OS LIRISMOS INCATALOGÁVEIS DO VALDERUNDESTEIN: 12 POEMAS ILUSTRADOS – Por Vitor Hugo Lemes & Bergkamp Magalhães

1

Ilustrações: Bergkamp Magalhães.

I

o amor é eterno, claro.
expressão maior de um deus
fora do tempo e espaço
substrato sensorial da metafísica
como tal, embora seja possível que não exista
há que se investigar, por deixar pistas
marcas imprecisas em quem precisa
e em quem não precisa…

um conceito vazio preenchido pelos sentidos
intriga o amante e o amigo
aquém de quem compreende pois sente-se
estende-se em busca de um tempo perdido
manter contudo a velha opinião formada sobre tudo
ajuda, quem diria
o amor é o calor num mundo de entropia
desvanece e esfria
ou então esquece-se
e recria…

Versos: Vitor Hugo Lemes
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II

2

não há mundo possível – quântico ou metafísico
ao qual eu pertença, não há para mim
máxima ou sentença
desajustado irrompi e o exílio fez-se em mim
o lugar comum
não há regra geral ou meta que me estabeleça
nasci assim, estranho
como um ombro acima da cabeça
e não há perda ou ganho
em ser aos mundos todos simultâneo
e incatalogável

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III

4

lendo Sartre num parque qualquer da cidade
de seu lado burguês vendo à tarde
“Verão. O ar estava morno e denso”
aqui primavera, calor imenso
intenso por um momento
o vento sopra, as folhas se movem
o sol encontra minha alcova
a leitura avança densa e prazerosa
jocosa a vida é âmbar sobre as lentes
desses óculos
periscópios que divisam o nada
de lugar nenhum
desatento contemplo o lago
vago e comum existo
“Existir é isto: beber-se a si próprio sem sede”.
vede que fede aquele que cede
ao cômodo sua liberdade
essa sim, cômodo de vaidade
que te prende a tarde lendo livros em parques
nas grandes áreas de especulação imobiliária da cidade
mas és livre, é verdade
vives tua brevidade
Sem deixar nenhum espaço a sanidade
ou deidade qualquer das tantas banalidades
de que se compõem convicções
e verdades

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IV

5 reak

ao som do jazz
sou como uma máquina de escrever
que trabalha incansavelmente

ao som do jazz e do soul – sou!
uma máquina, bem operada

soo como uma máquina com bons suprimentos,
são bons sentimentos
a dissolver
em cada berro ou nota aguda do trompete
minh’alma grita e repete pela escrita
a dor do instrumentista
e isso mexe
“lágrima é dor derretida”
e ela derrete
cai, borra a folha
e embora a vida seja escolha
nesse momento sou eu instrumento
isento de trava
não por minha escolha
cultivo e planto palavra
e quem quiser que colha…

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V

3

João bobo, mais uma engrenagem na grande máquina do povo
Vivendo e sendo bem a margem o admirável gado novo
João, coragem, trabalha com afinco, se acordas já as cinco
As seis têm condução, lotada, e a condição é nenhuma
Aos poucos logo se acostuma com essa tal situação
As oito em ponto já te esperam na função que te puseram
Pra cumprir sua missão. Quem a escolheu, João?
Qual o seu papel no mundo? Qual seria o do Raimundo?
Qual seria o do Tião? Não! Trabalhas…
“Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, onde as formas e as ações no encerram nenhum exemplo.”
E tu já tens tão pouco tempo
Não pense tanto, pois é tão moço, até as duas tem o almoço
E o tempo nunca foi tão bom, mas dura pouco, João
A lida se estende e você compreende que é “necessário” meu irmão
Já deram seis, e é a sua vez, com uma a mais de deslocamento
E esse horário é só tormento, mas tu já vai chegar em casa
As vezes o trânsito te atrasa, mas vê se esqueça esse ranço
Que agora é hora do descanso e o tempo nunca foi tão bom
Mas dura pouco, João. E dói um pouco também
Pensar que ele, o tempo, meio que se perdeu
Que nesse meio tempo o dia ainda não foi seu… E o tempo te fodeu!
Meu, não! Não pense tanto, João, descansa a mente
Eu sei que às vezes ela mente, mas bão é ver televisão
Novelas e telejornais, nas grandes telas os mais sensacionais
Sensacionalistas banais, cumprindo a risca
O tom do bom vigarista num plano pensado e uniformizado
Para todos nós – olha que lindo, João
Mas deu por hoje, deu por hoje, agora já é meia noite
E amanhã é cedo a ralação… Êh João
Antes de adormecer, será que podes me dizer que raios é viver?
Viver em função de um trabalho, caralho, que no fim das contas não é pra você…
João ninguém, sem identidade, vivendo aquém de quem tu és
Pois é João, põe a cabeça no travesseiro e se acalma
Se tu vendeu sua pobre alma pra esse imenso mundo cão…

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VI

5

em meio ao modo impróprio de um ópio absurdo
hasteio pálpebras ao insólito do mundo
película após película compõe o casulo
que adentra um tempo cego, donde exergo tudo
o que há para ser visto, conforme me dispo
de todo sentido ao tal imprevisto

buscando saída para esta que “do fim” é a vinda
esquece-se que a vida permanece linda
por eras e eras ainda,
a busca é que finda…

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VII

7

 ultimamente tenho vivido
em pleno exílio de mim
tenho existido num sonho,
esquecido de ser o futuro
do que fui ante ao escuro
de mim

perdi-me, tal qual Pessoa
na afeição que afeiçoa
a tal máscara que é a pessoa
de mim

tão rota como a roupa
da fantasia que vesti
“Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti”

observo a vida em riste
sempre com olhos tristes
sem poder sorrir
sem gozar da verdade
de uma felicidade
por chorar a saudade
que carrego de mim

ser, parece-me ser, às vezes,
tão difícil
aparentar parecer aparece-me
como ofício
que então satisfaria…
um vício impresso
nos belos versos
de “Tabacaria”…

“Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.” – Álvaro de Campos

-vitorhLemes

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VIII

8

denso mundo de opiniões
desse modo de ser

intenções
à passeio
permeiam espaços vazios
em meio a palavras
em camas de gato
no cio,
recobertas de nada
prelúdio a um mal-estar febril
no fio dessa estada
imbecil

muito se fala
pouco se diz
na sala da fala
caminham senis
com bengalas
signos sem significado
insignificantes
em presente
ou passado

ultrajantes palavras
que escapam pelo vão
da porta
e se vão, doravante
viajantes de uma estrada morta
onde more sentido algum
rios de nada que correm
e desaguando em lugar nenhum

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IX

9

você
precisa aprender inglês
precisa aprender o que eu sei
e o que eu não sei, mas…
o que eu pensei traz
sede, fome
sangue e carne de bicho homem
comer – digerir
como um velho estômago canibal faria
cultivando novos sonhos de antropofagia

antropófaga alteridade
cultivada por homens de cidade
letrados
sorvendo e absorvendo
pensamentos variados
no simultâneo estranho
onde tudo coexiste
interno e externo
em riste
se confundem
num futuro presente triste

a alegria se desenvolve
sendo a prova dos nove
sendo a prova do novo
de novo e de novo
no desconhecido outro
conhecer destroça
viva a bossa
viva a palhoça
viva troça
cultura nossa

se o que se cria, se transforma
se apropria noite e dia
sintetizando dicotomias

antropofagia
literal
literária
visceral, não contrária
que por hora
me devora
hilária
assimila e vem
sempre bem servida
e degusta enaltecida
como é gostosa a vida…

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X

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Na cama de gato da vida
Num jogo sem saída
Rolando de um lado pro outro
À procura do sono, dos sonhos
Que já não mais encontro
No entanto
Só no encontro das palavras transcritas
Experiências vividas encontram consolo
Palavra após palavra
Tijolo após tijolo
Forjando construções de nada
Onde há sempre escadas pro novo

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XI

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e a vida segue seu curso natural
até quando e por quanto
é impossível dizer
pois o possível tornou-se irrelevante, onde
somos todos sombras irrelevantes
do que gostaríamos de ser
enquanto o simples “dizer algo”
tornou-se mais importante
do que se ter algo a dizer

me destes papel e um estímulo
lhe dei um poema despido de senso
despedida, não ao que está morto
mas ao que nunca nasceu para que pudesse morrer
poema dilema intenso àquele que fantasiou-se vivo
embora nunca de fato existido
nunca de fato
existido
viver

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XII

12

Converti-me em um peixe de terra salgada
Acostumado ao trabalho, mais nada
É só o que eu valho? Caralh*…
Vestindo retalho
Me arrasto, sou arrastado
Pelas águas de março a março
Chumaços de tabaco,
Cultuo Baco
Num barco furado, naufragado
No céu opaco
Dentro de mim
Há inquietude, há tempestade
Bebendo soma
Mais um cigarro, contemplo à tarde
Verdade escarro
“Palavras calcificadas, poemas presos”
São pedras, são peso
Excesso – que tantos carregam
Envolto em medo
Me nego
A envelhecer tão cedo
Engolindo sapos me sinto obeso
Colar cacos?! Jamais
É preciso o novo
Aliás, escamas dorsais já me doem demais
É preciso libertar-se, encantar-se
De novo e de novo
Respirar ares mais elevados
Explorar mares inabitados
Desfazer-se dessa carcaça abjeta
Derrubar moinhos-gigantes,
Conquistar a ilha de Creta
Viver o instante
Aprender com estetas
O contemplar – pra ser poeta.

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POESIA VERBAL & VISUAL
POR VITOR HUGO LEMES & BERGKAMP MAGALHÃES

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