:: Thomas Nagel: digressões… ::


:: VISÃO A PARTIR DE LUGAR NENHUM ::
(The View From Nowhere, 1986)
– trad. Silvana Vieira; revisão Eduardo Gianetti –
ed. Martin Fontes

I. A DESCOBERTA

Entrar numa grande biblioteca é ao mesmo tempo fascinante e desolador: todo aquele imenso conhecimento ali reunido, e uma vida tão curta para explorá-lo! Quantas vezes já não passeei pelas prateleiras da Biblioteca Florestan Fernandes, na FFLCH, me sentindo tão diminuto quanto se estivesse diante do mar, ao pôr-do-sol, esmagado pela beleza e pela grandeza do que me é tão superior! Nem é preciso que tombem as estantes sobre a minha carcaça para que eu me sinta… esmagado. De quantos anos eu precisaria para explorar 10% que fosse desta grandiosa herança humana ali reunida? Pelo menos uns 800 anos (quem sabe 8.000…), e com a condição inalcansável de ter um cérebro que não se desgastasse, uma memória que não declinasse, neurônios que não morressem… Ah! mas pobres de nós, cujos miolos, depois de seis ou sete décadas de trabalho ou de preguiça, viram repasto para os vermes!

É preciso, pois, selecionar bem os pouquíssimos livros que teremos chance de ler neste tico de vida que nos é dado antes do Sono Do Qual Não se Acorda… E este sempre me pareceu um problema humano subestimado: como separar o joio do trigo, o lixo da jóia, no vasto acervo da cultura? No meu caso, creio que nunca soube proceder senão pulando de amores em amores. Um livro que eu amava me indicava um outro (ou vários…) que eu talvez fosse apreciar, numa teia de conselhos que me guiava neste labirinto: partindo de Sponville, por exemplo, visitei Montaigne, Spinoza, Lucrécio, Simone Weil, Alain, Jankélévitch… — autores por quem meu primeiro mestre não disfarçava sua dívida e admiração, e que eu também acabei por adotar como alguns dos prediletos do meu coração. E agora, partindo do que me aconselha outro dos que admirei bem cedo, cheguei a Thomas Nagel: através de Eduardo Gianneti.

“Em enquete do caderno Mais! [11/4/99], que pedia a alguns dos principais intelectuais brasileiros que listassem os 10 mais importantes livros do século 20, Eduardo Giannetti pôs Visão a partir de Lugar Nenhum, de Thomas Nagel, no topo, à frente de clássicos como O Mal-Estar na Civilização, de Freud, e A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber.” Descobrir que Nagel estava tão alto na consideração daquele que é um dos filósofos brasileiros que eu mais respeito foi aquilo que me decidiu a enfrentar a leitura (árdua mas valiosa) deste recente clássico filosófico, The View From Nowhere, lançado em 1986.

Gianneti, que tem uma das prosas filosóficas mais apuradas do Brasil (que prazer literário eu tirei da leitura de Auto-Engano ou Felicidade, livros não só muito inteligentes mas maravilhosamente bem-escritos!),  confessa sentir-se “diminuído” quando lê Nagel. “Ele me parece de uma clareza, consistência, rigor e elegância que eu jamais vou alcançar. Ele realmente me oprime, mas ao mesmo tempo me instiga, me provoca a ser melhor”, confessa meu xará. “Acho Nagel o mais importante filósofo vivo hoje no mundo.”

Descobrir que a Martins Fontes lançou por aqui uma prendada edição do livro de Nagel foi mais um sinal de que a obra tinha seu valor e carecia ser urgentemente devorada. Ainda mais por ter sido inclusa na preciosa coleção “Mesmo Que o Céu Não Exista”, que reúne alguns dos mais brilhantes filósofos contemporâneos da tradição materialista (Comte-Sponville, Marcel Conche, Michel Onfray…).

Feita esta introdução dos caminhos que me levaram ao livro (a cada encontro, uma via…), vamos ao que andei matutanto e refletindo a partir desta instigante (e recomendadíssima) leitura…

:: Nagel (II) ::

:: O BEM QUE NÃO SE FAZ ::


“Todo homem é culpado pelo bem que não faz.”

VOLTAIRE

Comecemos pelo mais urgente! Vivemos num mundo onde, em 2010, há ainda 930 milhões de pessoas passando fome, segundo as estatísticas (nunca exatas, mas sempre chocantes…) da ONU. Que esta situação obscena não seja sequer reconhecida por todo o gênero humano é uma das realidades mais espantosas para um filósofo que, como Nagel, deseja nos auxiliar a compreender as razões deste horror e encontrar os meios para tentar minorá-lo… Esta miséria, é claro, é um problema político, econômico, social, cultural e tudo mais — mas é também um espinhoso problema ético. E é pela via da ética que eu queria entrar na discussão da obra de Nagel. Ouçamos um exemplo bem concreto que ele dá:

“…a conta por uma refeição a dois num restaurante nova-iorquino moderadamente caro equivale à renda anual per capita de Bangladesh. Toda vez que saio para comer fora, não porque preciso mas simplesmente porque tenho vontade, o dinheiro que gasto poderia fazer um bem muito maior se contribuísse para aliviar o problema da fome. O mesmo se poderia dizer de muitas despesas com roupas, vinho, ingressos para o teatro, férias, presentes, livros, discos, móveis etc. Tudo termina se somando. Tudo resulta não só em um modo de vida como em uma grande quantia de dinheiro. Se uma pessoa se encontra próxima do extremo superior no contexto de uma distribuição econômica mundial muito desigual, a diferença de custo entre a vida a que ela provavelmente está acostumada e uma existência muito mais precária mas perfeitamente tolerável é suficiente para alimentar várias dúzias de famílias famintas, ano após ano.” (pg. 316)

Temos a tendência a achar que as cédulas e moedas que temos no bolso, se foram adquiridas dignamente pelo nosso trabalho, são nossas para gastarmos como bem entendermos. Ora, aplicando este raciocínio, se um CEO de uma grande multinacional quer comer caviar a 1.000 dólares o centímetro cúbico todas as sextas feiras no restaurante mais chique de Copenhagen, bem… o problema é dele e ninguém tem nada com isso, certo? Ora, num mundo em que um bilhão de seres humanos não tem o que comer, é sim um problema que deveria estar em primeiríssimo plano este: o que fazemos com nosso dinheiro, e o que é ético que façamos com as riquezas hoje existentes no mundo, tão grotescamente mau divididas…

Mais um exemplo bastante concreto, desta vez cinematográfico, me parece oportuno. Numa das cenas mais brilhantes do Examined Life, o excelente documentário da Astra Taylor, Peter Singer passeia pela 5a Avenida, em Nova York, um dos “points” do burgo, repleto de grifes carésimas que vendem sapatos ao preço do salário anual de uma família da Somália. As dondocas e os playboys, cegados pelo fascínio invisível que parece emanar das vitrines, carregam com orgulho suas compras, vaidosos por terem adquirido um símbolo de status e poder tão mágico quanto um terno Armani ou um Rolex folhado a ouro… O questionamento de Singer é óbvio: como é que pode estas pessoas serem tão cegas e indiferentes ao fato de que os 10.000 mil dólares que gastam adquirindo um pedaço de pano que algum babaca marqueteiro lhes convenceu que é très chic poderia salvar a vida de dúzias de criancinhas que estão sofrendo de subnutrição?

Assistam a cena que vale a pena! (Infelizmente, não encontrei legendas em português…)

Ora, me parece que esta é uma das mais elementares “lições de moral” que a gente recebe, ainda pivete, junto com o leite materno: ser um “bom garoto” é saber superar o egoísmo e dividir o pacote de bolachas com os amiguinhos. O curioso é notar que muita gente vivendo nestas sociedades consumistas, individualistas e espetaculosas do Primeiro Mundo (e também do Terceiro mundo colonizado culturalmente por ele…) permanecem, quando adultos, num estado de absoluto “infantilismo moral”: como o bilionário que, mesmo sabendo que um 1 bilhão de estômagos no planeta Terra roncam, não deixa este estrondoso barulho perturbar sua consciência limpíssima. E claro que não irá abdicar de alguns zeros à direita em sua conta bancária, o que representaria para ele a imensa catástrofe de cair algumas posições no ranking da Forbes dos homens mais ricos do mundo. Tadinho! Ao invés de sair na capa, ia ser relegado à página 50…

Seria quixotesco se não fosse obsceno.

Um dos diagnósticos possíveis sobre o porquê desta situação de miopia ética, seguindo os passos de Nagel, é uma espécie de inaptidão para a objetividade. Seria como um “vírus” epidêmico que afeta não o corpo, mas a “consciência moral” (ou falta dela…) em indivíduos em quem o ego-centrismo é tão tirânico que não lhes permite nenhum tipo de percepção lúcida e desperta da realidade objetiva do planeta. E aí chegamos talvez ao conceito central ao redor do qual Nagel vai construir a sua reflexão: a objetividade.

CONTINUA….

:: Nagel (III) ::

:: III. PRIMEIROS TATEIOS: O QUE É OBJETIVIDADE? ::

OBJETIVIDADE: Em sentido subjetivo: caráter da consideração que procura ver o objeto como ele é, não levando em conta as preferências ou os interesses de quem o considera, mas apenas procedimentos intersubjetivos de averiguação e aferição. Neste significado, a objetividade é um ideal de que a pesquisa científica se aproxima à medida que dispõe de técnicas convenientes. // Propriedade daquilo que vale independentemente do sujeito. P. ex., fala-se de objetividade dos valores ou do saber científico.

[Nicola Abbagnano, “Dicionário de Filosofia”. Pg 841.
Trad. de Alfredo Bosi. Ed. Martins Fontes.
Download da obra completa aqui.]


Vou tentar manter a coisa o mais concreta possível; a filosofia torna-se antipática aos leigos quando se perde em abstrações, como se perdesse o pé-no-chão e voasse em vagos céus conceituais. Imaginemos alguém muito pragmático que pergunte: “Há algum exercício prático que posso fazer para “treinar” a minha capacidade para a objetividade?” Um dos “métodos” que Nagel sugere é: tente olhar sua vida “como se a mirasse de uma grande altura”. Ou então, como eu prefiro sugerir, finja que há uma câmera de cinema que começa por filmar a sua cabeça, por cima, e que vai dando um zoom out constante, mostrando você sempre de mais e mais longe. Visto de cima de um poste. Visto do topo do edifício. Visto das mais baixas nuvens. Visto de um satélite que orbita o planeta. Visto de Marte. Visto dos limites da Via Láctea. Visto de fora da galáxia.

Ou então, terceira via, não tema embarcar numa onda sci-fi em seu auxílio: imagine como nosso sistema solar pareceria para alienígenas que fossem se acercando de nós em seu disco-voador, aproximando-se mais e mais. Pergunte-se, por exemplo: quão perto os ETs teriam que chegar para conseguirem alguma prova empírica de que há vida inteligente no planeta? Ou releia o início do clássico de H. G. Wells, The War Of The Worlds, que traz a eloquente imagem de que a humanidade toda pudesse aparecer para outras criaturas tão diminuta quanto são as bactérias que nós hoje estudamos com nossos microscópios:

“No one would have believed in the last years of the nineteenth century that this world was being watched keenly and closely by intelligences greater than man’s and yet as mortal as his own; that as men busied themselves about their various concerns they were scrutinised and studied, perhaps almost as narrowly as a man with a microscope might scrutinise the transient creatures that swarm and multiply in a drop of water. With infinite complacency men went to and fro over this globe about their little affairs, serene in their assurance of their empire over matter. It is possible that the infusoria under the microscope do the same…” (H. G. WELLS. Livro completo aqui.)

Não é difícil perceber, fazendo um experimento mental destes, e repetindo-o cotidianamente, que nossa auto-percepção começa a se modificar: a bexiga do nosso ego se desincha, como se alguns buracos a fizessem perder o ar que a preenchia, e vamos nos tornando cônscios do quanto somos diminutos e o quanto há algo de imenso lá fora do nosso euzinho e do nosso corpitcho. Tão cedo desaparecemos do quadro, tornados invisíveis pois demasiado pequeninos, assim que a câmera sobe pelos ares, olhando-nos cada vez de uma maior altura! Até que chega um momento que somos tão invisíveis para a câmera quanto um atómo ou um elétron é para os nossos olhos. Podemos até ser grandes em relação a um grão de areia, mas nós mesmos somos grãos de areia em relação com o Universo que nos contêm e que nos supera em imensidão de um modo aterrador, espantoso e fascinante…

Não assino embaixo do clichê que diz “uma imagem vale mais que mil palavras” (conheço alguns versos que valem mais que mil filmes…), mas apelo aqui para uma imagem por achar que isto tratá ainda mais concretude para este nosso tateio em busca do que significa “objetividade”. A fotografia abaixo foi tirada pela sonda Messenger de uma distância de 183 milhões de quilômetros em relação à Terra, com a câmera lá perto de Netuno…

Como explica Carlos Orsi, que escreve sobre astronomia para o Estadão,

“as duas bolinhas brancas perto do canto inferior esquerdo do quadro são a Terra e a Lua. Parafraseando Carl Sagan, todos os sábios, poetas, filósofos, tiranos, santos e genocidas; todas as pessoas que você conhece, ignora, respeita, despreza, ama ou odeia vivem, ou já viveram, suas vidas inteiras na bola maior. É lá também que estão todos os seus problemas, e esperanças. Todas as guerras e crimes, bem como todos os grandes e pequenos atos de sacrifício e generosidade já registrados em algum momento da história aconteceram lá. Já a bola menor marca a maior distância já viajada por membros de nossa espécie. É o limite atual da experiência humana.”

Acho que por enquanto é o suficiente em matéria de “exercícios psíquicos” de “treinamento para uma visão objetiva”. Suspeito que muitos leitores já sentem-se tentados a interromper a leitura “porque a coisa vai ficando mais e mais deprimente“. E, é claro, não é de se negligenciar este afeto poderoso que nos impulsiona a repudiar qualquer fato que destrua nossa auto-estima, que inflija uma “ferida narcísica”, para usar a célebre expressão de Freud… Esta é uma das razões que explica porque a objetividade é tão difícil, é tão rara; ela tem que ser conquistada, e numa luta contra nós mesmos e o que nossos corações desejam. Pois a história humana, se fosse vista por outros olhos que não os dos juízes interessados que somos, talvez não parecesse muito diferente do “épico aventuresco” da menor heroína de curta metragem de animação já filmada: a bonequinha de 9mm Dot, que “protagoniza” o “rolê microscópico” abaixo (dirigido por um certo “Sumo Science” usando uma nova tecnologia CellScope da Nokia):

:: O Centro Está em Toda Parte ::


:: O CENTRO ESTÁ EM TODA PARTE,
O CENTRO NÃO ESTÁ EM PARTE ALGUMA
… ::

Dia desses, em uma de minhas andanças errantes pela USP, deparei com algo que nunca tinha notado em 5 anos como FFLCHiano. Rodeando o monumento central da Praça do Relógio, que fica ilhado no meio de um lago, há uma espécie de calçada circular que margeia a água. Parece um singelo convite arquitetônico para que casaizinhos enamorados passeiem ao redor da obra que simboliza como que o coração do câmpus. Por estar num momento um tanto chatonildo, comecei ralhando, todo utilitarista e funcional: pensei no quão absurda é a idéia de um caminho circular, ou seja, que sempre conduz o babaca do andante ao seu ponto de partida, ao invés de fazê-lo progredir numa trilha que conduza a algum lugar. Não estava pensando como poeta… Depois pensei no quão absurdo é o fato do próprio Planeta Terra estar dançando pelo espaço numa órbita, e me lembrei espantado de que somos tiny tiny mammals, grudados ao solo de uma rochinha perdida nalgum pontículo do Universo, rochinha que gira em círculos ao redor de uma estrelinha fajuta, feito uma mariposa planetária ao redor duma lâmpida irrestivelmente sedutora…

Mas o que realmente me chamou a intenção foi aquilo que estava escrito no chão, em caracteres que acompanham a curvatura da calçada: No universo da cultura o centro está em toda parte. E na hora me voltou à memória a reflexão do Nagel sugerindo que uma “visão objetiva” da realidade teria que partir da admissão básica de que nenhum de nós é o centro da realidade. Quando fazemos de nosso “eu” um ponto-de-apoio absoluto, será que não caímos na alucinatória presunção noção de sermos centrais, quando tudo indica que nosso planeta não tem absolutamente nada de central nem no nosso sistema solar, nem no Universo como um todo? Não é bem mais plausível, até, que estejamos numa espécie de periferia universal, ou mesmo que não haja o mínimo sentido em falar num centro e numa periferia do Universo, que talvez se esparrame por aí sem nada que se possa chamar de um “miolo”, de um marco-zero absoluto?…

Bem, digressões saganianas à parte, para dar sequência a estes tateios em busca de uma compreensão do que seria “objetividade” talvez seja útil pensar agora: afinal de contas, ao que esta tal de “objetividade” se opõe? Ela é o contrário do quê? Contra que “vícios” e “equívocos” ela procura se engajar contra? Como eu entendo este conceito em Nagel, objetividade não se oporia à subjetividade, exatamente. Há uma série de antônimos que eu considero mais adequados: egolatria, solipsismo, delírio narcísico, auto-favoritismo

A busca pella objetividade manifesta-se pelo “cuidado” que alguém tem em não deixar-se cegar por seus interesses, desejos e preferências pessoais a ponto de ver uma realidade “distorcida pela fantasia”. É o contrário do narcisismo, e um dos remédios contra ele. Ao invés da auto-glorificação ou auto-endeusamento, a humildade de tentar reconhecer sua verdadeira posição no conjunto e estar em meio a ele num estado de serena ausculta. É como saber abrir-se para ouvir a música cósmica, por mais dissonante que soe, ao invés de ficar ouvindo só o som que produz a nossa flauta imaginária…

Em resumo: ser “objetivo” é ser capaz de alçar-se acima de seu euzinho e enxergar-se como parte do todo, como uma minúscula criaturinha contida no vasto universo, como um dentre muitos sujeitos sencientes e pensantes num universo cujo “centro” não está em nenhum deles…

Ícaro

Após a superação do teo-centrismo e do criacionismo, ainda faltou à humanidade superar o ego-centrismo! E uma das intenções de Nagel parece ser ofertar ao seu leitor um “método de auto-transcendência”, uma defesa da “possibilidade da ascensão objetiva” (pg. 114). Mas não esperem achar no livro uma espécie de “Manual Para Ícaros Iniciantes Sobre Como Alçar Vôo Para Além da Subjetividade”. Para Nagel, trata-se não de oferecer uma receita fácil para a conquista de uma “objetividade científica perfeita” (ele decerto não acredita nesta possibilidade…), mas antes de mais nada de combater, entre outras coisas, o solipsismo idealista: a lunática crença de que a minha perspectiva corresponderia à “Realidade”, e isto por ser eu o “centro-do-mundo”!

Ascender rumo à objetividade inicia-se com a percepção banal de que o universo não tem como centro nosso querido euzinho… E é decerto muito mais desconfortável e assombroso tentar aperceber-se da imensidão do existente e descobrir-se “como uma simples centelha senciente entre uma miríade de outras”, como diz Nagel (pg. 141). Peca por falta de objetividade todo aquele que deixa-se cegar pelo próprio desejo e por seus interesses pessoais, absolutizando sua perspectiva individual como se ela, ao invés de relativa e limitada, fosse nada menos que “o centro de tudo”.

Ora, se esta “ascensão objetiva” que Nagel nos convida a realizar é tão difícil, isto se deve também ao conforto que sentimos ao pensar que nossa paróquia esgota todo o Universo. É a atitude daquele que, alvo justo de escárnio, acha que o mundo é do tamanho do seu bairro. Ou da sua cabeça.

"Narciso" de Caravaggio

De modo que um dos procedimentos mais básicos nesta trilha rumo à conquista de uma percepção mais objetiva da realidade está no processo de procurar substituir nossas “concepções paroquiais” por concepções mais “universais”.

Se a objetividade é uma conquista tão árdua, acredito, é por ser tão potencialmente letal a tantas de nossas crenças mais caras, que dão sustento à nossa auto-estima e que nos ajudam a embelezar a “figura humana” a nossos próprios olhos.  Mas para a imensa maioria dos humanos, me parece, a felicidade conta mais do que a objetividade. Mais vale crer naquilo que nos consola e conforta do que procurar conhecer uma verdade que nos esmaga e nos humilha.

Estou convencido, aliás, de que as “feridas narcísicas” da humanidade que Freud elencou são todas, de certo modo, fruto de um aprofundamento do nosso conhecimento objetivo a respeito do planeta e do cosmos e de nossa posição no interior deles. A objetividade é uma montanha que escalamos com esforço, quase a contragosto, pois ela exige que larguemos pelo caminho as ilusões agradáveis e as confortáveis crenças com as quais nos munimos para não soçobrar na insignificância.

:: Eliade, Birman, Weber… ::

O MonteMeru numa representação budista


:: DESENCANTAMENTO E DESCENTRAMENTO ::

Pode parecer algo tão trivial e evidente que quase dá vergonha de enunciar: nenhum de nós é o centro do mundo (e só um lunático “umbigocêntrico” sustentaria tal presunção). Mas se formos dar um passeio pelo passado de nossa espécie e consultarmos a história das religiões humanas, nas mais diversas culturas, perceberemos uma notável recorrência do “simbolismo” do centro e da crença de diversos povos de que se encontravam de fato no “umbigo do Cosmos”.

Como explica Mircea Eliade, historiador das religiões dos mais eruditos e cuidadosos que eu conheço, “o homem religioso desejava viver o mais perto possível do Centro do Mundo. Sabia que seu país se encontrava efetivamente no meio da Terra; sabia também que sua cidade constituía o umbigo do Universo e, sobretudo, que o Templo ou o Palácio eram verdadeiros centros do mundo.” (O Sagrado e o Profano, pg. 43).

Os exemplos que Eliade colheu são numerosos, provenientes das mais diversas civilizações: “A capital do soberano chinês perfeito encontra-se no Centro do Mundo: aí, no dia do solstício do verão, ao meio-dia, o gnomo não deve ter sombra. É surpreendente encontrar o mesmo simbolismo aplicado ao Templo de Jerusalém: o rochedo sobre o qual se erguia o templo era o ‘umbigo da Terra’. (…) A mesma concepção no Irã: a região iraniana é o centro e o coração do Mundo. Tal como o coração se encontra no meio do corpo, o país do Irã é mais precioso que todos os demais países porque está situado no meio do Mundo…” (pg. 40-41).

O que Eliade ilustra também é a recorrência de “montanhas sagradas” e templos que são louvados como se estivessem numa posição privilegiada no Cosmos. “Numerosas culturas nos falam dessas montanhas – míticas ou reais – situadas no Centro do Mundo: é o caso do Meru, na Índia ou de Haraberezati, no Irã…” (p. 39). A tradição israelita segue na mesma senda ao proclamar que “a Palestina, sendo a região mais elevada, não foi submersa pelo dilúvio” (idem).

Os exemplos poderiam ser multiplicados, mas estes já me parecem suficientes para indicar a “obsessão” do homem religioso com a crença de que sua coletividade encontra-se numa posição central no universo, gozando do privilégio de ser sagrada em contraste com a imensidão de espaço “profano” que a rodeia.  Como conclui Eliade, “o homem religioso experimenta a necessidade de existir sempre num mundo total e organizado, num Cosmos”, e procura esta meta instaurando “roturas” no espaço físico que estabeleçam fronteiras entre o sagrado e o profano. Em outros termos: o homem religioso “consagra” certos locais, que passam a ter um valor simbólico para a coletividade; e este local “sagrado” de culto e contato com o transcendente contrasta com os perigos insondáveis do indomável domínio “profano”.

O processo de “dessacralização do cosmos” que Eliade descreve como  concomitante  ao alvorecer científico da modernidade (e que talvez seja outra expressão para referir-se àquilo que Max Weber chamava de “desencantamento do mundo” e Nietzsche de “crepúsculo dos ídolos” e “morte de Deus”…), põe radicalmente em cheque esta noção “umbigocêntrica” característica da visão de mundo religiosa. É compreensível que povos vivendo 2.500 anos atrás acreditassem que suas comunidades estavam no centro da Criação; afinal, não tinham inventado meios de transporte potentes para explorar o planeta e descobrir sua imensidão, nem sabiam que a Terra gira em torno do Sol; em suma: viviam em sua pequenina paróquia tomando-a por uma imensidão de modo semelhante a um abelha-rainha que considerasse sua colméia o centro absoluto de um cosmos (evidentemente gerido por um deus com antenas e produtor de mel…). Já nós, que nascemos na era do telescópio, do helio-centrismo, do darwinismo e da psicanálise temos mais dificuldade em levar a sério uma proposição tão suspeita de ser  uma expressão de um certo “nascisismo dos povos”. Olho pela janela do apartamento e sei perfeitamente que Santo André não tem nada de “Centro do Mundo”!

De modo que o “desencantamento do mundo” weberiano conduz também a um certo “descentramento do sujeito” (para usar uma expressão de Joel Birman quando versa sobre o legado de Freud). São processos correlatos. Quanto mais o sujeito conquista a capacidade de perceber o mundo de modo mais objetivo, mais sua crença em sua “centralidade” vai sendo minada e corroída. Não conheço exemplo melhor do que recorrer mais uma vez à noção freudiana de “feridas narcísicas” que vão sendo “infligidas” sobre a humanidade conforme progride seu conhecimento sobre si mesma. Como aponta Birman:

“…a psicanálise representaria a terceira grande ferida narcísica da humanidade, que teria sido precedida historicamente pela revolução copernicana na cosmologia e pela revolução darwiniana na biologia. (…) Se com Copérnico a Terra foi deslocada do centro do cosmo e inserida na posição secundária de ser um dos diversos planetas que giram em torno do Sol, com Darwin o homem perdeu o seu lugar privilegiado na ordem da natureza e se inscreveu nesta como uma espécie derivada de outras espécies na evolução biológica. (…) Para Freud, a psicanálise teria retirado a última ancoragem da pretensão humana, o último reduto da superioridade do homem, ao enunciar que a consciência não é soberana no psiquismo do indivíduo e que o eu não é autônomo no funcionamento psíquico. Vale dizer, o ser do psíquico se desloca da consciência e do eu para os registros do inconsciente e da pulsão, que passam a regular materialmente o ser do psiquismo.” (Estilo e Modernidade em Psicanálise, pg. 19-20. Editora 34.)

Obviamente, como Birman bem percebeu, estes “golpes” no narcisismo humano não dizem respeito somente à queda da nossa “auto-estima”, mas representa uma profunda reviravolta ética e religiosa. “Essa ‘humilhação’ tem um sentido ético e religioso, na medida em que está em pauta não somente a perda de um poder cognoscível privilegiado, mas o deslocamento do homem do cento do universo, da natureza e do psiquismo, onde gozava supostamente de um lugar privilegiado no mundo divino. Portanto, pelos três registros heterogêneos do descentramento, o homem teria perdido as benesses do divino e teria sido lançado à sua própria sorte, aos efeitos imponderáveis das forças cegas do destino…” (op cit, pg. 21).

É o preço a pagar pelo saber. Não é a própria Bíblia quem alerta o crente de que “quem aumenta seu conhecimento, aumenta sua dor” (Eclesiastes, I, 18)? Mas não é só a dor que aumenta conforme progride o conhecimento; a plausibilidade e a credibilidade da religião também despencam, em queda livre. De modo que Thomas Nagel afirmará também uma certa incompatibilidade radical e insuperável entre o anseio humano por conhecimento objetivo e as doutrinas religiosas que tentam persuadir-nos, acarinhando nosso amor-próprio, de “privilégios cósmicos” improváveis que supostamente teríamos. Deus, antes concebido como Criador e Centro do cosmos, é “exilado” para um pontículo minúsculo do universo: o cérebro de alguns mamíferos bípedes dotados de tele-encéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, que num certo momento do desenvolvimento histórico da espécie puderam imaginá-lo para seu próprio conforto e consolo. De modo que a objetividade conduziria bem mais à “humildade” humana diante de sua posição no imenso Universo do qual somos uma minúscula parte do que à presunção, típica das doutrinas religiosas, de uma suposta posição privilegiada/central do humano no cosmos.

Esta humildade decorrente da visão objetiva é aquilo que a crença religiosa tantas vezes renega e impede. “A solução religiosa nos confere uma centralidade emprestada ao nos tornar alvo do interesse de um ser supremo”, aponta Nagel (pg. 351). Mas é evidente que acreditar-se o “centro de atenção” de um deus (como se Ele estivesse lá em cima, numa nuvem, observando meus atos com profundo interesse, “cuidando” de mim como um Papai do Céu…) é demonstrar uma tremenda falta de objetividade. Pois, como Nagel aponta, a objetividade consiste muito mais num “desejo de viver, tanto quanto possível, no pleno reconhecimento de que nossa posição no universo não é central” (pg. 351). E Nagel vai ainda mais longe, sugerindo que é uma desonestidade a gente se considerar ilusoriamente como o “centro do universo” ou o “ponto” onde recai o holofote divino. “O ponto de vista objetivo é uma parte muito essencial de nós para que possamos suprimi-lo sem faltar à honestidade” (pg. 350).

:: nego-bão! ::


“I’m a bluesman in the life of the mind…”

“Pelas barbas do profeta!” É isto aí que eu chamo de nego-bão! Cornel West, o simpatia acima, é um pensador com black-power e voz de barman, amante dos Beatles, de Mayfield e do blues e que compartilha sabedoria como quem toca um solo de Bird. É uma espécie de Charlie Parker da filosofia, um Malcolm X da academia, um Hendrix da crítica dissonante e cheia de microfonia à sociedade contemporânea… É um prazer imenso ouvir um cara desses falando, uma mente esperta dessas operando, um vida tão intensa borbulhando!… A cena acima saiu de um dos documentários mais foda da década passada, o Examined Life, da Astra Taylor (que fez também o documentário sobre o Zizek que eu tô doido pra ver…).  Listen to the fella!!!

Ir no cinema blockbosta pra quê? Arrasa-quarteirão só arrasa… com o cérebro.
Baixae e… turn on, tune in and drop out!

:: Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo… ::

Goya

Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo,
E ao beber nem recorda

Que já bebeu na vida,

Para quem tudo é novo

E
imarcescível sempre.

Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta à flor como a ele
De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto às horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.

E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.

RICARDO REIS
19/06/1914

:: Um brinde a Carlitos! ::

Fiz uma resenha de “Tempos Modernos”, clássico filme de 1936 do Chaplin, lá no Depredando o Cinema. Confiram!