoche escolhido para encaminhar as propostas econômicas de Paulo Guedes. Alguns setores da população esperam sair ganhando com a política econômica da gestão Bolsonaro, enquanto a quantidade de moradores de rua aumenta dramaticamente em todas as grandes cidades brasileiras. [7] Diante disso, por que não generalizar o porte de armas e promover o extermínio de gente miserável que não tem serventia – ou seja, poder de com­pra – para o crescimento econômico?

No momento em que pensava terminar este texto, sou informada da nova barbaridade cometida pelo presidente que não posso chamar de “nosso”. Jair Bolsonaro tentou desmoralizar Felipe Santa Cruz, filho do desaparecido político Fernando Augusto de Santa Cruz, ao declarar: “Você acredita em Comissão da Verdade?”. Antes, já havia dito sobre Felipe: “Ele não vai querer saber a verdade” (a respeito da morte do pai, sugerindo que Fernando teria sido assassinado por um companheiro). Ao que o presidente da OAB reagiu afirmando que o atual presidente ostenta “traços de caráter graves para um governante: crueldade e falta de empatia”. [8]

Bolsonaro foi, de fato, um dos mais escandalosos ressentidos contra a grande repercussão favorável ao trabalho da Comissão da Verdade. Em 2014, interferiu numa audiência pública sobre torturados e desaparecidos políticos, em Brasília, para homenagear um dos agentes mais cruéis da repressão de Estado durante a ditadura: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Estaria ele com medo de que chegasse sua vez?

O fato espantoso, para pelo menos dois terços dos brasileiros, é que a vez dele de fato chegou: só que não foi para responder pela criminosa incitação à tortura, e sim para presidir o país. O ressentimento venceu aquilo que, algum dia, foram nossas melhores esperanças.

Maria Rita Kehl
Revista Serrote #33
Notas e referências bibliográficas: 
  1. Maria Rita Kehl, Ressentimento. 4a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011, p. 338.
  2. Ibidem, p. 132.
  3. Tzvetan Todorov, O homem desenraizado. Trad. Christina Cabo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
  4. Maria Rita Kehl, op. cit., p. 27.
  5. Entre as condições para se cadastrar, está a obrigatoriedade de manter os filhos na escola, o que representa um poderoso dispositivo contra o trabalho infantil.
  6. Entre elas: “Tive três filhos homens; na quarta vez fraquejei e veio uma mulher”.
  7. No início de julho de 2019, a onda de frio em São Paulo matou três pessoas sem­teto. Enquanto isso, o prefeito Bruno Covas resolveu proteger não os desamparados cidadãos sem­teto, mas a praça no centro da cidade onde eles tentavam se abrigar: mandou a Defesa Civil tirar os cobertores de quem, por não ter onde dormir, estava “sujando a praça”. Diante de tal brutalidade, não creio que a reação seja de ressentimento. As vítimas, certamente, se abalam. Mas a população… aprova em silêncio?
  8. Declaração publicada pelo site UOL News em 30.07.2019.
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O DIREITO À DIFERENÇA E À DIVERGÊNCIA – Sobre a graphic novel de Julie Dachez, “A Diferença Invisível”

“Quadrinho de utilidade pública!”, exclama o jornal L’Express, frisando a importância de A Diferença Invisível, uma novela gráfica repleta de material que instiga a reflexão sobre a normose. O livro conta a história de Marguerite, 27 anos, no processo de devir-aspie em que enfim ela encontra uma certa libertação ao compreender que “é normal ser anormal”.

Abaixo a ditadura dos normais! A obra foi escrita na intenção de informar a sociedade sobre transtornos psíquicos do espectro autista, sobretudo a Síndrome de Asperger. Estima-se que os aspies integrem um grupo de aproximadamente 70.000.000 de pessoas – deste 70 milhões, cerca de 2 milhões são brasileiros.

O livro é dedicado a esta grande turma de aspies mas também, segundo a autora Julie Dachez, destina a todos os “desviantes” – honrando-os e incentivando-os a saírem de seus armários e de suas posições de invisibilidade. Dachez opera, com o exemplo particular de sua personagem e alter-ego Marguerite, adere a uma atitude que eu chamaria de it’s okay to be queer, ou seja, é cool ser estranho.

A Diferença Invisível poderia ser lido em paralelo com a obra magistral do sociólogo Howard Becker. Seu estudo empírico sobre os músicos de jazz e os maconheiros (usuários de cannabis) nos guetos culturais dos EUA, no livro Outsiders – Uma Sociologia dos Desvios, ensina muitas lições sábias parecidas com aquelas que Dachez visa nos comunicar.

Dachez, honrando sua própria trupe de outsiders e desviantes, em atitude pró-queer, celebra em A Diferença Invisível a vida daqueles “que, por sua mera existência, transgridem as normas” e são “um dedo do meio à imposição da normalidade”:

“Não há nada a curar em vocês, nada a mudar. Seu papel não é se encaixar em um molde, mas sim ajudar os outros – todos os outros – a sair dos moldes em que estão presos. Você não está aqui para seguir um caminho predefinido, mas, ao contrário, para seguir o seu próprio caminho e convidar aqueles ao seu redor a pensar fora da caixa.

Ao abraçar sua verdadeira identidade, aceitando sua singularidade, você se torna um exemplo a ser seguido. Você tem o poder de romper essa camisa de força normativa que sufoca a todos nós e nos impede de viver juntos com respeito e tolerância. Sua diferença não é parte do problema, mas da solução. É um remédio para a nossa sociedade, doente de normalidade.” JULIE DACHEZ [1]

Se definirmos a normose como a condição, hiper-comum, dos que dificilmente conseguem pensar fora da caixa, a legião dos asfixiados pelas normas hegemônicas e suas multiformes tiranias, então os anormais são de fato parte da cura para a doença de que padecem os normais.

Julie Dachez, projetando-se na Marguerite, personagem protagonista de A Diferença Invisível, realiza uma proeza artística estarrecedora. Quando Marguerite enfim é diagnosticada pelo sistema médico instituída como uma autista, alguém com Síndrome de Asperger, ela revelar uma espécie de aspie pride. Similar ao que ocorre com o black power ou o orgulho gay: empoderamento de identidades que a normopatia vigente estigmatiza como anormais. Visibilização (relativa) dos que antes estavam invisíveis. Afirmação da diferença como algo positivo, a ser abraçado, e não como algo negativo, a ser rechaçado.

Dachez tenta nos convencer de que há positividade em afirmar-se identitariamente como aspie. Na esteira da repercussão global da notável aspie sueca Greta Thunberg, Dachez, através de Marguerite, visa reclamar para esta condição, para este modo de existir “autista-aspergeriano”, uma outra percepção social. Ela pede que não rebaixemos esta condição ao status de “doença mental”, algo a ser curado, no sentido de extirpado, de aniquilado, de expulso do psiquismo. Nenhum aspie precisa de exorcismo que lhe arranque de dentro os demônios. Para Margerite, descobrir-se em seu direito à diferença e aos desvio é uma epifania existencial que Mademoiselle Caroline tão lindamente desenhou, acompanhando as sábias palavras de Dachez:

“É normal ser anormal”, este paradoxal insight de Marguerite revela que Julie Dachez “sacou” algo importante nos movimentos sociais “identitários”. Aquilo que Audre Lorde expressou como ninguém em sua literatura tão sábia em ensinamentos sobre o valor da diferença – logo, o valor de uma sociedade que a respeite ao invés de buscar exterminá-la.

A normose é uma doença social grave pois implica num plano de extermínio das diferenças, de uniformização do humano. Os aspies são dissonância neste falso consenso – um exemplo excelente é a cena de A Diferença Invisível em que Marguerite tenta sair do armário enquanto uma espécie improvisada de ativista vegana:

“- Estou lendo um livro que fala sobre vegetarianismo. O autor fala sobre especismo. Você sabe o que é isso? A verdade é que não é normal afagar um gatinho mas matar um porco para fazer linguiça. Isso só porque não o achamos bonitinho. O porco também tem sentimentos. Ele também sofre! E nos dizemos evoluídos.. Tenho vergonha de nossa sociedade.” [2]

Marguerite cita Gandhi, questiona os valores éticos dos cidadãos que se consideram normais e evoluídos, brada contra o especismo e em prol da libertação animal, provavelmente ecoando algo que leu nos livros de Peter Singer.  Tenta dizer isso tudo, toda esta torrente de “pregação” vegetariana, em prol da libertação animal, em uma interação social com outra moça de sua idade, uma moça que poderia quem sabe um dia amadurecer para tornar-se sua amiga.

Mas a interação naufraga. A interlocutora, irritada, diz que já cansou desse “papinho”, diz tchau correndo e segue seu caminho, provavelmente na direção de algum McDonald’s pra encher a pança com hamburguer e bacon. Marguerite não consegue com que triunfe seu argumento em prol dos porcos e os normais seguem a devorá-los.

Um dos aspectos que mais me fascina na obra A Diferença Invisível é a seguinte característica que se atribui aos aspies: eles são descritos como incapazes de mentir. Essa gente descrita como “incapaz de mentir” é assim por uma espécie de dificuldade performativa? Não sabem agir com afetação e falsidade, vestindo as devidas máscaras que trazem em suas caras os auto-proclamados normais?

Uma cena é hilária: Marguerite, no trabalho, encontra uma colega que lhe pergunta: “você gosta do meu suéter novo?”, e ela retruca com ingênua e brutal sinceridade: “esta cor parece com bosta de ganso.” Os aspies são verazes em demasia nesta sociedade normótica que valoriza e entrona o fake.

Ao ler o livro, notamos que os aspies tem dificuldades de comunicação com os outros devido a um estado de “hipersensibilidade”. São sempre muito tensos, não relaxam nem entendem as piadas. Buscam evitar barulhos em excesso e não gostam de ser tocados sem permissão. Em síntese: aspies não gostam de ter suas bolhas de isolamento perfuradas por outros, protegem-se numa espécie de couraça, invisível estrutura psíquica protetiva. Mas esta couraça aspie se distingue da couraça da normose. A couraça da normose, massificada, produz a “peste emocional” que Wilhelm Reich denunciou, diagnosticou e buscou curar. A couraça aspie, anti-normótica, tem a ver com uma certa vulnerabilidade percebida, um senso de consciência mais “fino” que Marguerite descreve ao tatuar em sua pele a expressão awareness. Ela gosta tanto da frase anti-normótica de Albert Einstein que a cola em um poster em sua parede:

A própria Greta Thunberg, eleita em 2019 pela Revista Time a “Pessoa do Ano”, fala sobre sua condição enquanto aspie não como uma vergonha, mas como gift (dom), que ela julga essencial a seu trabalho enquanto ativista da ecologia.

No “kit de sobrevivência de um aspie”, tal como imaginado na HQ de Julie Dachez e Mademoiselle Caroline, há instrumentos para diminuir o input sensorial de um mundo exterior considerado como excessivamente agressivo, caótico, ofensivo, distópico. Protetores intra-auriculares, abafadores de ruídos, barram as entradas para os ouvidos, assim como os tapa-olhos são essenciais para que estes notórios insones consigam dormir à noite.

Afinal, a sensorialidade é problemática numa Sociedade do Espetáculo que visa nos hipnotizar com uma torrente infinda de feeds e inputs, deixando-nos fissurados em gadgets, massivamente apegados às armas de distração em massa que carregamos cada vez mais em nossas mãos e diante dos olhos, e cada vez menos deixamos descansar em nossos bolsos ou gavetas.

Os aspies não são eremitas nem retardados, mas sua capacidade de interação social depende de interlocutores que aceitam e acolham a diferença. E lamentavelmente vivemos sob a tirania dos normóticos, e muitas vezes é dificíl para anormais, desviantes, outsiders, gente queer de todo tipo, encontrar as devidas estruturas de pertencimento que possam contribuir para seu florescimento.

Na verdade, os aspies são em larga medida as vítimas da normose, como prova o sintoma recorrente da ecolalia: repetir a frase do outro, ao invés de formular uma frase própria. Tão acostumados estamos a seguir as normas, que nossa performatividade fica travada quando aderimos de maneira normótica e nos enfiamos nas caixinhas e gaiolas. Já quem é livre como os pássaros prefere sempre o céu inexplorado a qualquer gaiola de ouro.

Tentando sintetizar o livro, o Charlie Hebdo – a célebre entidade da bande dessiné francesa – escreveu: “A Diferença Invisível é uma história de auto-aceitação. Sobre se tornar capaz de falar em voz alta o que todo mundo tem medo de dizer: que somos todos deficientes de alguma forma, seres imperfeitos, andarilhos na estrada do amor-próprio.” [3]

Anteriormente, na história das artes visuais, os aspies já haviam marcado época em uma das melhores animações já feitas para o cinema: Mary & Max, do australiano Adam Elliott. Mary & Max,  assim como A Diferença Invisível, traz como um dos protagonistas do filme Max Jerry Horowitz, aspie judeu-ateu estadunidense, que se envolve num enrolado romance epistolar com a jovem australiana Mary Daisy Dinkle (mas isto é outra história, e prosa pra outro post…). São obras que nos informam e mobilizam sobre libertações identitárias que são também lutas políticas. Pois não queremos nenhuma revolução que não seja em prol do direito à diferença e à divergência, da celebração do desvio criativo.

Eduardo Carli de Moraes

REFERÊNCIAS

[1] DACHEZ, Julie. A Diferença Invisível. São Paulo: Nemo, 2019. Pg. 3.

[2] Op cit, p. 44.

[3] CHARLIE HEBDO. Idem 2, orelha.

 

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Sinopse – Marguerite tem 27 anos, e aparentemente nada a diferencia das outras pessoas. É bonita, vivaz e inteligente. Trabalha numa grande empresa e mora com o namorado. No entanto, ela é diferente. Marguerite se sente deslocada e luta todos os dias para manter as aparências. Sua rotina é sempre a mesma, e mudanças de hábito não são bem-vindas. Seu ambiente precisa ser um casulo. Ela se sente agredida pelos ruídos e pelo falatório incessante dos colegas. Cansada dessa situação, ela sai em busca de si mesma e descobre que tem um Transtorno do Espectro Autista – a síndrome de Asperger. Sua vida então se altera profundamente.

VÍDEOS:

A ARTE DE DINAMITAR BINÔMIOS: Sobre as revoluções filosóficas e ético-políticas de Preciado || A Casa de Vidro

“Não creio na nação nem em Deus. Se sou homem ou mulher? Esta pergunta reflete uma obsessão ansiosa do ocidente. Qual? A de querer reduzir a verdade do sexo a um binômio. Eu dedico minha vida a dinamitar esse binômio. Afirmo a multiplicidade infinita do sexo!” – PRECIADO [1]

A pessoa nunca se reduz a seu nome – “e se a rosa tivesse outro nome, ainda assim teria o mesmo perfume”, como ensinou o bardo Bill Shakespeare. Mas comecemos por aí, pelas relações entre nomes e identidades, a questionar algo crucial para o desvendamento e transformação do mundo de que somos contemporâneos: aquela que um dia chamou-se Beatriz, e que hoje atende ao chamado de Paul, mantendo-se neste entretempo da transição de gênero com o sobrenome Preciado, é uma pessoa que revoluciona a filosofia?

À primeira vista, a originalidade de Preciado estaria num devir-trans da filosofia, na revelação confessional e reflexiva da experiência de transexualização através de testosterona em gel que ela realiza pondo em prática a ética da cobaia-de-si que está no cerne de Testo Junkie, uma obra-prima da queersofia. Mas para além destas vivências, é preciso perguntar mais a fundo: como Preciado faz para transtornar e tirar de órbita toda a história do pensamento “ocidental” hegemônico? Quais são as práxis subversivas que ela propõe no âmbito da filosofia prática, ou seja, da ética – considerada como campo dos “estilos de vida”, das múltiplas artes do viver?

Preciado diz que está devotada à tarefa “dinamitar os binômios” que tentam dizer a verdade definitiva sobre o sexo. Para levar a bom termo o processo de dinamitar os binômios redutores (como macho/fêmea, homem/mulher, homo/hetero etc.), como procede Preciado em sua obra e em sua vida? Como faz para propor ao futuro humano as alternativas práticas e as metodologias táticas para que, no real concreto, possamos de fato “afirmar a multiplicidade infinita do sexo”?

Se a ética é uma estilística da existência, como dizia Foucault, Preciado ilumina as revoluções em curso nesta área em nossa época – esta que é por ela intitulada “farmacopornográfica”. Uma obra que revela toda a extensão do choque dos dissidentes sexuais contra os conservadorismos heteropatriarcais que desejariam manter tudo em estado estacionário. A obra de Preciado fornece alguns mapas para navegar neste confuso clash entre os subversores da heteronormatividade (com seu reinado de binômios opressores), digladiando com os defensores da velha ordem maniqueísta-teocrática do patriarcado impositor da heterossexualidade compulsória e de uma redutora leitura do sexo legítimo: aquele que se destina unicamente à procriação – situação descrita ironicamente pela banda God Is My Co-Pilot em seu álbum de título sarcástico, Sex Is For Making Babies.

A n-1 edições tem feito um trabalho primoroso na divulgação da obra de Preciado no Brasil, tendo já publicado o Manifesto Contrassexual: Práticas subversivas de identidade sexual (2017, 224 pgs) e Testo Junkie: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica (2018, 448 pgs). Ao ler estes livros, ficamos impressionados pela inteligência crítica que manifestam – e mais impressionados ainda pelos possíveis efeitos práticos que estas obras podem produzir. Em especial no que diz respeito a revoluções culturais, que são sempre também revoluções comportamentais. 

Nascida na Espanha, hoje Preciado é uma potência intelectual-prática no cenário francês, onde seu destino cruza-se e entremescla-se com o da escritora e cineasta Virginie Despentes.  Com um texto provocativo, de sabor literário subversivo, mobilizando uma sagaz prosa que eu apelidaria de beatnik-queer, Preciado vem levantando debates também entre os amantes de literatura – pois o tratamento literário da sexualidade que produz evoca similaridades mas também dissonâncias com a obra de figuras como Michel Houllebecq.

Transitando entre Barcelona e Paris, Preciado é hoje uma espécie de encarnação do parisiense cosmopolita. Destaca-se no cenário filosófico como herdeiro e subversor de Derrida, Foucault, Deleuze, Guattári, Judith Butler, Wittig etc. Segundo Marie-Hélène Bourcier, “o que Preciado faz com a filosofia se parece com o que o punk ou mesmo o rap fizeram com a música.” Bourcier – autora dos três livros da série Queer Zones – avalia que:

“O trabalho de desconstrução contrassexual realizado por Preciado, alinhado com projetos alternativos de modernidade, como o empirismo radical ou o espinosismo, rompe com toda uma série de binômios oposicionistas: homossexualidade / heterossexualidade, homem / mulher, masculino / feminino, natureza / tecnologia, que serviram até agora não só de fundamento da filosofia moderna, mas também como centro de reflexão das teorias feministas, assim como de certas teorias gays, lésbicas e inclusive queers. (…) Preciado utiliza com agilidade os recursos da desconstrução derridiana (…) e perfila-se em sua obra uma filosofia do corpo em mutação…” (BOURCIER, p. 13) [2]

Se Preciado de fato realiza algo capaz de “fazer com a filosofia” algo similar ao que o rap e o punk fizeram com a cultura, talvez seja pelo efeito de contestação das identidades fixas e das caixinhas binárias onde costumamos encerrá-las como que em gaiolas. Pensemos, por exemplo, no que põe Preciado em sintonia com o Punk.

Sabe-se que o movimento Punk é um dos mais libertários em relação à inclusão das mulheres nos espaços de expressão e no acolhimento espontâneo das dissidências sexuais e subversões de gênero. Tendo sido marcado por bandas pioneiras lideradas por travestis (o The New York Dolls, banda-matriz de onde nasce também a obra do ícone Johnny Thunders), ou que continham mulheres na liderança tanto nos vocais quanto nas composições (X-Ray Spex, The Slits, Blondie etc.).

Além disso, nascem dentro do punk sub-estilos inteiros – como o riot grrl de grupos como Bikini Kill, Sleater-Kinney, L7, Hole, Lunachicks, Babes In Toyland, Six Year Bitch etc. – marcados por uma revolta contra a heteronormatividade, o machismo e a opressão patriarcal.

riot grrrl transcendia a música pois, inspirando-se no ethos punk, desejava ser uma força de transformação social, demolindo uma hegemônica divisão sexual na arte que queria impor o rock and roll como algo exclusivamente acessível aos homens urrantes e ogros. Com o surgimento do riot grrrl, na esteira do estouro grunge, por volta de 1991-1992,

“a new generation of feminist musicians stopped accepting the “beergutboyrock” status quo and started making their voices heard. As loudly as possible. Riot Grrrl sent a ripple effect through culture with an influence that can be seen today in the proliferation of zines, pro-inclusivity spaces and plenty of sharp, hard-rocking all-girl bands to carry the torch.” (PAGET, Erika.) [3]

As atitudes de Kurt Cobain – criticando os rednecks escrotos, os machistas, os racistas, os homofóbicos, dizendo a eles no encarte de In Utero para que não comprassem os discos nem consumissem ingressos para shows do Nirvana – é uma das principais encarnações grunge-punk deste ethos de afirmação dos desviantes e outsiders. Assim como, no cenário contemporâneo, a impressionante trajetória do Against Me!, à frente de um cenário queercore que tem no álbum Transgender Dysphoria Blues um marco contemporâneo (um guia pode ser encontrado na Revista O Grito).

A transição identitária-corpórea envolvida em processos de transexualização tem cada vez mais exemplos encarnados de gente que tem a coragem de fazê-la em público: o Against Me!, que um dia foi uma banda punk liderada por um cara cis chamado Tom Gabel, e que hoje quer ser conhecido como a banda punk liderada por uma mina trans chamada Laura Jane Grace, faz parte do mesmo processo sócio-cultural complexo revolucionante de que Preciado participa.

Beatriz ou Paul? A própria confusão sobre como nomear esta pessoa, a proliferação de contraditórias descrições desta pessoa que a certo ponto foi “filósofa” e hoje é “pensador”, serve à esta dinamitação de certezas, dogmas e identidades com pretensão ao status pétreo de estátua. Ler a obra de Preciado, escutar Against Me! ou assistir à série True Trans (com Laura Jane Grace) é essencial para quem quiser, nesta vida, ser mais como mel do que como estátua.

Se Preciado tem algo de punk no âmago não é somente pois gosta de ir aos shows de Lydia Lunch e não tem pudores de escrever em seus livros expressões nada acadêmicas como “dar o cu”. Sua punkidade está essencialmente na sua “rebelião de gênero” que aponta para “o crepúsculo da heterossexualidade”; aquela que foi declarada, no nascimento, como mulher cis, chamada de Beatriz, criada com brinquedos “femininos” como bonecas e panelas, cresceu para tornar-se dinamitadora deste sistema, como evidencia o seguinte trecho de Testo Junkie, de impressionante radicalidade, em que ela segue os rastros de Butler, Federici e Fanon:

“Podemos dizer que a heterossexualidade feminina branca é, antes de tudo, um conceito econômico que designa uma posição específica no centro das relações biopolíticas de produção e de troca baseadas na transformação do trabalho sexual, do trabalho de gestação, do cuidado dos corpos e outras atividades não remuneradas no capitalismo industrial. É próprio desse sistema econômico sexual funcionar por meio do que Judith Butler chamou de coerção performativa: processos semiótico-técnicos, linguísticos e corporais de repetição regulada que são impostos por convenções culturais.

É impossível imaginar a rápida expansão do capitalismo industrial sem o comércio de escravos, a expropriação colonial e a institucionalização do dispositivo heterossexual como modo de transformação em mais-valia dos serviços sexuais não remunerados historicamente realizados pelas mulheres. É razoável falar de uma dívida de trabalho sexual que os homens heterossexuais teriam historicamente contraído com as mulheres da mesma forma que países ocidentais deveriam, de acordo com Franz Fanon, ser forçados a ressarcir os povos colonizados com uma dívida colonial. Se houvesse interesse em pagar a dívida por serviços sexuais e saques coloniais, todas as mulheres e povos colonizados do planeta receberiam uma renda vital que os permitiria viver sem trabalhar durante o resto de suas vidas.” (p. 133) [4]

Preciado, que dá a impressão de conhecer a fundo todas as vertentes de dissidência sexual, todas as marés do feminismo, todas as propostas de descolonização, também é uma grande conhecedora da arte underground dos dissidentes sexuais, dos outsiders da caixinha do gênero binarizado. Uma pequena lista de produções artísticas audiovisuais, literárias, performáticas e musicais fornece um panorama da riqueza e da diversidade desta produção cultural dinamitadora de binômios:

Preciado & Butler

“Por meio dos filmes pornôs feministas de Annie Sprinkle; dos documentários e ficções de Monika Treut; da literatura de Virginie Despentes, Dorothy Allison e Kathy Acker; das tirinhas cômicas de Alison Bechdel; das fotografias de Del LaGrace Volcano e Axelle Delauphin; das performances de Diana Pornoterrorista, POst-op e Lady Pain; das performances queer de Tim Stüttgen; das políticas zine e ready made de Dana Wise; dos shows selvagens dos grupos Tribe 8, Le Tigre ou Chicks on Speed; das pregações neogóticas de Lydia Lunch; e dos pornôs transgêneros de ficção científica de Shu Lea Cheang, cria-se uma estética feminista feita de um tráfico de signos e artefatos culturais e da ressignificação crítica de códigos normativos que o feminismo tradicional considerava como impróprios à feminilidade.” [5]

Não tenho dúvida de que Preciado quer contribuir para a libertação humana em relação à opressão dos binômios que nos trancam em uma vida que não flui. Em entrevista a Jesús Carrillo, Preciado afirma-se conectada à toda a galáxia da interseccionalidade: “Trata-se de estarmos atentos, diria Bell Hooks, ao entrecruzamento de opressões (interlocking opressions)”:

“Não é simplesmente questão de se ter em conta a especificidade racial ou étnica da opressão como mais uma variante junto à opressão sexual ou de gênero, mas de analisar a constituição mútua do gênero e da raça, o que poderíamos chamar a sexualização da raça e a racialização do sexo, como dois movimentos constitutivos da modernidade sexo-colonial.

Kimberly Crenshaw indicará a necessidade de evitar a criação de hierarquias entre as políticas de classe, raça, nação, sexualidade ou de gênero e, ao contrário, apelar ao estabelecimento de uma ‘interseccionalidade política’ de todos esses pontos de estratificação da opressão.

Trata-se, disse Avtar Brah, ‘de pensar uma política relacional, de não compartimentar as opressões, mas formular estratégias para desafiá-las conjuntamente, apoiando-se na análise de como se conectam e se articulam’.” (PRECIADO @ Revista Poiésis da UFF) [6]

por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro, Janeiro de 2020
A ser continuado…

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. In: “Entrevista a Víctor Amela, La Vanguardia, 1 de abril de 2008″. N-1 Edições, pg. 223.

[2] BOURCIER, Marie-Hélène. Prefácio ao Manifesto Contrassexual. Pgs 9, 13.

[3] PAGET, Erika. The 10 Best Riot Grrrl Albums To Own On Vinyl. 2017. Acesse no site Vinyl Me Please.

[4] PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica.N-1, 2018, p. 132.

[5] Ibidem, p. 359.

[6] PRECIADO. Entrevista a Jesús Carrillo. In: Revista Poiésis / UFF, n 15, p. 47-71, Jul. de 2010. Acesse PDF.

Na gangorra de emoções e obcecada com a mortalidade, Phoebe Bridgers destaca-se no cenário indie-folk

A arte, por vezes, é capaz de proezas espantosas como enfiar a condição humana inteira dentro de uma canção de 3 minutos. É o que faz a artista californiana Phoebe Bridgers – que também integra, na companhia de Conor Oberst, a banda Better Oblivion Community Center – em “Killer”, faixa de seu álbum de estréia “Stranger in the Alps” (lançado em 2017, baixe o disco em Mp3 de alta fidelidade: https://bit.ly/30JgSQK.)

A estilística da canção não difere muito das baladas conduzidas ao piano que fizeram a fama de duas das mais importantes artistas da música norte-americana contemporânea – Tori Amos e Fiona Apple. Porém Phoebe Bridgers traz uma marca própria, uma ousadia lírica toda sua, como prova esta canção que tematiza, com coragem e abertura, o amor diante da morte – e o direito à eutanásia.

Depois de assistir este esplendoroso videoclipe algumas vezes, fiquei impressionado pela capacidade extraordinária de união de vertentes expressivas que se manifestam nestes 3 minutinhos de audiovisualidade em eflorescência: o video-clipe é puro cinema e a letra é pura poesia. E não faltam provocações filosóficas.

“Às vezes penso que sou uma assassina”, começa a canção, evocando um clima de filme de horror, o que a segunda estrofe só sublinha: “Não consigo dormir perto de um cadáver, mesmo que esteja indefeso na morte / E tenho certeza que sentirei tua falta / E de fingir-me adormecida para contar tua respiração…”. A letra inclui uma referência a um notório serial killer (Dahmer) e revela uma artista arriscando-se na expressão de suas obsessões mais sombrias.

“I feel like a lot of my friends, especially artists, are consumed with this idea of the inevitability of death.” Phoebe Bridgers, Interview @ The Line of Best Fit

A canção tem um endereçamento: o eu lírico canta como quem escreve uma carta. Algo do espírito de “When I’m 64” – de Lennon/McCartney, a memorável canção dos Beatles – aparece aqui, pois o eu lírico imagina-se mais velho, questionando-se de modo bem imaginativo sobre seu porvir. Nada evoca, menciona ou fede a morte na canção pop alegrete de McCartney, em que envelhecer ao lado da amada é descrito como a maior das felicidades.

Só que onde Paul McCartney foi jovial, lúdico e solar, Phoebe Bridgers foi dark, melancólica e saturnina. Ela fala assim ao destinatário de sua carta-canção: “Quando eu estiver doente e cansada, e minha mente praticamente não estiver mais lá / Quando uma máquina me mantiver viva e estiver perdendo toda minha cabeleira / Eu espero que você beije minha cabeça apodrecida e tire a máquina da tomada / Sabendo que queimei todas as playlists e dei todo meu amor.” Coube até o amor fati nestes três minutos de esplendorosa canção.

KILLER

Sometimes I think I’m a killer
Scared you in your house
I even scared myself by talking
About Dahmer on your couch

But I can’t sleep next to a body
Even harmless in death
Plus I’m pretty sure I’d miss you
And faking sleep to count your breath.

Can the killer in me
Tame the fire in you?
Is there nothing left to do for us?

I am sick of the chase
But I’m hungry for blood
And there’s nothing I can do
But when I’m sick and tired
And when my mind is barely there
When a machine keeps me alive
And I’m losing all my hair
I hope you kiss my rotten head
And pull the plug
Know that I’ve burned every playlist
And I’ve given all my love.

Can the killer in me
Tame the fire in you?
I know there’s something waiting for us
I am sick of the chase
But I’m stupid in love
And there’s nothing I can do.

Esta obsessão com a inevitabilidade da morte, enfatizada pela artista nesta pela entrevista, também se manifesta em “Funeral”. A poetisa, distanciando-se da eutanásia que se coloca como bifurcação ética no fim de muitas existências humanas, exigindo a escolha pelo suicídio assistido ou pelo morrer-de-morte-morrida, dedica-se em “Funeral” à morte precoce, começando a canção anunciando: “Vou cantar num funeral amanhã de uma criança um ano mais velha que eu.”

O brilhantismo deste início está no fato de que a narrativa cria de imediato um suspense sobre esta misteriosa morte de criança que será cantada por uma criança ainda mais jovem. A música evoca a falência da razão ao tentar compreender este horror, o sentimento de asfixia diante da tragédia: when I think too much about it I can’t breathe.

Phoebe Bridgers, com sua voz afinadíssima, com seu charme sussurrante, fez em “Funeral” um dos canções mais tristes dos últimos anos, culminando num refrão onde o sentimento que impera é o de estar sempre blue. Emblema musical do que alguns psicanalistas chamariam de uma síndrome maníaco-depressiva é a confissão do eu-lírico de que este sentir-se blue all the time é algo que “sempre foi assim e sempre será”. Não é verdade que isto captura à perfeição o mood depressivo, que consiste num presente triste em que tanto passado quanto futuro aparecem dominados por uma tristeza que se espraia para todos os lados?

O quadro fica ainda mais forte quando a poetisa evoca, de maneira impressionante, uma imagem onírica: “tenho um sonho em que estou gritando debaixo da água / enquanto meus amigos estão me acenando da margem”. O sarcasmo de Phoebe ergue-se mesmo em meio à desolação deprê deste funeral sônico e ela pede, como Rebecca Solnit: “não preciso que você me explique o que isso quer dizer…”

É evidente que há hipérbole e exagero nesta expressão da tristeza, estar blue todo o tempo, sempre foi assim e sempre será – mas é através deste recurso expressivo que ela atinge algo muito significativo sobre a experiência humana. Às vezes levamos muito a sério nossos próprios sofrimentos, sem nos lembrar que eles são ninharia diante de pais e mães que neste momento estão chorando a morte precoce de seus filhos.

Phoebe deixa no mistério a causa mortis e seu vínculo com o falecido, mas tudo indica que, já que foi convidada a cantar no funeral, trata-se de um conhecido, alguém quase de sua idade, que nunca estará mais aqui, situação que a afunda temporariamente nesta asfixia emocional onde os moods deprês parecem destinados a ficar para sempre. A boa notícia é que na vida tudo acaba, até a nossa dor de viver, sempre temporária.

Outro destaque deste disco de estréia da Phoebe é “Motion Sickness”, que também ganhou um belo videoclipe que já ultrapassou 2 milhões de visualizações. O teor “confessional” que se mostra nas composições dela é repleta de uma auto-ironia mordaz. Ela confessa que sofre de “emotional motion sickness“, que já tentou curá-la com grana emprestada em um “hypnotherapist”.

Difícil de traduzir – ela mesma fala da escassez de termos na língua inglesa para “afogar” o problema -, este “mal-estar do movimento emocional” evoca uma condição que talvez se caracterize por algo parecido com “ficar doente com a gangorra de afetos”. Os primeiros versos já evocam uma mistura de raiva e de saudade, de autenticidade e de fingimento, em que Phoebe entrega-se como um belo buquê de contradições ambulante. Indo de patinete até o karaokê, a moça do clipe estabelece uma jornada da frieza à catarse, mas sempre solitária. O crescendo catártico do clipe nos conduz à revelação da terapia que ela vem tentando para sua auto-cura: surrender to the sound. 

O tom afetivo da música de Phoebe Bridgers evoca o folk-triste de figuras lendárias do sadcore como Eliott Smith, Cat Power, Nick Drake etc. No encerramento de seu disco de estréia, Phoebe homenageia um desses luminares da melancolia musicada no alt-folk norte-americano: Mark Kozelek (que além de prolífica carreira-solo, foi o líder das bandas Sun Kil Moon e Red House Painters), realizando sua interpretação de “You Missed My Heart”.

Phoebe Bridgers também vem se destacando em projetos colaborativos – caso do trio de mulheres Boygenius  e da dupla de folk-rock alternativo que integra junto com Conor Oberst (o Bright Eyes), o Better Oblivion Community Center. A colaboração Oberst e Bridgers começou no álbum de estréia da cantora, em que Mr. Bright Eyes cantou na faixa “Would You Rather”.

A banda – cujo nome se traduz como algo semelhante a “Centro Comunitário Melhor o Esquecimento” – é uma das novidades mais interessantes do cenário musical indie recente, tendo lançado seu álbum de estréia em 2019 pela gravadora Dead Oceans (a mesma que publicou Stranger in the Alps). Em sua resenha para a AMG All Music Guide, Fred Thomas destacou o quanto Phoebe e Conor são espíritos em sintonia:

“It’s evident that indie songwriters Phoebe Bridgers and Conor Oberst are kindred spirits from a brief sampling of any cross-section of their catalogs. Both deal in folk-inflected storytelling that tends to slowly curdle from introspection to darkness and both have deftly balanced approaches to their songcraft that keep their hooks from being swallowed by that darkness. (…) Along with her unhurried vocals, Bridgers’ signature styles gel nicely with Oberst’s trademark shaky croon and stark lyrical perspectives. While both performers are too iconic for Better Oblivion Community Center to truly feel separate from their respective bodies of work, there’s still a strange magic that comes from the combination.

O disco foi eleito um dos melhores do ano em publicações como Exclaim! e Stereogum. Confira já o belo clipe da canção magistral “Dylan Thomas”, que inclui uma homenagem ao poeta galês:

It was quite early one morning
Hit me without warning
I went to hear the general speak
I was standing for the anthem
Banners all around him
Confetti made it hard to see
Put my footsteps on the pavement
Starved for entertainment
Four seasons of revolving doors
So sick of being honest
I’ll die like Dylan Thomas
A seizure on the barroom floor
I’m getting greedy with this private hell
I’ll go it alone, but that’s just as well
These cats are scared and feral
The flag pins on their lapels
The truth is anybody’s guess
These talking heads are saying
“The king is only playing a game of four dimensional chess”
There’s flowers in the rubble
The weeds are gonna tumble
I’m lucid but I still can’t think
I’m strapped into a corset
Climbed into your corvette
I’m thirsty for another drink
If it’s advertised, we’ll try it
And buy some peace and quiet
And shut up at the silent retreat
They say you’ve gotta fake it
At least until you make it
That ghost is just a kid in a sheet
I’m getting used to these dizzy spells
I’m taking a shower at the Bates Motel
I’m getting greedy with this private hell
I’ll go it alone, but that’s just as well.

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Por Eduardo Carli de Moraes. Acesse a página com todos os artigos sobre música.

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Lula, libertado após 580 dias de cárcere injusto, publica um Manifesto pela Cultura [Leia na íntegra]

Manifesto de Lula à Cultura

por Luiz Inácio Lula da Silva, 18 de dezembro de 201

“Pra eles cultura é coisa de comunista; pra gente é libertação.”

Em primeiro lugar, quero agradecer a cada um e a cada uma de vocês aqui presentes, e à classe artística que se mobilizou de todas as formas para que eu pudesse estar de volta ao convívio com o povo brasileiro.

Minha eterna gratidão aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura, dos mais famosos aos mais anônimos, e aos intelectuais comprometidos com a construção de um Brasil melhor, que novamente emprestaram sua arte e seu ofício a uma causa justa, como tantas outras vezes em nossa história.

Gilberto Gil e Chico Buarque, artistas que se mobilizaram em prol da libertação de Lula; o ex-presidente foi um preso político do Estado pós-demorático nascido do golpe de 2016 por 580 dias entre 2018 e 2019.

Tenho a consciência de que a luta de vocês não foi só pela liberdade do Lula. A luta de vocês foi, e será sempre, pela Liberdade, esta palavra que, na definição da Cecília Meireles,“o sonho humano alimenta, e não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”.

A democracia tem uma dívida impagável com os artistas deste país. Fui testemunha da resistência de vocês à ditadura implantada pelo golpe civil e militar de 1964 e ao famigerado AI-5, que o atual governo volta e meia fala em ressuscitar. Estivemos juntos nas inesquecíveis campanhas pela Anistia e pelas Diretas Já.

Juntamos nossas forças na tentativa de barrar o golpe contra a presidenta Dilma. Todos e todas vocês lutaram o bom combate, mas eu quero destacar o nome de uma artista que fez do seu canto o canto do povo brasileiro, e que certamente estaria agora aqui conosco, como sempre esteve quando foi preciso: nossa querida e saudosa Beth Carvalho.  

Eu hoje acompanho, com imensa admiração, a luta cotidiana de vocês contra a ascensão do fascismo no Brasil. Toda luta tem um preço, e vocês estão pagando caro, com a extinção do Ministério da Cultura, a redução brutal dos recursos para a área, a destruição de programas que tornaram a cultura acessível às mais diversas camadas da população brasileira, e a volta da censura, esse monstro que julgávamos extinto em nosso país.

Doze meses depois da posse, já se pode dizer que esse governo tenta colocar em prática um projeto de destruição da rica e diversificada cultura brasileira.

O Fábio Porchat (Porta dos Fundos) disse recentemente que “Bolsonaro não governa, ele se vinga”. Estejam certos de que a tentativa de desmonte da cultura promovida pelo atual governo é, em primeiro lugar, uma vingança contra cada um e cada uma de vocês, que ousaram cantar, escrever, encenar, filmar, grafitar, dançar e gritar “Ele Não”.

É também a vingança contra tudo o que a cultura representa para o ser humano, e que é justamente o que esse governo mais odeia e mais teme.

Cultura é vida, e o atual governo vive de promover a morte, com a insistência em colocar armas de fogo nas mãos da população, a liberação indiscriminada de agrotóxicos, o incentivo à devastação do meio ambiente, o desemprego que leva milhões de pessoas ao desespero, a naturalização do assassinato de mulheres, negros, indígenas e LGBTs.

Cultura é libertação, e o governo Bolsonaro é contra todas as formas de liberdade, inclusive de pensamento e de expressão. A liberdade que esse governo defende é a liberdade para os milionários ficarem cada vez mais ricos, com a retirada dos direitos dos trabalhadores e a destruição da Previdência.

A liberdade que esse governo defende é a liberdade de extermínio da juventude negra, que o Moro tentou legalizar sob o pomposo nome de “excludente de ilicitude”, mas que nada mais é que a licença para escolher o alvo de acordo com o endereço e a cor da pele.

Só o arraigado racismo institucional brasileiro, o mais profundo desprezo pelas vidas negras a criminalização da cultura da periferia podem explicar o massacre de nove jovens que saíram de suas casas para se divertir num baile funk, em Paraisópolis, e de tantos outros moços e moças que são mortos diariamente também nas comunidades do Rio e de todo o Brasil.

Este país carrega em seu passado a vergonha de ter um dia criminalizado o samba e a capoeira, que eram tratados como caso de polícia, da mesma forma que hoje criminaliza expressões artísticas populares como o funk e o grafite.

Festival Lula Livre, no Recife: o ex-presidente com Lia de Itamaracá

A elite brasileira sempre deu as costas à imensa riqueza cultural que brotou e continua brotando das periferias deste país. Ignorou o quanto pôde genialidade de Cartola, Dona Ivone LaraElza Soares, Lia de Itamaracá, de Clementina e Carolina de Jesus. Recusa-se a ouvir as novas vozes, sobretudo negras, de indignação e afirmação, que hoje se manifestam no ritmo do rap e na poesia dos slams que se consolidam pelo país afora.

Nós, ao contrário, sempre acreditamos e investimos na diversidade cultural brasileira. Tive a honra de contar com dois ministros da estatura de Gilberto Gil e Juca Ferreira. Enxergamos a cultura sempre em três dimensões: como direito de todos os brasileiros e brasileiras, como promotora do desenvolvimento social e econômico, e como expressão da rica e diversa identidade brasileira.

Assumimos, e cumprimos, o compromisso de combater a exclusão cultural de milhões de brasileiros e brasileiras. Garantimos a participação de artistas, gestores, produtores e sociedade na formulação e gestão das políticas para a cultura.

Nunca pedimos atestado ideológico a nenhum artista.

Multiplicamos por cinco o orçamento da Pasta, que era de apenas R$ 770 milhões em 2002, e chegou a R$ 4 bilhões em 2015.

Criamos o programa Cultura Viva, que reconheceu e investiu em cerca de 4.500 pontos de cultura, apoiando as mais diversas expressões artísticas, fosse nas periferias dos grandes centros ou nas distantes comunidades indígenas e quilombolas.

Criamos o Sistema Nacional de Cultura, a partir da articulação do governo federal com estados e municípios para a construção de planos, conselhos, conferências e fundos de cultura.

Criamos o Plano Nacional do Livro e Leitura, implementando ações como a formação de mediadores de leitura e a instalação de bibliotecas públicas em cada município brasileiro.

Criamos o Ibram, para cuidar dos museus. Fizemos o PAC das Cidades Históricas, para defender o patrimônio histórico nacional.

Criamos o Vale Cultura, para que o trabalhador tivesse o direito de alimentar também o seu espírito, comprando livros e ingressos para cinema, teatro e shows, entre outros bens culturais. Porque, como diz a canção dos Titãs, “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.

Criamos uma política eficiente e vitoriosa para o audiovisual brasileiro, apoiando desde a produção até a exibição de filmes para cinema e séries para a televisão, contando histórias do Brasil para o mundo e gerando milhares de empregos.

Financiamos nada menos que 306 longas-metragens e 433 séries ou telefilmes. Promovemos o talento e a cultura do nosso país, sem qualquer tipo de censura ou análise ideológica. Aliás, quem mais se beneficiou desses mecanismos de incentivo ao audiovisual foi a Globo, sem jamais reconhecer que foram criados nos governos do PT.

Hoje, o audiovisual sofre com o descaso desse governo. O invencível talento de nossos realizadores e realizadoras continua produzindo boas notícias, como o reconhecimento internacional de “A Vida Invisível”, o sucesso de “Bacurau” no Brasil e no exterior, e a pré-seleção de “Democracia em Vertigem” para o Oscar de Melhor Documentário. Mas milhares de trabalhadores e trabalhadoras altamente especializados são vítimas da tentativa de desmonte de um setor vital para a economia e para a construção da identidade brasileira.

Inimigo da diversidade, o atual governo tenta censurar a produção e a veiculação de obras cujas temáticas não estejam de acordo com o conservadorismo hipócrita que ele prega.

Inventa toda sorte de dificuldades para o lançamento do filme “Marighella”, que conta um importante capítulo da nossa história e até hoje não conseguiu estrear em seu próprio país.

Manda arrancar cartazes dos filmes brasileiros da sede da Ancine, numa absurda demonstração de ódio contra as obras de arte que o nosso cinema produziu ao longo da história.

Chega ao cúmulo de insultar uma das maiores artistas que este país já produziu, ignorando o fato de que a Fernanda Montenegro olhando 30 segundos para uma câmera fez muito mais pelo Brasil que o Bolsonaro em 30 anos sentado na cadeira de deputado.

Cobrindo mais uma vez o país de vergonha aos olhos do mundo, Bolsonaro tomou a inacreditável decisão de não assinar, junto com o presidente de Portugal, o diploma concedido a Chico Buarque, agraciado com o Prêmio Camões, o mais importante reconhecimento dado a um autor de língua portuguesa.

Não satisfeito na sua ânsia de ferir a alma do povo brasileiro, disparou ofensas contra alguns dos nossos artistas mais queridos, a exemplo de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Martinho da Vila e tantos outros.

Atitudes autoritárias como essas não deixam dúvidas de que este é o governo do avesso. Bota para cuidar da cultura os inimigos da cultura. Para cuidar do meio ambiente, os inimigos do meio ambiente. Para cuidar das relações exteriores, os inimigos da diplomacia. Para cuidar da educação, os inimigos da educação – sobretudo das universidades, essas extraordinárias e inesgotáveis fontes geradoras de conhecimento.

Bota machistas para cuidar das políticas para as mulheres, e racistas pra comandar a fundação que tem como objetivo promover os valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira.

Instituições caras à nossa memória, como a Casa de Rui Barbosa, um patrimônio nacional com 90 anos de história, são entregues a representantes da direita mais atrasada e fundamentalista que o Brasil já conheceu.

Eles são inimigos de tudo o que há de bom neste país. Eles só são amigos deles mesmos. Ou nem isso, porque não param de brigar entre si, um xingando o outro, um denunciando as falcatruas do outro.

O ódio que eles sentem pelo povo brasileiro fez com que eu passasse 580 dias encarcerado numa prisão política, por crime que até meu mais ferrenho adversário sabe que não cometi. Nesses quase 600 dias, senti na pele a importância da cultura na vida de um ser humano.

Eu renovava minhas forças ouvindo o “bom dia, boa tarde, boa noite presidente Lula” que os companheiros da Vigília Lula Livre entoavam todo santo dia. Mas havia os momentos de silêncio. E o silêncio, como ensina Guimarães Rosa, “é a gente mesmo, demais”. E o silêncio, na prisão, ecoa com ainda mais força dentro da gente.

Então eu lia, para espantar o silêncio e a solidão. Li para aprender, para adquirir novos conhecimentos, para sair de lá melhor do que entrei. Eu li para ser livre. Porque quando você voa nas asas de um livro, quando você tem nas mãos uma arma tão poderosa quanto uma obra de arte, não existe grade nem parede que possa te prender.

Quero que vocês saibam que estarei sempre ao seu lado. Eu me sinto parte da valente resistência que vocês – cineastas, músicos, dramaturgos, artistas plásticos, escritores, atores e atrizes, pessoas de todas as artes – sustentam contra essa verdadeira arquitetura da destruição.

É preciso lembrar que a censura imposta pelo atual governo não é apenas à cultura. É também ao conhecimento, o que explica o permanente ataque às universidades. É uma censura à ciência, como ficou explícito na demissão do presidente do INPE, Ricardo Galvão, que demonstrou, com base em dados sólidos, o crescimento acentuado do desmatamento na Amazônia.

Aproveito para parabenizar o Ricardo Galvão, que na semana passada foi eleito, pela revista britânica Nature, uma das dez pessoas que mais se destacaram na área da ciência em todo o mundo.

Portanto, não se entreguem, não abaixem a cabeça, não desanimem. Estamos juntos. Um país que deu ao mundo o Samba, o Cinema Novo, a Bossa Nova, a Tropicáliao Teatro do Oprimido e a arquitetura de Niemeyer não ficará jamais de joelhos.

Como na Alemanha nazista, querem destruir o Brasil começando pela cultura. Não permitiremos. Vamos resistir, como já resistimos a outros pesadelos. Estou de mãos dadas com vocês para defendermos juntos o legado da música, do cinema, do teatro, da literatura, de todas as expressões artísticas deste país.

Antes de concluir, quero fazer um agradecimento especial aos intelectuais brasileiros, homenageando um dos maiores pensadores que este país já teve, e que é hoje reverenciado no mundo inteiro. Paulo Freire nos deixou há muito tempo, mas suas ideias revolucionárias e amorosas para a educação e a construção de um mundo melhor continuam iluminando nossos caminhos, e tirando o sono daqueles que em pleno século 21 ainda acreditam que a Terra é plana.

Contra o ódio à arte e ao conhecimento, nós estamos armados com as luzes da civilização. Estou seguro, minhas amigas e meus amigos: mais uma vez, nós venceremos. Contem comigo.  

Viva a cultura. E viva a liberdade.

No filme “Kursk”, a tragédia submarina filmada por Thomas Vinterberg ilustra o conceito existencialista de “situação-limite” (Karl Jaspers)

“No one has forever… but I wanted more.”
Uma das frases na última carta antes da morte
escrita por um marinheiro no Kursk

A ninguém é concedida a eternidade. Esta verdade que soa banal – ou seja, o fato que qualquer um de nós é mortal e nunca ninguém terá um tempo infinito para viver – é diferencialmente apreendida em vários pontos do nosso fluxo de vida.

Na infância e primeira juventude, podemos ter a ilusão da imortalidade advinda da falta de experiência da morte alheia ou de vivência prévia de ameaça grave contra nossa vida própria. Mas é só um cachorro ser atropelado e morrer diante dos olhos da criança, ou o jovem ter que acompanhar a agonia senil de uma avó ou um bisavô, para que comece a raiar – frequentemente de forma traumática – a consciência da mortalidade.

Baseado no livro A Time To Die, de Robert Moore, e roteirizado por Robert Rodat (o mesmo de O Resgate do Soldado Ryan), o novo filme de Vinterberg tranforma o submarino naufragado Kursk numa espécie de palco trágico para encenar a Situação-limite daqueles marinheiros.

Situações-limite, segundo o filósofo alemão Karl Jaspers (1883 – 1969), são como “paredes com as quais nos deparamos, uma parede em que batemos e fracassamos.” (JASPERS, 1932, vol. 2, pg. 178) Situação-limite é aquela que o filme se interessa em capturar, através de uma narrativa fílmica potente e impiedosa: obrigados a encarar o fracasso, batendo os crânios contra as paredes da necessidade, sentindo na língua o sabor amargo da morte precoce, eles estão levados aos limites da condição humana e aos confins extremos do nosso sofrimento.

Confinados no fundo do mar, tremendo com o frio do Ártico, rodeados pela água que avança por todos os lados a ponto de molhar até os ossos, contemplam na cara o corte da foice iminente. A monstra invisível já afia suas lâminas para terminar de ceifar todas aquelas vidas naufragadas no nada.

Filósofo Karl Jaspers no seu lar em Basel, 1956

Em “Kursk”, filme que desembarcou nos cinemas do Brasil no início de 2020, aparentemente Vinterberg aderiu ao gênero do filme-catástrofe – já repleto de blockbusters sobre tragédias marítimas. Mas seu tom é muito mais próximo a do o clássico esplendoso Moby Dick, em que John Huston adaptou, na companhia de Ray Bradbury, o romance épico de Herman Melville em um dos grandes filmes da história da sétima arte.

Em Kursk, não há baleia em guerra contra Ahab, causando muitos rolês cheios de desventuras e que trituram toda a tripulação do Pequod, mas há sim a batalha humana contra “monstros de nossa própria criação” (como cantava Renato Russo em “Será” da Legião). Estes monstros que criamos – os submarinos bélicos lotados de torpedos e movidos a energia nuclear, por exemplo, e que podem acabar nos devorando.

Kursk é uma espécie de Titanic de teor existencialista, em que o complexo afetivo Vinterberguiano é radicalmente distinto daquele que anima o filme – melodramático e grandiloquente – do papa-bilheterias James Cameron. O filme de VInterberg se baseia em fatos reais: a catástrofe no submarino nuclear russo Kursk, em 2000, no mar de Barents, ao norte da Noruega, com 118 mortos. O submarino tinha sido batizado em homenagem a uma batalha épica da 2ª Guerra Mundial entre alemães e soviéticos.

Esse evento histórico que o filme evoca serve como ocasião para que uma poderosa narrativa fílmica nos leve a acompanhar a agonia claustrofóbica de marinheiros colocados diante da iminência da morte: “No one has forever, but I wanted more”, escreve o protagonista à sua esposa em sua carta de despedida. Um clima de Eclesiastes pulsa nesta frase que faz lembrar ditos como “ninguém é senhor do dia da própria morte, e nessa guerra não há trégua.”
Bíblia (Eclesiastes, 8-8)
Este “eu queria mais” também é prova de que o conatus pulsa mesmo em meio à agonia. Uma sabedoria que só ensinam as situações-limite?

O que é extremamente interessante nesta situação-limite em que o filme nos imerge é uma espécie de proliferação social da angústia extrema daqueles sobreviventes que no submarino, esperam por resgate enquanto agem desesperadamente para se manterem vivos. A angústia prolifera, é evidente, sobretudo sobre os parentes, que na cidade portuária preocupam-se desde as vísceras com os destinos de seus pais, de seus maridos, de seus irmãos, de seus primos. A angústia também prolifera para a hierarquia de comando da Marinha, obrigada, pela situação-limite, a tomar decisões urgentes.

O filme pode ser estudado em faculdades e cursos de relações internacionais pelo retrato realista que faz das dificultosas relações entre os russos e os britânicos – estes, com equipamento de resgate mais avançado, poderiam ter salvado a parcela dos marinheiros que sobreviveram à explosão. Não é nada louvável o retrato que se faz das autoridades russas, que teriam perdido o kairós (o momento propício) em que suas decisões poderiam ter salvado vidas, e isto em decorrência de uma reticência em admitir o despreparo tecnológico para lidar com aquela emergência.

No entanto, creio que é preciso ter uma boa dose de desconfiança em relação à crítica cinematográfica que instrumentaliza o filme para tacar pedras nos russos, ignorando os aspectos de tragicidade que esta situação-limite envolve. Isabela Boskov, da revista Veja, em uma resenha tão rasa que ocupa apenas um parágrafo, apedreja os russos com esta frase peremptória:

“Quase uma década após o fim da União Soviética, a Rússia demonstrou de maneira cruel que não perdera os velhos vícios do sigilo e da indiferença: em 12 de agosto de 2000, quando o supersubmarino nuclear Kursk sofreu uma explosão e afundou no Mar de Barents, o governo preferiu proteger seus segredos militares a dar uma chance real de resgate aos sobreviventes aprisionados na embarcação.” (BOSCOV, Veja, 2020)

O comentário de Boscov comete uma injustiça elementar: atribui à “Rússia” um equívoco de agentes públicos da Marinha deste país, num caso de generalização em que o tom condenatório parece querer abarcar todo um país (“a Rússia demonstrou de maneira cruel que não perdera os velhos vícios do sigilo e da indiferença”). Não se confunde o Estado e a população de um território; não se taca pedras na Rússia como um todo, quando os culpabilizáveis por decisões errôneas são funcionários públicos de uma entre centenas de outras instituições públicas deste Estado-nação.

O próprio filme é repleto de tensões entre os familiares dos marinheiros do Kursk e as autoridades militares e políticas responsáveis pela gestão da crise, mostrando que, se houve negligência ou indiferença pela vida humana, com os segredos de Estado sendo colocados acima da abertura imediata à colaboração internacional que poderia ter salvado algumas vidas, de modo algum se pode atribuir à “crueldade russa” (como faz Boscov em sua frase desastrada). A crueldade, caso fosse atribuída a alguns personagens, que se mostraram um tanto frios e indiferentes diante dos horríveis momentos de agonia dos marinheiros, incapazes de se colocarem na pele dos que estavam confinados naquela submarina infernaria, poderia até ser um juízo moral defensável. O que não é defensável é a atitude de Veja de veicular a ideia, em manchete sensacionalista, de que o filme fala sobre “a crueldade dos russos em meio a uma tragédia”.

É o tipo de resenha que, além de não contribuir em nada para uma apreciação mais aprofundada e nuançada da obra-de-arte, como é uma das funções do crítico, presta à produção encabeçada por Vinterberg o desserviço de atribuir a ele um intento difamatório contra toda a Rússia que não está no cineasta, mas sim na articulista da revista.

Fotografia do submarino russo Kursk – O Globo

Para explicar mais a fundo o que quero dizer, sublinho que uma das melhores cenas do filme é aquela em que o menino, após o funeral de seu pai, tem a mão a ele estendida por uma alta autoridade de hierarquia da Marinha (interpretado por Max Von Sydow) e recusa o cumprimento. Este russinho, recusando a vênia a este russão, já é prova inconteste da falácia absurda da generalização realizada por Boskov. Trata-se de um ato de desobediência civil que logo prolifera e é imitado por todos os outros órfãos que se perfilavam, no enterro de seus entes queridos, para receber os pêsames da parte daquele oficial que tinha fracassado em resgatá-los e trazê-los de volta com vida.

Lembrei-me na hora de uma das melhores cenas de The Handmaid’s Tale, episódio 10 da primeira temporada, em que a desobediência civil também é ilustrada quando as mulheres recusam-se a apedrejar uma outra mulher, a mando da mandona xerifa Tia Lydia. Pequenos gestos, grandes significados.

Além do significativo gesto de desobediência civil que o menino realiza diante do velho comandante, demonstrando uma revolta silenciosa diante da instituição que fracassou em salvar vidas resgatáveis naquela difícil situação-limite, o filme também dá o que pensar sobre o tema do sacrifício. Pouco depois da explosão, temos o exemplo de marinheiros dispostos a sacrificar seus últimos alentos e derramar suas últimas gotas de suor para evitar o que se chama, no filme, de “uma nova Chernobyl”. O filme de Vinterberg nos convida a pensar numa certa formação prévia que gerou nos marinheiros uma atitude de aceitação do sacrifício por um bem maior, ou pelo menos pela evitação de um mal pior.

 Em situações-limite, o apego tradicional do indivíduo por sua existência pode ser transcendido por um ímpeto de utilização produtiva de uma vida em iminência de acabar em prol do bem-estar de outros. Ou seja, a morte iminente não necessariamente instala um clima de egoísmo total, abjeto, brutal, mas abre a possibilidade também de atos de um heroísmo extremado, nos limites das capacidades físicas do organismo humano – como naquela cena em que os dois nadadores mergulham nas águas de frio ártico para irem resgatar os cartuchos de oxigênio que permitirão a sobrevida daquela pequena comunidade de desesperados e ofegantes sobreviventes temporários de uma catástrofe gigante.

A reflexão pós-filme que me domina é esta: quase sempre a morte vem nos pegar quando queríamos um tempo a mais para sorver a vida, por pior que ela seja. Aquele submarino serve de palco para o drama trágico da resiliência humana – e despontam ali momentos de intenso companheirismo. Mesmo que seja no singelo gesto de emprestar uma caneta ao companheiro que quer rabiscar suas últimas palavras antes de morrer. Seja no gesto heróico de não abandonar o companheiro desmaiado no mergulho e içá-lo a um patamar onde o ar seja respirável.

Até mesmo o humor se ergue na cara da morte – como a piada do ursinho polar mostra. Aqueles caras, tiritando com o gélido frio daquelas águas extremadamente geladas, aquecem-se por dentro com a graça do ursinho polar perguntando pra mãe: “se você é uma ursa polar, e meu pai também, e sou filho de vocês, isso faz de mim um ursinho polar, não? Então por que caralho estou com tanto frio?”O humor também desponta na última refeição – comida com tragos generosos da última garrafa de vodka -, onde sentir o bafo da bocarra aberta da morte já perto de nos devorar não consegue impedir o riso. É bela esta última gargalhada bêbada dos condenados. A situação-limite pode ter como consequência, se conseguirmos, um estouro de riso. Nosso fracasso é tão hilário, nossa espécie tão estúpida, nossa cooperação tão falha, nossas tecnologias tão traiçoeiras! É rir pra não chorar….

Thomas Vinterberg, o cineasta dinamarquês que iniciou o movimento estético Dogma 95 na companhia de Lars Von Trier nos anos 1990, nunca teve medo de frustrar as expectativas de uma platéia fissurada no happy end hollywoodiano (similarmente, Michael Haneke dedica-se a triturar nossas vontades de filmes leves, agradáveis e conformistas, crowd-pleasers de gostosa alienação industrializada).

Aqueles que acompanham a obra de Vinterberg já se acostumaram a esperar dele finais infelizes – que nos impactam justamente por um certo tom trágico, desesperançado. Assistir a “Submarino”, “A Caça”, “A Comunidade”, “Dear Wendy”, “Far From The Madding Crowd”, dentre outros de seus filmes, é expor-se a um artista disposto a realizar, através do cinema, um processo de provocação existencial que sacuda a apatia e a normose do espectador, fazendo-o considerar a vida através do viés meio dark, repleto de humor negro, que é uma das marcas do olhar Vinterberguiano. Se estivesse vivo, talvez o grande filósofo romeno Emil Cioran teria em Vinterberg um de seus cineastas contemporânos prediletos.

A Jasperiana situação-limite do Kursk, que envolve todos os personagens numa trama sinistra de decisões difíceis diante de mortes evitáveis, revela muito sobre a condição humana: a personagem de Léa Seydoux (que neste filme está loura e não com os cachos azuis que usou em Azul É a Cor Mais Quente, de Kechiche) é emblema das cicatrizes que os “fracassos” ocasionados pela confrontação insuficiente das situações-limite acarreta. As lágrimas que Vinterberg nos obriga a assistir caindo dos olhos desta mulher que acaba de enviuvar, com um filho pequeno para criar e um outro filho em gestação em seu ventre, é bem mais que melodrama apelativo. São lágrimas que nos convidam à reflexão sobre a precariedade, a fragilidade, o caráter radicalmente destrutível de nossas vidas e, portanto, de nossos laços afetivos. A resiliência do amor em face da catástrofe triunfal é um dos encantos maiores que reluz, como um Nabokoviano fogo pálido, na escuridão deste luto coletivo enquanto o filme se encerra.

O clima afetivo que domina Kursk, afinal de contas, é mesmo o que eu chamaria de uma vibe death-conscious, um sentimento de ciência da mortalidade, muito marcante em vários pensadores e artistas identificados com o existencialismo, e que o Nabokov sintetiza, recuperando a percepção de Lucrécio sobre os dois vazios – antes-de-nascer e depois-de-morrer – que estão nos extremos de uma vida humana: “nossa existência não é mais que um curto-circuito de luz entre duas eternidades de escuridão.” (NABOKOV)

Vladimir Nabokov

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 14/01/2020

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Fred Di Giacomo: “Seguimos insistindo nesse estranho vício de transformar dor e morte em arte.” || Entrevista à Casa de Vidro

A CASA DE VIDRO ENTREVISTA FRED DI GIACOMO

Em 4 vídeos, o escritor revela suas vivências, processos criativos e críticas à conjuntura contemporânea

Por Eduardo Carli de Moraes

Com 8 livros publicados, Fred Di Giacomo Rocha descreve-se como um “caipira punk”, nascido em Penápolis/SP, em 1984, mas que atinge em 2020 a plena maturidade enquanto artista cosmopolita e polímata – como o classificou a reportagem da revista Vice (EUA). De fato, Fred exerce sua criatividade irrefreável em várias áreas: escreve contos, poemas, reportagens, ensaios históricos, crítica musical etc.

Seu romance de estréia, o impressionante Desamparo (Editora Reformatório, 2018, 248 pgs), inspira-se no realismo mágico celebrizado por Garcia Márquez para realizar uma radiografia da colonização do interior paulista no começo do século XX, em obra que “une a precisão ágil do jornalismo com a prosa poética” e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.

Seu livro de estréia, Canções Para Ninar Adultos (Editora Patuá, 2012), foi prefaciado por Xico Sá, responsável pela seguinte síntese da prosa giacomiana: “Fred Di Giacomo faz um free-jazz que junta o repertório de vasta leitura com a velocidade fragmentada da sua geração.” Algumas das influências de Fred – autores como Bukowski, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Nelson Rodrigues – integram o time de personalidades literárias homenageadas nesta ilustração do livro:

Ilustração por Leonardo Mathias

Fred ainda encontra tempo para compor e tocar na banda Bedibê (com dois álbuns lançados: Envelhecer [2016] América [2019]); para investigar os caminhos da felicidade na companhia de sua esposa Karin Hueck no Projeto Glück; para colaborar como designer de games interativos (o mais famoso deles, Filosofighters, desenvolvido em parceria com a Superinteressante); e pra arriscar-se como crítico de cinema – como fez na provocativa análise do Coringa publicada pelo UOL. Já foi também coordenador pedagógico da escola e agência de jornalismo ÉNóis.

Um caipira em Berlim: Fred Di Giacomo, que tem várias vivências na capital da Alemanha, esteve recentemente lá participando de uma das mais importantes feiras literárias do mundo, a Feira do Livro de Frankfurt. Saiba mais na Farofafá @ Carta Capital.

Nesta entrevista exclusiva que Fred Di Giacomo concedeu à Casa de Vidro, direto de Berlim, explora o tema da descolonização e as ressonâncias de teorias e práticas decoloniais nas obras literárias e jornalísticas que escreve. Reflete também sobre o conceito de escrevivências proposto pela Conceição Evaristo. Fala sobre o cenário de literatura brasileira contemporânea, explorando as similaridades e diferenças entre escritores já bem conhecidos, como Férrez e Paulo Lins, em relação a artistas hoje em atividade e que estão marcando a produção literária do Brasil – gente como Micheliny Verunschk, Mailson Furtado, Ana Paula Maia, Anderson França, Luisa Gleiser, Itamar Vieira Jr, dentre outros. Fred garante que “das bordas do Brasil nasce uma revolução literária no hemisfério sul.”

Fred Di Giacomo, escritor multimídia e polímata, é hoje uma das vozes críticas e contestadoras mais potentes do jornalismo e da literatura no Brasil. Em artigo para a revista Cult, falando sobre o que significa fazer arte em tempos de Bolsonaro, com o incremento assustador das práticas de censura, silenciamento e auto-exílios, Di Giacomo escreveu: “Eles não querem que existamos, que escrevamos nossos histórias, que cantemos nossas canções e façamos nossos filmes. Mas mesmo que estejamos longe de casa e de nossas raízes, seguimos insistindo nesse estranho vício de transformar dor e morte em arte.”

A CASA DE VIDRO ENTREVISTA FRED DI GIACOMO
Assista aos vídeos:

PARTE 1 – Apresentação

PARTE 2 – Descolonizando a Cultura

PARTE 3 – Escrevivências e Renovações dos Cânones

PARTE 4 – Censuras e Artistas na Resistência

Créditos do vídeo: Edição por Eduardo Carli de Moraes. Trilha Sonora: Bedibê.

NUESTRA AMÉRICA LATINA E CARIBENHA – Entre a ofensiva neoliberal conservadora e as novas resistências

Por Renato Costa para A Casa de Vidro

O dossiê n.22 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (ITPS), de novembro de 2019, tem como título: “Nuestra América Latina e Caribenha”. Inspirado na síntese do I Seminário Latino-Americano – realizado em Buenos Aires e São Paulo, em maio do mesmo ano – e nas palavras do cubano José Martí – intelectual nacionalista que atuou na independência da ilha durante o século XIX e se tornou o patrono intelectual da nação caribenha – o documento denuncia o novo avanço do imperialismo capitalista, de ideologia neoliberal e paradoxalmente reacionária, sobre nosso continente.

José Martí retratado em pintura de Jorge Arche, 1943. Museu Nacional de Belas Artes de Cuba.

Assim se propõe a definir, de início, os “desafios para os movimentos populares e para o pensamento crítico” ao apontar o processo de recolonização dos países da América Latina (AL) através da hegemonia dos mercados financeiros internacionais, em detrimento das economias produtivas nacionais, em prejuízo das populações e dos ecossistemas da região. Para além do controle financeiro-especulativo, a ingerência externa e o entreguismo local levam à efetivação de políticas devastadoras, tanto no plano social quanto no ambiental, o que configura uma verdadeira ruptura dos pactos democráticos estabelecidos em nome da distribuição de renda, no continente mais desigual do mundo, e do equilíbrio ecológico, na região com a maior biodiversidade do planeta.

Diante da geopolítica de dominação e de ataques permanentes às soberanias nacionais, “novos processos de luta e mobilização” surgem em todas as partes, porém de modo generalizado no Chile, no Haiti e no Equador. Também na greve geral da Colômbia e na resistência aos golpes na Bolívia, Honduras e Brasil, além dos focos de resistência em todos os países da região.

Segundo o documento, o que há em comum nesses países é a corrosão da legitimidade dos governos que implementaram medidas neoliberais. Apesar disso, a ofensiva imperialista na AL estaria ainda longe de terminar, considerando que se apoia no controle do capital pelos grandes centros financeiros, na violência de Estado e na censura estabelecida pelos meios de comunicação corporativos hegemônicos. Os desafios aos movimentos populares e ao pensamento crítico estariam, portanto, pautados por esse “cenário complexo de uma batalha em curso” caracterizado por um ciclo regressivo de profundidade, com efeitos sociais e subjetivos impostos ao conjunto dos países, a serem superados também conjuntamente. Restaria estabelecer as especificidades do capitalismo contemporâneo para que se compreenda as estratégias e as dimensões de dita recolonização.

Promovida principalmente pelas corporações privadas com sede nos Estados Unidos, que pautam seu projeto imperialista e que direcionam a ação de um “estado estendido”, no sentido gramsciniano, direcionado pela oligarquia “liberal corporativa”, a ofensiva neoliberal não teria nenhum tipo de regulação política democrática, em qualquer esfera. Resta saber quais as formas de adaptação da resistência popular latino-americana e seu potencial de luta frente ao poder totalitário do capital financeiro globalizado, ou, segundo o texto do documento, “como repensar hoje as alternativas e a construção de um projeto popular de mudança”.

O documento do ITPS nos coloca, portanto, diante das tarefas de emancipação dos povos da AL, em seu desafio histórico de soberania democrática, inspirado pelo legado da independência do jugo colonial, pautada uma vez mais em pleno século XXI. Frente à recolonização, uma segunda independência seria necessária para defender a vida, a dignidade e a cidadania latino-americanas.

Leia em PDF o Dossiê n.22 do Instituto Tricontinetal de Pesquisa Social
O dossiê também inclui ilustrações em homenagem a grandes figuras de intelectuais-ativistas de Nuestra América