Lágrimas pela democracia que despenca no abismo: Petra Costa e a crônica sensível e reflexiva do Golpe de Estado no Brasil

“Eu sou o próprio Josef K“, ironiza Dilma Rousseff, comparando-se ao personagem de Franz Kafka em O Processo. “Mas com a diferença de que pelo menos tenho um bom advogado”, complementa a ex-presidenta, em elogio a José Eduardo Cardozo. São cenas poderosas como esta que tecem os fios de Ariadne deste impactante documentário Democracia em Vertigemde Petra Costa (disponível no Netflix), essencial para que possamos decifrar a atualidade e traçar altos planos pra contra-atacar o atual predomínio do MinoTaurus.

O filme pode ser considerado como a terceira crônica cinematográfica que se debruça sobre o Golpe de Estado parlamentar-jurídico-midiático que culminou com destituição de Dilma Rousseff em 2016 e preparou o terreno para a fraude jurídica montada para o encarceramento de Lula em 2018. Antes dele, já haviam sido lançados (e já foram resenhados aqui n’A Casa de Vidro) as produções O Processo de Maria Augusta Ramos (de uma imersão exaustiva nas entranhas da Besta-Fera que é nosso Congresso e seus sinistros kafkianismos) e O Muro de Lula Buarque de Holanda (interessado sobretudo numa reflexão sobre a segregação ou apartheid que se explicita na polarização política que nos últimos anos vimos exacerbar-se). Os três filmes são importantíssimos para que possamos decifrar melhor as verdades, muitas delas tristes e intragáveis, sobre esta nação com fratura exposta.

Após realizar dois filmes repletos de poesia visual e delicadeza investigativa (Elena e O Olmo e a Gaivota), a talentosa jovem cineasta Petra quis se debruçar sobre nosso infortúnio coletivo, sobre a distopia real desta terra brasilis “com um longo passado pela frente”, pra relembrar a boutade do Millôr Fernandes. O modo como ela termina seu filme,  deixando no ar as questões relevantes e sem resposta, é um bom indicativo do tom da obra, também impregnada pelo violão afrosambante de Baden Powell e Vinícius de Moraes:

Cineasta Petra Costa

“Como lidar com a vertigem de ser lançado em um futuro que parece tão sombrio quanto o nosso passado mais obscuro? O que fazer quando a máscara da civilidade cai e o que se revela é uma imagem ainda mais assustadora de nós mesmos?”

A máscara da civilidade caiu totalmente com a eleição de Bolsonaro e sua necropolítica que parece ter um mandamento único: “matai-vos uns aos outros!”. O mito do “homem cordial”, mais do que nunca, revelou-se uma farsa edulcorada, um conto-de-fadas enganador. O Brasil é território de ultraviolência e ultrainjustiça, situação piorada agora que estamos sob o (des)governo de um ultradireitista obcecado com armas de fogo e seriamente adoecido por uma psicose falocêntrica altamente perversa. Como lidar com essa vertigem de ver as ratazanas dos porões da Ditadura re-vomitados no nosso presente e ocupando posições de altíssima responsabilidade?

O tema da vertigem, para além das evocações que pode ocasionar com clássicos do cinema que já o exploraram (notavelmente Vertigo – Um Corpo Que Caia obra-prima de Alfred Hitchcock), é também a maneira que Petra encontra para fugir dos dogmatismos e adentrar o campo em que é mestra: o do “filme-ensaio” repleto de insights subjetivos, percepções que iluminam com uma luz toda pessoal o âmbito da coletividade que compartilhamos. Petra mostra-se assim uma poetisa da imagem e um espírito livre e nada dogmático, sem temor de expor suas teses.

Teses, por exemplo, sobre Brasília, a “Cidade do Futuro”, o sonho de Juscelino, a fantasia da Modernidade, com toda a majestade arquitetônica de Niemeyer, que de utopia converteu-se em distopia: não poderia ter sido de outro modo, já que construíram a capital no Planalto Central, num vaziozão no meio de Goiás, bem longe do fuzuê e do escarcéu das massas populares que acossavam de muito perto o poder em Salvador ou no Rio de Janeiro, nossas duas primeiras capitais. No filme de Petra, a própria localização geográfica de Brasília, este colosso artificial erguido no “nada” goiano, impede a democracia plena e direta pois o poder se distancia dos representados.

Por estar “isolada” da população brasileira, dificilmente alcançável pela maioria dos habitantes da pátria, Brasília constitui-se como metrópole dos privilegiados, QG da Elite do Atraso. Assim caímos mais profundamente no pântano de uma corrupção endêmica e sistêmica em que a casta de políticos eleitos, encastelados na Brasília feita para os carros e não para as gentes, tece tenebrosas transações com os capitalistas, os banqueiros, os empresários. A Ditadura Militar, por exemplo, foi época de intensa corrupção, revelada por ex. pelo livro Estranhas Catedrais – As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar, de Pedro Henrique Pedreira Campos:

“A análise crítica identifica na ditadura civil-militar brasileira do período 1964-1988 a origem da inserção, contaminação e subordinação do tecido orgânico do Estado aos interesses do segmento dos empreiteiros. O livro foi vencedor do Prêmio Jabuti 2015, na categoria “Economia, Administração, Negócios, Turismo, Hotelaria e Lazer”. Em foco, o crescimento e consolidação das principais empresas do setor de construção pesada no Brasil, numa articulação que, segundo o autor, propiciou o desenvolvimento expressivo, a modernização capitalista e a internacionalização das “gigantes do setor”. Ao demonstrar as injunções políticas, estratégias e práticas que permeiam as relações da iniciativa privada e poder público e sua legitimação por “intelectuais orgânicos”, a publicação constata e fornece elementos de compreensão acerca de “Estado, Poder e Classes Sociais no Brasil”, conforme  o prefácio, assinado pela historiadora Virgínia Fontes.

Tenho quase a mesma idade que Petra: nasci em 1984, vigésimo ano da Ditadura Militar, que estava então em seus estertores. O bebê que fui não pôde estar atento e alerta para as imensas massas que tomavam as ruas naquele ano, demandando em alto e bom som por “Diretas Já!”, só para sofrerem a derrota de ter sua reivindicação recusada pelo Congresso Nacional. Esta sensação de “ter a mesma idade que a Democracia” brasileira anima o projeto de Petra, dá a ele um teor de manifesto geracional que pretende expressar uma percepção compartilhada por muita gente que está hoje na faixa dos 35 anos de idade.

Ao recuperar imagens históricas de Lula quando um jovem sindicalista, de 33 anos de idade, pernambucano aguerrido imigrado para São Paulo, onde lideraria as históricas greves da indústria automobilística no ABC do fim dos anos 1970, Petra Costa acerta na mosca: seu filme ganha com interlocuções e ressonâncias com obras pregressas que marcaram o cinema brasileiro, em especial o magistral ABC da Greve de Leon Hirzsman e várias obras de Renato Tapajós. Além disso, dá à nossa percepção de Lula o devido grau de densidade histórica que ele merece, já que não se trata de pessoa anônima ou esquecível, mas alguém sobre quem escreverão os historiadores do futuro quando quiserem abordar as grandes personalidades globais da época que ora atravessamos.

O fato desde filme ser a produção de uma cineasta nascida nos anos 1980 só torna mais interessante outra de suas teses: a de a Democracia brasileira tem mais ou menos 3 décadas de vida, e talvez fosse uma ilusão que cada vez mais vai caindo em descrédito, para nós que temos 30 e poucos anos, acreditar que a tal democracia era robusta, madura, indestrutível. O filme de Petra faz chorar pois a democracia que ela retrata não é um colosso, uma fortaleza, um Hulk, mas sim a fragilidade encarnada – e nós os que temos a responsabilidade de fortalecê-la. Juntos. Destacando isso, a revista Marie Claire, que entrevistou a cineasta, fez um bom prefácio ao filme:

“A cineasta Petra Costa tem quase a mesma idade da democracia brasileira. A primeira nasceu em 1983 e a segunda voltou a respirar em 1984, com o fim da Ditadura Militar. Por isso, Petra explica, faz parte de uma geração que cresceu confiante nas instituições do país e com a certeza de que a democracia amadurecia e se fortalecia em um movimento paralelo ao de sua vida. (…) Ao longo de três anos, Petra entrevistou dezenas de políticos de todo o espectro ideológico. Constam no filme tanto um entusiasmado Jair Bolsonaro mostrando seu gabinete de deputado e os quadros que possuía dos generais do governo militar; como uma resiliente Dilma Rousseff pós-impeachment. Com acesso privilegiado aos bastidores do poder, Petra contou também com cenas registrada por Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial da presidência nos anos de governo Lula e que o acompanhou até sua prisão, inclusive quando deixou o Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo rumo ao aeroporto de Congonhas para entregar-se à Polícia Federal.

Em entrevista à Marie Claire, Petra conta como foi o processo de criação e captação das imagens do filme e analisa o cenário político brasileiro atual.

Marie Claire – Quando nos falamos em 2016, sua intenção era filmar os bastidores do impeachment de Dilma Rousseff. Como tomou a decisão de ampliar o filme e terminar com a eleição de Jair Bolsonaro?

Petra Costa – Minha sensação é de um dia ter ido filmar uma manifestação e no meio dela tropecei e caí no buraco de um coelho que me levou numa jornada de 1001 noites. O filme pra mim não nasceu do desejo de filmar o impeachment, mas da sensação vertiginosa que o chão da democracia brasileira estava se abrindo embaixo dos meus pés. O chão que, desde que eu nasci, era uma das poucas coisas que eu tomava como certeza. Que a democracia brasileira e eu tínhamos a mesma idade e que estávamos amadurecendo e nos fortalecendo juntas. Em 2016, ao ver pessoas pedindo pela volta da ditadura militar, outros pela volta monarquia, percebi que essa tal democracia era muito mais frágil do que eu imaginava. O filme surgiu do desejo de documentar esse processo de permanente crise política. E o processo claramente não se encerra no impeachment. Acredito que seu primeiro ciclo comece em 2013 e termine com a última eleição. Claramente no entanto a vertigem não CTG acabou e entra agora na sua segunda temporada.

LEIA A ENTREVISTA COMPLETA: https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2019/06/em-democracia-em-vertigem-petra-costa-questiona-os-limites-da-democracia-brasileira.html

Petra fez um filme comovedor, em que entretece sua biografia pessoal com a história nacional. Ao mesmo tempo que rememora a vida de seus pais, ativistas de esquerda que combateram a Ditadura, revela também alguns de seus laços familiares com Aécio Neves e com os fundadores da construtora Andrade Gutierrez. Partindo do passado distante, lembra-nos que essa terra foi batizada pelos colonizadores portugueses com o nome de uma planta cuja tintura vermelha foi a primeira commodity explorada pelos invasores – uma exploração que levou o pau-brasil às beiras da extinção.

O filme é magistral no retrato dos nexos e vínculos entre o golpeachment contra Dilma e a farsa jurídica montada por Sérgio Moro, em conluio com a mídia corporativa e os procuradores da Lava Jato (Dallagnol e companhia), para aprisionar Lula e evitar assim que o PT vencesse as eleições presidenciais pela 5ª vez consecutiva. O filme lança ao mundo as evidências concretas de que o processo contra Lula é parte do Golpe de Estado e ychega em momento extremamente oportuno, coincidindo com a Operação #VazaJato e com o alto impacto dos leaks recentemente disponibilizados a The Intercept por whistleblowers. 

Petra expõe, no filme, aquele ridículo Power Point de Dallagnol que, à semelhança de um processo medieval, tenta fazer de Lula uma espécie de Satanás, centro e líder do maior esquema de corrupção da história do mundo. O que contrasta com a inexistência de provas e com a argumentação pífia, beirando o ridículo, de um dos acusadores-inquisidores: não podendo provar a posse do imóvel no Guarujá, os procuradores inventaram a noção absurda de que a falta de escritura provaria o intento de ocultação de propriedade por parte de Lula.

Incapaz de comprovar qualquer vantagem ilícita que Lula pudesse ter auferido, como a atribuída reforma no triplex, condenaram o ex-presidente por “atos de ofício indeterminados”, uma bizarrice jurídica que envergonha todo o Judiciário nacional. É lawfare, e foi mal ocultada – tanto que já afloraram 1.700 páginas de evidência de que este julgamento fraudulento merece cair na nulidade – e Lula deve ser libertado e ter direito a novo julgamento, desta vez com um juiz mais justo do que o canalha Moro.

Lúcido quanto a este processo, o ex-presidente Lula revela, no filme, estar plenamente consciente de que o Golpe não estaria consumado apenas com a deposição de Dilma. Eles não queriam somente tirar a primeira mulher eleita presidenta, com o pretexto das manobras contábeis conhecidas como “pedaladas fiscais”: depois disso, a corja que desrespeitou o voto de 54 milhões de eleitores em 2014 não iria simplesmente permitir que Lula, líder disparado nas intenções de voto para 2018, voltasse ao poder.

“Não adianta tentar parar o meu sonho, porque quando eu parar de sonhar eu sonharei pela cabeça de vocês!” – esta é uma das comoventes frases de Luiz Inácio Lula da Silva, discursando no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, alguns instantes antes de se tornar um preso político no conflagrado Brasil de 2018 (recentemente biografado por Mário Magalhães em seu Entre Lutas e Lágrimas). A crônica daqueles tensos instantes que precederam a prisão de Lula é certamente um dos pontos altos do filme e o primeiro registro histórico que chega ao cinema daquele evento em que vimos uma prisão impossível. 

Como escreve Maringoni, “a sensação de estupefação e entorpecimento de espectador no final da fita pouco a pouco se desvanece quando atentamos para o som ao redor e percebemos que o admirável mundo novo dos milicianos de toga, farda e terno começa a apresentar rombos no casco.”

Por concentrar-se na crônica, muito bem concatenada, do processo golpista que tirou o PT do poder, desrespeitando violentamente a vontade soberana do povo que se expressou nas urnas em 2014 e que voltaria a se expressar em 2018, caso tivesse havido um processo eleitoral legítimo (que não houve!), o filme não se dedica muito a investigar o que eu chamaria de psicose-de-massas que conduziu Bolsonaro ao poder.

Para explicar esta outra bizarrice histórica do Bolsonarismo – o fato de um deputado há quase 30 anos no poder, claramente parte de uma classe política parasitária, de pífia ou nula contribuição para o bem público, que enriqueceu sua própria família ao inserir 3 de seus filhos no jogo de alta lucratividade do Estado (visto como balcão de negócios da Burguesia), pudesse conquistar, na exclusão de Lula, 57 milhões de votos que o elegeram… -, Democracia em Vertigem não vai fundo. O filme não menciona nem a fraude das fake news pagas com caixa 2, nem as tenebrosas transações com os magnatas evangélicos. Ainda sobrou muito tema para outros documentários que explorem a Marcha de nossa democracia para o abismo, e as razões que explicam que seu algoz seja esta execrável figura que, no feriado de Corpus Christi de 2019, foi flagrado fazendo arminha na Marcha Para Jesus.

 

Avalio que os mercadores da fé, vendedores de ilusões alienantes, como Malafaia e Edir Macedo, dentre tantos outros pastores canalhas, foram diretamente responsáveis pela construção do “mito” Bolsonaro. Não se entende a “canonização” deste político medíocre, irresponsável e violento sem todo um processo de manipulação teocrática das consciências populares capturadas na teia do neopentecostalismo evangélico e sua Teologia da Prosperidade.

É verdade que a história do cristianismo está repleta de episódios lamentáveis, de cruzadas e inquisições, de bruxas e hereges reduzidos a cinzas, de cientistas silenciados e perseguidos, de violência assassina contra os transviados e dissidentes que discordaram dos dogmas, de censura e perseguição a ateus e agnósticos, de preconceito e discriminação contra minorias sexuais, de intolerâncias contra outras crenças, de papas acobertando escândalos de pedofilia e dando apoio para regimes cristofascistas – horrores de tal monta que não cabem num meme (mas estão lá nos livros de Saramago, Diderot, Nietzsche, Voltaire, Onfray etc.). Apesar desta história pregressa nada louvável, a instrumentalização da fé por parte da extrema-direita Rambonazista, em especial o conluio entre igrejas evangélicas neopentecostais e o sujeito que adora Tortura, Grupos de Extermínio, Milícias e Armas, é um dos episódios que mais me enche de nojo em todo o trôpego caminhar desta religião sobre a face da Terra.

Acredito que Jesus estaria hoje vomitando de repugnância diante daquilo que fazem em seu nome – o nazareno pode até ter sido um cara com ensinamentos éticos interessantes, mas o seu fã-clube está fazendo um péssimo serviço com sua reputação póstuma. Como pode ter gente que se diz cristã e idolatra este malévolo Capetão, este mito-fake explicitamente racista, este Machão Tóxico homofóbico e misógino, este estrupício ético e cognitivo, como se fosse um enviado de Deus? Deus, se existisse e fosse bom e justo como O pintam os seus crentes, jamais se utilizaria de tal instrumento ignóbil pra seus fins.

Tristes tempos de “cristofascismo” em que pseudo cristãos idolatram um Mi(c)to covardão, incapaz de encarar os debates nas eleições, com a idade mental de um bully de 12 anos que quer construir seu próprio senso de superioridade através da humilhação dos outros. O atoleiro em que caiu nossa democracia tem muito a ver com um tema que o filme de Petra deixa sem mencionar: o obscurantismo conexo à hegemonia desses teocratas evangélicos (a exemplo da Ministra Damares Alves e de escrotões como Marco Feliciano, Magno Malta etc.).

Um capetão na Marcha pra Jesus

Os eleitores do Coiso constituem, em amplas manadas, o rebanho desses teocratas corruptos, oportunistas e milionários, da laia de Malafaia ou de Edir Macedo. Jesus Cristo foi torturado e morto por aqueles que, na época, faziam apologia da tortura como vem fazendo entre nós o Capetão fã do Ustra. Jesus jamais compareceria a esta marcha feita em seu nome senão para cuspir na cara dos interesseiros organizadores desta mega manipulação demagógica e que fede a fanatismo religioso.

Foi Paulo Freire, grande mestre hoje demonizado pela extrema-direita Bozorâmbica e pelos pastores delirantes em seus templos-shopping, quem ensinou que a democracia necessita visceralmente de uma educação libertadora, que faça com que os oprimidos possam superar a consciência ingênua e mistificada, rumo à consciência crítica, condição necessária para sua plena atividade cívica. Sem educação pública, gratuita, laica, de qualidade, que forme para o senso crítico e para que sejamos sujeitos históricos, sempre voltaremos a sentir vertigem diante das beiras-de-abismos em que voltamos a estar prestes a despencar.

Pode-se explicar bem que um grupo político sabidamente canalha, como o clã Bolsonaro, faça uso em sua campanha eleitoral de táticas calhordas de difamação do adversário, de caixa 2, de burla à lei eleitoral, de sensacionalismo midiático – ou seja, que esses caras joguem sujo é esperado. Ingenuidade seria esperar fair play democrático de quem sempre odiou a democracia e que, uma vez no poder, tem feito tudo para miná-la e destrui-la ainda mais, rumo à autocracia dos idiotas.

Porém, a canalhice de um grupo político como o PSL (Partido Suco de Laranja) é mais compreensível do que a adesão massiva a este projeto de país elitista, machista, racista, homofóbico, ecocida e desumano. Só se compreende os mais de 57 milhões de votos no Capetão com uma análise da psicologia de massas que tente compreender como se deu a produção massificada de consciências em que se somam a ingenuidade, a credulidade, a alienação, o analfabetismo histórico-político e, last but not least, uma espécie de perversão sádica – o gozo com o sofrimento alheio. Bolsonaro explora os piores demônios de nossa Natureza e encontrou eco e guarida em grupos sociais como  os evangélicos, acostumados ao espírito de manada e à credulidade cega a líderes inquestionáveis apesar de seus comportamentos altamente obscenos, além é claro do pessoal do agronegócio, do agrotóxico e da hecatombe organizada contra indígenas e quilombolas.

Por melhor que seja o filme de Petra, que de fato é inteligente e sensível, comovedor e relevante para a atualidade e para a História, ele passa ao largo do tema da educação – e da falta dela. Se a pedagogia de Paulo Freire fosse de fato aplicada em larga escala neste país, teria gerado uma população muito mais capaz de crítica e autonomia, que jamais se deixaria engambelar por um macho tóxico escroto e incompetente como o palhaço fascista Rambozo. Sua eleição é por si só um sintoma do quão defasados estamos em matéria de uma educação para o senso crítico que fosse de fato massiva e democrática.

Todo o processo de Golpe de Estado que se desenrolou entre 2016 e 2019, e que prossegue enquanto escrevo estas linhas, está intimamente conectado com nosso fracasso em disseminar as práticas e ideais da Pedagogia do Oprimido no país: acabamos com imensas hordas de analfabetos políticos e de idiotas privatistas, presas fáceis para a demagogia pastoral e politiqueira dos que querem ser os velhos donos do poder. Se quisermos uma Democracia forte, ela precisará ser construída com muito trabalho e suor, e para isto é indispensável que ensinemos cidadania ativa e participação social efetiva àqueles oprimidos que estão acostumados demais a serem objetos de história, rebanhos de pastores, fantoches de políticos, espectadores de espetáculos e manipuláveis títeres dos podres poderes que hoje botaram nossa democracia num cadafalso. Retirá-la de lá é nossa responsabilidade histórica, e o trabalho será infindável.

Democracia em Vertigem é prova de que o cinema pode estar aliado àqueles que tem a coragem da verdade de que nos fala Foucault – e prova também de que o documentário, quando vem em hora oportuna e explora bem o célebre kairós dos gregos, pode tornar-se uma força histórica, speaking truth to Power e denunciando golpes e opressões que intentam nos lançar no abismo de uma nova Ditadura. É abraçados com filmes pungentes e comoventes como o de Petra que podemos haurir força e ânimo para seguir dizendo que ninguém solta a mão de ninguém e que “fascistas, machistas, racistas, não passarão!”

Eduardo Carli de Moraes
22 de julho de 2019

Leia mais: outras resenhas e reportagens sobre Democracia em Vertigem >>> Maringoni em Revista Fórum || Eduardo Escorel em Piauí || Gilberto Calil em Esquerda Online || José Geraldo Couto em IMS || El País Brasil || Brasil 247 || The New York Times || Draglicious || The Guardian (UK) || Esquerda Diário || Breno Altman em Folha de S. Paulo || Carlos Alberto Mattos || Juliano Medeiros no Blog da Boitempo.

Cinebiografia da escritora Colette tematiza “ghostwriting”, empoderamento feminino e práticas queer

A escritora francesa Colette (1873 – 1954) é a deslumbrante protagonista da cinebiografia dirigida por Wash Westmoreland (Para Sempre Alice). Ela se notabilizou pelo sucesso estrondoso dos livros que escreveu como ghostwriter de seu esposo Willy – uma série de 4 romances centrados na personagem Claudine. Inicialmente atribuídos ao maridão, os livros já tiveram sua correta autoria restabelecida e hoje, na capa, é o nome de Colette (e não de Wily) que rebrilha.

Ao assistir à reconstrução histórica precisa que o filme nos oferta, é revelado ao espectador que esses livros estrelados por Claudine foram escritos, em larga medida, por uma Colette em situação de cárcere privado – o maridão Willy, quando a esposa não produzia literatura com a quantidade e a maestria que ele exigia, era trancada no quarto por 4 horas para que fosse forçada a produzir. Detrás de chaves, praticamente enjaulada, consultando suas próprias memórias e experiências biográficas, Colette produziu aqueles estouros literários que serviriam para construir a fama de seu pseudo-autor Willy.

O filme foca sua atenção no contexto de produção dos livros protagonizados por Claudine, best-sellers que eram devorados por toda Paris e que geraram um frenesi que o filme descreve como se fosse uma Beatlemania Literária. O sucesso foi tamanho que toda uma série de produtos invadiram o mercado, destinados a auxiliar as mulheres francesas a realizar uma mímesis consumista desta personagem que bombava na cena cultural da época. Todo mundo queria ser Claudine, e os fabricantes de batons e sapatos se aproveitaram espertamente disso.

Em uma das cenas mais dramáticas do filme, depois de descobrir que Willy vendeu os direitos autorais dos livros que ela escreveu, Colette faz a catarse de todo seu ressentimento e diz que se sentia, enquanto trancada naquele quarto, como uma escravizada (slaving away), oprimida pelo maridão sedento pelos lucros da venda de livros que ele não escreveu, mas cuja glória deseja roubar ao imprimir seu nome na capa e ao gozar dos elogios públicos nos salões chiques de Paris.

ruptura com Willy se dá em circunstâncias dramáticas que o filme também explora. Em uma cena notável, Willy pede a seu funcionário que lance às chamas todos os manuscritos originais dos romances, onde se revela a caligrafia da autora Colette. Desobedecendo à ordem de incinar estes manuscritos, de modo similar ao que fez Max Brod com a obra que seu amigo Franz Kafka lhe havia legado, com o pedido de que a destruísse pelo fogo, este assessor acabou tendo um papel de destaque no restabelecimento da autoria autêntica ao se recusar a seguir as ordens do patrão. Palmas pra ele. 

Colette – escritora cujas obras e posturas existenciais inspirará outras mulheres importantes da literatura, como Erica Jong (Medo de Voar) –  também ousou subverter os papéis de gênero convencionais. Aderindo a uma postura queer, rejeitando o matrimônio “careta”, ousando assumir seus relacionamentos não-binários, ela ousou confrontar os dogmas relacionais dos “quadrados”. Tanto que há no filme um bocadinho da pimenta lesbo-erótica que faz um pouco do charme de grandes películas contemporâneas, como Azul É a Cor Mais Quente, de Abdel Kechiche.

Por isso, o filme atua como uma edificante narrativa feminista e queer  que aponta para o empoderamento de Colette, que ousa sair das sombras a que estava relegada, sem reconhecimento por seus méritos literários. Mostra como ela vai rumo aos holofotes do teatro, assumindo uma persona performática, buscando expressar-se não apenas através das palavras, mas também pela dança, pela pantomima, pelo teatro.

A atriz inglesa Keira Knightley, que se notabilizou por atuar em adaptações de romances célebres de Jane Austen (Orgulho e Preconceito) e Ian McEwan (Reparação), manda bem na sua interpretação, auxiliada por sua beleza sutil, mas está longe de ser uma mobilizadora de afetos, capaz de comover, como as melhores atrizes de sua geração (prefiro, de longe, o trabalho de figuras como Natalie Portman, Rachel Weisz, Juliane Moore, Nicole Kidman…).

De todo modo, Colette  é um filme interessante, bem produzido, que instiga a conhecer a obra desta mulher que fez história com a pena na mão. Uma cinebiografia que merece ser vista, esmiuçada em críticas de viés feminista ou queer, discutida em salas-de-aula e que soma-se a uma maré montante de produções sobre grandes personalidades literárias femininas, visto que recentemente foram lançados filmes notáveis sobre Mary Shelley e Lou Andreas Salomé.


UMA PÁTRIA COM FRATURA EXPOSTA – Em “O Processo”, escancaram-se as entranhas de um Impeachment kafkiano (Sobre o filme de Maria Augusta Ramos)

O Processo, de Maria Augusta Ramos, não foi batizado com o mesmo nome do célebre romance de Franz Kafka à toa. Em 2016, Dilma Rousseff viveu em carne-e-osso alguns “Dias de Josef K” [Saiba mais em A Casa de Vidro: https://wp.me/pNVMz-2We]. Na expressão certeira de Ivana Bentes, o filme faz uma “etnografia a quente do processo kafkiano que derrubou uma presidente no Brasil.”

O documentário, lançado em meio às comoções públicas ligadas à prisão de Lula, é um retrato histórico de um país cindido, uma pátria com fratura exposta. A construção daquele grande Muro em frente ao Congresso Nacional, para separar as massas de manifestantes, sintetiza de modo emblemático o grau de polarização explosiva que vivenciamos desde as eleições de 2014, com o ressentimento e o espírito vingativo dos derrotados nas urnas fervendo na panela de pressão e anunciando a ruptura democrática que se seguiria.

Em seu artigo para o Estadão, Luiz Zanin comemorou o filme:

“muito bem estruturado do ponto de vista cinematográfico, segue a opção documental de Maria Augusta pelo cinema direto, observacional, sem entrevistas. É sóbrio e nada panfletário, embora tenha lado e ponto de vista. Deixa clara a farsa laboriosamente montada para afastar a presidente sob o pretexto inconsistente das “pedaladas fiscais”. Que estas foram apenas uma desculpa para tirar uma presidente indesejada é o mais constrangedor segredo de Polichinelo da história política recente do País. Ninguém, que esteve envolvido, ignora esse fato; ninguém o confessa em público. ‘O Processo’, em seu viés kafkiano, tira esse véu e deixa nuas as engrenagens usadas no ato. É o seu trabalho. Outros filmes visarão aspectos diferentes desse quebra-cabeças que compõe a página mais infeliz da nossa História recente.” [Leia em http://cultura.estadao.com.br/blogs/luiz-zanin/o-processo-ou-o-brasil-que-kafka-nao-viu/]

O filme torna explícito que a presidenta sentiu-se vítima de uma injustiça, que veio se somar aos traumas de seu passado, que incluem os horrores da tortura e de 3 anos de prisão, perpetrados contra ela pela Ditadura Militar que ela combateu:

“O destino sempre me reservou muitos desafios, muitos e grandes desafios. Alguns pareciam intransponíveis, mas eu consegui vencê-los. Eu já sofri a dor indizível da tortura; a dor aflitiva da doença; e agora eu sofro mais uma vez a dor igualmente inominável da injustiça. O que mais dói, neste momento, é a injustiça. O que mais dói é perceber que estou sendo vítima de uma farsa jurídica e política. Mas não esmoreço. Olho para trás e vejo tudo o que fizemos; olho para a frente e vejo tudo o que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar para mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças para defender suas ideias e seus direitos.” – Dilma Rousseff

A cineasta Maria Augusta Ramos – realizadora de “Justiça” (2004), “Juízo” (2007) e “Morro dos Prazeres” (2013) – decidiu concentrar todas as suas atenções no que ocorria em Brasília durante o processo de destituição da presidenta, re-eleita em Outubro de 2014 com mais de 54 milhões de votos. Flagrou para a posteridade as vísceras de um processo parlamentar que dividiu a nação entre os que denunciavam um Golpe de Estado e os que viam no impeachment a arma para “quebrar a espinha dorsal da quadrilha do PT”.

Evitando cuidadosamente o panfletarismo, o documentário busca fornecer um retrato multilateral das ocorrências históricas sob seu foco, apresentando a batalha de ideias e argumentos de modo a permitir que o espectador tire suas próprias conclusões sobre a legitimidade ou a justiça do processo. No entanto, certamente o filme de Maria Augusta tende a fortalecer a tese de que Dilma Rousseff jamais cometeu nenhum crime de responsabilidade e que a oposição ao seu governo utilizou-se de “pedaladas” fiscais como pretexto jurídico para uma guerra política eficaz, encabeçada por Eduardo Cunha, Romero Jucá, Aécio Neves, Michel Temer, dentre outros homens brancos e ricos, intensamente interessados em escapar da prisão por seus crimes de enriquecimento ilícito e assalto aos cofres públicos.

Explicita-se um complô de corruptos para derrubar a primeira mulher que foi eleita presidenta do Brasil e que precisava ser excluída a fórceps do poder para “estancar a sangria” que as investigações da Lava Jato estavam acarretando.

Dilma tinha que cair, num “grande acordo nacional pra pôr o Michel lá”, “com o Supremo, com tudo”, de modo a celebrar a impunidade dos assaltantes engravatados que haviam combinado: sem Dilma, as investigações poderiam ser “delimitadas”, ou seja, consagrariam a impunidade das dúzias de parlamentares sobre cujas cabeças pendia a espada de Dâmocles de uma condenação seguida por encarceramento.

Ivana Bentes frisou ainda:

“Dilma foi destituída de um mandato de Presidente da República por um motivo irrisório: pedaladas fiscais. A construção do apocalipse e da crise (como a construção do medo e perseguição das esquerdas na ditadura militar), a produção da histeria e do medo que transformou petismo/lulismo/Dilma em ‘inimigos do Brasil’, isso é a real história que atravessa o processo.

A câmera, a força do cinema direto, ao contrário do telejornalismo que demoniza e reduz, singulariza, humaniza os personagens emergem e se libertam dos clichês.

O Processo estréia na mesma semana que morre Roberto Farias o diretor de Pra Frente Brasil, um dos primeiros filmes a mostrar a repressão da ditadura militar brasileira, em 1982, de forma aberta, mostrando que a tortura foi patrocinada por militares e empresários.

Na mesma semana que ficamos sabendo que o Presidente militar Ernesto Geisel autorizava ele mesmo as execuções de seus inimigos. Na mesma semana que Temer lança o patético mote “o Brasil de volta”. Melhor seria “O Brasil Re-volta!”.

Eis a história passando na nossa cara, com tudo o que precisamos ver, não como espectadores, mas como atores de um presente urgente.”

Pedro Alexandre Sanches, em seu artigo para CartaCapital, comparou duas das obras audiovisuais que buscaram expor as entranhas de nosso imbróglio político recente:

‘O Processo’ estabelece um inusitado jogo de espelhos com a interpretação ficcional formulada de fora para dentro pela Netflix, na série ‘O Mecanismo’, do diretor brasileiro, mas atualmente hollywoodiano José Padilha. Pelo posicionamento das peças no jogo de xadrez, a ficção ‘O Mecanismo’ representa quem está hoje no poder, enquanto o documentário ‘O Processo’ começa a tomar o papel de fazer a contranarrativa dramatúrgica, com foco principal do lado derrotado pelo processo de golpe/impeachment. [Leia em https://www.cartacapital.com.br/revista/999/processo-como-avesso-Mecanismo]

SÃO PAULO, SP, 04.04.2016: Manifestantes e juristas favoráveis ao impeachment da presidente Dilma Rousseff realizaram ato na noite desta segunda-feira (4) no Largo de São Francisco, local onde fica a tradicional faculdade de Direito da USP, na região central de São Paulo (SP). Presença de Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal, autores do pedido de impeachment de Dilma que tramita na Câmara dos Deputados. (Foto: Marcos Bizzotto/Raw Image/Folhapress)

Sem dúvida, outro dos méritos do filme está em encenar, como se fosse um belo drama de tribunal (como os clássicos de Stanley Kramer ou Sidney Lumet), o confronto entre a acusação e a defesa. Neste duelo, restam poucas dúvidas de que José Eduardo Cardozo emerge como um magistral advogado, excelente argumentador, orador que poderia ser aplaudido por seus dons retóricos pelo próprio Cícero, e que sua oponente Janaína Paschoal é um caso clínico, digno de estudo pela psicopatologia do fascismo, campo acadêmico muito bem explorado por Hannah Arendt, Erich Fromm, Stanley Milgram e Wilhelm Reich (dentre outros).

Os únicos momentos cômicos do filme são protagonizados por Janaína Paschoal, uma criatura tão delirante, tão ególatra, tão alienada do contato mais elementar com a realidade a seu redor, que têm atitudes que de fato fariam destravar nossas gargalhadas de sarcasmo caso não tivéssemos consciências das consequências funestas da atuação desta pessoa (contratada por R$ 45 mil pelo PSDB para sua atuação neste processo).

Pregando, feito uma pastora evangélica em transe de excomunhão de um endemoniado, Janaína Paschoal evoca as criancinhas que serão salvas assim que for dado fim ao Império de Trevas do PT, o Partido do Tridente. Pegando pesado na atuação melodramática, digna de alguma péssima e apelativa novela mexicana veiculada pelo SBT, ela agarra-se a uma cópia barata da Constituição do Brasil e diz amar aquilo como um “livro sagrado”. Curioso modo de amar a Constituição, doutora Janaína, é contribuir para rasgá-la!

Em resposta a este teatro de mau gosto de Paschoal (que chega a pedir desculpas a Dilma, porém está fazendo tudo pelo bem dos “netinhos” da presidenta…), Cardozo demole com sua oratória contundente a fraude argumentativa da acusação. Demonstra claramente as inconsistências do relatório Ananias. Desmonta as farsas pregadas por Janaína Paschoal em seus histéricos sermões de jurista dominada pela cegueira das paixões sectárias. O fato de que Cardozo tenha sido derrotado neste processo, e que Janaína possa se considerar triunfante, é mais um sintoma grave do desvario institucional que conduziu o Brasil ao atual abismo.

O doc também registra para a História a atuação de parlamentares de esquerda relevantes – Gleisi Hoffmann, Lindbergh Farias, Mária do Rosário, Wadih Damous, Jean Wyllys, Jandira Feghali, dentre outros – que buscam se pôr na contracorrente do caudaloso rio do putsch que colocaria Michel Temer no Palácio do Planalto.

Também demonstra, através da repressão policial truculenta aos atos cívicos realizados em Brasília durante o regime de Temer, as feições já proto-ditatoriais e altamente autoritárias daquele novo establishment que aprovou a Reforma Trabalhista, a emenda constitucional de congelamento de gastos por 20 anos, a entrega do pré-sal às multinacionais, dentre outras medidas atentatórias à soberania nacional e às políticas sociais dedicadas aos setores mais desvalidos da sociedade brasileira. O filme se encerra com nuvens pesadas e sombrias que nublam a tela – e se o cinema apelasse para o olfato, poderíamos respirar no ar o odor pestífero do gás lacrimogêneo, fartamente utilizado pelo governo ilegítimo que assumiu o poder em 2016.

Escrevendo na Revista Piauí, o documentarista Eduardo Escorel realizou uma crítica pertinente do trabalho de sua colega, em que mostrou-se insatisfeito com a pouca voz que o filme concede a Luis Inácio Lula da Silva:

“Devem ser reconhecidos, portanto, alguns méritos de Maria Augusta. Primeiro, o de ter respondido, no calor da hora, ao apelo da história, indo para Brasília gravar, convicta de que estava testemunhando um evento político relevante. Ela cumpriu, desse modo, uma das funções mais nobres de quem faz documentários. Além disso, foi capaz de editar com Karen Akerman mais de 400 horas de gravações, reduzi-las a 2 horas e 20 minutos, finalizar e lançar o filme em pouco tempo. (…) O apego tenaz à forma estética pré-definida leva Maria Augusta a não interagir com seus personagens, o que, somado à decisão de circunscrever o filme ao processo de impeachment, torna O Processo árido e repetitivo… Em nome da coerência, segundo Maria Augusta me informou, ela sequer pediu acesso a Lula…

Além de artífice da presidente Dilma Rousseff, Lula foi voz influente, por vezes oculta, no seu governo, manteve-se como líder de fato do Partido dos Trabalhadores e nunca deixou de ser um dos principais protagonistas da cena política brasileira. Mesmo tendo se tornado crítico, em caráter privado, do governo Dilma, atuou intensamente nos bastidores para impedir a cassação do seu mandato. Excluído do filme por uma opção formal, a lacuna que há em O Processo, e que deveria estar ocupada pela grande ausente, tornou-se ainda maior. Lula, afinal, mesmo preso desde 7 de abril, apareceu há poucos dias, na pesquisa Datafolha, com 31% das intenções de voto no primeiro turno e vitorioso, com mais de 40% dos votos, em três cenários possíveis do segundo turno da próxima eleição presidencial.” (ESCOREL, Eduardo. Leia em http://piaui.folha.uol.com.br/o-processo-observacao-em-crise/)

De fato, a presença de Lula no filme é tímida, quase nula, algo incompatível com a magnitude de sua figura histórica, de modo que o ex-presidente e atual preso político na PF de Curitiba não fala uma só palavra no documentário inteiro – assim como Chico Buarque, que é visto acompanhando a Lula em uma das sessões do processo de impeachment. Mas é preciso que se reconheça que o filme também fornece elementos para uma necessária auto-crítica por parte das esquerda, que precisa avaliar os desacertos e os equívocos que também facilitaram o trabalho das forças golpistas e usurpadores, a começar pela não-realização de uma reforma profunda da mídia corporativa (que pôde deformar-se a ponto de virar o monstruoso P.I.G.), do sistema político baseado em financiamento privado de campanhas, das regras-do-jogo do “presidencialismo de coalização” com compra-de-votos no Congresso etc. No filme, Gilberto de Carvalho dá expressão a esta importante vertente de auto-crítica:

“Se a gente cair, estamos caindo sobretudo pelos acertos nossos, por termos contrariado os grandes interesses do capital. Isso pra mim tá muito evidente. Agora, por outro lado, é inegável que nós de alguma forma facilitamos a estrada deles através de erros graves. […] Então, nós vamos ter que botar isso na balança, sem falar, naturalmente, na naturalização dos métodos de fazer política que a gente acabou assimilando de maneira muito forte, acrítica, o que não nos levou a fazer a reforma política mesmo quando, depois do mensalão, a gente tinha levado uma porrada terrível com a dor de ver nossos companheiros presos, e tal. Então, tudo isso, eu acho que faz parte de um processo que não é de autoflagelação, mas é de ter a clareza de romper com os nossos erros.”

Lançado em 2018, o filme de Maria Augusta Ramos poderia ter se esforçado mais por sublinhar os vínculos que existem entre a deposição de Dilma e a atual perseguição política que visa evitar a quinta vitória consecutiva do PT – Partido dos Trabalhadores para as eleições presidenciais. O procedimento de lawfare contra o marido da senadora Gleisi Hoffmann, atual presidenta do PT, capitaneado aliás por um orientando da Dr. Janaína Paschoal, já apontava claramente para a tendência que hoje se escancara: o partidarismo de setores do Judiciário brasileiro que estão em plena campanha de criminalização do Partido dos Trabalhadores, como indica aquele tenebroso Power Point de Deltan Dallagnol, que seria apenas risível se não encontrasse quem o aplaudisse, ou mesmo crédulos que nele acreditassem. A baixeza dos métodos de lawfare utilizados para a criminalização de Lula e do PT têm um emblema inesquecível nesta fajuta tentativa de transformar o ex-presidente em líder de uma mega-organização criminosa – sem provas, mas com muitas convicções:

Deltan Dallagnol, procurador do Ministério Público Federal durante apresentação das denúncias contra o ex-presidente Lula em Curitiba (PR) (Foto: Paulo Lisboa/Folhapress )

Assim como o caso Janaína Paschoal, os casos de Dallagnol e de Sérgio Moro merecem ser analisados pelos cientistas da mente especialistas em psicopatologia, que nos ajudem a compreender a estrutura psicológica subjacente a estas pessoas que se utilizam do Direito como instrumento para perseguição e condenação de adversários políticos. O fascismo no Brasil hoje utiliza-se sem pudores das armas da lawfare e está conectado ao que Theodor Adorno chamava de Personalidade Autoritária, cujo grau de fascismo o pensador da Escola de Frankfurt propôs medir com o termômetro que chamou de “Escala F”.

Escorel, evocando um célebre pensamento de Walter Benjamin, escreveu na Piauí: “Quando o anjo da história de que nos fala Walter Benjamin olhar para trás, com as asas abertas pela ventania, verá Dilma soterrada pelos escombros ou ela terá sido capaz de se reinventar, assegurando seu legado para o futuro? Não há como saber ao certo. Quanto a Lula, é difícil imaginar que ele deixe de ter lugar de destaque no cenário contemplado pelo anjo.”

Seja como for, o documentário de Maria Augusta Ramos chega em boa hora e está destinado à História. O Cinema do Real atingiu aqui um grau impressionante de fidedignidade na captura dos processos históricos que torna ‘O Processo’ uma obra de estudo e de reflexão indispensável para todos nós que tentamos compreender a realidade política do Brasil em conexão com os eventos globais. Trata-se de um registro imprescindível das entranhas de um processo kafkiano, em que a arma do impeachment foi mobilizada por quadrilhas parlamentares que foram capazes de perpetrar um Golpe de Estado que, longe de ter se consumado na íntegra em 2016, ainda está entre nós, causando o estrago de um elefante na casa de louças.

Diante desse cenário de pesadelo, desta distopia do real, o filme pode dar voz aos vencidos – talvez eles é que tivessem razão, como costuma acontecer tantas vezes na História! – sem deixar de retratar a ideologia dos vencedores. Resta-nos o alento de pensar que vencidos e vencedores são sempre posições provisórias na Roda Viva do processo vivo da História. O documentário de Maria Augusta Ramos vem contribuir para que se enxergue a verdade e para que se faça justiça.

“O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” – Walter Benjamin (15 de julho de 1892 — 27 de setembro de 1940)

Por Eduardo Carli de Moraes || http://www.acasadevidro.com
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Programa Entre Vistas de Blog do Juca Kfouri entrevista a cineasta

DILMA ROUSSEFF VIVEU DIAS DE JOSEF K.: O Sindicato de Ladrões, a Bancada da Barbárie e o Golpismo Kafkiano

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“Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo.” – George Santayana (1863-1952) [FB]

DILMA ROUSSEFF VIVEU DIAS DE JOSEF K

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.” Eis uma das frases mais memoráveis da história da literatura, em que Franz Kafka, logo nos primeiros passos d’O Processo, começa a revelar os meandros de uma maquinaria jurídica e política grotesca, verdadeiro rolo compressor de esmagar cidadania.

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Ilustração: Robert Crumb

— Não há dúvida – disse K. – de que por trás de todas as manifestações deste tribunal, no meu caso por trás da detenção e do inquérito de hoje, se encontra uma grande organização. Uma organização que mobiliza não só guardas corrompíveis, inspetores e juízes de instrução pueris, no melhor dos casos simplórios, mas que, além disso, sustenta uma magistratura de grau elevado e superior, com o seu séquito inumerável e inevitável de contínuos, escriturários, gendarmes e outros auxiliares, talvez até de carrasco, não recuo diante dessa palavra. E que sentido tem essa grande organização, meus senhores? Consiste em prender pessoas inocentes e mover contra elas processos absurdos e na maioria das vezes infrutíferos, como no meu caso. Diante dessa falta de sentido do conjunto, como evitar a pior das corrupções entre os funcionários? (KAFKAO Processo, Cia das Letras, p. 61)

Pergunto-me se Dilma Roussefff, em meio ao processo de impeachment, não se sentia vivenciando na pele alguns dias de Josef K, acossada por todos os lados por um imenso complô parlamentar-jurídico-midiático-empresarial. Como ela deve ter se sentido ao ter, apontados contra ela, os dedos acusadores de canalhas notórios e delinquentes engravatados do naipe de Cunha, Aécio, Jucá, Bolsonaro, Feliciano etc.? Como deve ter sido sentir contra ela a oposição militante (e frequentemente desleal) de megacorporações midiáticas, com imenso poder de calúnia e difamação, como a Globo e a Abril?  Na sequência, tentaremos explorar os detalhes do kafkiano putsch que, no Brasil de 2016, derrubou a presidenta da República, re-eleita em 2014 com mais de 54 milhões de votos, dando iniciando a uma trevosa era de barbárie (que tem na PEC 241, uma das primeiras ofensivas do regime Temer, uma das primeiras ações visando instaurar uma era glacial para a saúde, a educação e a previdência públicas no país).

No sinistro dia 17 de Abril de 2016, em que estive nas ruas de Brasília filmando o documentário curta-metragem O Céu e o Condora impressionante maré de ativismo anti-golpista que tomou as ruas da capital federal contrastava com as tenebrosas transações urdidas dentro da Câmara dos Deputados. Nesta, uma espécie de Tribunal de Exceção, presidido por um bandido contumaz (Eduardo Cunha – PMDB), organizou-se em gangue para um complô golpista que já é uma das páginas mais vergonhosas e lamentáveis na história desta imatura e imperfeita democracia que estivemos tentando construir.

Invocando Deus, Pátria e Família, muitos deputados clamaram pelo impeachment de uma presidente sobre quem não pesava nenhuma denúncia de corrupção, nenhuma acusação de enriquecimento ilícito ou desvio de verbas públicas; diante da pífia acusação das “pedaladas fiscais” (praticadas por 18 governadores estaduais em exercício), os acusadores tudo fizeram para distorcer o Processo e condenar a presidenta eleita por razões como “o conjunto da obra”, a “crise econômica”, os “milhões de desempregados” – ou simplesmente sua pertença ao PT (partido que tem sido demonizado e defenestrado pelas forças golpistas num processo de alto teor fascista).

A prova de que Dilma não cometeu nenhuma irresponsabilidade criminosa que justificasse sua destituição do cargo quem deu foi o próprio Senado: sua derrubada não acarretou a perda de seus direitos políticos (que crime gravíssimo é este que permite que a “criminosa” seja candidata a qualquer cargo público no futuro próximo?). Além disso, aquilo que nunca havia sido crime pra nenhum governante, foi crime somente para poder degolar a presidenta… deixou de sê-lo dois dias depois da condenação de Dilma. “Justiça?”

Em uma Câmara que mais parecia um Sindicato de Ladrões, tamanho o número de reús na Justiça que ali “trabalha”, muitos deputados deram seu apoio à destituição de Dilma com uma hipocrisia que beira o inacreditável: falavam em Deus e no combate à corrupção, e no entanto eram coniventes com a satânica maquinaria de linchamento midiático e jurídico de uma presidenta que, nas palavras de Márcia Tiburi, tem sofrido um verdadeiro “estupro político”, mesmo que tenha como marca notória o fato de não ter sido denunciada em nenhum escândalo de corrupção (ao contrário de seus carrascos e inquisidores!).

Alguns chegavam a sugerir que o processo de impeachment era a vontade autêntica do povo brasileiro, expresso nas ruas, referindo-se às massas-de-manobra que, em ocasiões como o 15 de Março de 2015, foram conduzidas pelo aparato midiático e pelos master of puppets da Sociedade do Espetáculo a participarem de “manifestações”. É estranho considerar como “povo brasileiro” aqueles que paulistanos (eleitores de Aécio, de Alckmin e de Dória) que foram à Avenida Paulista, convocadas pela Rede Globo e pela Editora Abril (dentre outros ilustres integrantes do P.I.G.), seduzidas pelo filé mignon gratuito ofertado pela Fiesp, respondendo ao chamado de páginas do Facebook como MBL e Revoltados On Line (financiadas pelo ultraliberalismo e seus partidos), vestidos com camisetas da corruptíssima CBF, para participarem de “eventos cívicos” (por assim dizer…) onde a fascistóide tendência do anti-petismo idiótico e do analfabetismo político deram o tom. Os paralelos com eventos de 1964 – como a “Marcha da Família, com Deus, Pela Liberdade” – eram evidentes. (Leia também: Contestáveis Contestações)

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Jornal “O Dia” de 03 de Abril de 1964 bradava: “Mais de um milhão de pessoas na Marcha da Família, com Deus, Pela Liberdade! Fabulosa demonstração de repulsa ao comunismo!”

Uma das mais esclarecedoras entrevistas concedidas por Dilma Rousseff, à Revista Caros Amigos #233, revela um pouco do Mapa do Golpe. O jurista Miguel Reale Júnior, um dos autores do pedido de impeachment junto com Hélio Bicudo e Janaína Paschoal, tornou explícito o seguinte: “não foi coincidência que Eduardo Cunha tenha decidido acolher o impeachment no momento em que deputados do Partido dos Trabalhadores decidiram votar favoravelmente à sua cassação no Conselho de Ética. Foi uma chantagem explícita.” (Veja a matéria em Pragmatismo Político:http://bit.ly/2djJr12)

Nesta entrevista à Caros Amigos, Dilma frisa a anomalia da coisa: “Na origem do processo, o autor do pedido de impeachment chama a aceitação do próprio impeachment de “chantagem explícita”? Aí, um belo dia, gravam o Romero Jucá falando que tem que tirar a Dilma para parar a sangria, que era chegar a investigação até eles…” (pg 19)  Um criminoso notório como Cunha – corretamente chamado de “gangster” pelo deputado Glauber Braga (PSOL) – pôde dar início à maquinaria do golpe parlamentar por seu interesse pessoal em safar-se com impunidade dos inúmeros crimes que cometeu. Diz a Dilma: “não foi por falta de denúncia da Procuradoria Geral da República, não foi por falta de divulgação de que ele tinha contas secretas na Suíça. Enfim, não há quem possa, neste período, ignorar quem era Eduardo Cunha. Não é possível. Isso tudo foi pra mídia.”

Como foi possível que o gangster Cunha pudesse permanecer impune para presidir a sessão da Câmara em que o impeachment avançou para o Senado senão pela indecorosa atuação da mídia corporativa e do STF ao se tornarem cúmplices deste poderoso e prepotente bandido? Mesmo diante de tantas evidências de sua criminalidade e de todo o caos que causou este sabotador geral  da república, Cunha pôde chefiar o golpe e dar a gargalhada final: ao ser cassado, riu para as câmeras e disse: “a querida já foi”. O gangster, afinal de contas, saiu vitorioso, pois o governo Temer “espelha os interesses do Cunha” e “Michel Temer é tido e havido como um integrante do grupo do Cunha”. (pg. 18)

Dilma esclarece que, no seu segundo mandato, se “esforçou muito para governar, mas foi governar contra a corrente, o tempo inteiro”. Por um lado, a presidenta eleita não tinha uma base parlamentar que a sustentasse: “eu fui eleita com 54,5 milhões de votos e o PT teve só 60 deputados. O FHC foi eleito e tinha 115.” Ela conta que no seu 2º mandato, em especial após a ascensão de Cunha à presidência da Câmara, foi fuzilada em todos os seus intentos pelas pautas-bomba:

“Quem é que inventou a pauta-bomba? Nós, diante da crise, podendo sair rápido da crise porque não tínhamos os fundamentos frágeis, não tinha banco quebrando, não tinha bolha, só tinha um problema de queda de arrecadação. E, portanto, podíamos sair da crise, tinha onde passar algumas medidas. O que é que ele [Cunha] faz? Não só não passa as medidas, como cria a pauta-bomba. Me explica porque que é, de janeiro até a véspera em que eu saí do governo, não funcionava nenhuma comissão da Câmara. Ele parou a Câmara, ninguém disse nada. Não nomearam Comissão de Constituição e Justiça, de Fiscalização e Controle, a Câmara parou… Funcionava a comissão do impeachment.” (pg 19)

Este foi um “julgamento político e não jurídico”, afirma Dilma, “é isso que dá margem à gente chamar de golpe. Porque a Constituição é clara: há que haver crime de responsabilidade. (…) Nomearam uma comissão de perícia no Senado, que avaliou os processo, e o que ela diz? Um, no caso do Plano Safra, não há autoria, ou seja, como eu não participei, não tem como me acusar. E no outro caso não tem dolo, eu não sabia, não fui informada que dois ou três decretos tinham problemas. Parou aí? Não, aí vem o Ministério Público Federal e arquiva o processo, pede o arquivamento. Por quê? Por falta de materialidade, de crime. Então, este processo se caracteriza como golpe por isso. (…) Ele não é um golpe de estado tradicional, militar. Ele é um golpe parlamentar, um processo dado por dentro das instituições e não contra as instituições…” (pg 19)

Dilma não é cega ao fato de que a rivalidade entre as facções políticas em conflito, algumas delas descambadas para o golpismo e o fascismo, tem a ver com disputas específicas: “o orçamento, de disputa o dinheiro do Estado, é isso que se disputa. O orçamento é o grande objeto da disputa política. No meu caso, o golpe tem aquela razão de pedir o impeachment e assegurar que, na disputa pelo orçamento, o pato sejam os trabalhadores e as classes médias e não o dono do pato. O dono do pato não quer pagar o pato. Quer que as classes médias e o povo paguem. Todas as nossas medidas para fazer face à crise tinham um objetivo de manutenção das políticas sociais.” (pg 19)

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Charges: Vitor Teixeira

Consolidado o golpe, vem aí os ataques brutais às políticas de inclusão social e transferência de renda (como o Bolsa Família), contra a política de valorização do salário mínimo, contra programas como o Mais Médicos e contra políticas afirmativas de inclusão educacional (como o sistema de cotas), dentre muitos outros exemplo. A PEC 241, por exemplo, pretende congelar os gastos da União com saúde e educação por 20 anos (5 mandatos presidenciais), num cenário de crescimento populacional e em que os déficits de atendimento já são cruéis com os atuais recursos. O golpe é desumano: propõe sucatear a educação e não vê problemas em deixar que morram milhões de brasileiros por causa de um SUS fuzilado em prol dos planos privados de saúde. Mais que uma anomalia jurídica, uma vergonha midiática e uma injustiça ética, o Golpe de 2016 revela o colapso da empatia e da solidariedade por parte dos usurpadores do poder, sem pudores de praticarem políticas genocidas.

Antes de ser deposta, Dilma dizia: “Eu luto porque a representação popular é cada vez mais importante, considerando que eles não querem passar pelo crivo das urnas, porque eles sabem que, num processo desse, em que trata-se de reduzir direitos e dar perda para poder manter as margens de lucro deles intactas diante da crise, só tem um jeito, e não passa pelo voto popular. O meu impeachment é uma forma de eleição indireta. Esse processo deixa claro do que se trata: de impedir que o povo participe de certas decisões. E quem não tem nenhum compromisso com o povo, porque nunca recebeu um único voto, não tem o menor pudor.”

Sinto profunda indignação diante desta injustiça histórica que Dilma sofreu por parte de um Parlamento gangsterizado, que fede a enxofre e que montou uma farsa grotesca de justiciamento que têm conduzido o Brasil ao caos das polarizações violentas e da instabilidade social. Tudo em prol dos interesses empresariais-corporativos concentrados na chamada Bancada BBB – Bala, Boi e Bíblia (poderíamos aí adicionar outros Bs: de Banco, de Barbárie…):

“Os votos dos parlamentares revela que a rejeição à petista foi mais extrema na bancada BBB – Boi, Bala e Bíblia – e em outras que se identificam com setores empresariais. Do outro lado, votaram majoritariamente pela permanência de Dilma os grupos que atuam junto aos direitos humanos e a causas sindicais. Em ordem decrescente, votaram pelo impeachment as bancadas da bala (88,24%), empresarial (85,32%), evangélica (83,85%), ruralista (82,93%), da mineração (79,12%) e dos parentes (74,49%), formada por deputados com familiares na política.

Em números absolutos, o apoio dos parlamentares da bancada empresarial foi o mais expressivo, com o voto “sim” de 186 dos seus 218 integrantes. Em seguida, vem a dos parentes, que registrou o apoio de 181 dos 243 integrantes.(…) O parecer do deputado Jovair Arantes (PTB-GO) teve também 30 votos favoráveis da bancada da bala, de um total de 34 parlamentares financiados pelo setor de armas e munições ou ainda aqueles que defendem as propostas mais duras para a segurança pública. O grupo de deputados que apoia a mineração é outro pouco expressivo numericamente, com 24 integrantes, e rendeu 19 votos. Também nanica, a turma da bola, ligada à CBF e a clubes de futebol, dedicou 10 dos 14 votos favoravelmente ao impeachment.” – Agência Pública

Quebrando o Tabu

Depois de ter degolado em gangue a vontade do povo expressa nas urnas, depois de ter cuspido e escarrado sobre a Constituição e a Ética para condenar uma presidenta que não cometeu crime nenhum, quem duvida que os golpistas vão dar prosseguimentos ao engavetamento de todos os processos de corrupção e lavagem de dinheiro, silenciando listões da Odebrecht ou de Furnas, para enfim comemorar a impunidade-de-sempre com muita pizza e champagne?

Luiza Erundina (PSOL 50), após a votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara em 17 de Abril de 2016, manifestou sua indignação diante da atitude indefensável da barbárie direitista em nosso país:

“O deputado Jair Bolsonaro extrapolou qualquer limite. Ele deu parabéns a Eduardo Cunha, disse que seus adversários perderam em 1964 e, por fim, elogiou os militares do golpe e dedicou o voto ao coronel “Carlos Alberto Brilhante Ustra, o terror de Dilma”. Dilma Rousseff foi colocada no pau de arara, apanhou de palmatória, levou choques e socos que causaram problemas graves na sua arcada dentária. Aos 22 anos. Ela militava no setor estudantil do Comando de Libertação Nacional (Colina), que mais tarde se fundiria com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), dando origem à VAR-Palmares.

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Essas sessões de torturas foram realizadas no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo, e também em uma prisão da cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Ustra foi responsável pela morte de pelo menos 50 pessoas nos porões do DOI-CODI no período em que chefiou a instituição. Ele também chefiava o DOI-CODI quando a presidente Dilma foi presa e torturada.

Muitos brasileiros lutaram contra a ditadura e deram sua vida pela democracia ainda jovem que temos hoje. Se hoje podemos discutir e questionar um governo do qual divergimos, também devemos isso a pessoas que enfrentaram a ditadura. Ver uma fala como esta ser aplaudida no plenário da Câmara em um processo de impeachment conduzido por corruptos é emblemático. Não dá pra ter dúvidas quanto ao risco que corremos hoje.” ‪#‎Erundina‬, 18/04/2016 @ Facebook (8.000 curtidas, 2.700 compartilhamentos)

Diante disso, não posso calar o quanto considero indignante e lamentável este Golpe travestido de impeachment, que ofende a vontade expressa das urnas e em nome do qual já se pratica o Estado policial-jurídico mais Kafkiano. Um Processo que é capitaneado de modo ditatorial, anti-popular e proto-totalitário pela cleptocracia criminosa de nosso conchavo político-empresarial.

É deslavado golpismo burguês da pior laia, que não se envergonha, neste processo de flagrante injustiça e de indignações altamente seletivas, de torturar. Bolsonaro não está sozinho em sua apologia da tortura (“Eu fui presa nos anos 1970. De fato, eu conheci bem esse senhor a que ele se referiu. Foi um dos maiores torturadores do Brasil, contra ele recai não só a acusação de tortura, mas também de mortes”, afirmou Dilma em entrevista concedida hoje (19), sobre citação feita por deputado federal a coronel da ditadura. (FACEBOOK – em post com 34 mil curtidas e 10.600 compartilhamentos) – está acompanhado, por exemplo, pela Revista Veja, que ousou estampar a cabeça decepada do ex-presidente Lula numa de suas capas de infinito mau-gosto (puro jornazismo).

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Notórios defensores do “impeachment já” evocam Deus para praticar a homenagem a torturadores, invocam o nome de Cristo enquanto dizem “sim” à degola da democracia… Os “cidadãos de bem” e “homens de família” votam em prol da barbárie da Bancada BBB e avançam a pauta assassina e ecocida do “liberalismo” do capitalismo selvagem, com a “nova era” Temer sugerindo uma “ponte para o futuro” que é pinguela para o passado…

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Um regime golpista e ilegítimo vem se erguendo sobre as ruínas pisoteadas de um governo que tem sido permanentemente sabotado e acossado por uma oposição particularmente insana em seu anti-democratismo, em seu fascismo em montante… Essa oposição não pratica “intriga”, ela já tornou-se sabotadora e usurpadora, abertamente! Com muito linchamento público do outro, e carradas da mentalidade e do comportamento de gangue (UFC da política, vale-tudo do Patriarcado testosteronado!), a turma que chefiou do “golpeachment” é  a mesma mofada e dinossáurica casta política elitista da Nova República, e que vai chutando Dilma pra escanteio como se o voto de 54 milhões fosse mero detalhe.

O golpismo em seu rumo vai  vociferando um patriarcalismo feudal e grotesco. A nossa “luta pela democracia” sangra em praça pública neste atentado que sofre aos 27 anos de sua Constituição…

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Carta 1964

Nada mais sensato e saudável para a mente de qualquer um de nós, brasileiros, do que sermos céticos e cheios-de-desconfianças diante da Rede Globo, aquela poderosa e prepotente mega-corporação cujo magnata-mor, Roberto Marinho, enquanto vivia era comparado ao “Cidadão Kane” (William Randolph Hearst, cujo retrato magistral Orson Welles empreendeu em seu clássico filme de estréia).

O império de mídia dos Marinhos, os multi-milionários plutocratas da indústria cultural brazileira, pode até justificar-se dizendo que é plenamente legítimo que uma família de oligarcas enriqueça e concentre capital, desde que faça com competência seu trabalho no ramo dos entretenimentos insosso e imbecilizantes, das novelinhas rocambolescas e sentimentalóides, do jornalismo de desinformação.

Porém, não vejo porque deveríamos desculpar com facilidade a Globo da sonegação de impostos que pratica impenitente, nem dos acordões lucrativos com a corrupta e criminosa CBF, muito menos deveríamos “deixar quieto” o fato de que tanto lucrou e se fortaleceu com os 21 anos de uma Ditadura que apoiou e em cujo golpe-de-Estado instaurador teve papel de tanto peso. Porém, dou meu braço a torcer e reconheço o mérito da seguinte reportagem, que foi ao ar em Novembro de 2010 no Jornal da Globo, sobre a biografia pessoal e política de Dilma Rousseff (recomendo!):


O jornalismo global mostra-se, nesta reportagem, menos sórdido que de costume, desvelando eventos cruciais da vida de Dilma: retrata a infância e adolescência dela, em Minas Gerais, onde Dilma estuda em escolas estaduais; mostra o início de sua militância juvenil, nos anos 1960, em órgãos como a POLOP (Política Operária); passa por seus amadurecimentos pessoais e políticos, “entre comícios e passeatas”, até o divisor de águas que foi o Golpe de 1964.

Como lembra o verbete da Wikipédia, “nascida em família de classe média alta, Dilma interessou-se pelo socialismo durante a juventude, logo após o Golpe Militar de 1964, e então ingressou na luta armada de esquerda: tornou-se membro do Comando de Libertação Nacional (COLINA) e posteriormente da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) – ambas organizações que defendiam a luta armada contra o regime militar. Passou quase três anos presa (1970–1972): primeiro pelos militares da Operação Bandeirante (OBAN), onde passou por sessões de tortura, e posteriormente pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).”

Foram 2 anos e 4 meses de prisão. Quando depois for eleita presidenta, ela integrará uma seleta lista de personalidades políticas – que inclui Nelson Mandela, na África do Sul, e José “Pepe” Mujica, no Uruguai – que foram vistos como “inimigos do Estado” durante a vigência de regimes autoritários-ditatoriais, pelos quais foram encarcerados e torturados. EM outro momento histórico, consagrando-se nas urnas como governantes democraticamente eleitos por sufrágio universal (ainda que hoje corroído pelo financiamento privado de campanhas, que dá no atual “vence a grana” que conhecemos e repudiamos!).

Julgo eu que o longo caminho de Dilma Rousseff, do pau-de-arara ao Palácio do Planalto, merece ser conhecido por cada um de nós, brasileiros, que hoje pretendem ter voz na ágora e opinar sobre os nossos destinos coletivos. Pois só assim encontraremos a sensatez e a lucidez para julgar se os gritos por “impeachment!”, que não têm cessado desde a re-eleição de Dilma, em 2014, são de fato justos e legítimos.

Dilma filiou-se ao PT (Partido dos Trabalhadores) apenas em 2001. Bem antes disso, tinha participado, junto com Carlos Araújo, dos esforços de Leonel Brizola para a recriação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Também ajudou a fundar, no Rio Grande do Sul, o Partido Democrático Trabalhista (PDT).

Em Porto Alegre, foi Secretária Municipal da Fazenda, entre 1985 e 1988. Posteriormente, entre 1999 e 2002, ainda na zona gaúcha, foi secretária estadual de Minas e Energia. Isto pavimentou seu caminho para se tornar, com a eleição de Lula em 2002, a nova Ministra das Minas e Energia. A partir de 2005, Dilma assumiria o cargo de Ministra-chefe da Casa Civil, substituindo José Dirceu (que renunciou na época em que estourou o “mensalão”).

Dilma Rousseff não foi somente a primeira mulher a ser eleita presidente do Brasil, foi também a primeira mulher a ser ministra da Casa Civil e das Minas e Energia – um triplo ineditismo, pois, em um país onde a política esteve marcada desde sempre por patriarcalismo, por machismo, por masculinismo.

Filha de um advogado búlgaro e uma professora brasileira, Dilma Rousseff decidiu, em 1968, que não podia ficar calada ou submissa diante dos descalabros da ditadura.

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#Ebooks: RÉGIS DEBRAY, “Revolution In The Revolution?” (Grove Press, 1967, 129 pgs). Acesse o PDF / Faça o download do livro digital: http://bit.ly/2cVD9Ss (7 mb). FB.

debray“Para Apolo Heringer, que foi dirigente do COLINA (Comando de Libertação Nacional) em 1968 e havia sido professor de Dilma na escola secundária, a jovem fez opção pela luta armada depois que leu ‘REVOLUÇÃO NA REVOLUÇÃO,’ de Régis Debray, filósofo e intelectual francês que na época havia se mudado para Cuba e ficara amigo de Fidel Castro. Segundo Heringer, “O livro incendiou todo mundo, inclusive a Dilma”. (Cf. Luiz Maklouf Carvalho. “As armas e os varões: a educação política e sentimental de Dilma Rousseff”. Revista Piauí (31), p. 22-31. Abril de 2009. Visitado em 19 de outubro de 2014.)

Vale a pena perguntar, para contraste, o que estavam fazendo Aécio Neves ou Eduardo Cunha – pretendentes ao poder supremo desta república! – na mesma época em que Rousseff ajudava a editar o jornal “O Piquete”, dava aulas de marxismo e debatia com os companheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) sobre os melhores rumos para a luta popular brasileira contra o regime ilegal dos militares.

O que testemunhamos em 2014, no combate acirrado entre Dilma e Aécio, foi também um acerto-de-contas entre figuras que estiveram de lados opostos desde a Ditadura. Aécio foi sempre da elite mimada que mama nos privilégios de família; faria seu renome político utilizando-se do nepotismo marketeiro do playboy que acha que pode mandar pois é “o neto do Tancredo!”.

Dilma, em contraste, foi uma desses jovens brasileiras que decidiu ir à luta contra um regime instalado pela violência, que derrubara Jango com participação do imperialismo dos EUA. Uma ditadura sanguinária e repressora que era sentida como injusta e inaceitável. Dilma participou ativamente de organizações revolucionárias, inclusive as que incluíam entre suas táticas a guerrilha armada, enquanto Aécio Neves cheirava cocaína, em notas de 100 dólares, protegido em seus privilégios pela força armada de um regime sanguinário.

Ela viveu na pele a agressividade do regime que contestou na militância: Dilma Rousseff foi presa pelo DOPS e torturada barbaramente por ser supostamente uma “perigosa inimiga pública” e por participar de sequestros e assaltos à banco atribuídos à VAR-Palmares.

“Usando vários codinomes, Dilma teria recebido epítetos superlativos dos relatórios da repressão, definindo-a como ‘um dos cérebros’ dos esquemas revolucionários”,como lemos na Wikipedia. “Um promotor que denunciou a organização chamou-a ‘Joana d’Arc da subversão’, a chefiar greves e assessorar assaltos a bancos, o que Dilma contesta, dizendo nada lembrar das tantas ações que lhe atribuem.”

A “Joana D’Arc da subversão” é, pois, uma invenção paranóica dos militares. Eis uma Dilma demonizada, que existia somente na imaginação de figuras como o general Carlos Alberto Brilhante Ulstra. A Dilma Rousseff real era bem diferente de sua caricatura fabricada pelos delírios de seus adversários fardados. Infelizmente, até hoje o que ocorre é que boa parte da informação histórica e biográfica de que dispomos, nos retratos de Dilma, ainda se baseiam em obras escritas pela Direita – como fica evidente no seguinte verbete da Info Escola, que traz como referência bibliográfica única… o livro de Ulstra!

“Ainda no ano de 1969, alguns integrantes líderes da VAR-Palmares, entre eles Dilma Rousseff, planejaram o sequestro do civil no governo militar identificado como símbolo do milagre econômico, Delfim Neto. A ação, contudo, foi abortada porque os membros da VAR-Palmares começaram a ser capturados pelos militares. (…) A VAR-Palmares padeceu na mão da repressão praticada pelo regime militar: dois de seus principais líderes, Carlos Alberto Soares de Freitas e Mariano Joaquim da Silva, foram presos e assassinados pelo DOI-Codi no Rio de Janeiro. Ainda no ano de 1969, ano de fundação da VAR-Palmares, um grupo interno de dissidentes abandona o movimento para reconstituir a Vanguarda Popular Revolucionária. Enquanto isso, outro grupo dava início à organização que ficaria conhecida como Grupo Unidade.” (INFO ESCOLA: http://www.infoescola.com/historia-do-brasil/var-palmares/)

Aqueles que querem pintar um retrato de Dilma como sangue-nos-olhos, perigosa terrorista Guevarista, cometem uma falsificação histórica. Dilma nunca foi exatamente um Lamarca ou um Marighella.  Talvez por isso Lula, ao fim de seu segundo mandato, no momento de escolher alguém para apadrinhar com seu imenso capital de carisma e popularidade, conquistados em seus 8 anos na presidência, ao fim dos quais foi considerado por pesquisas de opinião como o melhor presidente da história do país, viu em Dilma alguém que seria capaz de encarnar a figura sedutora interpretada antes pelo “Lulinha-Paz-E-Amor”. E foi a Dilminha-Paz-E-Amor quem venceu nas urnas, não a Dilma torturada e guerrilheira!

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A descrença na “solução armada”, porém, vêm de longe na vida de Dilma:

“Em um congresso em Teresópolis, entre agosto e setembro de 1969, teria havido grande divisão entre os ‘militaristas’, focados na luta armada, e os ‘basistas’, que defendiam um trabalho de massas. Dilma estava com o segundo grupo. Enquanto os primeiros se agruparam na VPR militarista, liderados por Lamarca, Dilma ficou no segundo grupo, a VAR-Palmares basista. (…) Após a divisão, Dilma foi enviada a São Paulo, onde esteve encarregada de manter em segurança as armas que couberam a seu grupo. Evitando mantê-las em apartamentos sem a segurança necessária, ela e a amiga Maria Celeste Martins (décadas mais tarde, sua assessora na Casa Civil) mudaram-se para uma pensão simples na zona leste urbana, escondendo o arsenal debaixo da cama.

Foi capturada pela Operação Bandeirante, no mesmo local onde cinco anos depois Vladimir Herzog perderia a vida. Foi torturada por 22 dias com palmatória, socos, pau de arara e choques elétricos. No meio militar, há quem veja o relato de Dilma com ironia e descrédito, especialmente quanto à possibilidade de alguém sobreviver a tanto tempo de tortura. Posteriormente, Dilma denunciou as torturas em processos judiciais e a Comissão Especial de Reparação da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro aprovou pedido de indenização por parte de Dilma e de outras 18 pessoas.” (Wikipédia)

Em minha pueril perspectiva de jornalista um tanto romântico, acredito que a função social e a razão-de-ser do jornalismo deve ser esta: pôr em circulação o máximo de verdade que for possível descobrir e desvelar sobre a nossa realidade social comum. E isto não é o que vejo a grande mídia praticar no Brasil: a Rede Globo, a Editora Abril, a Revista Veja, os jornalões como Folha De São Paulo e Estadão, parecem estar cegos à sua tarefa de “esclarecedores da opinião pública” e praticam a interesseira manipulação-de-massas, da mais descarada, praticando de modo recorrente a desinformação e pintando retratos caluniosos e demonizantes de adversários políticos. Dilma Rousseff (e Lula) merecem uma mídia muito melhor que esta nefasta horda de fascistóides, militaristas e golpistas que infelizmente têm voz demais nos órgãos midiáticos “de Ibope”.

Aqui, n’A Casa de Vidro, tentaremos seguir contribuindo, na medida do possível, para transcender a desinformação que por aqui é prática burguesa reiterada, banalizada e voluntária. Nenhuma democracia se faz sem informação de verdade – e disso estão nos privando os “peixes grandes” da imprensa capitalista-corporativa, que estão escondendo do Brasil a verdadeira dimensão histórica de figuras como Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff – que alguns idiotas ainda insistem em tratar como se fossem algum tipo de “lixo social”  que se deveria varrer para o lixo da História com a “vassourinha” violenta da truculência militar ou dos golpes de Estado perpetrados por parlamentares em gangue.

Os derrotados nas urnas, ressentidos por serem minoria nas eleições, magoados e vingativos com a derrota de Aécio, tendem a manifestar seu ódio à democracia através de deturpações históricas e delírios paranóicos. São ingredientes explosivos e conducentes à barbárie do fascismo. Ao invés da Dilma imaginada como demônio pelos seus adversários alucinados, conheçamos e entendamos a Dilma real, a Dilma histórica, a Dilma com quem alguns ainda não perderam a esperança de que faça algo de monta em prol da justiça social e dos serviços públicos de qualidade no Brasil.

Aos golpistas e fanáticos pelo “impeachment”, digo que Dilma parece-me alguém com quem podemos dialogar e a quem se pode demandar: essa não é uma pessoa totalmente surda à voz das ruas. O problema é que “as ruas” foram cooptadas pelos aparelhos midiáticos e corporativas – em 13 de Março de 2016 e em 15 de Março de 2015, o “clamor das ruas” nas “manifestações coxinha” do “impeachment já” o que vimos foram apenas “micaretas patrióticas”, bastante ridículas e de pífio valor contestatório. Pois no fundo são muitos os milhões de analfabetos políticos que se prestam a serem massas-de-manobra dos interesses e das ideologias das elites, sem perceber que são estas elites que estão pedindo a cabeça de Dilma numa bandeja. Forçam a barra para que acusações sem pé-nem-cabeça conduzam Lula à prisão, neutralizando uma candidatura potencialmente vitoriosa em 2018.

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O PT que fez o Fome Zero e Bolsa Família, que fez mais de 4 milhões de casas com o Minha Casa Minha Vida, que alçou mais de 40 milhões de pessoas para longe da miséria, que avançou tanto no combate ao analfabetismo e à pobreza a ponto de sair do Mapa da Fome da ONU, que instaurou a justa e necessária Comissão da Verdade, que ampliou o acesso à educação aos mais desprivilegiados, poderia muito bem ser “compelido”, pelas demandas populares e pela pressão dos movimentos sociais, a fazer mais e melhor do que fez até aqui: ninguém aqui está pregando o quietismo ou a resignação e o PT está aí, sim, para ser contestado e reivindicado, criticado e defendido nos seus pontos falhos e nos seus acertos perduráveis e inovações possíveis. Criticá-la sim, mas de modo sensato, lúcido, digno, justo – e não nessa fúria fascista financiada pela FIESP e tendo como mestres-de-cerimônia os calhordas do delinCunha, do Bolsonazi, do Aécio Helicoqueiro, do Malafaia salafrário, do vamp Serra…

Não há dúvida de que há muito a melhorar em setores ainda desastrosamente sub-incentivados pelo Estado brasileiro; não há dúvida de que falta muito chão para que se concretize uma reforma agrária que des-concentre as terras e uma reforma política que des-plutocratize nossa república; temos a urgência da a instalação de uma matriz de energia baseada nos renováveis, e estamos distantíssimos disso; temos uma epopéia inteira até a conquista de um fomento à educação pública digno do slogan (até agora longe de cumprido) da “pátria educadora”; e o resquício sórdido de Ditadura Militar que é a nossa PM e nosso Sistema Penitenciário ainda nem começou a ser revolucionado, como urgentemente precisa.

Também não há dúvida de que muitas políticas petistas tem que ser contestadas – como o ecocídio desenvolvimentista praticado pelas usinas à la Belo Monte na Amazônia, como as alianças com a burguesia na figura de favorecimentos, há décadas exercido por PSDB, PMDB, PFL (atual DEM) e tantos outros moralistas sem moral, pregando contra a corrupção na hipocrisia dos corruptos vingadores, com fome de pizza, loucos para engavetar os processos de que são réus. Pegaram Dilma pra Cristo e querem degolá-la por que, depois da devassa, nada encontraram de criminoso senão “pedaladas fiscais” que são prática recorrente de qualquer gestor público.

A mídia-de-massas faz por merecer o título de P.I.G. (Partido da Imprensa Golpista) nesta crise política: ao invés de informar, manipula os afetos da massa em plena demagogia populista, que tantas vezes beira o fascismo teleguiado. O Big Brother de Orwell era uma espécie de Hitler na Era da TV, e não na do rádio, o pesadelo da manipulação massiva da opinião pública através de mentiras, falsas acusações, num ad eternum “Taca Pedra Na Geni, Taca Bosta na Geni! Ela é boa de apanhar, ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um, maldita Geni!” E não se inventa um Brasil melhor com fúria descerebrada, colhida das bocas cheias de fel de bem-pagos demagogos midiáticos que estão a serviço de elites egocêntricas e interesseiras.


CHICO BUARQUE – Geni e o Zepelim – LETRA COMPLETA

A democracia não é a guerra civil, mas tampouco é o reino da concórdia e da harmonia. A política pode ser tão mais, e ir tão além, da “continuação da guerra por outros meios”. A política pode ser – estuprado ideal! – a construção coletiva e comum da sociabilidade justa e ética. Discordemos, pois – já que democracia é diálogo entre discórdias, deliberação entre diferenças! Mas o façamos, para o nosso bem, o mais bem informados que pudermos, com o máximo de enraizamento histórico e de engajamento solidário no presente que pudermos. O mundo comum é o que está em jogo – e neste tabuleiro não joguemos a farsa tola do bode expiatório, da “degola” redentora da Dilma, como se algo de sublime pudesse advir de uma injustiça histórica tremenda, que vai pesar em sombrias páginas escritas por historiadores do futuro que hão de se assombrar com um tão Kafkiano Processo.

Eduardo Carli de Moraes
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SIGA VIAGEM…

A “DEFESA” DE DILMA:

Dilma Defende-se
Ato Em Defesa da Presidenta Dilma Rousseff – Juristas Pela Legalidade e Em Defesa da Democracia, 22 de Março de 2016. Vídeo completo, 49 minutos. Discursaram antes da presidenta a professora de direito da UnB, Beatriz Vargas Ramos, e o ministro José Eduardo Cardozo (AGU):

Veja também:

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Em Junho de 2013, quando tem início a vertiginosa queda de popularidade de Dilma, ela manifestou em cadeia nacional a intenção de instaurar plebiscito e constituinte para realizar uma Reforma Política que remediasse a gravíssima crise de representação:

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Dilma 2Dilma conta como teve dente arrancado a socos por torturador [http://bit.ly/1Sh64Nh]

O Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) detalhou como a tortura era praticada por agentes públicos durante o período militar. As informações contidas nos depoimentos dão uma noção mais clara dos requintes de crueldade sem poupar nem mesmo mulheres, adolescentes ou inocentes presos de forma clandestina e sem qualquer direito básico a defesa, algo injustificável mesmo por aqueles que pregam a volta dos militares como se vê em algumas manifestações ou se ouve de alguns parlamentares.

Naquela época, a presidente Dilma Rousseff era uma das líderes de uma organização chamada Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Ela foi presa em janeiro de 1970, pela Operação Bandeirante. Assim como outros opositores do regime militar, Dilma foi torturada e até hoje alega sofrer com sequelas físicas e psicológicas.

No relato que fez à Comissão Estadual de indenização às Vítimas de Tortura de Minas Gerais, em 2001, Dilma conta como teve um dente arrancado a socos, sobre as sessões de tortura (algo que parecia ser uma praxe entre os presos interrogados), sobre ser amarrada em um pau de arara e sobre os choques.

“Eu vou esquecer a mão em você. Você vai ficar deformada e ninguém vai te querer. Ninguém sabe que você está aqui. Você vai virar um ‘presunto’ e ninguém vai saber”, era uma das ameaças ouvidas de um agente público no período em que esteve presa. “Tinha muito esquema de tortura psicológica, ameaças (…) Você fica aqui pensando ‘daqui a pouco eu volto e vamos começar uma sessão de tortura’”, contou Dilma.

Dilma foi levada para a Operação Bandeirante no começo de 1970, em Minas Gerais. “Era aquele negócio meio terreno baldio, não tinha nem muro direito. Eu entrei no pátio da Operação Bandeirante e começaram a gritar: ‘Mata!’, ‘Tira a roupa’, ‘Terrorista’,’Filha da puta’, ‘Deve ter matado gente’. E lembro também perfeitamente que me botaram numa cela. Muito estranho. Uma porção de mulheres. Tinha uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu nome verdadeiro. Ela disse: ‘Xi, você está ferrada’. Foi o meu primeiro contato com o ‘esperar’. A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para apanhar. Eu senti ali que a barra era pesada. E foi. Também estou lembrando muito bem do chão do banheiro, do azulejo branco. Porque vai formando crosta de sangue, sujeira, você fica com um cheiro”, relata.

Oficialmente, a tortura sempre foi negada pelos militares. De acordo com o relatório da CNV, era uma prática instituída dentro do regime militar, inclusive com premiação de torturadores com a Medalha do Pacificador.

No caso de Dilma, o principal responsável pela tortura era o capitão Benoni de Arruda Albernaz. “Quem mandava era o Albernaz, quem interrogava era o Albernaz. O Albernaz batia e dava soco. Ele dava muito soco nas pessoas. Ele começava a te interrogar, se não gostasse das respostas, ele te dava soco. Depois da palmatória, eu fui pro pau de arara”, conta. Albernaz era o chefe da equipe A de interrogatório preliminar da Oban quando Dilma foi presa, em janeiro de 1970.

DENTE ARRANCADO A SOCOS

Um dos pontos mais gráficos nos trechos do depoimento de Dilma contidos no relatório fala sobre o episódio no qual teve um dente arrancado a socos, que lhe acarretou sequelas até os dias atuais. “Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz completou o serviço com um soco arrancando o dente”, conta Dilma.

Mas para estas pessoas, a principal memória dos dias em que foram submetidos a práticas desumanas e quase medievais de tortura, em pleno século 20, são as sequelas que perpetuam até hoje em suas vidas.

“Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a gente sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho que ajudou o fato de sermos mais novos, agora, ser mais novo tem uma desvantagem: o impacto é muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a vida melhor quando se é jovem, fisicamente, mas a médio prazo, o efeito na gente é maior por sermos mais jovens. Quando se tem 20 anos o efeito é mais profundo, no entanto, é mais fácil aguentar no imediato.

Fiquei presa três anos. O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente o resto da vida.

Quando eu tinha hemorragia – na primeira vez foi na Oban – pegaram um cara que disseram ser do Corpo de Bombeiros. Foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não me bater naquele dia. Em Minas Gerais, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso até o final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital de Clínicas.

As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim”, relatou Dilma.

Lendo relatos como esse, seja da presidente ou de qualquer outra pessoa que esteve custodiada pelos militares naquela época, fica claro que, independente da orientação política ou do que cada um acredita, uma sociedade civilizada não deveria compactuar ou esquecer da selvageria que foi praticada naquela época e que se perpetua até hoje, de forma arbitrária, entre as camadas mais pobres, talvez como resquícios daqueles tempos. (por Daniel Favero, no Terra Notícias, 2014)

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Ilustração: Carlos Latuff

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE – Relatório completo.

ACESSE JÁ – VOLUME 01: http://bit.ly/1Hhtxcz. VOLUME 02:http://bit.ly/1GIXnbI. VOLUME 03: http://bit.ly/1IMTBgT.

Instalada em maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade procurou cumprir, ao longo de dois anos e meio de atividade, a tarefa que lhe foi estipulada na Lei no 12.528, de 18 de novembro de 2011, que a instituiu. Empenhou-se, assim, em examinar e esclarecer o quadro de graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.

Com apoio de um diligente conjunto de consultores e assessores, e de colaboradores voluntários, nós, conselheiros da Comissão, por designação presidencial, dedicamo-nos à busca de um grande volume de documentos, tomamos centenas de depoimentos, realizamos audiências públicas por todo o território nacional, dialogamos intensamente com a sociedade, buscando fazer de nossa missão fator de mobilização da sociedade brasileira na defesa e na promoção dos direitos humanos.

Agora, também em cumprimento à lei, apresentamos, em três volumes, o relatório que contém a enumeração das atividades realizadas pela Comissão, a descrição dos fatos examinados e nossas conclusões e recomendações.

SITE OFICIAL: http://www.cnv.gov.br/
Integraram a CNV: José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti, Maria Rita Kehl, Pedro Dallari, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Cardoso.

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CONFIRA TAMBÉM:

Em-Busca-de-Iara-1EM BUSCA DE IARA (2003),
um documentário de Flávio Frederico e Mária Pamplona

Sinopse: Através de uma investigação pessoal de sua sobrinha, Mariana Pamplona, o filme resgata a vida da guerrilheira Iara Iavelberg (1943-1971). Uma mulher culta e bela, que deixou para trás uma confortável vida familiar, optando por engajar-se na luta armada contra a ditadura militar.

Vivendo na clandestinidade, na esteira de uma rotina de sequestros e ações armadas, tornou-se a companheira do ex-capitão do exército Carlos Lamarca, compartilhando com ele o posto de um dos alvos mais cobiçados da repressão. O filme desmonta a versão oficial do regime, que atribui sua morte, em 1971 a um suicídio.

Trailer:

Site Oficial: http://www.embuscadeiara.com.br/

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ENTREVISTAS:

A BOB FERNANDES

A GLENN GREENWALD

Com “A Caça”, o cinema de Vinterberg atinge a grandeza de Bergman e dialoga com Kafka e Ibsen

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#EscritosEstéticosDeUmCinéfiloCompulsivo
por Eduardo Carli de Moraes // www.acasadevidro.com

Dizem que a mentira tem perna curta. Mas aí não se esconde uma crença um tanto otimista? A mentira pode ter perna longa, perdurar por séculos, atravessar milênios… Em A Caça, do enfant terrible dinarmarquês Thomas Vinterberg, a mentira é uma bola-de-neve. O filme explora a disseminação quase epidêmica de uma calúnia e através de uma narrativa vigorosa, que nos lembra de clássicos da literatura como O Processo de Kafka, O Inimigo do Povo de Ibsen e Reparação de Ian McEwan, crava um novo clássico no céu do cinema contemporâneo.

Logo no início do romance kafkiano, em uma primeira sentença memorável na história da literatura, Josef K. acorda de sonos intranquilos e é preso “sem ter feito nada de errado”, concluindo de imediato que alguém o deve ter caluniado. É um despertar quase tão traumático quanto aquele de Gregor Samsa na Metamorfose. No romance esplêndido de McEwan, a pequena Briony, de imaginação fértil, ignorante sobre os jogos carnais luxuriantes dos adultos, lança uma acusação de estupro que terá graves consequências para o futuro dos acusados.

Às vezes não é preciso ser condenado para ser danado por uma acusação. Como pode-se inocentar alguém completamente depois de ter sido maculado pela acusação mesma? Eis um ponto de interrogação, intrigante e inspirador, que parece ser algo comum às três obras, a de Kafka, a de McEwan e ao filme de Vinterberg. Lucas, o protagonista de A Caça, também vê-se engolfado por um processo em que acaba sendo condenado, proscrito e judiado. A acusação parte de alguém presumivelmente inocente, sem mácula: Vinterberg também faz a “acusação” partir de uma criança, como ocorre em McEwan.

A vibe do filme, vibrante de um certo grandeur trágico que Vinterberg consegue comunicar a seu filme, lembra alguns dos filmes mais perturbadores de Ingmar Bergman ou Michael Haneke. A Caça é tão bem narrado, com uma trama tão bem traçada, que torna-se um thriller com uma qualidade narrativa que beira as estratosferas, ou seja, que rivaliza com Ibsen ou Strindberg.

Na peça do grande dramaturgo norueguês Ibsen, O Inimigo do Povo, o protagonista é um médico que descobre em sua comunidade um crime ambiental, uma contaminação das águas, que transforma rios e termas em cursos d’água envenenados com tóxicos, cheios de patogênicos. O “herói” ibseniano, aquele que levanta a voz para denunciar os ecocídios, é isolado da comunidade e taxado como inimigo do povo. Torna-se um pária social. 

Vinterberg, similarmente, também faz seu protagonista Lucas ser escorraçado da comunidade, como se ele próprio fosse um doente, um perverso, um dos leprosos de que Foucault fala, na História da Loucura, e que eram varridos para os leprosários que prenunciaram os hospícios… A Caça é uma meditação sobre a crença na lepra moral. Lucas, que acaba sendo considerado por aqueles ao seu redor como detentor deste mal da lepra moral, torna-se alguém que merece ser lançado para o ermo, que deve ser proibido de conviver em meio aos homens civilizados… Uma reflexão sobre o estigma. 

 Como toda obra-de-arte poderosa e perdurável, A Caça é perturbadora nas perguntas que coloca, intrigante nas respostas que sugere, fascinante pelos silêncios e faltas-de-explicação que permite que permaneçam. O filme é polissêmico e deixa abertas muitas portas para variadas interpretações. Mas é inequívoco e explícito em sua apresentação da inocência do acusado: a câmera de Vinterberg explica com simplicidade pedagógica as ocorrências que levaram ao mau-entendido. A justiça humana aparece em toda a sua capacidade para a lambança, todo sua aptidão a tornar-se corrompida, toda a força das circunstâncias com poder de desencaminhá-la. Justiça humana, demasiado humana, e um bocado imperfeita.

Sob o signo de Saturno, possuído pelos fantasmas de Kafka e Ibsen, Bergman e Strindberg, Vinterberg realizou com a A Caça algo similar à proeza conquistada por seu filme de estréia, Festa de Família (Festen): mostrar que Lars Von Trier não é um gênio solitário no cinema nórdico da atualidade, mas que continua em ótima companhia. Que dois enfant terribles sejam muito mais supimpas para a vitalização da arte do cinema do que um enfant terrible sozinho, quem duvida? Avante, iconoclastas!

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AtonementIAN McEWANAtonement / Reparação

DEVEMOS COMER ANIMAIS? – A ética do vegetarianismo segundo Safran Foer, Kafka, Adorno, Isaac B. Singer, McCartney, dentre outros

Factory Farm Editorial by KerriAitken
American Pork Shipped to China

DEVEMOS COMER ANIMAIS?
por Eduardo Carli de Moraes

I. PRELÚDIO: COLEÇÃO DE QUESTÕES (IM)PERTINENTES

Filósofo: aquela criatura que, para cada resposta que lhe fornecem, formula dez novas perguntas! Perguntemos sem temor, pois! Já que o perigoso, de fato, não é perguntar demais, mas sim a vida acéfala e irrefletida – e que não vale a pena ser vivida.

Correr o risco do questionamento crítico pode ser perigoso, mas nada questionar é mais perigoso ainda!  Talvez aquilo de que o mundo precise com urgência, mais do que de dogmas e catecismos, seja de uma uma avalanche de perguntas que coloquem as certezas instituídas em maus lençóis.

Dentre as interrogações cruciais, eu elencaria esta: deveremos considerar como normal e banal o nosso sistema de produção alimentar tão vastamente calcado no carnivorismo? Em termos mais simples: devemos comer animais, e investir nosso dinheiro em engrenagens que “produzem” carne?

É uma maravilha do sistema produtivo capitalista globalizado que por agora nos rege que, em um único país (os EUA), nada menos que 10.000.000.000 (dez bilhões) de animais sejam abatidos para serem comidos todos os anos? Podemos dormir de consciência tranquila quando os magnatas da indústria-da-carne nos garantem que praticam “métodos humanos de abate” destas 10 bilhões de criaturas que morrem a cada translação da terra ao redor do Sol somente nos Estados Unidos?

Não vale pôr em questão também a noção, bastante difundida, de que o “abate” é plenamente justificável quando se dá de modo quase instantâneo e não envolve a “agonia” lenta de uma morte torturante?

Abate: nome que se dá à imposição, por parte de um animal humano, de uma morte praticada em escala industrial contra viventes de outra espécie, dentro da lei e com sacramentados fins comerciais. Auschwitz começa (e recomeça), segundo Adorno, toda vez que alguém olha para um matadouro e pensa: “eles não passam de animais!”

Adorno

Alguns podem argumentar: ora, mas não dura o abate apenas alguns míseros minutos? O carnívoro, palitando os restos de frango entre seus dentes, pode até tranquilizar-se contando-se a fábula de que o bichinho foi “bem-tratado”, que alguns instantes de pânico tenebrosamente dolorosos e dores físicas muito além dos limites do suportável são procedimentos aceitáveis, ou melhor, são preços justos a se pagar por um bom bife, por um farto churrasco! Pensariam assim se tivessem que matar a própria janta?

Diante da minimização do que ocorre nos “abatedouros”, será que deveríamos levar em consideração também tudo o que precedeu o abateNão conta também a vida toda que levou o animal? Uma das questões cruciais a se colocar não seria esta: como passam todos os seus dias, do berço à tumba (from birth to bacon, como eu gosto de dizer), os animais presos na engrenagem humana da pecuária industrializada? Não é verídico que nascem prisioneiros, subsistem no cárcere super-lotado e imundo, são injetados com antibióticos, engordados à fórceps, tudo para acabar como commodities em um supermercado?

É justo que perguntemos, sem medo do olhar carruncudo daqueles que abominam qualquer reflexão ética: cadê a Justiça neste processo? De Percy Shelley a Peter Singer, de Bernard Shaw a Franz Kafka, inúmeros foram aqueles que puseram em questão o problema moral envolvido no império, no domínio, no abuso de poder que impomos e perpetramos aos viventes não-humanos.

A pergunta que não se coloca é esta: a ética diz respeito apenas à relação entre os humanos, ou deve incluir a relação destes com os outros animais? Não temos nenhum tipo de preocupação ética a honrar em nossas relações com aquilo que transcende o humano e integra a Vida com V maiúsculo?

Suspeito que haja uma neurose de massa hoje servindo de ideologia oficial e que seria batizável talvez como “negação da animalidade” (para dialogar com a obra-prima de Ernest Becker, A Negação da Morte). Uma condição psicológica que faz com que os humanos, querendo inflar seu próprio ego e gozar com fantasias narcísicas delusionais, queiram cortar seus laços com a animalidade, fingindo que não temos nada a ver com as “bestas desalmadas” que estas estão aí para serem usadas a nosso bel prazer. Afinal, um boi não é nada senão um bicho inventado por Deus para que os humanos o transformassem em churrasco, assim como um porco não passa de linguiça em potencial… Tá serto, Sr. Carnívoro, tá sertíçímo!

Não será preciso pôr em questão a que alguns nutrem em um direito de nascença, uma espécie de graça de Deus-Pai, que teria concedido aos humanos o privilégio de dominar com seu poderio o “resto” do mundo natural? É verdadeiro ou demencial o argumento “finalista” e antropocêntrico que pretende que Deus fez os porcos para que pudessem virar salsicha e bacon? O Todo-Poderoso pôs aqui as galinhas tendo em vista seu plano divino de que um dia KFCs e McDonald’s pudessem lucrar com a venda de sua junk food repleta de hambúrgueres e nuggets?

Não será uma doidice do pensamento considerar que as vacas foram feitas como máquinas fornecedoras de carne e de leite para os Humanos? E que agrada aos deuses que matem-se milhões de perus, todos os anos, para que possam ser devorados no feriado de Ação-De-Graças? Não ocorreu a ninguém consultar quais seriam a opiniões que tem os perus sobre o Thanksgiving Day? Suponho que perus não consideram nada “sagrado” o procedimento de serem as vítimas de um genocídio periódico, sacrificados por humanos que estão dizendo “obrigado” a deuses que eles, humanos delirantes, imaginam como divindades famintas por carne sacrificada…

Sem falar nos mares e oceanos: são nossos para fazer o que quisermos, inclusive arrancar toda a “peixarada” com nossos empreendimentos colossais de pesca, indiferentes ao colapso de biodiversidade que assim acarretamos?

Em suma: será que, se quisermos evitar o exacerbamento da catástrofe ecológica que hoje vivenciamos, não teremos que perceber a animalidade como algo englobado na esfera da ética? Não temos virtudes a exercer e vícios a evitar também em nosso trato com outros seres sencientes?

Enfim: será que a preocupação ética não deve manifestar-se não somente em nossas relações inter-pessoais (ou seja, inter-humanas), mas também em nosso trato com a vida em geral, em quaisquer de suas manifestações específicas? Será que só a Biophilia – para usar a expressão muito feliz de Björk – irá salvar-nos de seguirmos nesta sina de sermos uma catástrofe para o equilíbrio sustentável dos ecossistemas planetários?

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Meat

Jonathan Safran Foer (1977 – ), escritor norte-americano, autor de “Tudo Se Ilumina” (Everything Is Illuminated, 2002), “Extremamente Alto e Incrivelmente Perto” (Extremely Loud and Incredibly Close, 2005) e “Comer Animais” (Eating Animals, 2009).

II. COMER ANIMAIS, DE J. SAFRAN FOER

Tendo a gostar dos livros que são, ao invés de papagaios de dogmas,  expansores de horizontes. Livros que ampliam nosso estoque de indagações e espantos. Há quem procure nos livros as verdades absolutas, as certezas indubitáveis, as receitas infalíveis. Mas acho antipático qualquer livro que pretenda ter todas as respostas e soluções, pontificadas do alto de torres-de-marfim e de púlpitos-do-privilégio. Animo-me bem mais na leitura quando sinto, conforme avanço pelas páginas, a excitação do contato com uma inteligência audaz, que quer romper as grades da gaiola e alçar vôo rumo ao proibido, ao inaudito, ao pensamento livre, para além dos tabus e dos medos.

Gosto de palavras que geram uma proliferação de inquietações inéditas, empurrando-nos assim no rumo da auto-transformação e do auto-questionamento. “Convicções são prisões”, dizia o autor do Anticristo, que preferia a companhia de espíritos livres dionisíacos a padres pregadores de camelismos crucificantes! Nietzschianamente, prossigamos, botando fé – se é preciso ter alguma! – na aposta de que é perguntando que avançamos. Pra bem viver é preciso, dia a dia, ir assassinando certezas ossificadas e ir em frente sob o influxo da dúvida peregrinante.

Stop WarsJonathan Safran Foer (1977 – ), escritor norte-americano, autor dos romances “Tudo Se Ilumina” (Everything Is Illuminated, 2002) e “Extremamente Alto e Incrivelmente Perto” (Extremely Loud and Incredibly Close, 2005), é o responsável por um dos mais extraordinários livros de não-ficção publicados neste século, o impactante  e contundente “Comer Animais” (Eating Animals, 2009, publicado no Brasil pela Editora Rocco em 2010; pode ser adquirido na Livraria Cultura [http://bit.ly/13LRfiZ] ou na Estante Virtual [http://bit.ly/1zoFfMT].).

O livro virou um best-seller internacional, celebrado por seu poder de revolucionar as ideias do leitor sobre o consumo de carne, em especial aquela produzida pelo sistema hoje hegemônico do factory farming (pecuária industrial). 

A atriz Natalie Portman, que converteu-se ao vegetarianismo após lê-lo,  declarou: “Este livro lembrou-me que aquilo que escolhemos comer define não somente nossa fisicalidade, como também nossa humanidade.” (“The book reminded me that what we choose to eat defines not only our physicality, but also our humanity.” )

Já J. M. Coetzee, autor sul-africano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, considera o livro tão persuasivo e convincente em sua descrição dos “horrores do factory farming”, que afirma o seguinte: “Se alguém continuar a consumir os produtos da indústria depois de ler o livro de Foer poderá dizer-se que não tem coração, ou que é impermeável a razão, ou ambos.”

Comer Animais é uma destas obras que vale a pena ser lida, em primeiro lugar, pelas questões que aí são formuladas. Não é que eu queira desdenhar das respostas que Jonathan Safran Foer também procura compartilhar, após uma pesquisa minuciosa e uma investigação jornalística apurada. Mas o tom questionativo é um dos méritos maiores da obra.

O que não impede que Comer Animais seja uma obra com alto potencial de “converter” carnívoros e omnívoros a uma nova dieta. É um livro de impacto social como poucos que tenham sido escritos nos últimos anos (o que o coloca na companhia de autores como Naomi Klein, Arundhati Roy, Raj Patel [Stuffed and Starved], Eric Schlosser [Fast Food Nation]…).

A eficácia da obra de Safran Foer não está em nenhum tom pregatório, mas muito mais numa expansão da consciência do leitor que o livro instiga e possibilita, e isso através de sua narrativa interrogativa e problematizante. Um livro saboroso justamente por não ser nada dogmático.

Há toda uma tradição, em especial na literatura norte-americana de raízes judaicas, de reflexão aprofundada sobre a questão dos direitos animais e das justas relações que os humanos podem estabelecer com estes outros que junto conosco constituem a Teia da Vida: Isaac Bashevis Singer, por exemplo, que assim como Coetzee foi laureado com o Nobel de literatura, pôs sua pena penetrante e apurada em sintonia com a gigantesca questão: os humanos tratam os animais de maneira similar àquela que o nazifascismo dispensava àqueles aprisionados nos campos-de-concentração? A conclusão, decerto sinistra, que Isaac B. Singer tira é que sim: para os animais, os humanos são todos azistas e a existência nas fábricas-da-carne é um “Eterno Treblinka”.

Singer

“Para que este estufado indivíduo degustasse seu presunto, uma criatura viva teve de ser criada, arrastada para sua morte, esfaqueada, torturada e escaldada em água quente. O homem não dava um segundo de pensamento ao fato de que o porco era feito do mesmo material e que este tinha de pagar com sofrimento e morte para que ele pudesse saborear sua carne. Pensei mais uma vez que, quando se trata de animais, todo homem é um nazista.” – I. B. SINGER

Comer Animais não é proselitismo panfletário em prol da causa do vegetarianismo, mas muito mais um livro que busca ir além dos tabus, das repressões, das ignorâncias voluntárias, no sentido de ampliar a extensão e a magnitude do que merece entrar na esfera da consideração ética.

Não é à toa que a maior organização global de defesa dos direitos animais traz encodado em seu nome-de-batismo a palavra ética: a PETA (People for the Ethical Treatmente of Animals), com mais de 2 milhões de membros mundo afora, é um dos temas que Safran Foer explora nas páginas deste seu romanceado tratado de Ética Prática (para lembrar também o título da obra de Peter Singer, uma das figuras contemporâneas de maior destaque na filosofagem sobre as relações dos humanos com animais). A PETA – “nenhuma organização mete mais medo na indústria da carne e seus aliados  do que ela”  – aparece aos olhos de Safran Foer como defensora de “valores que fomos covardes ou esquecidos demais para defendermos” (p. 71).

Já dá pra perceber o quanto o fio desta narrativa, não-fictícia e com altos elementos autobiográficos, consiste numa sondagem sobre valores éticos, sendo que a pergunta que não quer calar, e que repete-se em diferentes versões através do livro, é a seguinte: os seres humanos possuem ou não deveres éticos em suas relações com os animais não-humanos? No trato com cachorros, vacas, gatos, galinhas, esquilos, baratas, baleias, coelhos, estes primatas que chamam a si mesmos de homo sapiens tem direito ao vale-tudo? 

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DILEMAS DA PATERNIDADE

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Observando seu filho recém-nascido sugando o leite dos seios da mãe, Jonathan sente-se estarrecido: “Observei-o com um espanto [awe] sem precedentes na minha vida”. É que o rebento, recém-emergido do útero, lançado a uma situação radicalmente nova, trazia consigo a capacidade de nutrir-se já “encodada” em seu organismo, de modo similar aos batimentos de seu coraçãozinho ou as expansões e contrações de seus pulmões pequeninos.

Tudo isso independia da razão e do controle egóico para desenrolar-se; sem precisar usar a sua ainda incipiente e subdesenvolvida razão, ainda desconhecendo completamente a linguagem verbal, sem necessidade de ser ensinado ou condicionado, o bebê já expressava sua existência através de sístoles e diástoles, inspirações e expirações, fomes e lágrimas . E é de se suspeitar que já era assim que agiam as crianças humanas na idade da Pedra, e que assim mamavam os filhos dos homens-e-mulheres-das-cavernas…

Neste seu primeiro livro não-fictício, escrito após dois romances de sucesso (Tudo se Ilumina Extremamente Alto e Incrivelmente Perto), Safran Foer deixa claro que seu desejo de produzir um livro sobre Comer Animais é inseparável dos dilemas vinculados à experiência, para ele inédita, da paternidade. Os dilemas que ele enfrenta são: Quero que meu filho seja carnívoro? Vou esconder dele todo o sistema de produção da carne para não escandalizá-lo? Ou melhor é informá-lo, desde cedo, que aquela rodela de carne que vem dentro do Big Mac um dia foi parte de uma vaca viva e senciente, e que aqueles Nuggets são na verdade pedacinhos de cadáver de um frango que um dia esteve entre os vivos?

O charme maior do livro, segundo o meu paladar, está no tom interrogativo que o autor mobiliza para convidar-nos à reflexão não somente sobre escolhas ou preferências individuais, mas também sobre os (des)caminhos civilizacionais hegemônicos, que ele contrapõem a melhor vias alternativas.

Safran Foer envolve-se no debate sobre o sofrimento dos animais e sobre a inegável capacidade que possuem para sentir dor, medo, desconforto, mas não fica estacionado no discurso sentimental (ou mesmo sentimentalóide, como acusam os detratores do vegetarianismo).

Alguns tem a tendência a desacreditar ou mesmo desprezar quaisquer discursos que tenham um sabor de pregação moralista sobre a necessidade imprescindível de valores como compaixão e empatia. O argumento de Safran Foer, escapando ao sentimentalismo e também à brutalidade, é muito mais persuasivo e inclui amplas considerações do autor sobre o meio-ambiente em nossa era – o Antropoceno – que progride a passos largos no rumo das catastróficas disrupções climáticas e das mega migrações de refugiados de desastres ecológicos de que nosso futuro, segundo confiáveis prognósticos, estará repleto.

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“Most people agree that the environment matters. Whether or not you are in favor of offshore oil drilling, whether or not you ‘believe’ in global warming, whether you defend your Hummer or live off the grid,  you recognize that the air you breathe and the water you drink are important. And that they will be important to your children and grandchildren. Even those who continue to deny that the environment is in peril would agree that it would be bad if it were. 

In the U.S.A., farmed animals represent more than 99% of all animals with whom humans directly interact. In terms of our effect on the ‘animal world’ – whether it’s the suffering of animals or issues of biodiversity and the interdependence of species that evolution spent millions of years bringing into this livable balance – nothing comes close to having the impact of our dietary choices. (…) Very often, those who express concern about (or even an interest in) the conditions in which farmed animals are raised are disregarded as sentimentalists. But it’s worth taking a step back to ask who is the sentimentalist and who is the realist. 

Is arguing that a sentiment of compassion should be given greater value than a cheaper burger (or having a burger at all) an expression of emotion and impulse or an engagement with reality and our moral intuitions? Two friends are ordering lunch. One says, ‘I’m in the mood for a burger’, and orders it. The other says, ‘I’m in the mood for a burger’, but remembers that there are things more important to him than what he is in the mood for at any given moment, and orders something else. Who is the sentimentalist?”

(p. 74)

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The Sight

FILMES DE TERROR

Fãs de filmes de terror, eis um conselho: se vocês querem assistir algo extremamente terrificante, procurem documentários sobre a produção de carne. São imagens horrendas e explícitas registrando a tortura da carne, a agonia dolorida dos assassinados, algo que é capaz de tirar o apetite diante da janta caso esta contenha um bife.

“We know that if someone offers to show us a film on how our meat is produced, it will be a horror film. We perhaps know more than we care to admit, keeping it down in the dark places of our memory – disavowed. When we eat factory-farmed mead we live, literally, on tortured flesh. Increasingly, that tortured flesh is becoming our own.” – SAFRAN FOER, pg. 143

Assistindo aos documentários sobre este mundo-tabu que em massa nós nos recusamos a enxergar, apesar de seu peso gigantesco na realidade concreta de nosso sistema de produção e consumo de alimentoss, a gente chega facilmente à conclusão de que a realidade supera em horrores e atrocidades aquilo pode imaginar a ficção. As imagens filmadas dentro de abatedouros rivalizam em potencial de choque com qualquer vídeo da série Faces da Morte. E não são poucos que sentem-se impelidos ao vegetarianismo após assistirem Earthlings ou Cowspiracy. 

Em Workingman’s Death, por exemplo, filme que expõe alguns dos piores trampos que existem no planeta, somos apresentados a um mercadão da carne em Port Harcourt, na Nigéria. Talvez não haja nenhum setor do Inferno, tal qual imaginado por Dante na Divina Comédia, que chegue aos pés deste inferno-da-vida-real que as câmeras registraram por ali:

wmd_pWorkingman’s Death, um filme de Michael Glawogger

 No mundo dito desenvolvido, a produção da carne está bem mais protegida dos olhares públicos, é claro: arame farpado, alarmes hi-tech, guardas armados, cercas elétricas, protegem as factory farms onde bilhões de animais padecem de uma existência à la Auschwitz. A situação na Nigéria que o filme nos desvela tem ao menos uma vantagem: ali faz-se de modo escancarado, à céu aberto, à luz do dia, aquilo que no chamado 1º Mundo ocorre às escuras e longe do conhecimento dos consumidores.

A célebre frase de Paul McCartney – “se os matadouros tivessem paredes de vidro, todo mundo se tornaria vegetariano” – recebe como que um comentário irônico e uma problematização involuntária através  da revelação da realidade em Port Harcourt: ali, não há parede alguma delimitando o espaço da matança; não há pudores ou hipocrisias, mas a exibição explícita de procedimentos brutais.

De modo mais leve, jocoso e irônico, Chico Buarque também tematizou a relação entre humanos e bichos em Fazenda Modelo, novela sagaz onde um dos maiores artistas brasileiros satiriza os comportamentos de Juvenal em seu trato com vacas e gentes:

Chico3“Juvenal constatou que é mais dispendioso transportar alimentos para os animais no pasto do que abrigá-los e engordá-los em recinto fechado. Elas, as vacas, não chegaram a manifestar suas aflições e anseios. (…) Desmamar bezerro não é nada, duro é desfilhar a mãe. Ela sente calafrios e decide aquecer o inocente, ensaia trazê-lo de volta ao ventre… Juvenal custou a convencê-las que aquela abundância de leite não convinha às crianças, era artigo de exportação. (…) Depois erigiu-se um monumento, uma estátua que era uma singela homenagem ao boi trabalhador da Fazenda Modelo, vejam. “Esse instrumento dócil que nos deu a divina providência, oferecendo-nos as suas energias e faculdades, essa ferramenta maleável que segue instintivamente suportando, com uma paciência e submissão admiráveis, as fadigas e privações que lhe impomos…”

 CHICO BUARQUE DE HOLLANDA,
Fazenda Modelo – Novela Pecuária
Ed. Civilização Brasileira.
4ª edição, Rio de Janeiro, 1975.
Pgs. 43 –  52 – 79.

Assista também:

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IV. KAFKA DIANTE DO AQUÁRIO E A VERGONHA POR SER HUMANO

KafkaEm uma visita ao zoológico de Berlim, Franz Kafka (1883-1924) conversa com os peixes no aquário. Nessa época, o autor d’A Metamorfose já havia aderido à dieta vegetariana e foi flagrado por seu camarada Max Brod endereçando aos peixes uma frase destinada à fama duradoura (e que hoje estampa camisetas e posters de ativistas dos direitos animais): “Agora posso olhar para vocês em paz, eu parei de comer vocês.” (BROD, Max. Franz Kafka. New York: Schocken, 1947, pg. 74)

Implícito no dito kafkiano está a problemática da culpa e da vergonha, fardos de que Kafka se sente aliviado desde que abandonou a dieta carnívora: é como se ele se dirigisse aos peixes como alguém que cessou de ser o inimigo, o predador, o devorador cruento. O que é extraordinário na atitude kafkiana, como destaca Jonathan Safran Foer, é a capacidade do escritor de incluir os animais na esfera de suas preocupações éticas: englobados no âmbito das criaturas que merecem ser lembradas e respeitadas, os peixes sob o olhar de Kafka readquirem seu status de viventes-com-direitos e diante dos quais pode-se enrubescer de vergonha, apesar de tal atitude ser  incomum e rara.

Walter Benjamin

A vergonha é “crucial na leitura que Walter Benjamin faz de Kafka”, destaca Safran Foer, uma “vergonha que é ao mesmo tempo íntima – sentida nas profundezas de nossas interioridades – e social – algo que sentimos estritamente diante dos outros. Para Kafka, a vergonha é uma resposta e uma responsabilidade diante de outros invisíveis – diante da ‘desconhecida família’, para usar uma frase dos Diários. É a experiência fundadora da ética. (…) A vergonha é aquilo que sentimos quando quase completamente – mas não completamente – esquecemos expectativas sociais e obrigações em relação aos outros em favor de nossa gratificação imediata.” (SAFRAN FOER, pg. 36)

Quando Kafka declara que agora pode olhar os animais em paz, aí está pressuposto que antes olhava-os atormentado pela vergonha, angustiado por sua pertença ao humano. Pois a humanidade, em suas relações com o mundo animal, frequentemente age com indiferença completa em relação aos sofrimentos infligidos a outras espécies. O que é vergonhoso na atitude de muitos humanos é este esquecimento voluntário, esta indiferença cultivada, esta crueldade de empatia nula diante dos animais, que são costumeiramente excluídos da esfera das preocupações éticas humanas, tratados como se nada sentissem, como se nada sofressem, como se não passassem de coisas ou mercadorias.

A noção de que peixes são criaturas assassináveis e devoráveis pelos humanos também recebe um comentário irônico nos versos de Kurt Cobain, na canção que encerra Nevermind: “It’s ok to eat fish cause they don’t have any feelings”. 

O que é o carnivorismo senão a fé cega e errônea de que os animais estão aí para serem explorados e consumidos, a nosso bel-prazer, já que Deus (ou Francis Bacon, para aqueles que só tem fé na ciência!) nos apontou como o ápice dominador da Criação? O estar-em-paz de Kafka, vinculado à sua escolha de abraçar ao vegetarianismo, está portanto conectado à serenidade e à satisfação íntima que é possível encontrar no exercício cotidiano da empatia em relação a outras criaturas sencientes.

Safran Foer, que como Kafka possui raízes judaicas, confessa em vários trechos de seu livro uma vergonha por ser humano que toma conta de sua afetividade conforme ele testemunha as realidades horrificantes da factory farming e da pesca industrial.

Talvez o grande escritor se caracterize por uma aptidão para identificar-se com o que ele não é, inclusive com os animais. Talvez o gênio artístico seja inseparável da aptidão de praticar um devir-outro que aplica-se não só à alteridade humana, mas à alteridade em sentido mais amplo, englobando algo que vai muito além do que é humano, demasiado humano.

Considero elogio suficiente dizer que nas páginas de Jonathan Safran Foer, Franz Kafka e Isaac Bashevis Singer – para citar apenas 3 de meus escritores de estimação! – encontramos alguém que é capaz de pôr-se na pele de um peixe e imaginar o que significa vivenciar a experiência de ser pescado. Podemos ser muito enriquecido por esta experiência de tentar enxergar a perspectiva do outro: isso pode transformar o humano através do desenvolvimento de concepções com maior conteúdo de empatia e sabedoria do que atualmente em voga.

No documentário We Feed The World, por exemplo, somos apresentados a imagens de peixes pescados e com os olhos desintegrados: eles vivem em águas profundas e, quando são capturados pelas redes e puxados para a superfície, a diferença de pressão é tamanha que seus globos oculares explodem. Imagine a sensação, ponha-se na pele destes outros. E se estes olhos explodidos fossem os teus? E se a vida, ceifada assim de súbito, fosse a tua?

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Leia também:

Macca

Submissão e Insurgência em Franz Kafka – Leia o artigo em A Casa de Vidro.com

Submissão e Insurgência em Franz Kafka

Segundo Pierres Bourdieu e Clastres, Michael Löwy, Ernst Pawel, dentre outros

Submissão e Insurgência em Kafka – Estudos com Pierre Bourdieu, Michael Löwy, Ernst Pawel, Pierre Clastres, dentre outros

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SUBMISSÃO E INSURGÊNCIA EM KAFKA
Por Eduardo Carli de Moraes & Gisele Toassa

 

“Escrever – segundo Kafka acreditava – era sua única razão de viver e seu único meio de manter-se vivo. Escrevo, logo existo. 

Sendo filho não de Deus, mas sim de Herrmann Kafka e da Idade da Razão, Kafka torturou a si próprio e aos que lhe eram íntimos com a tentativa constante de tentar justificar e racionalizar aquilo que não admite explicações. O momento em que mais se acercou da fonte de suas necessidades e de sua arte talvez tenha sido em uma carta a Milena Jesenská: “Tento constantemente comunicar algo incomunicável, explicar algo inexplicável, falar de algo que sinto apenas em meus ossos e que só pode ser experimentado nestes ossos…”

Kafka não era um homem que escrevia, mas alguém para quem escrever era a única forma de ser, o único meio de desafiar a morte em vida. (…) Ele permaneceu relativamente desconhecido durante sua vida, mas sua fama póstuma chegou quase a eclipsar a de todo o meio literário de Praga; os luminares de sua época estão mortos e, quer tenham sido queimados ou enterrados, já não têm o poder de assombrar-nos. Se Kafka o faz, isso se deve, em larga escala, à paixão obsessiva que levou para o escrever como um ofício sagrado.

Isso não equivale a imputar-lhe a pretensão furtiva de alguma missão divina, humildemente não confessada. A compulsão irresistível de escrever parecia-lhe parte de um destino obscuro e profundamente pessoal, e não há dúvida de que, em boa parte do tempo, sentiu-se mais compelido do que escolhido.

“O escrever me sustenta”, escreve Kafka a Max Brod em 1922, “Quando não escrevo, é bem pior, inteiramente insuportável, e termina, inevitavelmente, na loucura. Isso, é claro, apenas partindo do pressuposto de que eu seja um escritor mesmo quando não escrevo – o que, aliás, é um fato; e um escritor que não escreve é, na verdade, um monstro que corteja a insanidade.”

Por mais singulares que fossem os sentimentos de Kafka sobre a vocação que escolheu, eles refletem também o espírito de uma era em que a literatura havia tomado o lugar da fé, dos ritos e da tradição, convertendo-se, ela própria, numa espécie de religião. Esse fenômeno não se restringiu aos judeus: Flaubert fala na literatura como “la mystique de qui ne croit à rien” (a mística de quem não crê em nada).”

ERNST PAWEL
“O Pesadelo da Razão”
Pg. 95-96. Ed. Imago.

Illustration by Boris Pelcer

I. ENTRE SUBMISSÃO E INSURGÊNCIA

Em O Pesadelo da Razão, Ernst Pawel sugere que a vida e a obra de Kafka seriam uma longa reflexão sobre um estranho fenômeno que “está longe de ser raro”: “O prisioneiro que anseia pela liberdade e que, quando enfim se abrem os portões, recusa-se a sair.” (PAWEL: pg. 188) Desde 1908 até o fim de sua vida, em 1924, o Doutor em Direito Franz Kafka trabalhou como funcionário do Instituto de Seguros de Acidentes do Trabalhador, em Praga, no Reino da Boêmia. Este setor da burocracia do Império Austro-Húngaro era uma espécie de escritório de advocacia que lidava com casos de trabalhadores feridos em serviço. Este Instituto “era responsável por bem mais de 35.000 empresas industriais”, de portes variáveis, espalhadas por um imenso território – o que às vezes exigia que Kafka viajasse para cantos do Império onde nunca antes estivera.

Em seu trabalho cotidiano, tinha que lidar com dúzias e dúzias de casos de “desgraçados”: os “Lulas” anônimos do proletariado machucado, aqueles que perdem dedos nas linhas-de-montagem ou acabam sendo tragados – como Carlitos em Tempos Modernos – pelas engrenagens. Kafka convive diariamente com casos de pessoas que, por exaustão ou distração passageira, não acompanham o ritmo da mecânica industrial, descuidam das cadências e acabam pagando o preço em membros decepados e outras desgraças.

De modo indireto, portanto, como explora Michael Löwy em Kafka: Sonhador Insubmisso, a obra kafkiana conteria uma aguda crítica ao mundo capitalista – burocratizado, mecânico, explorador, insano. O escritório onde Kafka trabalhava pretendia regular as relações entre patrões e empregados em casos trágicos de mutilação, invalidez permanente ou mesmo morte no serviço. “Esta experiência ao lidar com as reclamações de invalidez e morte em benefício de trabalhadores mutilados ou mortos em suas funções serviram para reforçar a identificação instintiva com os oprimidos que definiu sua orientação política manifesta.” (PAWEL: O Assalto à Razão, p. 183)

Na obra de Kafka, pois, o potencial político não decorre de qualquer tomada-de-partido revolucionária ou engajamento ativo na construção de um outro mundo possível, mas sim de sua denúncia, com conhecimento de causa, de um sistema desumanizante, que Kafka captava com rara sensibilidade ao “identificar-se instintivamente com os oprimidos”. Mas, em Kafka, esta “identificação instintiva com os oprimidos” de que fala Pawel não é ingênua mas crítica: Kafka surpreende-se, por exemplo, com a “humildade” e a “submissão” dos trabalhadores. Como relembra Max Brod, seu amigo Franz um dia comentou com perplexidade: “Como são humildes essas pessoas. Em vez de se precipitarem sobre o Instituto e estraçalharem o lugar em pedacinhos, eles vêm nos apresentar requerimentos…”

Kafka, portanto, parece perceber com perplexidade o fenômeno de massas que consiste em trabalhadores, um tanto resignados e fatalistas, que mantinham-se presos a formulários e rígidos horários, impotentes para mudar sua condição de oprimidos. Lembremos do começo de A Colônia Penal: neste conto, Kafka descreve um aparelho de tortura que existe numa ilha-penitenciária. Ali, são supliciadas pessoas que não sabem que crime cometeram – um pouco como Josef K., em O Processo, que jamais descobre o que ele fez de errado e permanece até o fim do romance convicto de ter sido vítima de uma calúnia. Na Colônia Penal, os condenados têm suas peles marcadas brutalmente por uma “tatuagem” sinistra e sanguinolenta – no caso específico que o conto relata, “Honre seu superior” é a tatoo que é imposta. É um cenário de pesadelo, principalmente pois as autoridades brutais que ali reinam não sofrem nenhum tipo de contestação por parte dos submetidos. A literatura de Kafka é um recorrente assombro diante da apatia, da incapacidade de levante, que acomete muitos humilhados e ofendidos.

Vamos às atividades do dia:
Lavar os copos, contar os corpos,
E sorrir de nossa morna rebeldia…”

Letra do rapper CRIOLO, na música “Lion Man”
(Álbum “Nó na Orelha”)

Kafka, na Colônia Penal, descreve um condenado cuja mais impressionante característica é sua impassibilidade, sua aceitação resignada do que lhe é imposto; o condenado é de uma “sujeição tão canina que a impressão que dava era a de que se poderia deixa-lo vaguear livremente pelas encostas, sendo preciso apenas que se assobiasse no começo da execução para que ele viesse…” (Trad. Modesto Carone, Pg. 30)

Se Kafka pôde escrever cenas tão vívidas de tortura – em A Colônia Penal e no capítulo “O Espancador” de O Processo, por exemplo – isto talvez se deva não somente às torturas de que ele se sentiu vítima, nas mãos de seu pai Hermann, mas também à sua experiência profissional junto ao proletariado da Boêmia. Eis um campo de pesquisa muito amplo e interessante a ser pesquisado pelos estudiosos de Kafka, e que têm já foi trilhado em obras de muito interesse por Michael Löwy, Ernst Pawel, Pierre Bourdieu etc.

Nada utopista ou otimista, Kafka não cessa de refletir sobre a problemática da submissão. Estar diante de gente tão submissa deixa-lhe perplexo: como pode que o condenado possa sofrer penas tão terríveis na máquina de tortura e ainda assim mostrar-se comportado como um cão? A mesma perplexidade pode surgir diante dos fenômenos que Pierre Clastres descreve sobre os ritos de iniciação que utilizam técnicas torturantes como modo de marcar uma passagem: que força é esta que leva os torturados a se submeterem a tamanhos sofrimentos? Em outros termos, como responder ao mistério: por que a revolta é tão rara?

A elucidação disso exigiria uma análise mais detida de outros textos, como o Tratado da Servidão Voluntária de La Boétie, O Medo à Liberdade de Erich Fromm, A Psicologia de Massas do Fascismo de Wilhelm Reich – o que não é intenção do presente artigo. Para focarmos a atenção na obra kafkiana, apontemos uma impressão de leitor: ao retratar a tortura, parece-me, Kafka certamente foi mais influenciado por suas vivências existenciais, por sua realidade laboral e familiar, do que por quaisquer leituras que tenha feito das teorias e ideologias de seu tempo. Max Brod pinta o retrato de um Kafka que abominava seu próprio emprego, “vítima impotente aprisionada nas engrenagens de um impiedoso esmagador de cérebros e condenada a uma labuta insensata e desumana”, como relata Pawel (p. 185).

Mas o biógrafo lembra que este emprego não poderia ser tão horripilante assim, já que possibilitava a Kafka ter ¾ dos dias livres (seu turno era de somente 6 horas, das 8 da manhã às 2 da tarde…), “estando longe de ser estafante em termos de volume ou carga horária”. De modo que Pawel afirma: “longe de ser uma peça de engrenagem sem nome num motor gigantesco, Kafka esteve, desde o início, em posições de decisão, e contribuiu com sua quota para uma redução significativa dos acidentes mutilantes e fatais em algumas das principais indústrias da Boêmia.” (Pawel: Pg. 185)

Kafka, é claro, não podia suportar bem a vida de burocrata, antagônica em relação à existência de artista criador que ele julgava ser sua vocação sagrada: “já em 1912, seus poderes como artista criador tinham começado a afirmar-se integralmente – e Kafka passou a encarar as exigências do cargo como causa fundamental da esmagadora depressão que lhe minava a criatividade.” (Pawel: pg. 186)

Permaneceu um grande solitário, vida afora, não se filiando a nenhum partido ou causa – não vinculou sua identidade nem ao judaísmo, nem ao sionismo; tampouco pregava slogans marxistas ou anarquistas (apesar do fascínio que sobre ele exerceram figuras como Kropotkin e Herzen). Longe de ser um entusiasta da causa proletária, um ativista que luta lado a lado com os oprimidos com os quais se identifica, Kafka “estava sempre só na multidão, em vez de ser parte dela.” (PAWEL: p. 154)

A solidão de Kafka não o impediu de pintar, em suas obras, um impressionante retrato social onde as arbitrariedades insanas do Castelo e do Tribunal não cessam de humilhar e rebaixar aqueles que, de tão pisoteados, não tem mais a força de insurreição que seria de se esperar de quem vive sob condições desumanas. O trágico em Kafka é o quanto as pessoas acabam, por serem demasiado judiadas, virando encarnações da submissão fatalista. Parece-me que Kafka nunca pôde admirar esta característica, nem nos outros nem em si mesmo, e talvez sua auto-depreciação tão profunda, sua tendência ao auto-flagelamento, venha também da sensação de ter sido, também ele, um dos submissos.

Kafka, em sua obra, pode até ser um “sonhador insubmisso”, como diz Michael Löwy no brilhante livro que lhe dedica, mas em sua vida foi com muita frequência aquele que se submete: primeiro, ao pai, tornando-se seu empregado, permanecendo junto a ele no comércio até muito tarde na vida, apesar do veneno do relacionamento; depois, às exigências de seu cargo, que desempenhava com muita perícia e competência, mas sem gosto – já que devotava seu amor quase inteiro à literatura. Este amante dos livros, que em Praga tinha como locais favoritos as livrarias velhas e encardidas, amava Goethe, Hesse, Flaubert, Kleist e Dickens infinitamente mais do que seu trabalho.

* * * *

II. A TORTURA COMO PEDAGOGIA

1

Cerimônia dos Mandan, uma pintura de George Catlin

Em seu artigo “Da Tortura nas Sociedades Primitivas”, o filósofo e antropólogo francês Pierre Clastres (1934 – 1977) enfatiza a conexão entre a escrita da lei e a tortura dos corpos: “Que a lei encontre uma forma de se inscrever em espaços inesperados é o que pode nos ensinar esta ou aquela obra literária. O funcionário de A Colônia Penal, de Franz Kafka, explica minuciosamente ao visitante o funcionamento de uma máquina de escrever a lei” (CLASTRES: A sociedade contra o Estado, pg. 191, Cosac e Naify), que consiste em “gravar o parágrafo transgredido sobre a pele do culpado. Vai-se, por exemplo, escrever no corpo do condenado: ‘Respeite o seu superior’ …”.

Amnésia (Memento), de Christopher Nolan

Amnésia (Memento), de Christopher Nolan

Nesta obra, Kafka concebe “o corpo como superfície de escrita, como superfície apta para receber o texto legível da lei” (CLASTRES: p. 191). Através da imposição destas sinistras tatuagens ao corpo do condenado, o poder deixaria uma marca indelével e perpétua sobre aqueles sobre quem se exerce. Cabe lembrar que alguns artistas do cinema contemporâneo já retrataram procedimentos semelhantes em suas obras: é o caso de O Livro de Cabeceira, de Peter Greenaway, e Amnésia (Memento), de Christopher Nolan, filmes que tematizam o corpo como receptáculo de linguagem. Neste último filme, o protagonista, após sofrer um trauma cerebral, acometido por uma condição neurológica que lhe impede o registro de memórias recentes, encontra nas tatuagens que faz em seu próprio corpo um poderoso auxílio mnemotécnico. O próprio sofrimento imposto à pele por esta escrita na carne viva aí aparece como aliado da deusa batizada pelos gregos de Mnemosyne, a Mãe das Musas. Também cabe lembrar que Nietzsche refletiu na Genealogia da Moral sobre as crueldades inerentes ao processo mnemotécnico necessário para a conversão do homem em “um animal capaz de prometer”.

Grande parte do esforço de Clastres dirige-se a mostrar que tais procedimentos de modo algum se restringem à arte ou à ficção. Será lícito supor que Kafka compôs A Colônia Penal não somente a partir de um pesadelo subjetivo, descrevendo alguma maquinaria infernal imaginária-paranóica, mas partindo de conhecimentos históricos que possuía sobre os cruéis meandros do Direito?

Como exemplo do corpo como superfície passível de veicular linguagem, basta relembrar os testemunhos de prisioneiros soviéticos nas colônias penais da Moldávia, coligidas no livro de Anatoli Martchenko, Mon Témoignage (Paris: Seuil, Col. Combats, 1971). Aí o autor descreve a maneira como os deportados se auto-infligiam máximas, tatuadas em seus rostos: “Escravos de Kruchtchev”, “Escravos do P.C.U.S.” ou “Comunistas = Carrascos”.

A pele como superfície onde inscrever uma mensagem tampouco é uma invenção dos prisioneiros das gulags:

“É muito extenso o número de sociedades primitivas que mostram a importância por elas atribuída ao ingresso dos jovens na idade adulta através da instituição dos chamados ritos de passagem. (…) Quase sempre o rito iniciático considera a utilização do corpo dos iniciados. É, sem qualquer intermediário, o corpo que a sociedade designa como único espaço propício a conter o sinal de um tempo, o traço de uma passagem, a determinação de um destino.” (CLASTRES: p. 193)

O pintor George Catlin, em Les Indiens de la Prairie (Club des Librairies de France, 1959), descreve e ilustra com desenhos sua experiência de testemunhar por 4 dias à cerimônia anual dos índios Mandan – e, como relata Clastres, “não pode deixar de manifestar seu espanto e horror diante do espetáculo do rito, pois o fato é que, através do cerimonial, a sociedade se apodera do corpo e (…) quase de modo constante – e é isso que aterroriza Catlin – o ritual submete o corpo à tortura” (CLASTRES: p. 194).

Todos os jovens índios Mandam, depois de quatro dias de jejum absoluto, depois de três noites insones, têm o corpo furado e “estiletes enterrados nas chagas”; o enforcamento, a amputação, as carnes rasgadas, são outras técnicas empregadas neste rito em que “parecem inesgotáveis os recursos da crueldade” (CLASTRES: idem). O próprio Clastres, com vasta experiência junto aos índios Guayaki e Mbayá-Guaykuru do Paraguai, aponta que estes ritos estão longe de serem exceção: entre os Mbayá, os jovens passam por uma prova que consiste em “ter o pênis e outras partes do corpo perfurados com um afiado osso de jaguar” (p. 195). Tampouco as mulheres escapam disso: Martin Dobrizhoffer narra que os Abipones “tatuam cruelmente o rosto das jovens quando se verifica a sua primeira menstruação” (in: Historia de los Abipones, 3 vols., 1967). “De uma tribo a outra, de uma a outra região, diferem as técnicas, os meios, os objetivos explicitamente afirmados da crueldade; mas a meta é sempre a mesma: provocar o sofrimento. (…) A dor acaba sempre se tornando insuportável: sem proferir palavra, o torturado desmaia.” (CLASTRES: p. 195)

Eis um outro elemento que choca o antropólogo ou etnólogo que testemunha estas cerimônias: o fato dos jovens não proferirem uma palavra sequer durante as torturas a que são submetidos.

“A impassibilidade, eu poderia até mesmo dizer a serenidade com que esses jovens suportavam o martírio, era ainda mais extraordinária do que o próprio suplício… Meu coração padeceu com tais espetáculos, e costumes tão abomináveis encheram-me de desgosto: estou, porém, pronto – e de todo coração – a desculpar os índios, a perdoar-lhes as superstições que os levam a atos de tal selvageria, em virtude da coragem que demonstram, do seu notável poder de resistência, do seu excepcional estoicismo…” (GEORGE CATLIN).

Em sua tentativa de compreender a função do sofrimento, Clastres aponta que “a iniciação é, inegavelmente, uma comprovação da coragem pessoal, e esta se exprime no silêncio oposto ao sofrimento.” (p. 196) Não se trata, aliás, de um sofrimento extremo mas passageiro, pois os sulcos e as cicatrizes permanecerão:

“Um homem iniciado é um homem marcado. O objetivo da iniciação, em seu momento de tortura, é marcar o corpo: no ritual iniciático, a sociedade imprime a sua marca no corpo dos jovens. Ora, uma cicatriz, um sulco, uma marca são indeléveis. Inscritos na profundidade da pele, atestarão para sempre que, se por um lado a dor pode não ser mais do que uma recordação desagradável, ela foi sentida num contexto de medo e terror. A marca é um obstáculo ao esquecimento. (…) Avaliar a resistência pessoal, significar um pertencimento social: tais são as duas funções evidentes da iniciação como inscrição de marcas sobre o corpo.” (p. 197)

Um exemplo da utilidade da marca indelével imposta pela tortura, que indica o pertencimento social a um determinado grupo, foi presenciado por Clastres em 1963: quando os Guayaki queriam se certificar da “nacionalidade” de uma jovem paraguaia, arrancavam-lhe as roupas em busca das tatuagens tribais.

O silêncio resignado que se exige dos jovens durante o ritual, o admirável “estoicismo” de que fala Catlin, indica que

“o ritual de iniciação é uma pedagogia que vai do grupo ao indivíduo, da tribo aos jovens. Pedagogia da afirmação, e não diálogo: é por isso que os iniciados devem permanecer silenciosos quando torturados. Quem cala consente. Em que consentem os jovens? Consentem em aceitar-se no papel que passaram a ter: o de membros integrais da comunidade. (…) Eis, portanto, o segredo que, na iniciação do grupo, é revelado aos jovens: ‘Sois um dos nossos. Cada um de vós é semelhante a nós, cada um de vós é semelhante aos outros. Nenhum de vós é inferior, nem superior’. Em outros termos, a sociedade dita sua lei aos seus membros, inscreve o texto da lei sobre a superfície dos corpos. (…) A lei que aprendem a conhecer na dor é a lei da sociedade primitiva, que diz a cada um: Tu não és menos importante nem mais importante do que ninguém. A lei, inscrita sobre os corpos, afirma a recusa da sociedade primitiva em correr o risco da divisão, o risco de um poder separado dela mesma, de um poder que lhe escaparia. A lei primitiva, cruelmente ensinada, é uma proibição à desigualdade.” (CLASTRES: p. 198-99).

É por esta razão que Deleuze e Guatari, no Anti-Édipo, dirão que as sociedades primitivas, desprovidas de escrita, são sociedades da marcação. Clastres dirá que são, além disso, sociedades contra o Estado, preocupadas em manter a coesão tribal e não permitir a emergência do poder estatal, compreendido como aquele que, dentre outras ações, escreve uma lei “separada, distante, despótica”. Como compreender, neste contexto, as desventuras de K. n’O Processo de Kafka, este pesadelo judiciário que se desenrola em meio a uma sociedade com Estado e onde a justiça parece se exercer a partir de uma engrenagem burocrática que o indivíduo não compreende por completo? Que diferenças e semelhanças há, na comparação entre os ritos iniciatórios arcaicos e o enredo kafkiano, no que diz respeito aos procedimentos jurídicos e mnemotécnicos e à instrumentalização da crueldade?

Tanto em A Colônia Penal quanto em O Processo, o “crime” cometido pelo condenado ou pelo processado permanece envolto em sombras e mistério – o que Kafka deseja mostrar ao leitor é o aparelho de tortura socialmente instituído. Assim como o leitor de O Processo em nenhum momento recebe explicação sobre o que teria feito de recriminável Josef K., sendo que o foco repousa por inteiro na descrição do mecanismo esmagador do processo, também o leitor de A Colônia Penal não tem elucidações sobre aquele que sofrerá a pena: Kafka narra a cena de modo que o procedimento jurídico esteja no primeiro plano, ao invés de emitir juízos sobre a culpa ou inocência daquele que está sendo submetido à punição. O oficial explica ao explorador como funciona o procedimento operacional padrão da máquina de torturas:

“Esta é a cama, totalmente coberta com uma camada de algodão; o senhor ainda vai saber qual é o objetivo dela. O condenado é posto de bruços sobre o algodão, naturalmente nu; aqui estão, para as mãos, aqui para os pés e aqui para o pescoço, as correias para segurá-lo firme. Aqui na cabeceira da cama, onde, como eu disse, o homem apóia a cabeça, existe este pequeno tampão de feltro, que pode ser regulado com a maior facilidade, a ponto de entrar bem na boca da pessoa. Seu objetivo é impedir que ela grite ou morda a língua. Evidentemente, o homem é obrigado a admitir o feltro na boca, pois caso contrário as correias do pescoço quebram sua nuca…” (p. 33)

Atado, imobilizado, silenciado, impossibilitado de manifestar qualquer sinal de desagrado ou fúria, o condenado recebe sobre as costas a sentença que o rastelo escreve arrancando seu sangue. Esta máquina de torturas impõe uma cicatriz perpétua, uma tatuagem não solicitada pelo sujeito que a recebe – e que as autoridades que a impõe desejam indelével. Seja o cacique de uma tribo indígena ou um comandante de um império, como Clastres e Kafka mostram, cada um a seu modo, a autoridade utiliza-se da imposição do sofrimento como um meio violento de “educação”.

Que tipo de educação é esta? A Colônia Penal é uma alegoria poderosa de uma educação que seria melhor chamada de violentação autoritária ou imposição da submissão: “No corpo deste condenado”, prossegue o oficial em sua explicação do mecanismo torturador, “será gravado: Honra o teu superior!” (p. 36) O “superior”, no caso, é aquele que tem em seu poder os meios de impor aos outros, sejam jovens em rituais de iniciação ou condenados sendo punidos, um sofrimento que lhes deve ensinar a submissão – ou melhor, no linguajar de quem impõe a pena, a “obediência ao superior”.

Reduzido a uma condição de impotência, tendo seu corpo submetido à incisões, perfurações e cortes – que não somente provocam dores intensas mas que também deixarão marcas permanentes, a vítima deste processo parece não ter voz. Mas não tem voz pois esta foi silenciada. Sua revolta não se manifesta pois a opressão ao redor não permite que ela desabroche. A submissão não é inata ou de berço, mas algo ensinado ao sujeito por mecanismos autoritários de educação e punição que usam o terror para inculcar obediência e outros comportamentos de retraída aquiescência ao poder.

Por Robert Crumb

Por Robert Crumb

III. O DESPOTISMO E A RESISTÊNCIA

A prisão de Josef K., narrada por Kafka em O Processo, é uma cena onde ocorre claro abuso pela porte do aparato policial, que invade o apartamento e cerceia os movimentos de K. Nenhum daqueles policiais e subordinados do sistema jurídico-penal sabe dizer a K. qual o crime que este cometeu – não foram autorizados a revelar nada – e no fundo confessam não saber de muita coisa. A ordem de prisão vem de cima e eles apenas a obedecem. Afinal de contas, ganham seu pão num trabalho que exige deles um perene comportamento subordinado, em que você honra o seu superior na hierarquia ao invés de se revoltar ou se levantar contra ele.

Para usar a expressão de Michael Löwy , Kafka, este “sonhador insubmisso”, soube criar em Josef K. alguém que tem muito desta insubmissão de seu criador correndo em suas veias de personagem kafkiano. Logo após ser preso, Josef K., com plena certeza de sua inocência, confronta os homens que o vieram acossar e exige respostas: qual a acusação que está sendo feita? Qual é a autoridade que vos manda? Quem foi que lá em cima na hierarquia ordenou que eu, K., fosse preso?

A autoridade suprema está invisível como aqueles chefões do Castelo que não se deixam encontrar em nenhuma parte pelo agrimensor K. durante as peripécias do romance inacabado O Castelo. Uma névoa de mistério circunda a autoridade que, através de seus subordinados, apossa-se do corpo e da mente de K. e impõe-lhe restrições de movimento, ameaças de despojamento, surras psíquicas e literais.

Não é por acaso que uma das últimas cenas d’ O Processo se passa em uma catedral e que nesta o padre, a princípio, exija de K. que se rebaixe e se prostre diante dele para ouvir a voz que chega das alturas.

“K. parou nos primeiros bancos, mas o padre estendeu as mãos e mostrou com o indicador um lugar mais próximo do púlpito. K. o seguiu até esse lugar, precisando inclinar a cabeça fortemente para trás a fim de ver o padre…” Walter Benjamin enfatiza que, para Kafka, o elemento gestual era muito importante – como, por exemplo, este eloquente dedo indicador que ordena ao acusado que se ponha no local exato que lhe foi ditado: “o gesto é o elemento decisivo, o centro da ação… Kafka é sempre assim: ele priva os gestos humanos dos seus esteios tradicionais e os transforma em temas de reflexões intermináveis.” (BENJAMIN: p. 147)

Autor com “capacidade invulgar de criar parábolas”, como diz Benjamin (p. 149), Kafka escreveu em O Processo uma das mais eloquentes de sua galeria: o padre, do alto do púlpito, fiel defensor dos códigos escritos inalteráveis e sagrados, relata a K. uma história de um camponês e de um porteiro diante de uma certa Porta da Lei. O homem do campo – simples e ingênuo… – está diante da porta da Lei e esta é guardada por um porteiro que não lhe dá permissão de entrar e lhe pede que espere. É o Esperando Godot de Kafka – e um dos pontos de sua obra que mais se assemelha ao teatro de Beckett.

O camponês, que não se sente capaz de insubmissão ou revolta, que não tenta entrar contra a permissão do porteiro, passa a vida ali, com acesso proibido, até definhar e morrer. A porta é-lhe enfim fechada definitivamente sem nunca ter sido transposta. Esta parábola, que lembra um pouco o Absurdo da atitude dos personagens de Esperando Godot, está longe de ser uma descrição da atitude do próprio Josef K. diante da Lei: ao contrário da passividade submissa do homem que apodrece na espera, sem que nunca lhe seja dada permissão para adentrar nos domínios guarnecidos pelos guardiães da lei, “Josef K. não pode impedir-se de acreditar que o homem foi enganado pelo guardião.” (Löwy: p.135)

YOSL BERGNER

Pintura de Yosl Bergner representa a cena “O Processo” em que o “porteiro da Lei” diz ao “homem do campo”: “This door was intended only for you. I am now going to shut it.” (Capítulo 9, “A Catedral”)

Este acesso barrado seria um símbolo de autoritarismo, uma fortaleza que defende os privilégios daqueles que estão acima na hierarquia. Aquele que não ousa questionar a ordem (a ordem que lhe ordena que apodreça na espera!), aquele que se cala e aceita, aquele que se submete e fica de bunda sentada na sua desgraça imposta-de-cima, este é o emblema do sujeito alienado, alijado da justiça.

De modo que Löwy sustenta que “não se pode compreender esse escrito sem situá-lo no contexto mais amplo” das “convicções ético-sociais de Kafka”, em particular “o anti-autoritarismo de inspiração libertária, (…) uma recusa diante de todo poder que pretende representar a divindade e impor em seu nome dogmas, doutrinas, interdições.” (pg. 139)

LowyO homem-do-campo da parábola, por excesso de timidez e tibieza, por falta de confiança em si, por uma obediência demasiado estrita e prolongada do status quo, acaba perdendo sua vida na espera, diante do umbral de uma porta que o guardião não permite que ele cruze. Incapaz de insubmissão e revolta, “o homem do campo malogrou porque não quis tomar o caminho rumo à Lei atravessando essa porta sem autorização”, segundo a interpretação do amigo de Kafka, Felix Weltsch, que Löwy reproduz (pg. 145).

O destino inglório deste personagem da parábola, que apodrece na espera, alijado de seus direitos em um mundo social onde os privilégios se protegem em suas fortalezas, está nas antípodas da atitude frequentemente irreverente e insubmissa de Josef K. – é só lembrar que este acusa de corrupção generalizada os funcionários do tribunal, critica a atitude dos guardas por surrupiarem o café-da-manhã e as roupas dos condenados e chega ao extremo de desdenhar dos livros mofados da Lei em sua primeira audiência.

Quase no fim de seu percurso, aliás, irá despedir seu advogado e desejará apresentar ele mesmo sua defesa através de um relato completo de toda a sua vida pregressa, achando que uma narração dos seus 30 anos de vida irrepreensível pudessem ser suficientes para inocentá-lo. A passividade submissa do homem da parábola, como diz Marthe Robert, é característica de quem “não ousa colocar sua lei pessoal acima dos tabus coletivos, cuja tirania o guardião personifica.” (MARTHE ROBERT, Seul Comme Kafka, Paris: Calmann-Lévy, 1979, p. 162). Ele se assemelha a quase todos os condenados que K. encontra no decurso do romance e que se submetem a seus processos e são tratados como cães pelos advogados.

“K. representa a antítese do homem do campo que espera em vão, por toda a vida, paciente e submisso, que alguém se digne a admiti-lo no interior das portas da Lei… Encontram-se no Castelo personagens que se parecem muitíssimo com o anti-herói da lenda: é o caso do indivíduo descrito por Olga, que tenta fazer-se admitir no serviço do Castelo: ‘Depois de muitos anos, talvez já envelhecido, ele ouve que foi recusado, que tudo está perdido e que viveu por nada.’” (LÖWY: p. 181)

Longe de fazer um elogio da resignação e do fatalismo, Kafka seria, na perspectiva de Löwy, alguém que faz apelo à insubmissão e que é animado por um ímpeto de insubordinação, sendo que sua obra representa uma reiterada crítica do autoritarismo e dos mecanismos burocráticos despersonalizantes e cruéis.

“Kafka jamais escondeu sua admiração pelos personagens que têm a coragem de seguir seu próprio caminho, ultrapassando as interdições convencionais”, lembra Löwy (p. 149), que pesquisou vastamente as leituras prediletas de Kafka, entre as quais se encontrava Memórias de uma socialista, de Lily Braun. Este livro, que Kafka gostava de presentear a seus amigos e que deu à sua noiva Felice em abril de 1915, traz uma mulher aguerrida contra os preconceitos de seu tempo e que, inspirada por Shelley e Nietzsche, condena “a submissão, a humilhação, o abandono ao destino” (LILY BRAUN, Memoiren einer Sozialistin (1909). Berlim: Verlag J. H. W. Dietz, 1985, p. 82-83.)

Também em O Castelo o agrimensor K. representa, ao chegar à aldeia na condição de estrangeiro, uma figura bem mais insubmissa do que a média dos habitantes: “em nenhum momento ele tem a atitude amedrontada e submissa dos aldeões… o que ele quer das autoridades do Castelo é a exigência universal de todos os excluídos e párias das sociedades modernas: ‘Não demando favores ao Castelo, mas o meu direito’” (Löwy: p. 177).

Rejeitando as interpretações teológicas de Max Brod, que enxerga no Castelo um signo da Graça divina inacessível, Löwy afirma que “nada no romance indica que a ‘maldade’ dos funcionários do Castelo tivesse algo a ver com uma instância divina’…” Segundo Löwy, o castelo é “a sede de um poder terrestre e humano” e representa “a autoridade, o Estado, diante do povo, representado pela aldeia. Um poder distante e arbitrário, que governa a aldeia por intermédio de um aparato de burocratas cujo comportamento é grosseiro, inexplicável e rigorosamente desprovido de sentido. O próprio edifício – sede do cume do aparelho administrativo – é inacessível e impenetrável… Kafka põe em questão os fundamentos despóticos do Estado moderno.” (pg. 162-163).

Se uma atmosfera sinistra e pessimista parece pairar como uma nuvem nublada sobre os escritos de Kafka, talvez isto se deva à percepção de que tanto a submissão quanto a revolta conduzem à catástrofe. Em O Castelo, por exemplo, há a figura de Amália, “personagem de exceção que se destaca fortemente da massa submissa dos aldeões” e que Löwy considera “sem dúvida uma das mais impressionantes figuras femininas da obra de Kafka” (p. 185-186). No capítulo 17, “ao receber do arrogante e grosseiro funcionário Sortini uma mensagem extremamente vulgar e mesmo revoltante – em suma, obscena – intimando-a a procura-lo na Hospedaria dos Senhores, ela não hesita em rasga-la, atirando os pedaços no rosto do mensageiro enviado pelo homem do Castelo… Isso basta para atrair sobre ela e toda a sua família a maldição daqueles do alto, condenando-os a uma exclusão definitiva e irrevogável.” (Löwy: p. 184).

Os conformistas e os submissos apodrecem na espera, alijados de seus direitos numa sociedade altamente hierarquizada. Os mais altos protegem seus privilégios encerrando-se em fortalezas inacessíveis aos reles mortais. Os raros que ousam se insurgir contra o sistema – como Amália em O Castelo ou o próprio Josef. K. em O Processo – acabam conhecendo outra face dos mecanismos jurídicos cruéis: a exclusão e o extermínio.

Se há em Kafka uma constante identificação com os oprimidos, com as vítimas do sistema, há também uma intensa “recusa da servidão voluntária”. Esta servidão voluntária indigna que tantas vezes acaba constituindo o ser-no-mundo daqueles que se resignam ao seus fardos, como os Camelos de que fala Zaratustra. É claramente discernível, em muitos pontos da obra de Kafka, um elogio da insubmissão, e que talvez não seja despropositado comparar ao elogio que faz Zaratustra do leão, símbolo da coragem de rugir contra os fardos e correntes que outros desejam nos fazer carregar como bestas-de-carga.

Em Kafka, porém, a vitória do leão não é garantida e a consequência da revolta é muitas vezes a exclusão – ser lançado à condição de pária ou outsider – ou mesmo a morte – como Josef K. descobre ao terminar seu percurso em O Processo. K. morre envergonhado até a medula dos ossos por viver num mundo onde a submissão canina é exigida de todos e onde os insubmissos serão sacrificados como se fossem cães.

Profético em relação àquilo que de mais sinistro ocorreria no século XX, Kafka é o poeta que pinta quadros tenebrosos de um mundo onde matam-se homens como cachorros e no qual tanto a revolta quanto o fatalismo parecem conducentes à tragédia. Algo que pode ser simbolizado pelo levante do Gueto de Varsóvia, em 1943, quando em pleno Holocausto os judeus tentaram um levante contra o III Reich, evento histórico tão bem descrito por Todorov em Em Face do Extremo e que representa um dos mais sinistros pesadelos que ocorreram de fato na História do último século

Arte por Sergio Birga

Arte por Sergio Birga

IV. BOURDIEU: ESTIGMATIZAÇÃO E RECONHECIMENTO

O pensamento de Pierre Bourdieu pode nos auxiliar a compreender mais a fundo os temas que estivemos explorando neste artigo, em especial se partirmos desta afirmação simples mas prenhe de consequências: “aprendemos pelo corpo” (BOURDIEU: Meditações Pascalianas, p. 172). Avesso ao dualismo simplista entre corpo e alma, espírito e matéria, o pensamento sociológico de Bourdieu procura refletir sobre os habitus que se tornam profundamente ancorados nos corpos e que cujo processo de formação envolvem necessariamente condicionamentos sociais.

“As injunções sociais mais sérias se dirigem ao corpo e não ao intelecto… O essencial da aprendizagem da masculinidade e da feminilidade tende a increver a diferença entre os sexos nos corpos (sobretudo por meio do vestuário), sob a forma de maneiras de andar, de falar, de se comportar, de dirigir o olhar, de sentar-se etc. E os ritos de instituição constituem apenas o limite de todas as ações explícitas pelas quais os grupos trabalham para inculcar os limites sociais e as classificações sociais (por exemplo, a divisão masculino/feminino), a naturalizá-las sob a forma de divisões nos corpos, as hexis corporais, das quais se sabe serem tão duráveis como as inscrições indeléveis da tatuagem…” (BOURDIEU: Meditações Pascalianas, 172-173)

A sociedade tatua seus membros condicionando-os a adotarem habitus e disposições em um processo que, segundo Bourdieu, carrega sempre uma certa dose de violência simbólica. O que não exclui a violência concreta, literal, que Clastres analiza em sua investigação sobre os cruentos ritos de passagem de muitos dos povos que estuda, e que Kafka enforma em uma parábola literária memorável, A Colônia Penal. O processo “pedagógico”, entendido como conformação do indivíduo ao meio social, não se dá apenas através da transmissão intelectual de conhecimentos e valores; ensinar se dá também através do castigo corporal destinado a produzir uma memória, ou seja, uma mnemotécnica que através da imposição da dor ao sujeito procura, por exemplo, gerar nele a repulsa por um certo comportamento que a sociedade deseja ver proibido e proscrito.

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“Tanto na ação pedagógica cotidiana (“fica direito”, “segure a faca com a mão direita”) como nos ritos de instituição, essa ação psicossomática se exerce muitas vezes por meio da emoção e do sofrimento, psicológico ou até físico, mormente aquele que se inflige pela inscrição de signos distintivos, mutilações, escarificações ou tatuagens, na própria superfície dos corpos. O trecho de A Colônia Penal em que Kafka relata como se inscreve no corpo do transgressor todas as letras da lei por ele transgredida ‘radicaliza e literaliza com uma grotesca brutalidade’, como sugere E. L. Santner, a cruel mnemotécnica a que os grupos com frequência recorrem para naturalizar o arbitrário e, outra intuição kafkiana (ou pascaliana), lhe conferir assim a necessidade absurda e insondável que se dissimula, sem nada além, por detrás das mais sagradas instituições.” (BOURDIEU: p. 173)

Contra a noção de valores inatos, Bourdieu assume uma reflexão muito mais próxima ao empirismo, considerando como aprendidos, inculcados, introjetados, os sacrossantos valores e ideais que certas instituições sociais desejam fazer crer que são eternos e absolutos. Agindo de modo similar ao procedimento nietzschiano na Genealogia da Moral, Bourdieu procurará compreender como vêm-a-ser os habitus a partir de uma meditação sobre instituições sociais que, através do condicionamentos dos agentes, criam certas disposições através do manejo de castigos e recompensas, ameaças e elogios – a começar pela infância, “moldada” pela Família, pelo Estado, pela Igreja, pela Mídia.

“O trabalho de socialização das pulsões apóia-se numa transação permanente na qual a criança admite renúncias e sacrifícios em troca de provas de reconhecimento, de consideração ou de admiração (‘como é ajuizado!’), por vezes explicitamente solicitados (‘Papai, olha para mim!’). Essa troca é altamente carregada de afetividade, na medida em que mobiliza por inteiro a pessoa de ambos os parceiros, sobretudo a criança, é claro, mas também os pais. A criança incorpora o social sob a forma de afetos, mas socialmente coloridos, qualificados…” (BOURDIEU: 202)

Não se trata, para Bourdieu, de condenar de modo simplista quaisquer habitus que foram inscritos nos corpos por meio da violência (psicológica ou física) através de uma “pregação” de caráter humanista e sentimental de uma pedagogia suave e desprovida de crueldade. O sociólogo está mais ocupado em descrever o que é (a sociedade de fato) do que em predicar a utopia do que deveria ser – para Bourdieu, interessa mais compreender o processo através do qual os habitus se formam e se transformam, além da variedade destes habitus em relação a diferentes contextos sociais. “O habitus, produto de uma aquisição histórica, é o que permite a apropriação do legado histórico. Assim como a letra deixa de ser letra morta pelo ato de leitura que supõe uma aptidão adquirida para ler e decifrar, a história objetiva (nos instrumentos, monumentos, obras, técnicas etc.) somente consegue converter-se em história atuada e atuante quando é assumida por agentes que, por conta de seus investimentos anteriores, se mostram inclinados a se interessar por ela e dotados das aptidões necessárias para reativá-la.” (pg. 184)

A subversão, a iconoclastia, a contestação, têm o potencial para reabrir o espaço dos possíveis, argumenta Bourdieu:

Pierre Bourdieu

Pierre Bourdieu

“…os discursos e ações subversivos, a exemplo das provocações e de todas as formas de ruptura iconoclasta, têm por função e, em todo caso, como efeito, atestar na prática ser possível transgredir os limites impostos – em particular os mais inflexíveis, aqueles inscritos nos cérebros. A transgressão simbólica de uma fronteira social tem por si só um efeito libertador porque ela faz advir praticamente o impensável. Mas ela própria somente se torna possível, e simbolicamente eficiente, em lugar de ser simplesmente rejeitada como um escândalo que, como se diz, recai sobre seu autor, quando são preenchidas certas condições objetivas. Para que um discurso ou uma ação (iconoclastia, terrorismo etc.) com pretensão a questionar as estruturas objetivas tenha alguma chance de ser reconhecido como legítimo (senão como razoável) e de exercer um efeito de exemplaridade, é preciso que as estruturas assim contestadas estejam elas mesmas num estado de incerteza e crise de molde a favorecer a incerteza a seu respeito e a tomada de consciência crítica de seu arbítrio e de sua fragilidade.” (BOURDIEU: Meditações Pascalianas, p. 289)

A leitura de Pierre Bourdieu de O Processo enfatiza que “o mundo social evocado por esse romance seria tão-somente o limite de inúmeros estados ordinários do mundo social ordinário ou de situações particulares no interior desse mundo, como aquela de certos grupos estigmatizados – os Judeus do lugar e da época de Kafka, os Negros dos guetos americanos ou os imigrantes mais destituídos em diversos países – ou de certos nichos sociais, entregues ao arbítrio absoluto de um chefe, grande ou pequeno, encontradiços, com muito maior frequência do que se poderia acreditar, no coração de empresas privadas ou mesmo públicas.” (p. 280)

Enfatiza-se aqui o estigma, que Kafka decerto conheceu na pele ao viver em um gueto judeu de Praga e que retrata em sua obra com conhecimento de causa, com experiência visceralmente adquirida em suas vivências. Os personagens kafkianos estão com frequência colocados numa posição de oprimidos, e isto às vezes é descrito pela pena de Kafka com imagens de impacto, como a do macaco de Relatório a uma Academia, preso em uma jaula minúscula, que não permite que ele fique de pé nem que se deite a contento. Esta situação de extremo incômodo físico, que vincula-se necessariamente também a uma posição psicológica beirando a insuportabilidade, serve como motivo para a ação no mundo kafkiano. Josef K., ao ver-se enredado pelo processo, age como uma mosca que tenta se desenredar da teia da tarântula.

O “jogo” sinistro que Josef K. começa a jogar assim que acorda, naquela manhã que inicia o romance, em que descobre que está sendo movido contra ele um processo, é descrito por Bourdieu como algo que acarreta uma experiência do tempo marcada pela extrema imprevisibilidade. “Esse jogo se caracteriza por um grau muito elevado de imprevisibilidade: não se pode confiar em nada. (…) Pode-se esperar tudo; o pior nunca está fora de cogitação. Não é por acaso que a instituição ordinariamente incumbida de limitar o arbítrio, o tribunal, também seja, neste caso, o lugar por excelência do arbítrio, que se afirma como tal, sem sequer se dar ao trabalho de dissimular. Por exemplo, o tribunal censura pelo atraso quando ele mesmo está sempre atrasado, fazendo pouco do princípio segundo o qual a regra também se aplica àquele que a edita…” (p. 281)

A existência de Josef K. parece despencar no maelstrom de um sistema de poder um tanto caótico, desorganizado, burocrático mas ineficaz, pesadelo tragi-cômico ironizado por Terry Gilliam em sua distopia cinematográfica Brazil. No caso de K., o desenlace é mais trágico do que cômico – e Kafka, que tinha predileção por metáforas animais, compara a sua morte à de um cão. Neste mundo social de “desordem instituída”, como escreve Bourdieu, “cada um encontra-se aí enredado sem defesa (como K. ou como os subproletários) nas formas mais brutais de manipulação dos temores e das expectativas.” (p. 282)

Com a experiência sociológica e antropológica que adquiriu nos anos em que viveu na Argélia dos anos 1960, Pierre Bourdieu estabelece um paralelo entre o Josef K. kafkiano e aqueles que chama de “subproletários”. “Existe uma categoria no mundo social, a dos subproletários”, escreve Bourdieu nas Meditações Pascalianas, que tem a “experiência mais ou menos durável da mais total impotência: tal como foi observado pelos psicólogos, o aniquilamento das oportunidades associado às situações de crise acarreta o aniquilamento das defesas psicológicas e, nesse caso, envolve uma espécie de desorganização generalizada e durável da conduta e do pensamento por força do desmoronamento de qualquer perspectiva coerente de futuro. (…) Após ouvir os subproletários, desempregados argelinos dos anos 1960 ou adolescentes sem futuro dos grandes conjuntos urbanos dos anos 1990, pode-se descobrir a mesma impotência, aniquiladora de potencialidades…” (p. 271)

O desemprego e a impotência, que Bourdieu enxerga como presentes na condição subproletária, acarreta uma experiência do mundo e do tempo que é sentida pelo sujeito como sem-sentido. “Com seu trabalho, os desempregados perderam os milhares de coisas nas quais se realiza e se manifesta concretamente uma função socialmente conhecida e reconhecida, ou seja, exigências e urgências – encontros ‘importantes’, trabalhos para enviar, cheques a remeter, orçamentos a preparar -, e todo o futuro já contido no presente imediato, sob forma de prazos, datas e horários a respeitar – horário do ônibus, cadências a cumprir, trabalhos para concluir… Privados desse universo objetivo de incitações e indicações que orientam e estimulam a ação e, por conseguinte, toda a vida social, eles só conseguem viver o tempo livre que lhes é deixado como tempo morto, tempo para nada, esvaziado de qualquer sentido.” (271)

“Excluídos do jogo, esses homens destituídos da ilusão vital de ter uma função ou uma missão, de ter que ser ou fazer alguma coisa, podem, para escapar ao não-tempo de uma vida onde não acontece nada e da qual não se pode esperar nada, e para se sentir existir, recorrer a atividades as quais, como as apostas no jóquei, a loteria esportiva, o jogo do bicho, e os demais jogos de azar em todos os bairros miseráveis e favelas do mundo, permitem desguiar do tempo anulado de uma vida sem justificativa… Para tentar se livrar do sentimento, tão bem expresso pelos subproletários argelinos, de ser o joguete de constrições externas (“sou como uma casca boiando n’água”), e tentar romper com a submissão fatalista às forças do mundo, também podem, sobretudo os mais jovens, buscar em atos de violência que valem em si mesmos até mais – ou tanto quanto – do que os ganhos que proporcionam, ou em jogos de morte com a moto ou o carro, um meio desesperado de existir diante do outros, para os outros, de ter acesso a uma forma reconhecida de existência social, ou simplesmente, de fazer com que aconteça algo em lugar de nada.” (272)

Tanto que, evocando O Jogador de Dostoiévski, Bourdieu destaca que um dos maiores atrativos e charmes da roleta – e outros jogos-de-azar onde aposta-se dinheiro – é a possibilidade de uma ascensão social súbita, “milagrosa”, que dispensa o trabalho, pegando um atalho direto para a riqueza e a acumulação. Bourdieu decerto não está sendo simplista a ponto de afirmar que o tedium vitae e o nonsense são as únicas possibilidades existenciais para aqueles – como os subproletários – que não estão inseridos no mercado de trabalho. O modo-de-vida dos subproletários “se contrapõe igualmente à skholè, tempo empregado livremente com finalidades livremente escolhidas e gratuitas que, como nos casos do intelectual e do artista, podem ser aquelas de um trabalho, mas libertado, em seu ritmo, seu momento e sua duração, de qualquer constrição externa e, em particular, daquela que se impõe por intermédio da sanção monetária direta. Quando da invenção da vida de artista como vida boêmia, dando continuidade à vida de pintor ou de estudante, elabora-se essa temporalidade de contornos fluidos, ignorando os horários e a urgência (a não ser aquela que cada um impõe a si mesmo), relação com o tempo encarnada na disposição poética como pura disponibilidade diante do mundo, fundada, na verdade, na distância em relação ao mundo e a todas as preocupações medíocres da existência comum das pessoas comuns…” (274)

A “identificação instintiva com os oprimidos” que, na opinião do biógrafo de Kafka, Ernst Pawel, é uma das marca do modo-de-estar-no-mundo do autor de A Metamorfose, não deve ser compreendida como uma efetiva pertença de classe. Franz Kafka não pertencia de fato a esta classe denominada por Bourdieu “subproletariado” – Doutor em Direito, com um emprego estável no Instituto, e além do mais artista cujo tempo vital incluía não somente o domínio do labor mas também o da skholè, Kafka, no entanto, criou uma obra marcada pela reflexão sobre estratos sociais estigmatizados, perseguidos, oprimidos. Sua posição como judeu vivendo em um gueto de Praga em tempos de anti-semitismo, além de sua posição como filho que sentia-se diminuído e oprimido por um pai bruto e autoritário, condicionaram sua sensibilidade de modo a capacitá-lo a descrever, em sua obra, o labirinto vital daqueles que não encontram reconhecimento social.

“Convém retornar a Josef K. A incerteza em que ele se encontra a respeito do futuro não passa de uma outra forma de incerteza a propósito do que ele é, de seu ser social, de sua ‘identidade’, como se diria hoje; destituído do poder de dar sentido, no duplo sentido, à sua vida, de nomear a significação e a direção de sua existência, ele está condenado a viver num tempo orientado pelos outros, alienado. Eis, exatamente, em que consiste o destino de todos os dominados, obrigados a esperar tudo dos outros, detentores do poder sobre o jogo e sobre a esperança objetiva e subjetiva de ganhos que pode proporcionar, logo mestres em jogar com a angústia que nasce inevitavelmente da tensão entre a intensidade da espera e a improbabilidade da satisfação.” (BOURDIEU: p. 290)

Em outras palavras: K., engolfado pelo Processo, não pode mais dispor de seu próprio tempo, que é dominado pelo tribunal, pelas audiências a que tem que comparecer, pelas informações sobre seu caso que precisa conquistar, pela defesa que é mister empreender. Esta experiência de tempo kafkiana, em que o futuro é incerto e a possibilidade do pior está sempre aberta, é compreendida por Bourdieu como decorrente de uma certa posição social onde a justificação de uma existência particular perde sua sustentação. A existência singular de Josef K. “se mostra questionada em seu ser social mediante a calúnia inicial, espécie de pecado original sem origem, como o estigma racista” (BOURDIEU: p. 290).

Novamente, como é comum quando exploramos a obra kafkiana, retornamos à questão do estigma, uma espécie de tatuagem negativa imposta por certos grupos sociais, muitas vezes movidos por racismo, xenofobia, anti-semitismo etc., e imposto a certos grupos sociais que são estigmatizados, marginalizados, limitados em sua liberdade, ou mesmo exterminados de modo brutal. O III Reich, quando impõe que os judeus portem a estrela de Davi no peito, de certo modo estigmatiza de modo semelhante ao que faz um fazendeiro que marca seu gado com ferro fervente. A obra de Kafka contêm prenúncios dos horrores que ocorreriam na Europa dos anos 1930 e 1940, e cujas raízes já se encontravam no espaço social em que Kafka viveu – cabe lembrar que todas as suas irmãs morreram em campos de concentração e que o próprio Kafka, se não tivesse morrido tão cedo (aos 40 anos de idade, vítima da tuberculose), muito provavelmente também teria sido perseguido pelos nazistas. Talvez se possa, portanto, compreender em uma perspectiva mais ampla o problema da calúnia que Josef K. sente que lhe foi cometida: mais do que mera maledicência dirigida contra uma pessoa em particular, esta calúnia talvez seja o índice de uma prática social mais disseminada e consiste em estigmatizar todo um grupo social que se deseja, assim, marginalizar ou até aniquilar.

O pensamento de Bourdieu reconhece nos indivíduos um anseio por justificação, uma vontade de “sentir-se justificado por existir tal como existe”, e é justamente isto que é negado a K. pelo estigma calunioso que lhe é imposto. O “universo afetivo” de K. pode ser compreendido como uma representação da posição existencial do oprimido, do dominado, do estigmatizado, que sente que os poderes dominantes da sociedade se voltam contra ele, como naqueles pesadelos onde as paredes da cela vão estreitando até esmagar o sujeito. Conforme acompanhamos a narrativa d’ O Processo, sentimos que, para Josef K., the walls are always closing in.

“Ninguém pode proclamar verdadeiramente, nem diante dos outros, e muito menos diante de si mesmo, que ‘dispensa qualquer justificação’. Ora, se Deus está morto, a quem pedir tal justificação? Resta apenas o julgamento dos outros, princípio decisivo de incerteza e insegurança, mas também, e sem que haja contradição, de certeza, segurança, consagração. Ninguém – salvo Proust, embora num registro menos trágico – soube evocar como Kafka o confronto de pontos de vista inconciliáveis, de juízos particulares com pretensões à universalidade, o enfrentamento permanente entre a suspeita e o desmentido, a maledicência e o louvor, a calúnia e a reabilitação, terrível jogo de sociedade em que se elabora o veredicto do mundo social, esse produto inexorável do juízo inominável dos outros. (…) Josef K., inocente caluniado, obstina-se em buscar o ponto de vista dos pontos de vista, o tribunal supremo, a última instância. (…) E a questão do veredicto, juízo solenemente proferido por uma autoridade capaz de dizer de cada um o que se é na verdade, retorna ao fim do romance, por meio das interrogações finais de Josef. K.: ‘Onde estava o juiz que ele jamais vira? Onde era o tribunal supremo ao qual ele nunca tivera acesso?’” (BOURDIEU: 291)

Em O Processo, Deus, se existe, cala-se e esconde-se. Nenhum veredito cai do céu. O veredito é produto inteiramente social, e Josef K. sabe que seu destino depende deste veredito nascido de uma caótica, burocratizada e persecutória maquinaria social. Bourdieu, inspirado nas meditações de Pascal, julga, sobre a finitude da existência humana: “ainda que seja a única coisa certa na vida, fazemos tudo para esquecê-la, atirando-nos ao divertimento ou buscando refúgio na sociedade”. E é justamente “o mundo social que oferece aos humanos aquilo de que eles são inteiramente destituídos: uma justificativa para existir.” (pg. 292) Em outros termos: a finita existência humana só adquire justificação e sentido a partir de um reconhecimento social que delegue ao sujeito a crença em seu próprio valor como alguém que serve para algo, como alguém que desempenha alguma função social reconhecida e aplaudida pelos outros. Os subproletários, os judeus perseguidos, os negros do guetos americanos, assim como os personagens kafkianos, são todos exemplos, para Bourdieu, de existências que vivem na falta deste reconhecimento social indispensável para que o sujeito sinta que sua vida tem sentido.

“Pode-se estabelecer um vínculo necessário entre três fatos antropológicos indiscutíveis e indissociáveis: o homem é e sabe que é mortal, a idéia de que vai morrer lhe é insuportável ou impossível e, condenado à morte, fim (no sentido de termo) que não pode ser tomado como fim (no sentido de meta), o homem é um ser sem razão de ser, tomado pela necessidade de justificação, de legitimação, de reconhecimento. Ora, como sugere Pascal, nessa busca de justificativas para existir, o que ele chama ‘o mundo’, ou ‘a sociedade’, é a única instância capaz de fazer concorrência ao recurso a Deus.” (BOURDIEU, 293)

Uma das originalidades do pensamento sociológico de Bourdieu é destacar que as desigualdades sociais, em termos de distribuição de capital e propriedade, acarretam também uma desigualdade nas justificações para existir:

“Dentre todas as distribuições, uma das mais desiguais e, em todo caso, a mais cruel, é decerto a repartição do capital simbólico, ou seja, da importância social e das razões de viver. Sabe-se, por exemplo, que até mesmo os cuidados e tratos prestados pelas instituições e agentes hospitalares aos moribundos são proporcionais à sua importância social, ainda que de maneira mais inconsciente do que consciente. Na hierarquia das dignidades e indignidades, que nunca se superpõe inteiramente à hierarquia das riquezas e dos poderes, o nobre, em sua variante tradicional, ou em sua forma moderna – o que denomino nobreza de Estado -, contrapõe-se ao pária estigmatizado o qual, a exemplo do Judeu da época de Kafka, ou, hoje, o Negro dos guetos, o Árabe ou o Turco dos subúrbios operários das cidades européis, carrega a maldição de um capital simbólico negativo. (…) Não existe pior esbulho, pior privação, talvez, do que a dos derrotados na luta simbólica pelo reconhecimento, pelo acesso a um ser social socialmente reconhecido, ou seja, numa palavra, à humanidade.” (BOURDIEU, p. 295)

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Kafka por Robert Crumb

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: A Propósito do décimo aniversário de sua morte.

BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas.

CLASTRES, Pierre. Arqueologia da ViolênciaA sociedade contra o Estado.

CRUMB, Robert. Kafka. 

KAFKA. O Processo A Colônia Penal.

LÖWY, Michael. Kafka: Sonhador Insubmisso.

PAWEL, Ersnt. O Pesadelo da Razão. 

TODOROV, Tzvetan. Em Face do Extremo.

Lars Von Trier: Gênio ou Fraude? (por Linda Badley)

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“Lars Von Trier – genius or fraud?” – asks a May 2009 Guardian Arts Diary poll. Its subject is arguably world cinema’s most confrontational and polarizing figure, and the results: 60.3% genius, 39,7% fraud.

Trier takes risks no other filmmaker would conceive of (…) and willfully devastates audiences. Scandinavia’s foremost auteur since Ingmar Bergman, the Danish director is “the unabashed prince of the European avant-garde” (IndieWIRE). Challenging conventional limitations and imposing his own rules (changing them with each film), he restlessly reinvents the language of cinema.

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Personally he is as challenging as his films. After having written some of the most compelling heroines in recent cinema and elicited stunning, career-topping performances from Emily Watson, Björk, Nicole Kidman, and Charlotte Gainsbourg (photo), he is reputed to be a misogynist who bullies actresses and abuses his female characters in cinematic reinstatements of depleted sexist clichés.

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Actress and singer Charlotte Gainsbourg, who acted in Lars Von Trier’s films “Antichrist” and “Nymphomaniac”

He is notorious at Cannes for his provocations and insults, as in 1991, when he thanked “the midget” (Jury President Roman Polanski) for awarding his film Europa third, rather than first, prize. Some years later, at Cannes, in a scene worthy of Michael Moore, he called U.S. President George W. Bush an “idiot” and an “asshole”, lending vituperation to the already divisive Manderlay (2005), his film about an Alabama plantation practising slavery into the 1930s…

Coming from a small country infiltrated by America’s media-driven cultural imperialism, he has found it not merely his right or duty to make films about the United States but impossible to do otherwise. Despite that, Von Trier is known for his celebrated refusal or inability (he has a fear of flying) to set foot in the United States…

A similar effrontery had provided the catalyst for Dogme 95, the Danish collective and global movement that took on Hollywood in the 1990s and continues to be well served by the punk impertinence of the Dogme logo: a large, staring eye that flickers from the rear end of a bulldog (or is it a pig?).

Dogme shows where the provocateur and auteur come together. Claiming a new democracy in which (in the manifesto’s words) “anybody can make films”, Trier and the Dogme “brothers” market out a space for independent filmmaking beyond the global mass entertainment industry. Although he rarely leaves Denmark, he has cultivated a European and uniquely global cinema. Making his first films in English, he quickly found a niche in the international festival circuit. He drew inspiration from a wide swath – from the genius of Andrei Tarkovsky to movements such as Italian neorealism and the international New Waves of the 1960s-1970s, to American auteurs Stanley Kubrick and David Lynch…

1867LARS CAIXA 3DTrier’s long-term affinity with German culture – from expressionism and New German cinema to the writings of Karl Marx, Franz Kafka, and Friedrich Nietzsche – extends to equal passions for Wagnerian opera and anti-Wagnerian (Brechtian) theater… In spite of his flaunted internationalism, Trier has become the standard-bearer for Nordic cinema. Like Bergman and Carl Th. Dreyer, whose visions transcended nationality, he has exploited Scandinavian “imaginary” – bleak landscapes, Lutheran austerity and self-denial, the explosive release of repressed emotions – to project it elsewhere. He has similarly appropriated the Northern European Kammerspiel (chamber play) that Henrik Ibsen and August Strindberg had condensed into a charged medium. 

Reincarnating Dreyer’s martyrs (The Passion of Joan of Arc, 1928; Ordet, 1955) and the anguished female performances of Bergman’s films for the present era, he has invented a form of psycho-drama that traumatizes audiences while challenging them to respond to cinema in new ways.

His interest in theater goes back to his youth, and his films are theatrical in several senses: stylized, emotionally intense, and provocative. His features have invoked 20th century theatrical initiatives clustered under the heading of the performative: especially Antonin Artaud’s Theatre of Cruelty, Allen Kaprow’s “happenings”, and Guy Debord’s situationism, which reformulated Marxist-Brechtian aesthetics for the age of the “spectacle” in which power, concentrated in the media image, turns individuals into passive consumers.  In 1952, Debord called for an art that would “create situations rather than reproduce already existing ones” and through the performance of “lived experience” disrupt an expose the spectacle. In 1996, Trier similarly explained his view of cinema-as-provocation: “A provocation’s purpose is to get people to think. If you subject people to a provocation, you allow them the possibility of their own interpretation” (Tranceformer). (…) The films bear witness, make proclamations, issue commands, pose questions, provoke responses… Thus his films have had an impact on their surrounding contexts, affecting audiences, producing controversies, and changing the aesthetic, cultural, and political climate of the late 1990s an the 2000s.” 


By Linda Badley.

“Making The Waves: Cinema As Performance”.

University of Illinois Press. 2010.

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Thomas Vinterberg is the co-creator, together with Lars Von Trier, of Dogme 95. Linda Badley remembers that Dogme 95  “required abstinence from Hollywood-style high tech cosmetics, calling for an oppositional movement with its own doctrine and ten-rule “Vow of Chastity”. Coming up with the infamous rules was “easy”, claims Vinterberg: “We asked ourselves what we most hated about film today, and then we drew up a list banning it all. The idea was to put a mirror in front of the movie industry and say we can do it another way as well.”

Post reblogado do Awestruck Wanderer

“…um escritor que não escreve é, na verdade, um monstro que corteja a insanidade.” (Kafka)

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KAFKA de CRUMB
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“Escrever – segundo Kafka acreditava – era sua única razão de viver e seu único meio de manter-se vivo. Escrevo, logo existo. Sendo filho não de Deus, mas sim de Herrmann Kafka e da Idade da Razão, Kafka torturou a si próprio e aos que lhe eram íntimos com a tentativa constante de tentar justificar e racionalizar aquilo que não admite explicações. O momento em que mais se acercou da fonte de suas necessidades e de sua arte talvez tenha sido em uma carta a Milena Jesenská: “Tento constantemente comunicar algo incomunicável, explicar algo inexplicável, falar de algo que sinto apenas em meus ossos e que só pode ser experimentado nestes ossos…” Kafka não era um homem que escrevia, mas alguém para quem escrever era a única forma de ser, o único meio de desafiar a morte em vida.

Ele permaneceu relativamente desconhecido durante sua vida, mas sua fama póstuma chegou quase a eclipsar a de todo o meio literário de Praga; os luminares de sua época estão mortos e, quer tenham sido queimados ou enterrados, já não têm o poder de assombrar-nos. Se Kafka o faz, isso se deve, em larga escala, à paixão obsessiva que levou para o escrever como um ofício sagrado. Isso não equivale a imputar-lhe a pretensão furtiva de alguma missão divina, humildemente não confessada. A compulsão irresistível de escrever parecia-lhe parte de um destino obscuro e profundamente pessoal, e não há dúvida de que, em boa parte do tempo, sentiu-se mais compelido do que escolhido. “O escrever me sustenta”, escreve Kafka a Max Brod em 1922, “Quando não escrevo, é bem pior, inteiramente insuportável, e termina, inevitavelmente, na loucura. Isso, é claro, apenas partindo do pressuposto de que eu seja um escritor mesmo quando não escrevo – o que, aliás, é um fato; e um escritor que não escreve é, na verdade, um monstro que corteja a insanidade.”

Por mais singulares que fossem os sentimentos de Kafka sobre a vocação que escolheu, eles refletem também o espírito de uma era em que a literatura havia tomado o lugar da fé, dos ritos e da tradição, convertendo-se, ela própria, numa espécie de religião. Esse fenômeno não se restringiu aos judeus: Flaubert fala na literatura como “la mystique de qui ne croit à rien” (a mística de quem não crê em nada).”

ERNST PAWEL
“O Pesadelo da Razão”
Pg. 95-96. Ed. Imago.

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