“O Andarilho” (Nietzsche, Humano Demasiado Humano #638)

"The wanderer above the sea of fog" - de Caspar David Friedrich (1818)

“The wanderer above the sea of fog” – de Caspar David Friedrich (1818)

“Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra e não um viajante que se dirige a uma meta final: pois esta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos para tudo quanto realmente sucede no mundo; por isso não pode atrelar o coração com muita firmeza a nada em particular; nele deve existir algo de errante, que tenha alegria na mudança e na passagem. Sem dúvida esse homem conhecerá noites ruins, em que estará cansado e encontrará fechado o portão da cidade que lhe deveria oferecer repouso; além disso, talvez o deserto, como no Oriente, chegue até o portão, animais de rapina uivem ao longe e também perto, um vento forte se levante, bandidos lhe roubem os animais de carga. Sentirá então cair a noite terrível, como um segundo deserto sobre o deserto, e o seu coração se cansará de andar. Quando surgir então para ele o sol matinal, ardente como uma divindade da ira, quando para ele se abrir a cidade, verá talvez, nos rostos que nela vivem, ainda mais deserto, sujeira, ilusão, insegurança do que no outro lado do portão e o dia será quase pior do que a noite. Isso bem pode acontecer ao andarilho; mas depois virão, como recompensa, as venturosas manhãs de outras paragens e outros dias, quando já no alvorecer verá, na neblina dos montes, os bandos de musas passarem dançando ao seu lado, quando mais tarde, no equilíbrio de sua alma matutina, em quieto passeio entre as árvores, das copas e das folhagens lhe cairão somente coisas boas e claras, presentes daqueles espíritos livres que estão em casa na montanha, na floresta, na solidão, e que, como ele, em sua maneira ora feliz ora meditativa, são andarilhos e filósofos. Nascidos dos mistérios da alvorada, eles ponderam como é possível que o dia, entre o décimo e o décimo segundo toque do sino, tenha um semblante assim puro, assim tão luminoso, tão sereno-transfigurado: – eles buscam a filosofia da manhã.”

Friedrich Nietzsche
(em “Humano Demasiado Humano” #638)

the wanderer - o viajante e sua sombra - pg 31

LEIA TAMBÉM / SIGA VIAGEM:

capa2DISSERTAÇÃO DE MESTRADO – “Além da Metafísica e do Niilismo: a Cosmovisão Trágica de Nietzsche” [Eduardo Carli de Moraes, UFG, 2013]

 

“…para todo homem, há alguma coisa que, no seio da infelicidade do outro, não poderia deixá-lo indiferente e suscita uma reação…”

O Olho de um Boi no Matadouro

“DIANTE DO INSUPORTÁVEL”
Por François Jullien (*)

Um rei duvidava de sua capacidade de fazer bem aos seus súditos. Para persuadi-lo disto, um sábio lembrou-lhe uma anedota a este respeito. Enquanto presidia a sessão na sala de audiências, este rei teria visto passar, ao pé dos degraus, um boi que estava sendo arrastado para o sacrifício. Não podendo suportar o ar amedrontado do animal, semelhante ao de um inocente que estivesse sendo conduzido ao suplício, ordena que o soltem. “Deveremos renunciar ao sacrifício?”, perguntam então os oficiais. “Impossível”, responde o rei, “vocês só têm que trocar o boi por um carneiro.”

Eis o que basta para provar, conclui o sábio, que esse príncipe é capaz de exercer a realeza. No entanto, a anedota contada parece, num primeiro momento, voltar-se contra ele: ao propor a substituição do boi por um carneiro, o rei se viu acusado de avareza; ele próprio, ao mesmo tempo em que se defendia dessa acusação, reconhece sua inconseqüência. Pois por que preferir um carneiro a um boi? O carneiro não era tão inocente quanto o segundo?

Caberá ao sábio esclarecer o que se passou na consciência do príncipe, que nem os outros, nem o próprio príncipe puderam perceber: se este último propôs, de maneira irrefletida, que se substituísse o boi pelo carneiro, é porque ele havia ‘visto’ o ar amedrontado do boi, e não tinha ‘visto’ o carneiro. Ele foi, pessoalmente, testemunha do terror de um: este terror surgiu inopinadamente sob seus olhos, e ele não pôde pensar em se proteger dele; enquanto o destino do outro animal permaneceu para ele apenas como uma idéia. Anônima, abstrata, e consequentemente sem efeito. Não aconteceu o face-a-face da presença – o olhar aberto sobre o terror do outro, e que depois não pode se fechar.

É por isto que o sacrifício do carneiro não poderia perturbar o príncipe; ele o situou de antemão na ordem das coisas. Ao passo que ver bastou para emocioná-lo, e sua lógica interior ficou por causa disso abalada. Por esta razão, sob a inconseqüência da sua conduta, da qual o príncipe crê que deve se envergonhar, manifesta-se de fato aquilo que faz o seu mérito: o príncipe não ‘suportou ver sofrer’, não pôde assistir com indiferença ao destino do outro – mesmo sendo o outro um animal. E esta reação imediata diante do insuportável bastaria para provar sua inclinação virtuosa.

A anedota é contada por Mêncio, filósofo chinês do século IV antes de nossa era. Este autor prossegue o episódio fazendo uma generalização: “O homem de bem, em relação aos animais, se ele os viu vivos, não pode suportá-los vê-los morrer; se escutou seus gritos, não pode suportar comer sua carne.”

“Para todo homem”, diz Mêncio, “existe alguma coisa que ele não pode suportar que aconteça com os outros”. Isto significa que, para todo homem, há alguma coisa que, no seio da infelicidade do outro, não poderia deixa-lo indiferente e suscita uma reação. Esta não-indiferença significa que ele não conseguiria permanecer tranquilo, ‘à vontade’, ‘em repouso’, diante de tudo o que acontece de mau aos outros (cf. a noção de ‘desconforto’ em Confúcio). (…) Do mesmo modo, para todo homem há alguma coisa ‘que ele não faz’, isto é, que ele não aceitaria fazer.

* * * * *

Há o “outro” e há o “eu” – dois indivíduos distintos. A questão inevitável é: o que é que permite ser sensível, em mim mesmo, ao que acontece com os outros, fora de mim, que faz com que eu me sinta tocado por eles? Um parágrafo do Mencius orienta-nos neste sentido (VII, A, 4): Mêncio diz que “todos os existentes encontram-se implicados em mim. Se me volto para mim mesmo e percebo que isto é verdadeiramente assim, não há alegria maior. Que eu me esforce para desenvolver esta consciência dos outros em minha conduta: para atingir o humano, não há nada mais próximo.” (…) O caminho para atingir o “humano” é: devo apenas me esforçar para desenvolver, em minha conduta, a consciência que tomo daquilo que afeta o outro. (…) O fato de que todos os existentes sejam considerados “implicados” em mim significa simplesmente – mas isto é imenso -que me encontro em relação radical com eles (ou seja, que se prende à raiz de meu ser…).

(…) A moral consistirá simplesmente em desenvolver por meio de minha conduta e tornar explícita em minha existência a integração que está no princípio da vida; mostrar-se humano, como se deve ser, é tornar efetiva em torno de mim esta sensibilidade aos outros – que é virtual em mim. (…) Mostrar-se humano é tirar sua consciência do entorpecimento em relação aos outros, ser receptivo ao que lhes acontece, sentir reforçado o seu laço vital com eles. Se o homem não se mostra mais humano, é porque sua natureza ficou entorpecida, sua consciência se paralisou.  (…) Cada consciência está continuamente em relação sensível com as outras, salvo quando ela se enrijece. Assim, não há por que se perguntar de que modo, na reação de piedade, pode apagar-se repentinamente a ‘barreira’ entre o eu e o outro. Pois tal barreira só é estabelecida de início por nossa construção individualista… Em outras palavras, o indivíduo existe, mas não é passível de ser isolado. (…) Ser humano é promover esta dimensão transindividual própria da existência; ser desumano é romper com ela.

* * * * *

(FRANÇOIS JULLIEN é um filósofo e sinólogo francês nascido em 1951, professor da Universidade de Paris VII e autor de muitos livros sobre ética e sabedoria oriental, entre eles “Fundar a Moral”, da Ed. Discurso Editorial, de onde extraímos o texto acima.)

“Earthlings – Terráqueos” 
(Filme completo e legendado em português)

“Todo homem está no mundo apenas uma vez…” (Nietzsche)

ponte

“No fundo, todo homem sabe muito bem que ele, como unicum (único), está no mundo apenas uma vez, e que nenhum acaso tão curioso misturará pela segunda vez, numa unidade como ele, tão admirável e colorida variedade.”

“Ninguém pode construir para ti a ponte sobre a qual precisamente tu tens de passar sobre o rio da vida, ninguém além de ti mesmo. Decerto que há inumeráveis atalhos e pontes e semideuses que te querem carregar através do rio; mas apenas ao preço de ti mesmo; tu te darias em penhor e te perderias. Há no mundo um único caminho que ninguém pode trilhar além de ti: para onde conduz ele? Não perguntes, prossegue. Um homem jamais se eleva mais alto do que quando não sabe para onde seu caminho ainda o pode conduzir.”

“O que, até agora, verdadeiramente amaste, o que atraiu tua alma, o que a dominou e ao mesmo tempo a felicitou? Coloca diante de ti a série desse venerados objetos, e talvez eles te proporcionem, por sua essência e sucessão, uma lei fundamental própria de ti mesmo. Compara esses objetos, vê como um complementa, alarga, sobrepuja, transfigura o outro, como eles formam uma escada, sobre a qual tu agora te elevaste para ti mesmo; pois tua verdadeira essência não jaz profundamente oculta em ti, mas imensamente acima de ti…”

F. NIETZSCHE (1844-1900)
Em “Schopenhauer como Educador”
(3ª Consideração Extemporânea)

André Comte-Sponville fala sobre as Festas de Fim-de-Ano: “Quoi de plus triste que de lire sa joie dans le calendrier?”

andré

 

Eis algumas sábias palavras do querido mestre André Comte-Sponville, onde muito do que sinto e penso sobre os festórios de fim-de-ano está descrito em belíssimas palavras, cheias de indignação e poesia, como que ecoando o que fica silenciado aqui no peito. O que há de mais triste do que essas felicidades obrigatórias, essas declarações de afeto impositivas e com hora marcada, esta estupidez midiática impondo um otimismo obrigatório, esta maquinaria publicitária incentivando o consumismo, esta papagaiada kitsch querendo nos fazer esquecer das opressões e iniquidades do mundo? “No início deste milênio, em um planeta abundante de riquezas, uma criança com menos de 10 anos morre a cada 5 segundos. De doença ou de fome. Em 2000, a FAO contava 785 milhões de pessoas grave e permanentemente subnutridas. São 854 milhões em 2008 e mais de um bilhão em 2010.” (JEAN ZIEGLER, Ódio ao Ocidente, Ed. Cortez, p. 29 e 132) Faço minhas as palavras de André Comte-Sponville, em um artigo do livro “Le Goût de Vivre” (pg 20-23), infelizmente ainda sem tradução para o português:

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FÊTES
André Comte-Sponville

“J’ai horreur de Noël, du Nouvel An, de tout ce cérémonial des Fêtes! Ces réjouissances à date fixe ont quelque chose d’exaspérant et d’angoissant tout à la fois. Mais quoi?

Bien sûr, il y a l’étalage du luxe, la débauche de nourritures (et les plus chères! et les plus lourdes!), avec ce que cela supposa d’indélicatesse ou d’indifférence vis-à-vis de ceux que la misère tient éloignés du festin, les enfermant, plus cruellement sans doute que jamais, dans la frustration. Une telle injustice, si complaisamment étalée, semble donner raison aux casseurs de nos banlieues, en tout cas elle aide à les comprendre.

Il serait indispensable que certains mangent du caviar et d’autres des oeufs de lump (et d’autres rien: combien d’enfantas morts de faim?), quand bien même il serait inévitable que ce soient toujours les mêmes qui s’empiffrent ou se privent, est-il indispensable aussi que l’opulence s’étale à ce point?

On m’objectera que Noël reste la fête des enfants. En effet. Cela fait deux mois qu’ils nous cassent les oreilles avec leus Père Noël ou leurs cadeaux, deux mois qu’ils sont dévorés par le manque, deux mois qu’ils attendent, pour être heureux, que ce soit enfin Noël! Quelle curieuse leçon d’existence nous leur donnons, qui laisse entendre que vivre c’est attendre et recevoir, quand nous savons bien, nous, les parents, que c’est l’inverse qui est vrai! Aucun cadeau n’est le bonheur, ni rien de ce qu’on attend ou reçoit, mais cela seulement qu’on fait ou qu’on donne, et point en cadeau, puisque l’essentiel de ce qu’on peut offrir, personne, jamais, ne pourra le posséder. Nöel, l’idéologie de Noël, est devenu comme un résumé des erreurs dont if faudrait débarrasser nos enfants.

Le mensonge sur Père Nöel – le premier mensonge, souvent, que nous faisons à nos enfants – résume tous les autres. Nous ne cessons d’enjoliver la vie, du moins nous essayons, et cet optimisme mensonger est plus triste encore que ce qu’il essaie, avec un succès inégal, de nous faire oublier. (…) Puis ce bonheur imposé! Pendant dix jours, toute la bêtise médiatique va nous seriner son optimisme de commande, et il faudra être joyeux par force! Quoi de plus triste que de lire sa joie dans le calendrier?”