:: A Imprescindível Escritura ::

“Há temas que se repetem, perguntas que se perpetuam; inquietações coincidem entre o escritor e seus leitores, entre quem dá algum depoimento e quem assiste. “Por que você escreve?” é a primeira e universal indagação.

Um escritor respondeu que se parasse de escrever morreria; portanto, escrevia para não morrer; uma mulher dizia que escrevia para não enlouquecer, outra revela que o faz para ser amada. Sou dos que escrevem como quem assobia no escuro: falando do que me deslumbra ou assusta desde criança, dialogando com o fascinante – às vezes trevoso – que espreita sobre nosso ombro nas atividades mais cotidianas. Fazer ficção é vagar à beira do poço interior observando os vultos no fundo, misturados com minha imagem refletida na superfície.

Tudo isso é jogo – contraponto da vida concreta, onde não me atraem as sombras mas o Sol; não vigio em quartos fechados, mas amo o vasto mar; não me esgueiro, mas, apesar de todas as fragilidades, avanço.

A literatura não emerge de águas tranquilas: fala de minhas perplexidades enquanto ser humano, escorre de fendas onde se move algo que, inalcançável, me desafia. Escrevo quase sempre sobre o que não sei.”

(Lya Luft, O Rio do Meio)

Outro dia me peguei na sacada, sentado no parapeito, debaixo do céu estrelado de Goiânia, pensando sobre a escrita: a importância dela pra mim e o papel central que ela tem (teve e terá) na minha vida. Foi bom e diferente meditar sobre isso enquanto olhava para o espetáculo do mundo (aquele que deveria ser o bastante para contentar o sábio, segundo Pessoa). Pois eu penso sobre escrever, quase sempre, escrevendo. Pois escrever é o meu meio de pensar, e de me obrigar ao exercício do pensamento. Quando me sento para escrever (e o faço quase todo santo dia), repasso a minha vida, desperto o passado de seu sono, descrevo o que me vai na mente, revelo a mim mesmo o que estou sentindo e matutando, como que numa constante reflexão sobre o presente.

“Escrever nos obriga a refletir”, disse o Gustavo Bernardo num dos textos que mais adoro (ver abaixo), e sempre gostei dessa idéia. Até porque quando pensamos-escrevendo vamos deixando rastros de nosso pensamento, vencendo assim, ao menos com vitória provisória, o império do esquecimento. Acho eu que todos temos pensamentos geniais de vez em quando; gênios são aqueles que não permitem que estes esvoaçem para longe como indeteníveis borboletas, que voem para paragens inacessíveis aos tentáculos da memória, e esforçam-se por fixá-los em poesia, sinfonia, romance ou filosofia. Merleau-Ponty: “O artista é aquele que fixa e torna acessível aos outros humanos o espetáculo de que participam sem saber”.

Deixar rastros do pensado e do sentido é essencial para que possamos reatá-los depois e construir com estas colchas de retalhos um tecido — que não é roupa para o corpo mas pode acalentar por dentro. Haverá outro modo de se criar um romance ou uma filosofia a não ser por este procedimento quase aranhístico de ir tecendo a teia do pensamento, palavra à palavra, dia a dia acumulando trabalho, com teimosia e ímpeto? Nem Hegel nem Kant tinham inteirinhas dentro de suas cabeçolas, por mais geniais que fossem, a Fenomenologia do Espírito e A Crítica da Razão Pura: estes foram textos lentamente tecidos através dos anos por estas infatigáveis aranhas filosóficas, que foram lançando sobre o papel as teias de seus pensamentos, entrelaçando-as e concatenando-as, até formarem estas imensas redes labirínticas onde podemos passear e nos perder por anos…

O que quero eu da minha escrita? Que valor tem isso que produzo? Meus textos prestam pra alguma coisa? — perguntas bumerangues que sempre retornam. E não sei ao certo como as respondo; acho que cada hora de um jeito. Sei que não gostaria mais de sentir que aquilo que escrevo não faz diferença, não tem consequência, não muda nada de nada no mundo. Sempre me lembro que “os livros não mudam o mundo; os livros mudam os homens, e estes mudam o mundo”. Mas jamais consegui sentir que minhas palavras mudassem alguma coisa além de mim mesmo, que sou uma partícula tão minúscula e insignificante do Grande Todo. Por muito tempo isso me bastou: o fato da escrita me servir como instrumento para o auto-conhecimento, a confidência, a meditação solitária, até mesmo um estranho tipo de “companhia”. Mas já não basta. Hoje gostaria de sentir que as minhas palavras tem alguma espécie de poder transformador objetivo, que são uma verdadeira partilha e influenciação inter-pessoal, que podem, lidas pelos outros, gerar dentro de outros seres alguns frutos…

Muitas vezes não gosto do que escrevo. Quase quero apagar e dizimar, eu que não sou disso, de rasgar e tacar na lixeira (tenho mania de guardar tudo). Queria escrever algo que soasse autêntico. Que trouxesse a simplicidade do real. Queria conseguir comover. Mas imagino alguém passando os olhos sobre minhas palavras e bocejando. E não queria causar sono nem enfado. Queria que quem lesse fosse além do texto que tem diante de si. Que não visse apenas letras, palavras e frases a serem decodificadas. Que não somente passasse pelo processo de desvendar os sentidos de cada uma das partes linguísticas e também de seu todo. Pois, se escrevo, não é por causa da linguagem. Não quero revolucioná-la. Nem mesmo acho que quero brincar com ela, apesar de ser muitas vezes jogo bem divertido. Queria que lessem sabendo que “do outro lado” do texto está um ser humano vivo, com um coração batendo, com sangue correndo nas veias, que inspira e expira, que caga e mija, que um dia vai morrer, que sofre e se alegra, que tem pessoas amadas e ódios,  amigos e desafetos, experiências e horizontes, traumas e sonhos, ousadias e medos. Que o texto fosse uma pequena janela, aberta no peito do outro, onde se pudesse espiar um pedaço de um mistério…

Não sou muito fã de me reler, também. Gosto mais da criação do que da contemplação do criado. Gosto mais da escrita enquanto ela está no seu processo de geração do que quando já está gerada. Acabado um texto, sempre penso que quero escrever um melhor, algum dia, e que pra isso devo prosseguir trabalhando.

Um pouco da minha “aversão” por ficar me relendo é porque várias vezes, ao me ler, me acho muito pretensioso. Sinto que escrevo querendo mostrar que sou inteligente, que sou sabido, que sei escrever direitinho, de modo que o texto pode acabar sendo considerado pelos leitores com antipatia: talvez me considerem um exibidinho, cheio de ostentações… Queria purgar minha escrita de todos os floreios e exibicionismos. Mas uma frase como esta anterior já me trai: usar o verbo “purgar” e a palavra “floreios” já denota que quero mostrar meu vasto vocabulário, meu conhecimento de verbos incomuns, minha capacidade poética… É como se eu caísse automaticamente neste vício, nesta armadilha, que suspeito que acomete tantos escritores: eles pensam mais em si mesmos, quando escrevem, do que nos outros, na sociedade, no mundo, na vida…

É um modo muito egoísta de lidar com a escrita quando aquilo que queremos, no fundo, com um texto que produzimos, é agradar a nosso próprio ego, conquistar a admiração dos outros, ter o nosso saco puxado e nosso talento elogiado. Mas somos todos egoístas, em maior e menor grau, e talvez os que sejam os menos egoístas de todos são aqueles que percebem seu próprio egoísmo com lucidez, se ressentem e se envergonham por se descobrirem tão auto-centrados, e põe-se em luta contra esta tendência…

Há aqueles, é claro, que não admitem seu próprio egoísmo, que se pretendem os filantropos da escritura, que dizem que com a escrita “só querem fazer o bem”… Já eu, confesso que nunca me senti muito “caridoso” enquanto escrevia. Por muito tempo pensei exatamente como um destes escritores que a Lya Luft cita e que dizia: “escrevo pois quero ser amado”. E creio que sempre senti que o conhecimento é pré-condição necessária do amor, ou seja, que amado só seria se desse o meu coração a conhecer. Pois então a escrita seria só um meio para que, através do conhecimento de mim que possibilita aos outros, o amor fique viabilizado — ao menos como um possibilidade realizável.

Mas ainda suspeito desta noção da escrita como “isca” para o amor — porque o que está em jogo, neste caso, é um desejo subjetivo do escritor que não deixa de ser um “fim individual” e, de certo modo, “egoístico”. O escritor ainda está utilizando a escrita para a conquista de satisfações para desejos “individualistas” seus quando procura fazer-se amado através daquilo que produz. Não que isso seja necessariamente um vício ou uma indignidade. Todos nós precisamos nos sentir valorizados pelos outros, ver refletido no espelho das pessoas com quem convivemos o nosso valor, sem o quê a vida perde todo o sentido. O amor é a única fonte de valor. E acredito plenamente que muita coisa bela e útil pode ser escrita por alguém que escreve querendo ser amado, já que o “agrado” ao outro, muitas vezes, passa por uma “tentativa de fazer o bem”, e tentar fazer o bem muitas vezes é fazê-lo de fato.

Mas há o problema da inautenticidade, do risco de falsidade, quando nossa atenção, no processo da escrita, está demasiado voltada para o desejo do outro. Corremos o risco de nos tornarmos pequenos Leonard Zeligs da escritura se queremos nos adaptar ao que supomos que o outro espera de nós, fabricando, quase “sob encomenda”, as palavras que prevemos que agradarão a este outro. Nenhum grande escritor, que eu saiba, tornou-se grande tentando escrever para agradar à mamãe… Sartre garantia: “não se faz boa literatura com bons sentimentos”…

Eu, tendo um blog, tenho uma vaga noção de quem é o meu público leitor, mas sei que ele é heterogêneo e múltiplo: meus amigos e conhecidos que convido diretamente à que me visitem, cada um deles uma pessoa diferente da outra; uma infinidade de gente que não conheço, que cairá na minha casinha virtual pelas vias mais esdrúxulas, às vezes, desde aqueles que pesquisam sobre “niilismo e a morte de Deus” até aqueles que procuram por “putaria XXX com ninfetas” no Google e caem neste blog por acidente (justamente porque escrevi esta frase aqui!). E sei muito bem que não há jeito de agradar toda essa galera ao mesmo tempo. Uma frase bonitinha e doce que talvez agrade à minha mãe talvez seja considerada como uma viadagem por um amigo meu. Uma cáustica chacota contra a religião que eu lançar pode despertar a admiração entusiástica de algum ateu, mas pode fazer com que um leitor crente se indisponha contra mim e me julgue um imprestável e um sem-vergonha. Algum pensamento filosófico complexo que eu expor pode ser muito elogiado por algum colega meu da FFLCH, mas pode parecer incompreensível, pretensioso e chatérrimo para alguém que só curta literatura ou que tenha preguiça de pensar. É a paralisia quase completa da criação, o famoso “writer’s block”, o que pode ser o resultado desta “neura” em tentar agradar a todos os membros deste monstro de centenas de cabeças que chamamos de Leitor — temível centopéia! Mas, ao mesmo tempo que não podemos nos submeter a ele, também não podemos ignorá-lo.

Há aqueles escritores, decerto, que diriam que “escrevem para si mesmos”. Muitos dos grandes, sabe-se, só tiveram suas obras publicadas postumamente. Fernando Pessoa publicou pouquíssimo em vida. Kafka mandou que seu amigo queimasse tudo o que ele escreveu depois que ele morresse. E quase metade do “Em busca do tempo perdido” saiu só depois que Proust já não era mais vivo. Borges dizia que escreveria mesmo se fosse Robinson Crusoé em sua ilha. E não é novidade para ninguém que muitos escritores encheram milhares de páginas de “Diários” que nunca entregaram para a leitura de ninguém, e que muitos destruíram obras que nunca foram lidas… Também me identifico com estes e sou capaz de assinar embaixo com todo ardor quando Borges diz que a “escrita é uma necessidade” e que ela nada tem de uma “tortura”, mas sim de um procedimento aliviante, libertador…

“I said a moment ago that I’ve dedicated my life to reading and writing. For me they are two equally pleasurable activities. When writers talk about the torture of writing, I don’t understand it; for me writing is a necessity. If I were Robinson Crusoe I would write on my desert island. When I was young I thought about what I considered the heroic life of my military elders, a life that had been rich, and mine… The life of a reader, sometimes rashly, seemed to me a poor life. Now I don’t believe that; the life of a reader can be as rich as any other life.” — JORGE LUIS BORGES (entrevista)

É uma noção falsa e ingênua, típica de quem não escreve, achar que a escrita só tem um sentido se for lida. Trata-se do mesmo argumento de quem diz que não há sentido em pintar um quadro e deixá-lo escondido no porão, compor uma canção e jamais fazer com que seja ouvida. Mas não acho que isso seja verdade. Escrever, pintar, compor (em uma palavra: criar) tem seu sentido, seu efeito, suas consequências, ainda que o produto criado não seja entregue a um leitor.

Primeiro pelo que eu chamaria de “Efeito Espelho”: a criação artística é uma exteriorização da interioridade humana, e é sempre mais fácil nós nos conhecermos através de nossas obras do que através duma “introspeção pura”. O auto-conhecimento é obtenível pela escrita-sem-leitor, sem dúvida alguma, quando se escreve com franqueza, quando se utiliza o papel como confidente, quando ele se torna um receptáculo dócil de nossas entranhas… Aquilo que escrevemos é um espelho daquilo que somos.

Segundo pelo que eu chamaria de “Efeito Catártico”, que é um tanto semelhante ao Efeito Espelho, mas que possui suas peculiaridades. Escrever pode ser o equivalente de uma “descarga de energia psíquica”, ou mesmo, para falar em linguagem psicanalítica, um modo de “libertar o reprimido da sua prisão inconsciente”. Mais uma vez, se revela aí o alto valor da escrita para o auto-conhecimento, ou seja, para a auto-modificação. Ninguém escreve impunemente: quando se escreve de verdade, a mente que escreve se modifica conforme a escrita progride em virtude do próprio processo psíquico exigido pela escrita.

Portanto, considero que é possível que a escrita tenha efeitos semelhantes àqueles de verbalizar suas angústias num divã psicanalítico. Claro que existem diferenças cruciais, que não é hora agora de tentar deslindar, mas que se centram na presença, no contexto psicanalítico, de um Outro que nos ouve, nos interpreta, nos julga e que com quem não conseguimos evitar ter uma ligação afetiva, por mais ambígua e ambivalente que seja. O papel não é um Outro: o papel só nos oferece a acolhida indiferente e neutra de um perfeito silêncio. Mas às vezes este perfeito silêncio é necessário para o nosso desnudamento. Mostrar-se para o outro, por inteiro, num strip-tease da alma completo, talvez seja mais difícil do que mostrar-se nu para si mesmo. Talvez.

* * * * *

Mas ver-se ao espelho e conquistar sua catarse não é tudo. E também suspeito muito destes que dizem só se interessar por escrever, independentemente de serem lidos ou não, por achar que há aí uma pontinha de solipsismo, um perigo de autismo, talvez um egoísmo mais intenso e vicioso do que aquele dos escritores que se manifestam desejosos de serem amados…

Pois usar a escrita como um instrumento solitário e achar que ela nisso se esgota é semelhante a pensar que a punheta é o cume da sexualidade. Punheta é ótimo, é claro, e longe de mim ficar dando uma de Papa (vocês sabem o quanto eu antipatizo com a figura, com seu papamóvel ridículo, sua pompa metida-a-besta, seus anátemas malditos). Mas, por mais gostoso que possa ser a masturbação, há um prazer maior, uma experiência de vida muito mais rica, só obtenível na relação com o outro.

As coisas não parecem ser mutuamente excludentes, me parece. Sempre escrevemos na solidão. Mas o produto desta escrita solitária pode nos ajudar a escapar desta solidão mesma na qual criamos. Escrever para construir uma ponte entre duas solidões, entre a minha solidão e mil outras solidões, para que estas solidões possam se comunicar e partilhar, para que pensamentos e afetos possam circular sobre esta ponte estabelecida, eis aí uma imagem que considero muito bonita, e que sinto que persigo, muitas vezes, com a minha escritura tecedora de túneis — “from my window to yours”, como diz a música do Arcade Fire.

Sinto que a escrita, para ser autêntica, precisa ser fiel à verdade daquele que escreve — e não digo fiel a uma Verdade com V maiúsculo. Ser fiel à sua verdade significa descrever, verdadeiramente, o que se sente, o que se sabe e o que se desconhece, os seus limites e seus potenciais. Não significa “revelar aos outros a Verdade”, o que é uma pretensão megalomaníaca típica dos profetas, dos messias, dos padrecos e de outros lunáticos do mesmo naipe, todos em delírio de grandeza. Penso em algo mais humilde e mais simples, até mesmo mais “subjetivo”, se quiserem usar esta palavra. Verdades como: é verdade que sinto medo e angústia quando lembro que vou morrer; é verdade que tenho das minhas inseguranças em relação ao meu valor como pessoa e tudo o que produzo; é verdade que não sei muito bem o que é a vida e que minhas respostas são tão poucas… Ou até mesmo: é verdade que minto muitas vezes, e que menti quando disse que estava tudo bem…

Mas pode muito bem ser verdade (quase sempre é) que quem escreve deseja, no fundo, ser amado. Ainda que não o confesse abertamente. Ainda que seja por seres específicos (pois é sempre por seres específicos que queremos ser amados, não por abstrações — que aliás não amam nada nem ninguém!). Não vejo mal nisso, como já disse, desde que isso não faça o escritor cair na inautenticidade.

:: A Imprescindível Escritura (pt II) ::

Minha relação com a escrita foi, desde sempre, marcada pela solidão. Quase poderia dizer: só escrevo por ser só. Ou melhor: se não tivesse conhecido a solidão, talvez nunca tivesse escrito uma linha. Desde muito cedo, me perdi no abismo da alteridade: aquele espaço, por vezes imenso, que separa um eu do outro — e que é tão maior quanto mais temos propensão à solidão. Há pessoas que jamais suspeitam que os outros com quem convivem possam ser diferentes das imagens que sedimentaram sobre eles; há outras que sempre souberam da precariedade destas mesmas imagens, que mais cegam do que elucidam…

Me lembro muito bem que foi preciso descer bem fundo no poço, chegar a uma deprê inaudita, para que eu me agarrasse à escrita. A metáfora é velha mas bem me serve: me lancei à escrita como um náufrago que se agarra a uma bóia. Eu, que na infância naveguei tranquilinho na caravelinha de Deus, ninado pelas ondinhas suaves dos contos-de-fada, vi o navio de todas as minhas certezas e crenças ir a pique; e só tive letras para construir uma tábua que me salvasse, que me pusesse a vagar, na vaga esperança desesperada de que me lançasse numa boa ilha…

A infância, quando se foi, não deixou o recinto de modo ordeiro e tranquilo — saiu como um beberrão ruidoso, cheio de ira, que quer derrubar a taberna depois de descobrir que os encantos prometidos não foram entregues, que era tudo propaganda enganosa… Talvez por isso me emocione tanto este lindo verso de um poeta francês: “Conhecemos a felicidade pelo barulho que ela faz ao sair”. Depois da infância, entrei na idade dos escombros. Até hoje, acho que a melhor coisa da adolescência é que ela acaba.

Se a solidão é um dos maiores impulsos que sinto me impelindo à pôr minha mente por escrito, é porque a solidão é inseparável de um certo “sentimento de desconhecimento” (meu velho conhecido!). Não sei se há palavra mais adequada pra isso, mas é a expressão que me ocorre para descrever aquela sensação, que talvez alguns de vocês já tenham conhecido, ao menos em certas ocasiões, de que quase todos ao nosso redor não nos conhecem direito. Uma sensação de que há profundidades escondidas em nossas “profundezas” que os olhos não penetram. Que há muito mais dentro de nós do que aquilo que falamos. Que cada ser é uma imensidão perto do pedacinho que se faz palavra e vêm à tona. Que o corpo é opaco, e que “dentro” dele, de certo modo escondido, ainda que seja escudado pelo crânio, posto detrás de peles e do tórax, encontra-se uma espécie de “ser verdadeiro” que jamais se manifesta quando nos olhamos no espelho, que jamais é visível aos olhos do corpo — talvez somente aos “olhos do espírito”…

Temo soar supersticioso falando em “espírito”, eu que me pretendo ateu e materialista. Friso que não acredito, de jeito nenhum, num “espírito” como o concebem as religiões: que subsiste à morte, que “habita” o corpo como um fantasma numa máquina, que fosse uma substância etérea e indestrutível que se evolará do cadáver e subirá ao Paraíso, se eu o merecer, ou será lançado nos fogos do Inferno, se não tiver sido um bom menino… Obviamente acho que este tipo de “espírito” não passa de lorota — uma consoladora invenção da imaginação humana em seu esforço milenar de negação da morte…

Mas, ainda que eu sustente que sou apenas um corpo, nada mais que um corpo, inteiramente perecível, que se desfará em átomos no momento da morte, cuja unidade estará para sempre perdida, ainda assim acho que há uma certa realidade na distinção entre “corpo” e “mente” ou “matéria” e “espírito”.

Claro que o cristianismo nos corrompeu fazendo deste dualismo um ponto de partida para uma pregação moral das mais pérfidas consequências, que condena tudo o que provem do “corpo” (donde a repressão sexual e o anátema contra todos os prazeres “da carne”), enquanto faz o elogio entusiasmado dos puros deleites do “espírito desencarnado”, capaz de lidar com as essências eternas e louvar puramente um Deus inocente, generoso e perfeito…

Mas, mesmo numa perspectiva materialista, há que se admitir: todo corpo tem uma interioridade. Todo corpo tem uma superfície e, por detrás desta, órgãos, moléculas, células, sinapses, reações químicas mil etc. Tudo ocorrendo de modo invisível a olho nu. Esta imensidão da interioridade do corpo é o que chamo de “espírito” — e que poderíamos chamar, também, de “mente”. Precisaríamos de palavras melhores, é claro: estas são muito feéricas, muito vagas — a elas falta carne.

Quando falo da solidão imensa que sentia e que procurei remediar com a escrita, falo desta sensação de uma interioridade pelos outros desconhecida — e que não têm modo de ser compartilhada a não ser através da linguagem. É o único meio. A gente não pode arrancar o coração do peito e jogá-lo sobre a mesa da cozinha, ao lado das panelas de arroz e dos copos de refrigerante, para que os outros o vejam e com ele se familiarizem. Nem pode-se emprestar o nosso cérebro para outrem, que o inseriria em seu crânio por um tempo, podendo sentir na pele a nossa experiência de mundo.

O corpo é jaula (“My body is a cage”, canta o Arcade Fire). E a invenção da linguagem, um jailbreak.

Pra mim, uma dos mais comoventes descobertas da psicanálise foi esta: as pessoas ficam doentes por excesso de silêncio. Ou seja: por falta de verbalização de suas interioridades. Que revolução mais curiosa na história da medicina se deu quando Freud e Breuer começaram a trazer a cura a pessoas imunes a qualquer tipo de medicamento somente pela via da conversa… Tanto que Anna O, nos primórdios da psicanálise, deu à ela um apelido clássico, inesquecível: talking cure. Há doenças cuja cura consiste basicamente nisto: na fala do doente, quando esta é acolhida por um outro receptivo, atento e bem-disposto.

O duro é essa segunda parte. É muito fácil perceber que a sanidade psíquica depende da verbalização da interioridade; o difícil, concretamente, é a conquista da escuta. Pois os homens não sabem se escutar — a história humana, mais repleta de guerras, rixas e balbúrdias do que de séculos de fraternidade e harmonia, o prova. Somos, em larga medida, surdos uns aos outros, só ouvindo o som que faz nossa própria umbigolítica barriga.

Fomos inventando aos poucos as relações sociais capazes de gerar diálogo, troca, partilha, escuta —- e elas ainda são precárias e inacessíveis a milhões. Do confessionário ao divã, a evolução foi grande. O crente que ia confessar-se a seu padre, na verdade, não verbalizava inteiramente sua interioridade, mas fazia apenas uma espécie de “inventário de seus pecados”, reais ou imaginados. E esperava da figura-de-poder a quem confidenciava estas suas sujeiras uma punição e uma garantia de perdão. Como num comércio no mercado negro, deixava-se na orelha do padreco uns 3 ou 4 pecadilhos, levava-se para casa a lição-de-casa duns 30 ou 60 pais-nossos, e de troco o devoto levava a certeza de estar de bem com os entes divinos…

(Não conheço nenhum pensador ou psicanalista que tenha refletido sobre o fenômeno do “confessionário” como uma espécie de cabine precursora do divã psicanalítico — fica aí a sugestão de um caminho interessante a ser seguido…)

O divã psicanalítico obviamente foi um baita salto avante. A pessoa — desde que fosse doente ou rica o bastante para poder passar por este processo — podia verbalizar “livremente” sua interioridade frente à escuta atenta do analista. Pus “livremente” entre aspas pois sabemos bem que não é fácil assim ir soltando a linguinha frente a um desconhecido, revelando a ele segredos que resguardamos até dos entes mais próximos. E não é incomum que pessoas que procuram uma psicanálise tenham “travas linguísticas”, dificuldades de colocarem em palavras aquilo que sentem. Mas ali, ao menos, não se tratava de confessar pecados a um padre investido do poder de punir e redimir, mas sim de compartilhar com um médico informações destinadas a trazer alívio mental e resolução de conflitos neuróticos. É um avanço, em especial se pensarmos que o analista é convidado a deixar de lado todos os seus preconceitos, fobias, juízos de valor, repulsas e simpatias para ouvir, com o máximo de “neutralidade” possível, aquele outro que vem a ele, dolorido por dentro, precisando de ajuda.

O problema é que aí também trata-se de uma relação que está sob um mau signo: o de um serviço. O psicanalista é alguém que oferece um serviço a um paciente. E cobra um preço por ele. E este serviço é realizado durante um certo tempo muito preciso – por exemplo, uma sessão de 50 minutos toda quinta-feira. E às vezes gostaríamos de desabafar por 4 horas num domingo à noite… E, se ligássemos para o nosso analista, ele provavelmente não nos atenderia, ou nos diria correndo que esperássemos a “hora certa”, ou então cortaria os laços, alegando que a “transferência” havia atingido graus perigosos…

Talvez por isso não haja nada — nem a religião, nem a psicanálise, nem a política — que seja capaz de solucionar de modo tão satisfatório a chaga da solidão humana quanto o amor e a amizade.

Quando se ama de verdade, e esse amor gera como seu espontâneo fruto uma intensa experiência de partilha, a nossa interioridade sente-se não só conhecida pelo outro, mas aceita e acolhida. Há escuta mútua, ainda que alternada, em que cada um vai enchendo-se do outro — e assim se plenificando. O abismo da alteridade dá lugar ao mútuo reconhecimento. O anonimato em meio à multidão cede espaço à companhia plena. É o que tanto se procura, sobre o nome de “intimidade”, e tão raro se encontra… Pois o amor “brilha mais por sua ausência” — mais desejado do que vivido, é para muitos mais uma busca que uma realidade, mais uma saudade do que um suprimento…

Se a solidão me impelia à escrita, também me impelia à procura de um amor — e estes dois caminhos são menos estranhos um ao outro do que talvez aparente. Tanto a escrita quanto o amor eram os barquinhos (no começo tão mau construídos! Tão melhores conforme foi passando o tempo!) que eu tentei usar para escapulir de minha ilha, deserta ilha… Era tudo jornada dorida atrás de cura pra solidão. E me vem uma grande alegria, que eu quase tenho coragem de chamar de felicidade, quando penso que consegui  por vezes aportar em outras ilhas, para muitas belas festas, me achando em boníssimas companhias, que me deixaram com o doce sabor de sentir que minhas pontes construídas serviram para frutíferas partilhas…

:: A Imprescindível Escritura (pt III) ::


“E S P E L H O”
de Gustavo Bernardo

“Dizem que as perguntas fundamentais são quatro. Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Afinal de contas, o que estou fazendo aqui?

Se quisermos as respostas absolutamente certas, então todas elas serão irrespondíveis. Porém, se admitirmos a resposta “andando”, esclarecendo um pouco ao mesmo tempo que se continua duvidando, então estaremos sempre respondendo – e sempre perguntando.

Quem sou eu? O que é “eu”? Talvez algo assim como um feixe de acontecimentos, em movimento permanente, em parte equilibrado, em parte compreensível, em parte enevoado, com todas as partes querendo e precisando equilibrar e compreender o todo. Esforço semelhante ao da bruxa madrasta: “espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu?”.

O maldito espelho sempre responde que sim. Sempre existe alguém ou algo melhor e mais bonito do que nós – pelo menos, aquele que um dia poderemos ser, ou aquilo que um dia poderemos falar ou fazer.

O primeiro livro que a gente lê é um dos primeiros espelhos. Onde se procuram respostas para as quatro perguntas e, em especial, para a primeira. Onde se encontra alguma coisa, mas não as respostas definitivas. Daí, alguns abandonarão a leitura para tentarem outra linguagem, enquanto outros continuarão lendo, continuarão procurando por ali. Até começarem a perceber que na outra ponta dos livros esteve um escritor, e que parte das respostas ansiosamente procuradas talvez esteja no próprio esforço de escrever as dúvidas.

Esta passagem é importante. Ler é um movimento extremamente passivo – mas um movimento, porque mexe com as imagens interiores, guardadas, reprimidas, acrescentado-lhes outras e transformando as que o leitor já traz consigo. Escrever, por sua vez, é um movimento extremamente ativo, fazendo imagens, trazendo outras ao mundo e modificando-lhes a forma – na direção de um estilo pessoal.

A relação entre escrever e ler, entretanto, vem sendo posta como mecânica, de ligação direta, levando à idéia de que uma pessoa que leia muito necessariamente escreve bem. Isto é falso.

A tese de que ler leva diretamente a escrever é defendida por aqueles que enxergam na falta de hábitos de leitura o grande problema da expressão do aluno e do povo. Como se hábito de leitura fosse a condição sine qua non para o sujeito se expressar. O raciocínio é entortado, tomando efeito por causa.

Não existe hábito de leitura porque a maioria do povo é analfabeta, ou semi-analfabeta. Não há bons livros por isso também, e pelo perigo que trazem os bons livros. Não há dinheiro para comprar pão ou livros porque vivemos num regime onde são muito secundários o direito de escolher e a liberdade de decidir, tanto quanto a de desejar. Falta de dinheiro e falta de interesse pelo mundo e pelos livros são sintomas de um grande desrespeito humano institucionalizado. A instituição do desrespeito, que “escolhe” por nós todos e a todos interdita o desejo, é o nervo da questão – e não a falta de tal ou qual hábito.

A expressão “hábito”, aliás, me parece plena de conotações behavioristas e fascistas. Transfere um problema humano para uma esfera mecânica, desprovida de consciência e de desejo. Os hábitos são transmitidos por imitação e por pressão, dispensando as pessoas de escolherem este ou aquele comportamento, dispensando-as do direito e dever de escolher e decidir por si.

Ler muito não pode levar a escrever. Pode levar a ler bem – o que será muito importante, claro. Ler bem, por sua vez, pode ajudar a viver, porque o sujeito se informa, se identifica, se transfere, principalmente se anima. Mas o que leva as pessoas a escrever é uma angústia diferente destas: a angústia de riscar um destino, interferir na história, se colocar no campo de jogo.

Logo, ler não é condição para escrever, mas sim munição para viver, e para escrever também. A atitude de ler é metonímia da vontade de entender o mundo. A atitude de escrever, por sua vez, é metonímia da pretensão legítima e transcendente de transformar o mundo.

Se me contra-argumentarem afirmando não existirem escritores sem leitura, concordarei com a evidência e discordarei desta lógica. De fato, não deve haver escritor que não leia, porque não há aquele que transforme o mundo sem entender o que se lhe oferece. Entretanto, a recíproca não é verdadeira. Há os que lêem muito e entendem um tanto, mas preferem não intervir, inertes e omissos inclusive por opção. Há os que lêem muito e entendem muito mas nunca escreveram nada. Quem escreve, então, sem dúvida lê. Mas quem lê, na dúvida, lê mais um pouco – e não escreve.

Num paralelo tragicômico, diria que o Brasil tem 120 milhões de espectadores de futebol e pouquíssimos jogadores decentes do mesmo esporte. Num paralelo patético-acadêmico, lembraria aos professores de Português quantos procuramos os cursos de Letras pensando alimentar uma vocação difusa para a Literatura, mas, de tanto ler as obras capitais e as resenhas fundamentais, encostamos a pena para ler mais e mais, desenvolvendo uma brutal auto-crítica, melhor dizendo, uma poderosa auto-censura que enferruja a pena – que enferruja o desejo.

Portanto, ler e escrever são esforços na direção do espelho – esforços diferentes. A pergunta de quem sou eu permanece. E o ato de escrever, como sabe quem faz diário, é outra forma de tentar responder.

Quem faz diário escreve para se afirmar, para se equilibrar frente aos desafios do dia – desafios propostos pelo outro, ou pela rua, ou mesmo por suas dúvidas mais íntimas. Escreve para se responder quem é. Ao fazê-lo, empresta uma forma a sentimentos confusos, e a partir de então descobre o que sentia, pois o gesto de escrever lhe disse.

Neste sentido, escrever tem a ver com mágica. Como fazer do papel um espelho, mas um espelho às nossas ordens. “Espelho, espelho meu, existe alguém mais angustiado do que eu?” Ao escrever, me revelo – revelo a mim mesmo que posso organizar as palavrinhas, donde que posso organizar o que as palavrinhas nomeiam, e donde que posso organizar, construir, montar o mundo novo também. Revelo-me a extensão do meu poder, ou seja: a extensão dos meus possíveis. Em suma, a extensão da minha utopia.

O ato de escrever, antes de tudo, é um legítimo ato de auto-afirmação. E “auto-afirmação” não é coisa ruim, pejorativa, como dizem os que não gostam de ver os outros se afirmando. A afirmação de si mesmo é a primeira condição para responder à primeira pergunta. Quem não se afirma é o oprimido, é o submisso, o que encontra caído no chão à espera das ordens.”

(in: “Redação Inquieta”)

:: O Filho Eterno ::

“O inesgotável poder da mentira se sustenta sobre o invencível desejo de aceitá-la como verdade.”

Um livro muito interessante pra meditar sobre “questões da escrita” é “O Filho Eterno”, de Cristovão Tezza, um dos romances brasileiros mais premiados desta década (levou o Jabuti de Melhor Romance em 2008, por exemplo). Eis um livro que transpira autenticidade: o autor não teme revelar sentimentos “sórdidos”, ainda que correndo o risco de ser chamado de “cruel e perturbador”, como quando narra seu intenso desejo de que o filho recém-nascido com síndrome de Down morresse na maternidade ou não atingisse a idade adulta.

Está aí uma confissão que soa até um tanto “brutal”; uma revelação que a maioria de nós seria incapaz de fazer, muito menos de escrever num livro que circulará em milhares de mãos. Quase todo mundo, quando deseja a morte ou o mal de alguém, esconde bem escondidinho este desejo, sem querer revelá-lo por suspeitar que o outro nos julgaria uns monstros, uns sanguinários. E há sempre algo de chocante, e até de comovedor, quando uma pessoa tem a coragem de fazer uma confidência que não é nada lisonjeira para si mesma, ou seja, quando “revela um podre” que qualquer um desejaria ocultar com forte escudagem.

Minha sensação, aliás, é a de que “O Filho Eterno” é um livro tão marcante, apesar da crueza com que é escrito, pois ficamos com a impressão de estarmos ouvindo um homem que se preocupa pouco com a beleza e muito mais com a verdade. Ele prefere a revelação crua e sem floreios de uma verdade feia à invenção de uma beleza ilusória. A literatura de Tezza, que neste caso se confunde com a auto-biografia e o livro-de-memórias, parece querer compartilhar uma experiência-de-vida verdadeira, com tudo o que ela inclui de obsceno, de trágico, de feio e de deprimente, sendo que a preocupação em “agradar” ou consolar o leitor praticamente inexiste.

Este é um livro tão forte pois ele não tem piedade de nós, não tem pudor de nos fazer sofrer e não teme lançar em nossa cara verdades que talvez nos soem um tanto intragáveis, mas que chegam ao nosso paladar com um gosto verídico inegável. “O Filho Eterno” não tem uma gota de melodrama ou de pieguice e se desenrola numa “atmosfera narrativa” que é o exato oposto do kitsch. É literatura radicalmente anti-kitsch, e que leva este procedimento mais longe, talvez, do que Milan Kundera jamais conseguiu fazer.”O kitsch exclui de seu campo visual tudo que a existência humana tem de essencialmente inaceitável”, escreveu o grande autor tcheco no clássico “A Insustentável Leveza do Ser”. Tezza, em levante contra esta exclusão, leva a extremos vertiginosos o processo de inclusão no campo de consciência do leitor de tudo aquilo que o kitsch rejeita.

Se, lendo romances idealistas e água-com-açúcar, nos dizemos à toda hora  que “isso é bom demais pra ser verdade!” (ecoando um sábio dito popular), lendo Tezza podemos nos pegar dizendo o oposto: “isso é horrível demais para ser mentira…”.

Entra em nossa consciência, ao lermos palavras tão saturadas de veracidade sem condescendência, a certeza de estarmos lidando com fatos crus, ainda que desagradáveis, que exigem muita coragem para serem revelados. Como esta: existem crianças que nascem deficientes e existem pais que desejam a morte dos próprios filhos ao serem apresentados à criança, talvez um pouco pelo choque de terem esperado um anjinho e terem recebido um monstrinho… O descompasso que há entre as expectativas do pai, antes do nascimento de seu primogênito, quando desejava ser um “excelente” paizão, e a realidade com a qual se choca, que o obriga a confrontar-se com o lado pior de si mesmo, dá o tom de uma obra marcada por uma certa vertigem, mas uma vertigem enfrentada com uma audácia e uma lucidez incríveis.

Caso o leitor se aproxime destas páginas com a expectativa de se edificar com belas lições sobre a beleza da paternidade e sobre o amor incondicional dos pais pelos filhos, certamente se desiludirá — ou mesmo ficará chocado. Tezza não faz o mínimo esforço de auto-celebração ou marketing em causa própria. Jamais tenta nos convencer de que é um excelente pai repleto de nobres sentimentos. Pelo contrário: em vários momentos, é a VERGONHA o que lhe domina o coração e é sobre ela que ele reflete de modo bem incisivo. “A vergonha é uma das mais poderosas máquinas de enquadramento social que existem”, escreve Tezza, e “regula do catador de lixo ao presidente da República” (94).

Não faltam descrições de ocasiões em que Tezza confessa que teve vergonha de contar pros amigos e conhecidos que possuía um filho “mongolóide”; e é curioso notar que seu romance só foi escrito e publicado depois do filho ter atingido 20 anos de idade. É como a irrupção nas páginas de uma longuíssima vergonha secreta, de uma história que foi proibida no universo interior por décadas, de uma experiência vivida que por muito tempo ele teve vergonha de compartilhar, que manteve recoberta pelo silêncio e pela repressão, e que finalmente ganha direito à expressão. Para sorte do escritor e de todos os seus leitores.

* * * * *

Óbvio que há uma certa audácia em “revelar os próprios podres”. O procedimento padrão, é evidente, é escondê-los. Cada um de nós procede de modo kitsch em relação a si mesmo, mantendo em armários escuros seus crimes de pensamento e seus vícios inconfessáveis, oferecendo ao outro, para usar um termo de Pessoa, só “um jardim” de si mesmo, todo florido e podado.

Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és –
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês…


FERNANDO PESSOA

Tezza, realizando na arte o que no mundo seria considerado como um “comportamento anti-social”, rasga o véu da polidez, puxa todos os tapetes que escondem suas próprias sujeiras e vêm para frente do palco para nos mostrar a nudez de sua verdade. Ler “O Filho Eterno” nos permite conhecê-lo muito bem pois nos dá a chance de vê-lo também em seus piores defeitos, que ele não só não procura esconder, como expõe de modo explícito.

No final, pelo menos no meu caso, não senti “admiração moral” pelas atitudes de Tezza como pai (o que o próprio autor talvez julgaria uma reação absurda) ou como esposo (o romance, aliás, peca gravemente por omitir quase completamente a figura da mãe, sendo que o relacionamento de Cristóvão e sua esposa fica completamente nas sombras…). Poderia ter sido tão frutífero que este livro fosse não somente o relato da experiência de um pai, mas também de um casal tendo que lidar com a difícil vivência de criar um filho deficiente e com as inevitáveis modificações que isso certamente causou no relacionamento deles.

A admiração que senti foi não “ética” ou “literária”, mas sim uma admiração pela amplidão da franqueza que Tezza teve a ousadia de adotar. Este é um livro de muita boa-fé. E boa-fé significa, muitas vezes, saber contar aos outros as verdades sobre nós mesmos que nos desagradam. Tezzar demonstra em vários momentos tendências auto-depreciativas; por vezes sente-se quase que suas palavras são cilícios com os quais ele se auto-flagela, purgando sua culpa por ter sentido coisas tão “feias”. Não há muito “narcisismo” para ser encontrado na personalidade de Tezza além do narcisismo ferido, em frangalhos. E fico com a impressão de que o livro demonstra como o “narcisismo” pode ser superado através da confissão — quando esta é de uma franqueza que vai até os limites do obsceno.

Não ficaria mal dizer, pois, que Tezza é um “terrorista lírico” — nome de um dos romances anteriores do autor curitibano. Mas ele não explode prédios com dinamite; explode pudores com palavras. Seu alvo é sempre a mentira, o disfarce, a omissão, a pose de que se é melhor do que se realmente é.

As “conclusões filosóficas” que ele tira de uma experiência tão dolorosa também não são nada consoladoras e certamente ferem as convicções dos panglossianos, otimistas, crentes na Bondade de Deus e na Beleza da Criação. “O Filho Eterno” é um livro visceralmente anti-religioso, o que se escancara nas seguintes palavras, claras como um punhal: “Não gosto de padres, pastores, profetas, rabinos, milagreiros; sofro de anticlericalismo atávico” (pg. 51); “sou alguém completamente desprovido de sentimento religioso” (pg. 16). Ter um filho com deficiência mental já é um forte argumento contra a idéia de uma “criação divina”, e este pai não é diferente. O fato do “determinismo cromossômico” é somente “mais um passo no processo de desdemonização do mundo” por revelar a “natureza arbitrária, absurda, lotérica, errática dos fatos” (49).

A lucidez impiedosa do olhar de Tezza faz com que ele veja como tapeação e auto-engano a tentativa de “procurar sempre uma justiça secreta em todas as coisas para fugir do peso terrível do acaso que nos define” (pg. 43). Ele tem que admitir pra si mesmo que seu filho não é  nem obra divina,  o que é pra lá de evidente, nem uma “punição” que lhe enviam os céus por algum suposto pecado cometido.  Olhando para o filho Felipe, em seu “fechamento misterioso em si mesmo”, separado do mundo por “aquela barreira intransponível diante da alma alheia” (pg. 117), só lhe resta admitir que esta criança “jamais terá cérebro suficiente para inventar um deus que a ampare” (pg. 57). Mas no pai o processo de aceitação deste “universo desencantado” e regido pelo acaso é difícil e dura, mas não desprovida de vitórias e superações que, no meio de tanta desolação, nos comovem mais que qualquer pieguice.


:: a poesia esmagada pela música? ::

DO DESESPERO DOS POETAS FRENTE AO PODER DA ORQUESTRA

“…there came an epoch when poetry felt itself fade and weaken before the energy and resources of the orchestra. The richest and most resounding poem of Hugo is very far from communicating to its hearer those extreme illusions, those thrills, those raptures and, in the more or less intellectual sphere, those feigned lucidities, those models of thought, those images of strange mathematics made real, which the symphony releases, hints at, or thunders forth, and which it draws out into silence or annihilates at one blow, leaving in the mind the extraordinary impression of omnipotence and deception… Never before, perhaps, have the trust that poets place in their particular genius, those promises of eternity which they have received since the childhood of the world and of language, their immemorial possession of the lyre, and the leading rank they imagine they occupy in the hierarchy of servants of the universe, appeared so directly menaced. They came away from concerts overwhelmed. Overwhelmed – dazzled; as though, transported to the seventh heaven by a cruel favor, they had been caught up to that height only that they might experience a luminous contemplation of forbidden possibilities and inimitable marvels. The sharper and more incontestable their sense of these imperious delights, the more real and despairing was the suffering of their pride. (…) We were nourished on music, and our literary minds dreamed only of extracting from language the same effects, almost, as were produced on our nervous systems by sound alone.”

(PAUL VÁLERY, The Art Of Poetry)

:: às vezes sonho incoerências… ::

Às vezes sonho incoerências
Em desalinho com o meu tempo pequeno
Sonhos, assim, despudoradamente humanos
Sonhos, assim, desavergonhadamente felizes.

Ainda que a cidade triste desautorize
Ainda que as fábricas ergam seus muros cinzas
Onde guardam minha classe da luz do dia
E roubam seus corpos das carícias da noite.

Sonho subversivamente desperto
Que meu sonho está ali bem perto
Tanto que sinto cheiros descabidos
E minha boca antecipa o gosto dos delírios
Como se fossem pães recém-nascidos.

Sonho desavisadamente alegre
Com uma casa de janelas amplas
E jardins e flores e plantas
E discos e filmes e livros
E tanta sede e fome tanta
Que em qualquer fruta a ceia é santa.

Sonho que nos relógios quebrados e inúteis
As aranhas amarelas fazem com calma as suas casas
E em dias longos e quentes
Ex-lagartas apaixonadas estréiam suas novas asas.

Sonho que o mar fica ali em frente
Onde as ondas e as horas inquietas
Martelam as costas cansadas do continente
E na pele da praia do planeta,
A areia tritura seus minúsculos universos náufragos
Num contínuo mastigar de conchas e dentes.

Sonho, então, que caminhas… linda… pela praia
E nosso cão te acompanha alegre
E você é tão feliz… tão feliz…
Que quase esquece
De toda a pré-história da humanidade,
Da tragédia dos séculos
E da miséria destes anos
Em que andamos, por tanto tempo, militando.

Militando e sonhando que lutamos.
Lutando e militando porque sonhamos
Que o mundo pode ser, enfim, a casa onde moraremos
Sonhando, para sempre, que nos amamos.

(MAURO IASI, Aula de Vôo)

:: Amnesiac ::


“Life In A Glass House”

Once again, I’m in trouble with my only friend
She is papering the window panes
She is putting on a smile
Living in a glass house

Once again, packed like frozen food and battery hens
Think of all the starving millions
Don’t talk politics and don’t throw stones
Your royal highnesses

Well of course I’d like to sit around and chat
Well of course I’d like to stay and chew the fat
Well of course I’d like to sit around and chat
But someone’s listening in.

Once again, we are hungry for a lynching
That’s a strange mistake to make
You should turn the other cheek
Living in a glass house

Well of course I’d like to sit around and chat
Well of course I’d like to stay and chew the fat
Well of course I’d like to sit around and chat
But someone’s listening in.

:: produção imaginária do que não existe ::

“…todos conhecem a famosa fórmula segundo a qual ‘a religião é o ópio do povo’, isto é, um mecanismo para fazer com que o povo aceite a miséria e o sofrimento sem se revoltar porque acredita que será recompensado na vida futura (cristianismo) ou porque acredita que tais dores são uma punição por erros cometidos numa vida anterior (religiões baseadas na idéia de reencarnação). Aceitando a injustiça social com a esperança da recompensa ou com a resignação do pecador, o homem religioso fica anestesiado como o fumador de ópio, alheio à realidade. No entanto, costuma-se esquecer  que, antes de fazer tal afirmação, Marx define a religião como ‘a criação de um espírito num mundo sem espírito’ e ‘consolação num mundo sem consolo’. Se a religião, que é uma forma de ideologia, fosse um ‘reflexo’, ela teria que espelhar de maneira invertida o mundo real. Ora, segundo Marx, a inversão religiosa não ‘reflete’ coisa alguma — sendo criação do espírito em um mundo sem espírito, a religião é produção imaginária de algo que não existe. A inversão consiste em atribuir a essa criação do espírito a origem da realidade, em lugar de compreender que é a miséria real que está produzindo a crença no espírito, numa divindade poderosa que pune e recompensa as ações humanas. A religião, como toda ideologia, é uma atividade da consciência social. A religiosidade consiste em substituir o mundo real (o mundo sem espírito) por um mundo imaginário (o mundo com espírito). Essa substituição do real pelo imaginário é a grande tarefa da ideologia e por isso ela anestesia como o ópio”. —- MARILENA CHAUÍ, “O Que é Ideologia”, pg. 108, ed Brasiliense.